Se os pensadores portugueses não abundam, sobram-nos os comentadores encartados. Vasco Pulido Valente compõe desde há muito a figura do cronista das desgraças nacionais. André Freire mostra dominar a agenda, os processos e as ideossincrasias dos actores políticos mas, nestes últimos tempos, tem-se perdido no combate partidário mais do que um analista deveria permitir-se. Pacheco Pereira comprova a sua independência sobretudo quando é crítico de governos do seu próprio partido mas já acusa em demasia a rotina do papel público que desempenha. Rui Tavares é um jovem que parece sinceramente empenhado em entender o que se passa e em encontrar soluções imaginativas para os principais problemas sociais e políticos, num quadro não fechado no nosso rectângulo. José Manuel Fernandes exibe agora a virtude de apontar, numa linguagem chã, casos e procedimentos geralmente ocultados pelos que actuam na cena pública. António José Teixeira é um jornalista de primeira linha, ponderado mas não equilibrista nas suas apreciações. E Teresa de Sousa ajuda-nos quase sempre a esquematizar e sintetizar os imbróglios internacionais em cenários racionais plausíveis, a despeito de evidenciar algumas crenças (por exemplo nas virtualidades do “processo europeu” ou no “défice das lideranças”) que bem mereciam ser tema de discussão.
Há outro grupo de comentadores – como podem ser os casos de Nicolau Santos (embora ultimamente mais crispado), Joaquim Aguiar, Loureiro dos Santos, Carlos Amaral Dias, José Gomes Ferreira, Carlos Gaspar, Jorge Almeida Fernandes ou mesmo Salgado de Matos (apesar do hermetismo ou das provocações do seu discurso) – com quem quase sempre se aprende algo de novo, não se repetindo nos seus próprios argumentos nem copiando coisas lidas em terceiros mas antes trazendo geralmente elementos pertinentes de análise, que não só iluminam as questões em debate como também nos deixam boas recomendações de método para pensar o futuro.
Manuel Villaverde Cabral (“Declaração de interesses”: este é meu amigo de longa data.) escapa um pouco às classificatórias anteriores pois é alguém intelectualmente muito activo e irrequieto, com uma notável capacidade para apreender coisas novas e que acredita mesmo naquilo que afirma, ainda que contrastando com coisas por si defendidas anteriormente com igual sinceridade e convicção. E António Barreto é menos um analista do que um opinion maker, hábil no modo como propõe certas rupturas, embora nem sempre no melhor tempo.
Porém, quando falam ou escrevem sobre qualquer tema, quase sempre sabemos antecipadamente o que irão dizer comentadores como Octávio Teixeira, João Carlos Espada, Boaventura Sousa Santos, Maria Filomena Mónica, Ana Gomes (esta, às vezes com surpresas), Rui Ramos, Bagão Félix, Carlos Magno (apesar dos seus esforços de originalidade), Medina Carreira, Pedro Adão e Silva (à parte algumas reflexões inteligentes), António Vitorino ou Vasco Graça Moura. Ajudam frequentemente a estruturar as opiniões do público em esquemas simples e/ou antitéticos (direita versus esquerda; poder versus oposição; movimento versus instituição; indivíduo versus colectivo; etc.) e, nesse sentido, cumprem talvez uma função indispensável, mas estão longe de contribuírem para a melhoria do nosso entendimento sobre os processos sociais que nos conduzem e ultrapassam.
JF/27.Jan.2012
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sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
sexta-feira, 20 de janeiro de 2012
Problemas económicos da vida actual
A actual omnipresença da economia no debate público – empobrecendo-o de todas as outras dimensões sociais, culturais, políticas, morais, etc. – não tem só inconvenientes. Como tem sido apontado por alguns analistas, obriga-nos a algum choque-de-realidade, a despeito do facto de “os números” se prestarem tanto ou mais do que “as ideias” à manipulação e à confusão intencional (que se vem juntar à dificuldade de entender os próprios fenómenos, que toda a gente hoje não dispensa de qualificar de “complexos”).
Não escreveram certos utópicos do século XIX que, na sociedade emancipada do futuro (uma qualquer forma de socialismo), o “governo dos homens” seria desejavelmente substituído pela “administração das coisas”?
Em certa medida, a vacuidade do discurso político em que persistem as forças partidárias tem a ver com uma certa oligarquização do poder democrático, onde se combinam a lógica da conservação/contestação dos instrumentos de governo, a cristalização de ideologias de outro tempo e os interesses materiais e psicológicos criados por essas elites.
Mas, por outro lado, mercê dos efeitos conjugados da economia e da tecnologia, pode dizer-se que o campo de incidência dos ditos fenómenos passou definitivamente – salvo catástrofe – do “nacional” para o “global”, havendo por isso um importante gap em relação às instituições e mecanismos de organização do poder político de uma sociedade, bem como a uma parte ainda significativa das mentalidades e representações mentais das pessoas comuns, maioritariamente ancoradas no grupo social, no país ou na sua particular cultura étnica ou religiosa.
Lembremos apenas quatro acontecimentos (da vida económico-financeira, mas com evidentes impactos sociais e sempre sujeitos a tratamento político) que têm agitado a nossa comunicação social nos últimos tempos.
1º As “privatizações” do que restava de capitais públicos em algumas grandes empresas já só causam repulsa aos sectores de esquerda que falam da importância “estratégica” da energia, da banca ou das telecomunicações, ou aos que ainda vibram com a “companhia de bandeira” no transporte aéreo. (“Privatização” é uma palavra equívoca nesta classe de empresas porque, se os interesses e as decisões são particulares, o escrutínio a que estão sujeitas é claramente público, e mais apertado do que em muitas “repartições” do Estado.) É certo que, numa perspectiva de independência nacional, estas actividades podem contar, mas não mais do que a marinha ou as reservas alimentares e de combustíveis (E como estaremos nós nestes capítulos?). No mundo de hoje, a soberania do Estado-nação está a léguas do que foi ainda há meio-século. O sistema de integração económica e política internacional, a solidez das alianças defensivas e a (intacta) capacidade governamental para “regular” certos sectores de actividade ou decretar discricionariamente medidas de interesse vital parecem ser aqui bem mais decisivos. Todavia, a localização da sede das empresas (por causa dos impostos que pagam e do eventual condicionamento de algumas das suas decisões), o regime de concorrência existente em cada sector (crucial para os consumidores e utentes) e, no conjunto, a balança comercial externa do país são, de facto, factores decisivos do bem-estar económico da sua população.
2º Há semanas, uma suposta denúncia do bispo de Beja da existência de “escravatura” no Alentejo levou a Antena 1, em alvoroço, a organizar uma entrevista colectiva com aquela entidade eclesiástica e responsáveis públicos das migrações, da Autoridade para as Condições de Trabalho e outros. Afinal, no decorrer do debate ouvimos indicações convergentes sobre a normalidade em que ali laboram trabalhadores imigrantes estrangeiros e até sobre a melhoria das condições de alojamento verificadas nos últimos anos. Percebeu-se então, sobretudo através do depoimento embaraçado do prelado, que este apenas fizera referência a uns rumores que lhe tinham chegado aos ouvidos e à mera hipótese de tal existir ainda hoje, no âmbito dos votos e preocupações formulados pelo Papa no dia internacional das migrações. Numa palavra: fôra a “rádio pública” a criar alarme, pela forma como se lançou, capitosa, sobre o “furo jornalístico” que tal notícia constituiria. Factos destes não são raros na nossa comunicação social.
3º Não se pode aceitar que, como o governo tem feito sem reservas, se tratem os salários dos funcionários públicos e as pensões dos reformados como se fossem uma mesma coisa. Num caso, estamos perante a contrapartida de um trabalho; no outro, perante um rendimento não convertido em consumo e de que o Estado ficou garante para assegurar ao trabalhador já aposentado uma sobrevivência económica para o resto dos seus dias. É certo que a evidência deste mecanismo sai esbatida pelo facto da obrigatoriedade dos descontos durante a vida activa (o que só mostra a inviabilidade dos sistemas de poupança individual para assegurar um fim-de-vida condigno à totalidade de uma população ou, se se quiser, as oposições de lógicas de interesse entre indivíduo e sociedade). Mas isso não obsta a que o Estado tenha que ser o fiel depositário das poupanças (forçadas) dos trabalhadores, que lhes devem ser restituídas a partir do momento da sua aposentação.
4º Nos actos médicos do Serviço Nacional de Saúde, os aumentos de preços agora praticados já só abusivamente permitem considerar estes como “taxas moderadoras” – isto é, para desincentivar um uso não justificado –, pois trata-se antes de uma verdadeira comparticipação nos custos. É uma filosofia diferente da “universalidade” dos cuidados de saúde que pode ser explicitada e defendida sem vergonha – sobretudo quando se isentam os cidadãos de menores recursos desse esforço financeiro e não se prejudica o atendimento dos casos de urgência com trâmites burocráticos. O balanço entre custos e receitas do sistema pode perfeitamente justificar tais medidas, mas só se ganharia em credibilidade e mais clara compreensão dos problemas com o emprego de uma linguagem de verdade, em vez das piruetas jurídico-terminológicas do tipo do “tendencialmente gratuito”.
A estatização da economia e da nossa vida social é tão forte e interiorizada pelos cidadãos que perdemos toda a confiança nas iniciativas da sociedade (nas empresas, mas também nas associações sem fins lucrativos, sendo ainda os trabalhadores talvez aqueles que mais confiam… porque não têm outra saída) e, hoje, perante o risco concreto de bancarrota pública (É mentira que, se falharmos as metas da troika, deixa logo de haver dinheiro para pagar aos funcionários e pensionistas?), também no próprio Estado.
JF / 20.Jan.2011
Não escreveram certos utópicos do século XIX que, na sociedade emancipada do futuro (uma qualquer forma de socialismo), o “governo dos homens” seria desejavelmente substituído pela “administração das coisas”?
Em certa medida, a vacuidade do discurso político em que persistem as forças partidárias tem a ver com uma certa oligarquização do poder democrático, onde se combinam a lógica da conservação/contestação dos instrumentos de governo, a cristalização de ideologias de outro tempo e os interesses materiais e psicológicos criados por essas elites.
Mas, por outro lado, mercê dos efeitos conjugados da economia e da tecnologia, pode dizer-se que o campo de incidência dos ditos fenómenos passou definitivamente – salvo catástrofe – do “nacional” para o “global”, havendo por isso um importante gap em relação às instituições e mecanismos de organização do poder político de uma sociedade, bem como a uma parte ainda significativa das mentalidades e representações mentais das pessoas comuns, maioritariamente ancoradas no grupo social, no país ou na sua particular cultura étnica ou religiosa.
Lembremos apenas quatro acontecimentos (da vida económico-financeira, mas com evidentes impactos sociais e sempre sujeitos a tratamento político) que têm agitado a nossa comunicação social nos últimos tempos.
1º As “privatizações” do que restava de capitais públicos em algumas grandes empresas já só causam repulsa aos sectores de esquerda que falam da importância “estratégica” da energia, da banca ou das telecomunicações, ou aos que ainda vibram com a “companhia de bandeira” no transporte aéreo. (“Privatização” é uma palavra equívoca nesta classe de empresas porque, se os interesses e as decisões são particulares, o escrutínio a que estão sujeitas é claramente público, e mais apertado do que em muitas “repartições” do Estado.) É certo que, numa perspectiva de independência nacional, estas actividades podem contar, mas não mais do que a marinha ou as reservas alimentares e de combustíveis (E como estaremos nós nestes capítulos?). No mundo de hoje, a soberania do Estado-nação está a léguas do que foi ainda há meio-século. O sistema de integração económica e política internacional, a solidez das alianças defensivas e a (intacta) capacidade governamental para “regular” certos sectores de actividade ou decretar discricionariamente medidas de interesse vital parecem ser aqui bem mais decisivos. Todavia, a localização da sede das empresas (por causa dos impostos que pagam e do eventual condicionamento de algumas das suas decisões), o regime de concorrência existente em cada sector (crucial para os consumidores e utentes) e, no conjunto, a balança comercial externa do país são, de facto, factores decisivos do bem-estar económico da sua população.
2º Há semanas, uma suposta denúncia do bispo de Beja da existência de “escravatura” no Alentejo levou a Antena 1, em alvoroço, a organizar uma entrevista colectiva com aquela entidade eclesiástica e responsáveis públicos das migrações, da Autoridade para as Condições de Trabalho e outros. Afinal, no decorrer do debate ouvimos indicações convergentes sobre a normalidade em que ali laboram trabalhadores imigrantes estrangeiros e até sobre a melhoria das condições de alojamento verificadas nos últimos anos. Percebeu-se então, sobretudo através do depoimento embaraçado do prelado, que este apenas fizera referência a uns rumores que lhe tinham chegado aos ouvidos e à mera hipótese de tal existir ainda hoje, no âmbito dos votos e preocupações formulados pelo Papa no dia internacional das migrações. Numa palavra: fôra a “rádio pública” a criar alarme, pela forma como se lançou, capitosa, sobre o “furo jornalístico” que tal notícia constituiria. Factos destes não são raros na nossa comunicação social.
3º Não se pode aceitar que, como o governo tem feito sem reservas, se tratem os salários dos funcionários públicos e as pensões dos reformados como se fossem uma mesma coisa. Num caso, estamos perante a contrapartida de um trabalho; no outro, perante um rendimento não convertido em consumo e de que o Estado ficou garante para assegurar ao trabalhador já aposentado uma sobrevivência económica para o resto dos seus dias. É certo que a evidência deste mecanismo sai esbatida pelo facto da obrigatoriedade dos descontos durante a vida activa (o que só mostra a inviabilidade dos sistemas de poupança individual para assegurar um fim-de-vida condigno à totalidade de uma população ou, se se quiser, as oposições de lógicas de interesse entre indivíduo e sociedade). Mas isso não obsta a que o Estado tenha que ser o fiel depositário das poupanças (forçadas) dos trabalhadores, que lhes devem ser restituídas a partir do momento da sua aposentação.
4º Nos actos médicos do Serviço Nacional de Saúde, os aumentos de preços agora praticados já só abusivamente permitem considerar estes como “taxas moderadoras” – isto é, para desincentivar um uso não justificado –, pois trata-se antes de uma verdadeira comparticipação nos custos. É uma filosofia diferente da “universalidade” dos cuidados de saúde que pode ser explicitada e defendida sem vergonha – sobretudo quando se isentam os cidadãos de menores recursos desse esforço financeiro e não se prejudica o atendimento dos casos de urgência com trâmites burocráticos. O balanço entre custos e receitas do sistema pode perfeitamente justificar tais medidas, mas só se ganharia em credibilidade e mais clara compreensão dos problemas com o emprego de uma linguagem de verdade, em vez das piruetas jurídico-terminológicas do tipo do “tendencialmente gratuito”.
A estatização da economia e da nossa vida social é tão forte e interiorizada pelos cidadãos que perdemos toda a confiança nas iniciativas da sociedade (nas empresas, mas também nas associações sem fins lucrativos, sendo ainda os trabalhadores talvez aqueles que mais confiam… porque não têm outra saída) e, hoje, perante o risco concreto de bancarrota pública (É mentira que, se falharmos as metas da troika, deixa logo de haver dinheiro para pagar aos funcionários e pensionistas?), também no próprio Estado.
JF / 20.Jan.2011
sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
Questões fracturantes
Publicou há dias um jornal diário (Público, 21 de Dezembro de 2011, p. 31) duas opiniões fundamentadas e contrastantes sobre novas questões colocadas pela disponibilidade de técnicas de procriação medicamente assistidas.
Os leitores interessados ganharam certamente em ter podido confrontar tais pontos de vista.
Pela minha parte, confirmei que os apóstolos destes “novos direitos” põem o interesse dos “pais” (sob qualquer das formas como se apresentem) à frente do interesse do futuro ser. Se não estou equivocado, isto significa que partem de um princípio egoísta (que, obviamente, também ocorre em inúmeros casos de procriação “normal”) e não de um princípio altruísta – centrado sobre a criança –, o qual tenderá a sublinhar a responsabilidade dos progenitores no seu processo educativo, até que possa subsistir autonomamente.
Em segundo lugar, clarifiquei melhor o meu entendimento acerca do papel da “mãe de aluguer”: já o sabia no plano do “interesse económico” na operação (o aluguer do corpo na prostituição é um paralelo inevitável). Mas fiquei mais atento aos aspectos emocionais e psicológicos que envolverão uma gravidez a benefício de terceiros.
Daqui resultou ficar reforçada em mim a suspeita de estas tendências vanguardistas do nosso mundo contemporâneo estarem intimamente associadas a um hedonismo ilimitado, comandado pelo princípio do prazer e apostado em rebelar-se contra o meio natural de que fazemos parte, mas que desejaríamos fazer dobrar à nossa vontade soberana.
E eu que julgava que o ecologismo difundido nas últimas décadas tinha vindo trazer mais moderação a tais ambições!...
Já depois de escrito o que se leu acima, publicou o mesmo jornal diário um artigo de opinião do psiquiatra Emílio Salgueiro (“O superior interesse das crianças nos processos de separação”, 29.Dez.2011) que aborda os efeitos negativos sobre as crianças das desavenças conjugais. Dado que tal tende a ser menosprezado e revela a coragem do seu autor, certamente bem fundamentada nos seus conhecimentos e experiência clínica, recomendo vivamente a sua leitura.
JF / 13.Jan.2011
Os leitores interessados ganharam certamente em ter podido confrontar tais pontos de vista.
Pela minha parte, confirmei que os apóstolos destes “novos direitos” põem o interesse dos “pais” (sob qualquer das formas como se apresentem) à frente do interesse do futuro ser. Se não estou equivocado, isto significa que partem de um princípio egoísta (que, obviamente, também ocorre em inúmeros casos de procriação “normal”) e não de um princípio altruísta – centrado sobre a criança –, o qual tenderá a sublinhar a responsabilidade dos progenitores no seu processo educativo, até que possa subsistir autonomamente.
Em segundo lugar, clarifiquei melhor o meu entendimento acerca do papel da “mãe de aluguer”: já o sabia no plano do “interesse económico” na operação (o aluguer do corpo na prostituição é um paralelo inevitável). Mas fiquei mais atento aos aspectos emocionais e psicológicos que envolverão uma gravidez a benefício de terceiros.
Daqui resultou ficar reforçada em mim a suspeita de estas tendências vanguardistas do nosso mundo contemporâneo estarem intimamente associadas a um hedonismo ilimitado, comandado pelo princípio do prazer e apostado em rebelar-se contra o meio natural de que fazemos parte, mas que desejaríamos fazer dobrar à nossa vontade soberana.
E eu que julgava que o ecologismo difundido nas últimas décadas tinha vindo trazer mais moderação a tais ambições!...
Já depois de escrito o que se leu acima, publicou o mesmo jornal diário um artigo de opinião do psiquiatra Emílio Salgueiro (“O superior interesse das crianças nos processos de separação”, 29.Dez.2011) que aborda os efeitos negativos sobre as crianças das desavenças conjugais. Dado que tal tende a ser menosprezado e revela a coragem do seu autor, certamente bem fundamentada nos seus conhecimentos e experiência clínica, recomendo vivamente a sua leitura.
JF / 13.Jan.2011
sexta-feira, 6 de janeiro de 2012
Os custos da insularidade
É evidente e injusta a penalização que sofrem os habitantes das regiões periféricas, relativamente às zonas de maior densidade populacional, onde também se concentra o grosso da riqueza gerada pelo sistema económico.
É por isso justificável a existência de medidas de solidariedade que minimizem esses inconvenientes – o que, aliás, pode ser feito de diversas maneiras.
Mas, mesmo aceitando o essencial dos dispositivos adoptados pela República relativamente às Regiões Autónomas dos dois arquipélagos portugueses do Atlântico, talvez haja razão para questionar alguns dos seus mecanismos concretos.
Parece-nos aceitável o aligeiramento dos impostos nacionais que onerem as empresas locais, as quais enfrentam diversos acréscimos dos custos de produção pelo facto do seu isolamento e operam altamente condicionadas pela exiguidade dos mercados locais. Esses incentivos fiscais deveriam, além do mais, ajudar a captar os investimentos produtivos externos de que essas regiões necessitam.
Julgamos absolutamente justificável o investimento estatal e as eventuais concessões de serviços de interesse público para que madeirenses e açoreanos possam dispor de meios de transporte e comunicação, de saúde, de oferta escolar ou de apoio social aos mais carenciados equivalentes aos dos seus concidadãos continentais. E, dado o atraso relativo em que se encontravam esses arquipélagos, é lógico que mais despesa tivesse que ser feita com tais investimentos, relativamente ao continente.
É ainda compreensível algum tipo de subsidiação individual aos ilhéus que tenham de se deslocar ao continente para tratamentos médicos ali inexistentes, aos estudantes do ensino superior que frequentem cursos só oferecidos em escolas continentais ou até aos atletas ou artistas que venham participar em competições ou manifestações culturais realizadas em Lisboa ou no Porto.
Mas já nos parece muito discutível que o IVA pago pelo consumidor final tenha taxas reduzidas nas Regiões Autónomas, que seja o erário público a sustentar o turismo sénior destas populações ou que todos os residentes nas ilhas, indiscriminadamente, tenham viagens à capital a preço mais baixo do que qualquer outro cidadão. E julgamos de mau gosto que o governo dos Açores isente os seus funcionários dos cortes que se aplicam no resto do país, lá porque terá contas superavitárias: para quem sempre pediu solidariedade, eis a resposta!...
Quanto à Madeira, os exageros arbitrados durante todos estes anos pelo “mestre-de-charanga” da Quinta Vigia vão ter agora o retorno inevitável, sob a forma de restrições, reduções e agravamentos de toda a ordem a serem pagos pela população que o tem bajulado, ou nem tanto.
É de crer que isto seja o resultado da forma como as formações partidárias locais procuraram garantir a sua manutenção no poder por via destas generosidades financeiras, numa espécie da “política do bacalhau a pataco” de outrora.
As populações insulares não precisam de privilégios nem de ser tratadas como “coitadinhos”, antes com a equidade possível em relação aos restantes cidadãos. E, com a desejável melhoria das condições de vida, certamente que saberão preservar a lhaneza da sua convivência e (esperemos) o seu o sotaque tão encantador.
JF / 6.Jan.2012
É por isso justificável a existência de medidas de solidariedade que minimizem esses inconvenientes – o que, aliás, pode ser feito de diversas maneiras.
Mas, mesmo aceitando o essencial dos dispositivos adoptados pela República relativamente às Regiões Autónomas dos dois arquipélagos portugueses do Atlântico, talvez haja razão para questionar alguns dos seus mecanismos concretos.
Parece-nos aceitável o aligeiramento dos impostos nacionais que onerem as empresas locais, as quais enfrentam diversos acréscimos dos custos de produção pelo facto do seu isolamento e operam altamente condicionadas pela exiguidade dos mercados locais. Esses incentivos fiscais deveriam, além do mais, ajudar a captar os investimentos produtivos externos de que essas regiões necessitam.
Julgamos absolutamente justificável o investimento estatal e as eventuais concessões de serviços de interesse público para que madeirenses e açoreanos possam dispor de meios de transporte e comunicação, de saúde, de oferta escolar ou de apoio social aos mais carenciados equivalentes aos dos seus concidadãos continentais. E, dado o atraso relativo em que se encontravam esses arquipélagos, é lógico que mais despesa tivesse que ser feita com tais investimentos, relativamente ao continente.
É ainda compreensível algum tipo de subsidiação individual aos ilhéus que tenham de se deslocar ao continente para tratamentos médicos ali inexistentes, aos estudantes do ensino superior que frequentem cursos só oferecidos em escolas continentais ou até aos atletas ou artistas que venham participar em competições ou manifestações culturais realizadas em Lisboa ou no Porto.
Mas já nos parece muito discutível que o IVA pago pelo consumidor final tenha taxas reduzidas nas Regiões Autónomas, que seja o erário público a sustentar o turismo sénior destas populações ou que todos os residentes nas ilhas, indiscriminadamente, tenham viagens à capital a preço mais baixo do que qualquer outro cidadão. E julgamos de mau gosto que o governo dos Açores isente os seus funcionários dos cortes que se aplicam no resto do país, lá porque terá contas superavitárias: para quem sempre pediu solidariedade, eis a resposta!...
Quanto à Madeira, os exageros arbitrados durante todos estes anos pelo “mestre-de-charanga” da Quinta Vigia vão ter agora o retorno inevitável, sob a forma de restrições, reduções e agravamentos de toda a ordem a serem pagos pela população que o tem bajulado, ou nem tanto.
É de crer que isto seja o resultado da forma como as formações partidárias locais procuraram garantir a sua manutenção no poder por via destas generosidades financeiras, numa espécie da “política do bacalhau a pataco” de outrora.
As populações insulares não precisam de privilégios nem de ser tratadas como “coitadinhos”, antes com a equidade possível em relação aos restantes cidadãos. E, com a desejável melhoria das condições de vida, certamente que saberão preservar a lhaneza da sua convivência e (esperemos) o seu o sotaque tão encantador.
JF / 6.Jan.2012
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
Repartir o trabalho, taxar o capital
Estas ideias são todas antigas. No período de grandes crises que se seguiu à Guerra de 1914-18, os anarco-sindicalistas portugueses procuravam distribuir o pouco trabalho existente por todos os trabalhadores, de molde a evitar os despedimentos e a completa falta de recursos para os desempregados sobreviverem. A CGT chegou a falar numa redução do horário para 30 horas semanais, mas, de facto, em alguns sectores (como no vidro, nos transportes marítimos, na metalurgia, na cortiça), os sindicatos lograram diminuir drasticamente o tempo de trabalho – e o correspondente salário – equitativamente entre toda a força-de-trabalho. Em contrapartida, os comunistas de então reclamavam a criação de um subsídio para os sem-trabalho – a que Salazar respondeu com um desconto obrigatório de 2% nos salários para um Fundo de Desemprego que, aliás, só veio a pagar subsídios aos desempregados mais de três décadas depois…
Há poucos anos, falavam certos especialistas europeus nas vantagens de “repartir o trabalho”, nomeadamente através do incremento do trabalho-a-meio-tempo. Na Holanda e outras nações nórdicas, esta modalidade de emprego está significativamente mais difundida no que na generalidade dos países (embora, naturalmente, o nível de salários aí praticado facilite tal opção).
Agora, em plena crise, ninguém parece sugerir soluções deste tipo, muito menos em Portugal. Os que têm trabalho agarram-se a ele, aceitam alongamentos do horário; e os que fazem regularmente “horas suplementares” nem por sombras pensam prescindir desse rendimento extra a que se habituaram. Lamentam os colegas lançados para o desemprego, bramam contra o governo e os ricos, mas: nem sonhar com qualquer modalidade de resistência económica mais equitativa e solidária! No mundo individualista e concorrencial em que vivemos, não espanta que assim aconteça.
É certo que as taxações dos altos rendimentos e das operações financeiras especulativas aparecerão sempre, aos olhos da maioria, como as soluções mais justas e mais óbvias, que não serão mais vigorosamente executadas apenas pelo “conluio existente entre os poderes político e económico”. Há uma certa dose de verdade nesta afirmação, mas o problema mais espinhoso é que, para cada país de per si (e pior se for um país pequeno), os impostos sobre a riqueza financeira afastam imediatamente os capitais e os investimentos produtivos para outras paragens, não apenas por motivos de ganância, mas também pela decisão racional de um gestor financeiro que vai proporcionar a cada um de nós – pequenino aforrador ou depositante bancário – uma remuneração das suas poupanças ligeiramente mais atractiva. Este, um dos dramas da insidiosa economia global actual. Os grandes números fazem o resto.
É, porém, possível que todos tenham uma parte de razão, mesmo pensando apenas no curto prazo. Que, de acordo com a situação de cada sector de actividade e um reexame das prioridades pessoais de cada qual, se possa caminhar para mais frequentes soluções de “partilha do trabalho” e modalidades de part-time. Que, mesmo de forma não-contributiva, não devam faltar a cada pessoa os apoios de sobrevivência mínima, sem que com isso se estimule o ócio ou a delinquência. E que a falada “supervisão financeira internacional”, constrangindo e taxando os movimentos de capitais, permita um aumento significativo da contribuição das classes mais ricas em favor de um desenvolvimento mais equilibrado do conjunto da sociedade.
JF / 30.Dez.2011
Há poucos anos, falavam certos especialistas europeus nas vantagens de “repartir o trabalho”, nomeadamente através do incremento do trabalho-a-meio-tempo. Na Holanda e outras nações nórdicas, esta modalidade de emprego está significativamente mais difundida no que na generalidade dos países (embora, naturalmente, o nível de salários aí praticado facilite tal opção).
Agora, em plena crise, ninguém parece sugerir soluções deste tipo, muito menos em Portugal. Os que têm trabalho agarram-se a ele, aceitam alongamentos do horário; e os que fazem regularmente “horas suplementares” nem por sombras pensam prescindir desse rendimento extra a que se habituaram. Lamentam os colegas lançados para o desemprego, bramam contra o governo e os ricos, mas: nem sonhar com qualquer modalidade de resistência económica mais equitativa e solidária! No mundo individualista e concorrencial em que vivemos, não espanta que assim aconteça.
É certo que as taxações dos altos rendimentos e das operações financeiras especulativas aparecerão sempre, aos olhos da maioria, como as soluções mais justas e mais óbvias, que não serão mais vigorosamente executadas apenas pelo “conluio existente entre os poderes político e económico”. Há uma certa dose de verdade nesta afirmação, mas o problema mais espinhoso é que, para cada país de per si (e pior se for um país pequeno), os impostos sobre a riqueza financeira afastam imediatamente os capitais e os investimentos produtivos para outras paragens, não apenas por motivos de ganância, mas também pela decisão racional de um gestor financeiro que vai proporcionar a cada um de nós – pequenino aforrador ou depositante bancário – uma remuneração das suas poupanças ligeiramente mais atractiva. Este, um dos dramas da insidiosa economia global actual. Os grandes números fazem o resto.
É, porém, possível que todos tenham uma parte de razão, mesmo pensando apenas no curto prazo. Que, de acordo com a situação de cada sector de actividade e um reexame das prioridades pessoais de cada qual, se possa caminhar para mais frequentes soluções de “partilha do trabalho” e modalidades de part-time. Que, mesmo de forma não-contributiva, não devam faltar a cada pessoa os apoios de sobrevivência mínima, sem que com isso se estimule o ócio ou a delinquência. E que a falada “supervisão financeira internacional”, constrangindo e taxando os movimentos de capitais, permita um aumento significativo da contribuição das classes mais ricas em favor de um desenvolvimento mais equilibrado do conjunto da sociedade.
JF / 30.Dez.2011
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
Pensadores portugueses
Vem isto a propósito das recentes homenagens de que foram alvo Eduardo Lourenço e Gonçalo Ribeiro Teles. Este último é decerto um “homem do agro” com visão, conhecimentos alargados e muita determinação na forma como defende as suas convicções e naquilo em que se empenha, seja na crítica ao Estado Novo, ao industrialismo e à urbanização sem limites, seja na ambição de uma cidade mais ruralizada e equilibrada, seja ainda na sua fé acerca da superioridade do “regime do beija-mão”.
Além de poetas, os portugueses sempre tiveram excelentes escritores e alguns bons pensadores. Entre os nossos contemporâneos, Eduardo Lourenço estará entre os de primeira linha. Com aquela sempre perturbante fisionomia e dicção que tanto o aproximam de Salazar, está-lhe porventura nos antípodas, quer do pensamento, quer da acção: é, por assim dizer, a sua absoluta negação. Mas é também o mais douto e talentoso representante da opinião “de esquerda” – exprima-se ela no plano político, cultural ou literário –, com o que isso implica de acampamento no “arraial do contra-establishment” e, portanto, num certo sentido, bem distante da complexidade inteligente do Pessoa que tanto admira, e cujo nome designa o prémio com que acaba de ser distinguido.
É talvez seu émulo, em quadrante ideológico oposto mas com intervenções políticas mais afirmadas (e talvez mais arriscadas), Adriano Moreira, outro espírito de enorme sabedoria e acutilância, que foi capaz de ser um potencial reformador do Estado Novo e de tornar-se depois numa figura respeitada do regime democrático, não deixando de afirmar o seu lugar no mundo universitário e nos espaços onde hoje se debate a essência e o futuro da nação.
Sua vizinha de percurso e de convicção religiosa, Maria de Lurdes Pintasilgo mereceria talvez outro reconhecimento público, pela forma como soube entender algumas das principais fermentações (e desde logo a emancipação da mulher e as condições de participação na cidadania) que, desde as décadas de 60/70 do século passado, começaram a emergir nas sociedades ocidentais, e pela sua preocupação em procurar articulá-las com a situação mundial.
Não podemos também deixar de lembrar António José Saraiva, homem de letras, da cultura e da história, vindo da área dos compagnons de route comunistas mas que, atentíssimo ao que se ia passando pelo mundo, veio a adoptar uma postura francamente libertária, sem nunca se vergar à disciplina de qualquer seita ou capela.
Mas estes nomes não devem obscurecer o de Agostinho da Silva, um humanista livre e visionário que, sem deixar de pensar em português e quase realizando o milagre de fundir o Gama com o velho restelense, soube oferecer-nos um extenso rol de reflexões para nos armar o espírito crítico, tão necessário de preservar quando se esbatem os contornos dos territórios culturais que vestimos e se desenham outros novos que ainda estamos longe de abarcar. E deu-nos também o exemplo da capacidade de sonhar.
Em tempo de “Festas”, é bom pensarmos no melhor.
JF / 23.Dez.2011
Além de poetas, os portugueses sempre tiveram excelentes escritores e alguns bons pensadores. Entre os nossos contemporâneos, Eduardo Lourenço estará entre os de primeira linha. Com aquela sempre perturbante fisionomia e dicção que tanto o aproximam de Salazar, está-lhe porventura nos antípodas, quer do pensamento, quer da acção: é, por assim dizer, a sua absoluta negação. Mas é também o mais douto e talentoso representante da opinião “de esquerda” – exprima-se ela no plano político, cultural ou literário –, com o que isso implica de acampamento no “arraial do contra-establishment” e, portanto, num certo sentido, bem distante da complexidade inteligente do Pessoa que tanto admira, e cujo nome designa o prémio com que acaba de ser distinguido.
É talvez seu émulo, em quadrante ideológico oposto mas com intervenções políticas mais afirmadas (e talvez mais arriscadas), Adriano Moreira, outro espírito de enorme sabedoria e acutilância, que foi capaz de ser um potencial reformador do Estado Novo e de tornar-se depois numa figura respeitada do regime democrático, não deixando de afirmar o seu lugar no mundo universitário e nos espaços onde hoje se debate a essência e o futuro da nação.
Sua vizinha de percurso e de convicção religiosa, Maria de Lurdes Pintasilgo mereceria talvez outro reconhecimento público, pela forma como soube entender algumas das principais fermentações (e desde logo a emancipação da mulher e as condições de participação na cidadania) que, desde as décadas de 60/70 do século passado, começaram a emergir nas sociedades ocidentais, e pela sua preocupação em procurar articulá-las com a situação mundial.
Não podemos também deixar de lembrar António José Saraiva, homem de letras, da cultura e da história, vindo da área dos compagnons de route comunistas mas que, atentíssimo ao que se ia passando pelo mundo, veio a adoptar uma postura francamente libertária, sem nunca se vergar à disciplina de qualquer seita ou capela.
Mas estes nomes não devem obscurecer o de Agostinho da Silva, um humanista livre e visionário que, sem deixar de pensar em português e quase realizando o milagre de fundir o Gama com o velho restelense, soube oferecer-nos um extenso rol de reflexões para nos armar o espírito crítico, tão necessário de preservar quando se esbatem os contornos dos territórios culturais que vestimos e se desenham outros novos que ainda estamos longe de abarcar. E deu-nos também o exemplo da capacidade de sonhar.
Em tempo de “Festas”, é bom pensarmos no melhor.
JF / 23.Dez.2011
sábado, 17 de dezembro de 2011
Direitos e deveres humanos
Mais uma vez se assinalou no dia 10 de Dezembro o aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem que, na sequência da última guerra mundial, ajudou a definir o papel da ONU.
Não foi um inédito mas trata-se de um documento notável onde, em 30 singelos artigos, se diz o fundamental sobre os princípios que deveriam guiar a vida das colectividades humanas na nossa época. Notável, sobretudo, por ter sido produzido num tempo em que já se estava instalando a divisão do mundo em dois blocos inconciliáveis e à beira da emancipação política dos povos colonizados.
Depois disso, a afirmação e o exercício dos ‘direitos’ progrediu extraordinariamente, a par de uma maior e melhor informação disponibilizada pelos novos meios de comunicação social. A pena de morte e as torturas e tratamentos (prisionais mas também policiais, militares ou familiares) qualificados de cruéis, degradantes ou desumanos sofreram um enorme recuo. Aos direitos civis e políticos básicos (que têm essencialmente a ver com a liberdade individual e a dignidade da pessoa) foram acrescentados outros, de natureza económica, social e cultural. Surgiram depois os direitos reivindicados por grupos sociais mais específicos, como as mulheres e as “minorias” (crianças, idosos e outros), de preservação do ambiente natural, dos animais, etc.
Porém, é também legítimo perguntar se tal reivindicação de direitos não leva, por vezes, a resultados opostos aos pretendidos, no conhecido processo dos efeitos perversos. Isto é, se, para as novas gerações que encontram uma sociedade plena de direitos, de “objectos de desejo” e de fracos impedimentos para as transgressões – ao mesmo tempo que uma cultura altamente estimulante para o “sair de si”, a negação, a experienciação, a re-criação, o espectacular e a violência (veja-se o caso dos filmes e da música) – isto não é um convite a que se destruam equilíbrios fundamentais entre a realidade e o projecto, os recursos e a acção, a integração e as mudanças, os direitos e os deveres.
É certo que existem hoje ameaças reais suscitadas pelo uso de tecnologias sofisticadas que justificam uma atenção constante dos cidadãos para que, sob a aparência de gadgets modernistas, se não comprimam as liberdades individuais e colectivas, submetidas a poderes fácticos ou mesmo legitimados pela opinião da maioria.
Mas sabe-se que nenhum sistema social razoavelmente justo, restrito ou amplo, funciona sem um equilíbrio de direitos e deveres dos participantes. Está, pois, talvez na altura de se procurar um balanceamento mais equitativo entre as supracitadas afirmações de direitos, liberdades e garantias – sem dúvida importantes, em si mesmos, e aferidores de uma superior qualidade da existência humana – e as correspondentes contribuições que indivíduos e comunidades particulares devem dar em prol do bem comum. Sobretudo quando se sabe que o universalismo que se atribuíram os redactores da Declaração, apesar de toda a sua boa-vontade, incide apenas sobre uma fatia parcial da população mundial e que imensas massas humanas se debatem ainda com os problemas primordiais da sobrevivência, bem como do seu espinhoso e problemático acesso à categoria de cidadãos (de que são exemplos o que acontece na China, hoje o grande produtor de mercadorias baratas para todo o mundo, ou a forma como o regime político da Síria reprime militarmente as manifestações de protesto dos seus opositores, que já sofreram mais de 4 mil mortos por balas nas ruas, ao longo dos últimos meses).
JF / 17.Dez.2011
Não foi um inédito mas trata-se de um documento notável onde, em 30 singelos artigos, se diz o fundamental sobre os princípios que deveriam guiar a vida das colectividades humanas na nossa época. Notável, sobretudo, por ter sido produzido num tempo em que já se estava instalando a divisão do mundo em dois blocos inconciliáveis e à beira da emancipação política dos povos colonizados.
Depois disso, a afirmação e o exercício dos ‘direitos’ progrediu extraordinariamente, a par de uma maior e melhor informação disponibilizada pelos novos meios de comunicação social. A pena de morte e as torturas e tratamentos (prisionais mas também policiais, militares ou familiares) qualificados de cruéis, degradantes ou desumanos sofreram um enorme recuo. Aos direitos civis e políticos básicos (que têm essencialmente a ver com a liberdade individual e a dignidade da pessoa) foram acrescentados outros, de natureza económica, social e cultural. Surgiram depois os direitos reivindicados por grupos sociais mais específicos, como as mulheres e as “minorias” (crianças, idosos e outros), de preservação do ambiente natural, dos animais, etc.
Porém, é também legítimo perguntar se tal reivindicação de direitos não leva, por vezes, a resultados opostos aos pretendidos, no conhecido processo dos efeitos perversos. Isto é, se, para as novas gerações que encontram uma sociedade plena de direitos, de “objectos de desejo” e de fracos impedimentos para as transgressões – ao mesmo tempo que uma cultura altamente estimulante para o “sair de si”, a negação, a experienciação, a re-criação, o espectacular e a violência (veja-se o caso dos filmes e da música) – isto não é um convite a que se destruam equilíbrios fundamentais entre a realidade e o projecto, os recursos e a acção, a integração e as mudanças, os direitos e os deveres.
É certo que existem hoje ameaças reais suscitadas pelo uso de tecnologias sofisticadas que justificam uma atenção constante dos cidadãos para que, sob a aparência de gadgets modernistas, se não comprimam as liberdades individuais e colectivas, submetidas a poderes fácticos ou mesmo legitimados pela opinião da maioria.
Mas sabe-se que nenhum sistema social razoavelmente justo, restrito ou amplo, funciona sem um equilíbrio de direitos e deveres dos participantes. Está, pois, talvez na altura de se procurar um balanceamento mais equitativo entre as supracitadas afirmações de direitos, liberdades e garantias – sem dúvida importantes, em si mesmos, e aferidores de uma superior qualidade da existência humana – e as correspondentes contribuições que indivíduos e comunidades particulares devem dar em prol do bem comum. Sobretudo quando se sabe que o universalismo que se atribuíram os redactores da Declaração, apesar de toda a sua boa-vontade, incide apenas sobre uma fatia parcial da população mundial e que imensas massas humanas se debatem ainda com os problemas primordiais da sobrevivência, bem como do seu espinhoso e problemático acesso à categoria de cidadãos (de que são exemplos o que acontece na China, hoje o grande produtor de mercadorias baratas para todo o mundo, ou a forma como o regime político da Síria reprime militarmente as manifestações de protesto dos seus opositores, que já sofreram mais de 4 mil mortos por balas nas ruas, ao longo dos últimos meses).
JF / 17.Dez.2011
sábado, 10 de dezembro de 2011
Cataclismos, acidentes, epidemias, fomes, guerras, revoluções e crises
Estes são talvez os fenómenos colectivos mais desgraçados a que está sujeita a espécie humana.
Os cataclismos naturais são inevitáveis e fazem parte da nossa condição geo-biológica terrestre. Grandes cheias, tremores-de-terra, erupções vulcânicas, tsunamis ou tufões provocam geralmente enormes estragos e vítimas. Contra isto, é inútil apaziguar os deuses com oferendas. Apenas podemos, hoje, estar alerta e ter planos de prevenção para acudir com os melhores socorros quando tal acontece. Mas tais fenómenos também nos ajudam a situar melhor a nossa existência no universo natural a que pertencemos.
Os acidentes têm uma escala diferente, mais à nossa dimensão individual e ocorrem geralmente por falhas ou descontrolos dos humanos. Numa análise científica do fenómeno, podemos dizer que eles são incompressíveis, isto é, que nunca se podem evitar completamente. Contudo, no plano da responsabilidade pessoal e social, é possível e desejável fazer mais que lograr regredir sempre a sua incidência, através da educação e formação, de uma prevenção passiva e activa, etc. Os valores e as atitudes sociais são aqui determinantes e não vale confiar apenas nos especialistas do assunto nem nos sistemas existentes de reparação dos danos (medicina de reabilitação, seguros, etc.).
As epidemias pareciam estar registadas sobretudo no nosso passado histórico ou nas condições de miséria de populações muito atrasadas. Porém, o derrube de fronteiras nacionais e morais voltaram a trazer-nos novas ameaças deste tipo, da Sida à “doença das vacas loucas”, do Ebola à “gripe das aves”, das estirpes virais resistentes à bactéria E.coli. Estas, são “doenças de civilização”.
Julgar-se-ia igualmente que as fomes seriam eliminadas com os progressos da técnica e o desenvolvimento económico. Embora muito se tenha progredido no mundo, a rarefacção dos sustentáculos agrícolas locais tornou certas populações mais dependentes de trocas externas ou de políticas governamentais. África é ainda um país onde se morre de fome e a subnutrição estigmatiza profundamente certas populações, tal como acontece em algumas regiões da Ásia e mesmo da América Latina. E aqui o dedo acusador deve provavelmente ser apontado ao modelo de desenvolvimento económico e de direcção política que rege a nossa modernidade.
Felizmente, o fenómeno da guerra tem vindo a tornar-se mais raro e breve, depois da última hecatombe do século XX. A guerra é um dos mais antigos fenómenos da história humana e daqueles que mais dramas tem provocado, mas trata-se de um caso em que é fácil identificar agentes responsáveis: são as lideranças políticas e estatais, respectivamente para as guerras civis e entre nações. Há contudo guerras defensivas e justas, mas a maioria delas é desencadeada devido a dinâmicas conflituais lançadas por aquelas elites que, quando não são deliberadas, a certa altura se tornam imparáveis, o que em nada desculpa os seus provocadores.
Sobre as revoluções, um outro fenómeno violento que abriu as portas e marcou a Idade Moderna, têm de fazer-se juízos contraditórios: lastimá-las, pelos sofrimentos que causam e as injustiças que permitem; mas compreendê-las e justificá-las, quando elas constituem a saída inevitável para uma situação de opressão colectiva. Contudo, quando (e enquanto) tal é (ainda) possível, é sempre preferível a “evolução” ou as “reformas”, antes que rebente o dique do sofrimento da maioria ou se incendeiem as achas preparadas pelos incendiários. Até porque as revoluções geram quase sempre reacções violentas opostas, ou contra-revoluções.
Finalmente, no meio de tais convulsões, as crises de natureza económica ou financeira que de tempos a tempos abalam as sociedades contemporâneas até parecem coisas de somenos ou benignas. Na realidade, pelo desemprego e perda de rendimentos que geram, frustração de expectativas, efeitos de marginalização ou de revolta, etc., as crises são fenómenos sérios e graves. Mas também têm virtualidades, quando – sem se chegar a guerras ou a revoluções – se podem rectificar orientações, corrigir erros, mudar processos ou inovar de forma humanamente positiva o que tendia a perpetuar-se. Esperemos que isso aconteça desta vez.
JF / 10.Dez.2011
Os cataclismos naturais são inevitáveis e fazem parte da nossa condição geo-biológica terrestre. Grandes cheias, tremores-de-terra, erupções vulcânicas, tsunamis ou tufões provocam geralmente enormes estragos e vítimas. Contra isto, é inútil apaziguar os deuses com oferendas. Apenas podemos, hoje, estar alerta e ter planos de prevenção para acudir com os melhores socorros quando tal acontece. Mas tais fenómenos também nos ajudam a situar melhor a nossa existência no universo natural a que pertencemos.
Os acidentes têm uma escala diferente, mais à nossa dimensão individual e ocorrem geralmente por falhas ou descontrolos dos humanos. Numa análise científica do fenómeno, podemos dizer que eles são incompressíveis, isto é, que nunca se podem evitar completamente. Contudo, no plano da responsabilidade pessoal e social, é possível e desejável fazer mais que lograr regredir sempre a sua incidência, através da educação e formação, de uma prevenção passiva e activa, etc. Os valores e as atitudes sociais são aqui determinantes e não vale confiar apenas nos especialistas do assunto nem nos sistemas existentes de reparação dos danos (medicina de reabilitação, seguros, etc.).
As epidemias pareciam estar registadas sobretudo no nosso passado histórico ou nas condições de miséria de populações muito atrasadas. Porém, o derrube de fronteiras nacionais e morais voltaram a trazer-nos novas ameaças deste tipo, da Sida à “doença das vacas loucas”, do Ebola à “gripe das aves”, das estirpes virais resistentes à bactéria E.coli. Estas, são “doenças de civilização”.
Julgar-se-ia igualmente que as fomes seriam eliminadas com os progressos da técnica e o desenvolvimento económico. Embora muito se tenha progredido no mundo, a rarefacção dos sustentáculos agrícolas locais tornou certas populações mais dependentes de trocas externas ou de políticas governamentais. África é ainda um país onde se morre de fome e a subnutrição estigmatiza profundamente certas populações, tal como acontece em algumas regiões da Ásia e mesmo da América Latina. E aqui o dedo acusador deve provavelmente ser apontado ao modelo de desenvolvimento económico e de direcção política que rege a nossa modernidade.
Felizmente, o fenómeno da guerra tem vindo a tornar-se mais raro e breve, depois da última hecatombe do século XX. A guerra é um dos mais antigos fenómenos da história humana e daqueles que mais dramas tem provocado, mas trata-se de um caso em que é fácil identificar agentes responsáveis: são as lideranças políticas e estatais, respectivamente para as guerras civis e entre nações. Há contudo guerras defensivas e justas, mas a maioria delas é desencadeada devido a dinâmicas conflituais lançadas por aquelas elites que, quando não são deliberadas, a certa altura se tornam imparáveis, o que em nada desculpa os seus provocadores.
Sobre as revoluções, um outro fenómeno violento que abriu as portas e marcou a Idade Moderna, têm de fazer-se juízos contraditórios: lastimá-las, pelos sofrimentos que causam e as injustiças que permitem; mas compreendê-las e justificá-las, quando elas constituem a saída inevitável para uma situação de opressão colectiva. Contudo, quando (e enquanto) tal é (ainda) possível, é sempre preferível a “evolução” ou as “reformas”, antes que rebente o dique do sofrimento da maioria ou se incendeiem as achas preparadas pelos incendiários. Até porque as revoluções geram quase sempre reacções violentas opostas, ou contra-revoluções.
Finalmente, no meio de tais convulsões, as crises de natureza económica ou financeira que de tempos a tempos abalam as sociedades contemporâneas até parecem coisas de somenos ou benignas. Na realidade, pelo desemprego e perda de rendimentos que geram, frustração de expectativas, efeitos de marginalização ou de revolta, etc., as crises são fenómenos sérios e graves. Mas também têm virtualidades, quando – sem se chegar a guerras ou a revoluções – se podem rectificar orientações, corrigir erros, mudar processos ou inovar de forma humanamente positiva o que tendia a perpetuar-se. Esperemos que isso aconteça desta vez.
JF / 10.Dez.2011
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
Vamos acabar com as gorjetas?
As gorjetas são uma sobrevivência de práticas sociais antigas de subserviência e de miséria, e um resquício dos micro-fenómenos da corrupção económica.
Assim como o “bodo” (aos pobres) pretendia ser um gesto inspirado na misericórdia divina, também os ‘grandes da terra’ se armavam em generosos e distribuíam migalhas (de carne ou metal) à populaça em dias de festa. Estas dádivas eram evidentemente sempre bem-vindas pelos miseráveis e até por vezes disputadas com fricção, que os senhores mais sádicos se compraziam em presenciar. No final, ficava reforçada a ordem social das diferenças de classe e de estirpe, a despeito do rancor que tais factos deixavam no íntimo de alguns dos assistidos mas que só raramente se traduzia num gesto criminoso ou em acessos de loucura.
Em pleno século XIX a burguesia em ascensão prolongou o sentido de tais práticas ao enraizar o hábito de responder com a oferta de pequenas moedas às súplicas dos inúmeros pedintes que se lhe cruzavam nos passeios ou à saída das igrejas, quando a polícia não reprimia esta mendicidade. Enquanto uns mitigavam a fome, outros acreditavam santificar as suas almas.
Daqui se alargou a prática benemérita para o dar-sem-ser-solicitado: a gorjeta. O desempenho pessoal inerente aos actos comerciais de compra-e-venda de certos bens, à obtenção de um favor ou informação ou ainda o modo delicado como se era “atendido” na prestação de um qualquer serviço passaram a ser remunerados pelo gesto discreto da moeda esgueirada de mão para mão e nunca recusada pelo beneficiado.
Tal como nos bodos, quem dá, afirma a sua superioridade (agora, de base essencialmente económica); quem recebe, reconhece o seu lugar (muito) mais baixo na escala da consideração social – sobretudo se esta “transacção” se efectua à vista de terceiros. Mas, mesmo quando privada, ela interioriza e reforça em cada uma das personagens essas diferenças de estatuto.
Não obstante isto, para além da retribuição de um cuidado ou atenção a que o “inferior” não estava obrigado pelo estrito cumprimento da sua função, a teoria-da-troca também encontra aqui alguma sustentação, na medida em que, a partir de certos hábitos socialmente rotinizados, muitas vezes o “superior” é mal atendido se não “dá gorjeta” ou sujeita-se a futuras retaliações por parte do servidor ou trabalhador com quem vai ter de continuar a lidar, o qual não esquecerá que “aquele” infringiu um ritual que toda a gente cumpre.
Assim se chegou à actualidade, onde tais hábitos subsistem, embora variem consideravelmente de país para país, de actividade para actividade. O serviço de mesa em restaurantes e cafés, os táxis, o pessoal dos hotéis ou dos navios de cruzeiro são dos que, nos países ocidentais, mais frequentemente esperam uma gorjeta dos clientes que atendem. Mas ninguém acha que, por exemplo, um polícia ou um dentista, mesmo em clínica privada, aceitem gorjeta por uma informação de trânsito prestada ou por maior delicadeza posta no tratamento de uma cárie. Porventura, o mesmo se não dirá num país do nosso próximo Magrebe.
É certo que se fala imenso nos dinheiros-por-baixo-da-mesa dados a fiscais públicos, intermediários ou na efectivação de grandes negócios. Isso é já corrupção, criminalizada por lei, embora raramente provada e punida. Há quem faça a ligação entre os dois fenómenos mas é difícil definir rigorosamente em que termos ela funciona.
Em todo o caso, pese embora a sempre maior perda das relações interpessoais em favor de relações mais formais, juridicamente traduzíveis e conformadas (o que também provoca uma burocratização dos processos de interacção humana, muitas vezes de efeitos negativos), parece de todo desejável que se caminhe para uma abolição destas práticas pouco racionais e que dão abrigo a muita arbitrariedade, devendo certamente a evolução fazer-se pela via de uma maior profissionalização dos actos dos trabalhadores e de uma tarifação explícita e completa do contrato comercial em causa. Se há um “serviço” a pagar ao empregado do restaurante que nos traz os pratos, então que ele apareça expresso na factura! É bom saber que em Portugal, nos idos de 1924, o sindicato dos empregados de hotéis, cafés e restaurantes fez uma greve reclamando a abolição das gorjetas e o pagamento de uma percentagem fixa sobre as vendas.
Entretanto, a conjuntura de crise que vivemos pode ajudar a que todos compreendam melhor o anacronismo da gorjeta. Porque também já ninguém pensa ajudar os desempregados aceitando que eles recorram à mendicidade.
Por isso, seria bom que todos os “consumidores” enveredassem pela cessação de pagar gorjetas e que os tais prestadores de serviços que a isso estão habituados passassem a pressionar as suas entidades patronais para que estas modernizassem os seus sistemas de remuneração do trabalho.
JF / 3.Dez.2011
Assim como o “bodo” (aos pobres) pretendia ser um gesto inspirado na misericórdia divina, também os ‘grandes da terra’ se armavam em generosos e distribuíam migalhas (de carne ou metal) à populaça em dias de festa. Estas dádivas eram evidentemente sempre bem-vindas pelos miseráveis e até por vezes disputadas com fricção, que os senhores mais sádicos se compraziam em presenciar. No final, ficava reforçada a ordem social das diferenças de classe e de estirpe, a despeito do rancor que tais factos deixavam no íntimo de alguns dos assistidos mas que só raramente se traduzia num gesto criminoso ou em acessos de loucura.
Em pleno século XIX a burguesia em ascensão prolongou o sentido de tais práticas ao enraizar o hábito de responder com a oferta de pequenas moedas às súplicas dos inúmeros pedintes que se lhe cruzavam nos passeios ou à saída das igrejas, quando a polícia não reprimia esta mendicidade. Enquanto uns mitigavam a fome, outros acreditavam santificar as suas almas.
Daqui se alargou a prática benemérita para o dar-sem-ser-solicitado: a gorjeta. O desempenho pessoal inerente aos actos comerciais de compra-e-venda de certos bens, à obtenção de um favor ou informação ou ainda o modo delicado como se era “atendido” na prestação de um qualquer serviço passaram a ser remunerados pelo gesto discreto da moeda esgueirada de mão para mão e nunca recusada pelo beneficiado.
Tal como nos bodos, quem dá, afirma a sua superioridade (agora, de base essencialmente económica); quem recebe, reconhece o seu lugar (muito) mais baixo na escala da consideração social – sobretudo se esta “transacção” se efectua à vista de terceiros. Mas, mesmo quando privada, ela interioriza e reforça em cada uma das personagens essas diferenças de estatuto.
Não obstante isto, para além da retribuição de um cuidado ou atenção a que o “inferior” não estava obrigado pelo estrito cumprimento da sua função, a teoria-da-troca também encontra aqui alguma sustentação, na medida em que, a partir de certos hábitos socialmente rotinizados, muitas vezes o “superior” é mal atendido se não “dá gorjeta” ou sujeita-se a futuras retaliações por parte do servidor ou trabalhador com quem vai ter de continuar a lidar, o qual não esquecerá que “aquele” infringiu um ritual que toda a gente cumpre.
Assim se chegou à actualidade, onde tais hábitos subsistem, embora variem consideravelmente de país para país, de actividade para actividade. O serviço de mesa em restaurantes e cafés, os táxis, o pessoal dos hotéis ou dos navios de cruzeiro são dos que, nos países ocidentais, mais frequentemente esperam uma gorjeta dos clientes que atendem. Mas ninguém acha que, por exemplo, um polícia ou um dentista, mesmo em clínica privada, aceitem gorjeta por uma informação de trânsito prestada ou por maior delicadeza posta no tratamento de uma cárie. Porventura, o mesmo se não dirá num país do nosso próximo Magrebe.
É certo que se fala imenso nos dinheiros-por-baixo-da-mesa dados a fiscais públicos, intermediários ou na efectivação de grandes negócios. Isso é já corrupção, criminalizada por lei, embora raramente provada e punida. Há quem faça a ligação entre os dois fenómenos mas é difícil definir rigorosamente em que termos ela funciona.
Em todo o caso, pese embora a sempre maior perda das relações interpessoais em favor de relações mais formais, juridicamente traduzíveis e conformadas (o que também provoca uma burocratização dos processos de interacção humana, muitas vezes de efeitos negativos), parece de todo desejável que se caminhe para uma abolição destas práticas pouco racionais e que dão abrigo a muita arbitrariedade, devendo certamente a evolução fazer-se pela via de uma maior profissionalização dos actos dos trabalhadores e de uma tarifação explícita e completa do contrato comercial em causa. Se há um “serviço” a pagar ao empregado do restaurante que nos traz os pratos, então que ele apareça expresso na factura! É bom saber que em Portugal, nos idos de 1924, o sindicato dos empregados de hotéis, cafés e restaurantes fez uma greve reclamando a abolição das gorjetas e o pagamento de uma percentagem fixa sobre as vendas.
Entretanto, a conjuntura de crise que vivemos pode ajudar a que todos compreendam melhor o anacronismo da gorjeta. Porque também já ninguém pensa ajudar os desempregados aceitando que eles recorram à mendicidade.
Por isso, seria bom que todos os “consumidores” enveredassem pela cessação de pagar gorjetas e que os tais prestadores de serviços que a isso estão habituados passassem a pressionar as suas entidades patronais para que estas modernizassem os seus sistemas de remuneração do trabalho.
JF / 3.Dez.2011
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
Bilhete-postal a um jovem 'indignado'
Fizeram-te estudar anos a fio. Disseram-te que um curso “superior” era um passaporte para um bom emprego e uma vida feliz. No mínimo, garantiram-te que, com uma “formação”, podias sempre desenrascar-te melhor e até teres a tua própria empresa.
Afinal, os anos têm passado e vês que tudo isso é uma miragem. A crise serve de justificação para todas as alterações mas o certo é que é cada vez maior o número dos teus amigos a queixarem-se dos trabalhos precários uns atrás dos outros, e dos biscates a baixo preço. Mesmo da malta com estudos, só os betos têm bons empregos, e muitos só se safam em call centers ou em supermercados, onde não fazem nada do que andaram a aprender.
Por isso, vês que o pessoal da tua geração anda todo chateado e diz que o melhor é esquecer e aproveitar a noite, numa de copos e música, e o que der…
Mas agora, por todo o lado, até na América, há malta indignada, que armam tendas frente aos municípios ou parlamentos para protestar, exigir empregos e segurança social. Têm sido manifestações porreiras. O pessoal diverte-se à farta. E quando a bófia exagera, o pessoal resiste. Eles que não se metam… Fintamos os tipos, convocando por telemóvel para locais inesperados… E a malta grita que os políticos vão roubar para outro lado. Democracia é o povo a mandar! Vejam o que fizeram no Egito…
Estas, são bocas que ouves cada vez mais.
Se for caso disso, “acampa” também com os teus amigos, discutam e protestem contra estas coisas. Mas isolem os excitados que vos apelam a ir “partir esta merda toda” e desconfia dos que observas estarem visivelmente a gostar de ser líderes ou porta-vozes destes movimentos de protesto: geralmente estão a preparar-se para “acampar” para o resto da vida nessa função (mais tarde devidamente recompensada…)
Pensa, porém, que nada cai do céu (a não ser a chuva) e que a vida em jovem dos teus pais foi bem mais dura do que a tua; e da dos teus avós nem é bom falar...
Ainda bem que possas ter computador e telemóvel, mas talvez devas começar a habituar-te à ideia de que não vai haver motas e carros para todos. Sobretudo quando milhões de chineses e indianos, africanos e brasileiros ainda passam mesmo muito mal, sem o mínimo.
Nem imaginas o que era dantes viver aperreado, com os chúis a prender na rua por tudo e por nada – e isto ainda se passa em muitos lados. Agora, podemos experimentar o sexo e entregarmo-nos ao outro. Mas cautela com as imprevidências! Fazer um filho, é a maior responsabilidade que se pode ter na vida! E educá-lo, claro! É uma obrigação, a que só fogem os fracos e os cobardes. Além disso, procurem guardar a vossa intimidade. O amor não é o deboche. E podes crer que um dia acharás idiota e foleiro o tipo de espectáculos de exibicionismo e “voyeurismo” que hoje talvez te fascinem na TV ou nos filmes.
A música, pode ser óptima para se ouvir. Mas em excesso provoca-nos a surdez, tal como o álcool e as drogas levam sempre à destruição de cada um de nós: física e da nossa dignidade.
Por isso, no fim do divertimento, da discoteca ou do futebol, tira os auscultadores e pensa também no que pode ser a tua vida daqui a dez anos: o trabalho que melhor te poderá servir; a relação íntima que desejas com alguém; o mundo que mais te agradaria partilhar. Talvez valha a pena.
JF / 28.Nov.2011
Afinal, os anos têm passado e vês que tudo isso é uma miragem. A crise serve de justificação para todas as alterações mas o certo é que é cada vez maior o número dos teus amigos a queixarem-se dos trabalhos precários uns atrás dos outros, e dos biscates a baixo preço. Mesmo da malta com estudos, só os betos têm bons empregos, e muitos só se safam em call centers ou em supermercados, onde não fazem nada do que andaram a aprender.
Por isso, vês que o pessoal da tua geração anda todo chateado e diz que o melhor é esquecer e aproveitar a noite, numa de copos e música, e o que der…
Mas agora, por todo o lado, até na América, há malta indignada, que armam tendas frente aos municípios ou parlamentos para protestar, exigir empregos e segurança social. Têm sido manifestações porreiras. O pessoal diverte-se à farta. E quando a bófia exagera, o pessoal resiste. Eles que não se metam… Fintamos os tipos, convocando por telemóvel para locais inesperados… E a malta grita que os políticos vão roubar para outro lado. Democracia é o povo a mandar! Vejam o que fizeram no Egito…
Estas, são bocas que ouves cada vez mais.
Se for caso disso, “acampa” também com os teus amigos, discutam e protestem contra estas coisas. Mas isolem os excitados que vos apelam a ir “partir esta merda toda” e desconfia dos que observas estarem visivelmente a gostar de ser líderes ou porta-vozes destes movimentos de protesto: geralmente estão a preparar-se para “acampar” para o resto da vida nessa função (mais tarde devidamente recompensada…)
Pensa, porém, que nada cai do céu (a não ser a chuva) e que a vida em jovem dos teus pais foi bem mais dura do que a tua; e da dos teus avós nem é bom falar...
Ainda bem que possas ter computador e telemóvel, mas talvez devas começar a habituar-te à ideia de que não vai haver motas e carros para todos. Sobretudo quando milhões de chineses e indianos, africanos e brasileiros ainda passam mesmo muito mal, sem o mínimo.
Nem imaginas o que era dantes viver aperreado, com os chúis a prender na rua por tudo e por nada – e isto ainda se passa em muitos lados. Agora, podemos experimentar o sexo e entregarmo-nos ao outro. Mas cautela com as imprevidências! Fazer um filho, é a maior responsabilidade que se pode ter na vida! E educá-lo, claro! É uma obrigação, a que só fogem os fracos e os cobardes. Além disso, procurem guardar a vossa intimidade. O amor não é o deboche. E podes crer que um dia acharás idiota e foleiro o tipo de espectáculos de exibicionismo e “voyeurismo” que hoje talvez te fascinem na TV ou nos filmes.
A música, pode ser óptima para se ouvir. Mas em excesso provoca-nos a surdez, tal como o álcool e as drogas levam sempre à destruição de cada um de nós: física e da nossa dignidade.
Por isso, no fim do divertimento, da discoteca ou do futebol, tira os auscultadores e pensa também no que pode ser a tua vida daqui a dez anos: o trabalho que melhor te poderá servir; a relação íntima que desejas com alguém; o mundo que mais te agradaria partilhar. Talvez valha a pena.
JF / 28.Nov.2011
sábado, 19 de novembro de 2011
Os militares e a ordem política
Os militares (sobretudo os seus reformados) andam de novo descontentes, fazendo reuniões numerosas e manifestações de rua.
Compreende-se perfeitamente que se sintam maltratados e ultrajados por uma ‘classe política’ (particularmente os partidos da governação) que os despreza e que levou o país à situação actual. Mas não basta dizer que há “outros” que também deviam pagar, em tempo de sacrifícios – como é geralmente, a reacção de cada qual: Not in my backyard! Provavelmente, nas Forças Armadas há lugares de oficiais-generais a mais, baixa produtividade em muitos serviços de apoio não-combatentes e carreiras insuficientemente selectivas (apesar da pirâmide) que levam quase todos a chegar aos postos de coronel ou de sargento-ajudante: são aspectos onde os “cortes” poderiam até ser potenciadores de maior rigor e eficiência para a organização. Noutras áreas mais fundamentais, é possível que a redução de meios exigida pela escassez orçamental se deva não apenas a uma reavaliação das missões e a evitar sobreposições e restos de tensões inter-corporativas mas também ao anti-militarismo larvar existente na sociedade portuguesa actual. Contudo, aí devem actuar os responsáveis do alto-comando, face ao governo.
Há, porém, comportamentos que são dificilmente aceitáveis em militares, que sempre abraçaram voluntariamente essa especial condição e conhecem desde o início as abdicações e servidões a que estão sujeitos. O associativismo reivindicativo (de tipo sindical-corporativo) pode servir os fins agitatórios perseguidos por minorias políticas organizadas, mas constitui sempre um risco, quer para a disciplina e coesão das instituições militares, quer sobretudo para não avivar as lembranças das intervenções armadas na governação que pontuaram a história dos últimos dois séculos.
Imagine-se o que seria, num país destroçado pela crise, o regresso dos “pronunciamentos”, com as forças militares e de segurança fragmentadas entre “constitucionalistas” e “regeneradoras”, e a Europa, estupefacta, a dar luz verde a que o exército mais próximo e mais capaz – obviamente, o de Espanha – viesse finalmente pôr ordem nisto!...
Os militares têm tanta razão de descontentamento com a situação económica actual como todos os outros funcionários públicos e os pensionistas, e menos do que as famílias de desempregados e os quatro ou cinco milhões de portugueses que vivem com rendimentos inferiores a mil Euros mensais. Como cidadãos, em igualdade com quaisquer outros, podem votar para ajudar a mudar um governo. Mas a subliminar evocação das armas, que só eles podem usar, é ilegítima. Por exemplo, ninguém aceitaria que os juízes não aplicassem uma lei penal que lhes desagradasse.
Por estas razões cruciais, é preciso ter uma extrema cautela com todo o tipo de manifestações colectivas públicas de militares, mesmo desfardados ou pela “interposta pessoa” dos reformados. E as reacções de algumas figuras históricas do MFA podem até ser compreensíveis enquanto desabafos pessoais, em privado, mas tornam-se perigosas – e desqualificadoras para a própria ‘classe castrense’ – quando produzidas publicamente e destinadas a servir de alerta e de meio de pressão para a opinião pública e responsáveis políticos.
JF/ 19.Nov.2011
Compreende-se perfeitamente que se sintam maltratados e ultrajados por uma ‘classe política’ (particularmente os partidos da governação) que os despreza e que levou o país à situação actual. Mas não basta dizer que há “outros” que também deviam pagar, em tempo de sacrifícios – como é geralmente, a reacção de cada qual: Not in my backyard! Provavelmente, nas Forças Armadas há lugares de oficiais-generais a mais, baixa produtividade em muitos serviços de apoio não-combatentes e carreiras insuficientemente selectivas (apesar da pirâmide) que levam quase todos a chegar aos postos de coronel ou de sargento-ajudante: são aspectos onde os “cortes” poderiam até ser potenciadores de maior rigor e eficiência para a organização. Noutras áreas mais fundamentais, é possível que a redução de meios exigida pela escassez orçamental se deva não apenas a uma reavaliação das missões e a evitar sobreposições e restos de tensões inter-corporativas mas também ao anti-militarismo larvar existente na sociedade portuguesa actual. Contudo, aí devem actuar os responsáveis do alto-comando, face ao governo.
Há, porém, comportamentos que são dificilmente aceitáveis em militares, que sempre abraçaram voluntariamente essa especial condição e conhecem desde o início as abdicações e servidões a que estão sujeitos. O associativismo reivindicativo (de tipo sindical-corporativo) pode servir os fins agitatórios perseguidos por minorias políticas organizadas, mas constitui sempre um risco, quer para a disciplina e coesão das instituições militares, quer sobretudo para não avivar as lembranças das intervenções armadas na governação que pontuaram a história dos últimos dois séculos.
Imagine-se o que seria, num país destroçado pela crise, o regresso dos “pronunciamentos”, com as forças militares e de segurança fragmentadas entre “constitucionalistas” e “regeneradoras”, e a Europa, estupefacta, a dar luz verde a que o exército mais próximo e mais capaz – obviamente, o de Espanha – viesse finalmente pôr ordem nisto!...
Os militares têm tanta razão de descontentamento com a situação económica actual como todos os outros funcionários públicos e os pensionistas, e menos do que as famílias de desempregados e os quatro ou cinco milhões de portugueses que vivem com rendimentos inferiores a mil Euros mensais. Como cidadãos, em igualdade com quaisquer outros, podem votar para ajudar a mudar um governo. Mas a subliminar evocação das armas, que só eles podem usar, é ilegítima. Por exemplo, ninguém aceitaria que os juízes não aplicassem uma lei penal que lhes desagradasse.
Por estas razões cruciais, é preciso ter uma extrema cautela com todo o tipo de manifestações colectivas públicas de militares, mesmo desfardados ou pela “interposta pessoa” dos reformados. E as reacções de algumas figuras históricas do MFA podem até ser compreensíveis enquanto desabafos pessoais, em privado, mas tornam-se perigosas – e desqualificadoras para a própria ‘classe castrense’ – quando produzidas publicamente e destinadas a servir de alerta e de meio de pressão para a opinião pública e responsáveis políticos.
JF/ 19.Nov.2011
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
O sorriso da caixeira
Verão e Inverno, ao longo dos anos, a rapariga caixeira de supermercado tem-se mantido com uma atractividade física irresistível. Já não é uma miúda mas permanece com um corpo invejável, o rosto, as mãos e o cabelo sempre impecavelmente cuidados.
É claro que atrai a clientela masculina para o seu “canal”, mais do qualquer outra das suas colegas, mesmo as mais gentis e despachadas.
Mas simpatia também é coisa que não lhe falta a ela. Os profissionais que lhe deram formação deviam sentir-se orgulhosos da eficácia dos resultados. Porém, é pouco provável que ela daí retire algum ganho suplementar. Até talvez atice a inveja de outras.
O atendimento é forçosamente maquinal: o tapete a rolar, os produtos a exibirem o seu código-de-barras face à janela de leitura óptica, as operações de ensacamento… mas com aquele sorriso luminoso que completa alguma frase brevemente enunciada, sobre a afluência da hora ou o apetite da praia. O machola grosseiro avança com mais conversa, sem tino. Mas uma curta troca de palavras e o sorriso também não são negados às mulheres ou aos idosos.
Quando as suas unhas longas roçam a mão do cliente no momento do “troco”, um arrepio percorre o corpo deste e – que deleite! – ela se despede com mais um sorriso, enquanto já se vira para a pessoa seguinte dizendo “bom dia”.
Desistam os “marketistas” das suas campanhas publicitárias ou técnicas de desconto! O que atrai e fideliza o cliente-homem a uma determinada loja é o sorriso da caixeira. E a sua imagem pode alimentar, em alguns, imaginários mas saborosos sonhos orgásticos.
Eis como o rosto de uma rapariga simples de supermercado pode bem ter a sedução e o mistério de uma Monalisa dos tempos actuais.
JF /15.Nov.2011
É claro que atrai a clientela masculina para o seu “canal”, mais do qualquer outra das suas colegas, mesmo as mais gentis e despachadas.
Mas simpatia também é coisa que não lhe falta a ela. Os profissionais que lhe deram formação deviam sentir-se orgulhosos da eficácia dos resultados. Porém, é pouco provável que ela daí retire algum ganho suplementar. Até talvez atice a inveja de outras.
O atendimento é forçosamente maquinal: o tapete a rolar, os produtos a exibirem o seu código-de-barras face à janela de leitura óptica, as operações de ensacamento… mas com aquele sorriso luminoso que completa alguma frase brevemente enunciada, sobre a afluência da hora ou o apetite da praia. O machola grosseiro avança com mais conversa, sem tino. Mas uma curta troca de palavras e o sorriso também não são negados às mulheres ou aos idosos.
Quando as suas unhas longas roçam a mão do cliente no momento do “troco”, um arrepio percorre o corpo deste e – que deleite! – ela se despede com mais um sorriso, enquanto já se vira para a pessoa seguinte dizendo “bom dia”.
Desistam os “marketistas” das suas campanhas publicitárias ou técnicas de desconto! O que atrai e fideliza o cliente-homem a uma determinada loja é o sorriso da caixeira. E a sua imagem pode alimentar, em alguns, imaginários mas saborosos sonhos orgásticos.
Eis como o rosto de uma rapariga simples de supermercado pode bem ter a sedução e o mistério de uma Monalisa dos tempos actuais.
JF /15.Nov.2011
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Um Estado sem Governo
A Bélgica está há mais de um ano com o governo demissionário, em mera gestão dos assuntos correntes, e mesmo o princípio de acordo a que chegaram os partidos no parlamento ainda não se traduziu na constituição de um novo governo efectivo. E, no entanto, o país parece não ter parado nem ficado pior do que estava antes!
Meio a brincar, dizem alguns que, afinal, o governo parece ser uma instituição dispensável. E até um colunista na moda escreveu sobre “A vingança do anarquista” (R. Tavares, Público, 21.Set.2011).
Teria então alguma razão a filosofia política anarquista defendida por certas minorias activas de há um século que acreditavam que se podia viver melhor em sociedade sem a existência de um governo? Não é certo – e parecerá mesmo completamente impossível à esmagadora maioria das pessoas, que tendem a basear-se num princípio de realidade. Então no mundo de hoje, em que, por exemplo, nos queixamos das dificuldades em que vive a União Europeia por falta de uma governação mais adequada à integração económica e monetária atingida, parece surrealista pensar numa ausência, ou mesmo num enfraquecimento, dessa instância de decisão política. Como sobreviveria agora a Grécia sem governo? Mas também é certo que muito da sua péssima situação actual deriva do “desgoverno” a que a sujeitaram sucessivos governantes.
Numa discussão mais desprendida das ansiedades do momento, pode sustentar-se que nas formas de governo hoje conhecidas desaguam três problemas de diferente natureza. Por um lado, os governos nacionais actuais são os herdeiros (democratizados já na maioria dos países) do poder político confiscado por certos grupos ou minorias que, desde há séculos, se assenhorearam pela força (guerras, conspirações, revoluções) das instituições e dos instrumentos de domínio sobre uma determinada população e território. Dai a persistência de certos “tiques” autocráticos ou de manobras insidiosas praticadas pelos governantes actuais para se manterem nos cargos, ou dos seus competidores para desalojar os que lá se encontram.
Por outro lado, é verdade que todas as comunidades nacionais, com uma história e cultura consolidadas, carecem de uma instância central em que se reconheçam, que lhes possa dar sinais de orientação colectiva e que as represente externamente perante outras similares. Os reis personificaram durante muito tempo esta função, mas caíram quando a tensão entre o sentimento colectivo do povo e os interesses particulares da família reinante atingiu um ponto de rotura. Hoje, neste aspecto, estando o risco de tirania relativamente esconjurado, o problema principal parece ser o de como conseguir um controlo do poder governativo pelos cidadãos que evite destemperos e corrupções (o que se chama democracia) mas que, ao mesmo tempo, assegure eficácia funcional e não descambe na manipulação afectiva ou eleitoralista (ou seja, a demagogia).
Finalmente, existem problemas próprios da nossa época que a humanidade enfrenta pela primeira vez, de forma titubeante e contraditória: os impactos negativos das indústrias e das cidades sobre o meio ambiente natural; a instantaneidade e massificação da comunicação; a imbricação e integração mundial das economias – tudo isto coexistindo com a presença de 200 estados nacionais, que são fruto das contingências históricas e extremamente desiguais entre si, com instituições de auto-governo pensadas no Séc. XVIII para substituir as realezas absolutistas caducas, e com uma ordem internacional negociada pelos mais fortes mas hoje com a preocupação de evitar as guerras brutais do passado (sobretudo tendo em conta o potencial de destruição existente). Por exemplo, os padrões éticos de comportamento, laicos ou religiosos, estão a ser fonte de grande angústia, ditada quer pela ausência de normas educativas, quer pelo choque entre crenças culturais profundamente enraizadas e princípios legais que se pretendem universais. E – sobretudo nos tempos que correm – é a actividade económica e financeira que manifesta dificuldades em se estabilizar, entre a capacidade de realização das macro-empresas, o apetite ao consumo de massas populacionais crescentes e a desigual autonomia e meios de controlo das entidades políticas nacionais.
Hoje, a crise é económico-financeira, mas também dos sistemas de representação política. Tem razão o sociólogo Gustavo Cardoso ao referir as condições de socialização dos jovens de hoje e ao escrever que “quando surgem fortes barreiras à mobilidade social e à intervenção política é quando a indignação sai à rua”, avisando ainda que “os líderes das democracias que não souberem ouvir de forma diferente e mudar a sua forma de pensar estarão condenados a um ciclo vicioso de derrota, de quem estiver no poder, e de vitória de quem estiver na oposição” (Público, 9.Nov.2011) – o que, convenhamos, não é uma perspectiva encorajadora.
A Bélgica – sobretudo porque é uma nação artificial – até poderia viver bem sempre com “governos de gestão corrente” (como a Suíça, por razões opostas), não fora o contexto externo em que está inserida: ontem, tendo que encarar as decisões sobre as invasões militares que lhe penetraram pela terra dentro; hoje, tendo de cuidar seriamente do sistema bancário ali sedeado e das derrapagens orçamentais, onde a emigração e o sistema de segurança social constituem duas variáveis-chave (vista a demografia do país), a pedirem decisões corajosas, que talvez não possam ser referendadas.
O “Estado sem governo” pode ser uma belíssima ideia, mas ainda não está propriamente na ordem-do-dia.
JF / 11.Nov.2011
Meio a brincar, dizem alguns que, afinal, o governo parece ser uma instituição dispensável. E até um colunista na moda escreveu sobre “A vingança do anarquista” (R. Tavares, Público, 21.Set.2011).
Teria então alguma razão a filosofia política anarquista defendida por certas minorias activas de há um século que acreditavam que se podia viver melhor em sociedade sem a existência de um governo? Não é certo – e parecerá mesmo completamente impossível à esmagadora maioria das pessoas, que tendem a basear-se num princípio de realidade. Então no mundo de hoje, em que, por exemplo, nos queixamos das dificuldades em que vive a União Europeia por falta de uma governação mais adequada à integração económica e monetária atingida, parece surrealista pensar numa ausência, ou mesmo num enfraquecimento, dessa instância de decisão política. Como sobreviveria agora a Grécia sem governo? Mas também é certo que muito da sua péssima situação actual deriva do “desgoverno” a que a sujeitaram sucessivos governantes.
Numa discussão mais desprendida das ansiedades do momento, pode sustentar-se que nas formas de governo hoje conhecidas desaguam três problemas de diferente natureza. Por um lado, os governos nacionais actuais são os herdeiros (democratizados já na maioria dos países) do poder político confiscado por certos grupos ou minorias que, desde há séculos, se assenhorearam pela força (guerras, conspirações, revoluções) das instituições e dos instrumentos de domínio sobre uma determinada população e território. Dai a persistência de certos “tiques” autocráticos ou de manobras insidiosas praticadas pelos governantes actuais para se manterem nos cargos, ou dos seus competidores para desalojar os que lá se encontram.
Por outro lado, é verdade que todas as comunidades nacionais, com uma história e cultura consolidadas, carecem de uma instância central em que se reconheçam, que lhes possa dar sinais de orientação colectiva e que as represente externamente perante outras similares. Os reis personificaram durante muito tempo esta função, mas caíram quando a tensão entre o sentimento colectivo do povo e os interesses particulares da família reinante atingiu um ponto de rotura. Hoje, neste aspecto, estando o risco de tirania relativamente esconjurado, o problema principal parece ser o de como conseguir um controlo do poder governativo pelos cidadãos que evite destemperos e corrupções (o que se chama democracia) mas que, ao mesmo tempo, assegure eficácia funcional e não descambe na manipulação afectiva ou eleitoralista (ou seja, a demagogia).
Finalmente, existem problemas próprios da nossa época que a humanidade enfrenta pela primeira vez, de forma titubeante e contraditória: os impactos negativos das indústrias e das cidades sobre o meio ambiente natural; a instantaneidade e massificação da comunicação; a imbricação e integração mundial das economias – tudo isto coexistindo com a presença de 200 estados nacionais, que são fruto das contingências históricas e extremamente desiguais entre si, com instituições de auto-governo pensadas no Séc. XVIII para substituir as realezas absolutistas caducas, e com uma ordem internacional negociada pelos mais fortes mas hoje com a preocupação de evitar as guerras brutais do passado (sobretudo tendo em conta o potencial de destruição existente). Por exemplo, os padrões éticos de comportamento, laicos ou religiosos, estão a ser fonte de grande angústia, ditada quer pela ausência de normas educativas, quer pelo choque entre crenças culturais profundamente enraizadas e princípios legais que se pretendem universais. E – sobretudo nos tempos que correm – é a actividade económica e financeira que manifesta dificuldades em se estabilizar, entre a capacidade de realização das macro-empresas, o apetite ao consumo de massas populacionais crescentes e a desigual autonomia e meios de controlo das entidades políticas nacionais.
Hoje, a crise é económico-financeira, mas também dos sistemas de representação política. Tem razão o sociólogo Gustavo Cardoso ao referir as condições de socialização dos jovens de hoje e ao escrever que “quando surgem fortes barreiras à mobilidade social e à intervenção política é quando a indignação sai à rua”, avisando ainda que “os líderes das democracias que não souberem ouvir de forma diferente e mudar a sua forma de pensar estarão condenados a um ciclo vicioso de derrota, de quem estiver no poder, e de vitória de quem estiver na oposição” (Público, 9.Nov.2011) – o que, convenhamos, não é uma perspectiva encorajadora.
A Bélgica – sobretudo porque é uma nação artificial – até poderia viver bem sempre com “governos de gestão corrente” (como a Suíça, por razões opostas), não fora o contexto externo em que está inserida: ontem, tendo que encarar as decisões sobre as invasões militares que lhe penetraram pela terra dentro; hoje, tendo de cuidar seriamente do sistema bancário ali sedeado e das derrapagens orçamentais, onde a emigração e o sistema de segurança social constituem duas variáveis-chave (vista a demografia do país), a pedirem decisões corajosas, que talvez não possam ser referendadas.
O “Estado sem governo” pode ser uma belíssima ideia, mas ainda não está propriamente na ordem-do-dia.
JF / 11.Nov.2011
terça-feira, 8 de novembro de 2011
Berlusconi: finalmente, desaparece de cena uma figura detestável
A crise financeira faz muitas vítimas mas também tem efeitos de saudável depuração. O afastamento do chefe do governo italiano Sílvio Berluscini é um deles.
A Itália vai entrar também em grandes dificuldades e todos os outros países sofrerão com isso. Mas as alterações políticas competem fundamentalmente aos cidadãos italianos, que saberão, ou não, encontrar soluções melhores.
O que, porém, diz respeito a todos nós é a indignidade com que um político como Berlusconi pôde estar à frente dessa grande nação durante tantos anos.
A sua trajectória é bem ilustrativa do arrivismo de negócios e do populismo televisivo que hoje são capazes de tomar conta da cabeça de um Estado: futebol-de-massas, RAIuno, grandes operações empresariais, criação do partido ForzaItalia (sobre os escombros de um espectro partidário corrompido e gasto), escândalos de costumes, manobras políticas para se eximir a vários casos judiciais, mau gosto e boçalidades, etc. – eis marcos que não deveriam voltar a ser percorridos.
A história da Itália política já é pródiga em figuras-bufas deste género. Mas isso não autoriza que as aceitemos simplesmente como o resultado das escolhas dos italianos.
O que é mau e rasca, deve ser denunciado.
JF / 8.Nov.2011
A Itália vai entrar também em grandes dificuldades e todos os outros países sofrerão com isso. Mas as alterações políticas competem fundamentalmente aos cidadãos italianos, que saberão, ou não, encontrar soluções melhores.
O que, porém, diz respeito a todos nós é a indignidade com que um político como Berlusconi pôde estar à frente dessa grande nação durante tantos anos.
A sua trajectória é bem ilustrativa do arrivismo de negócios e do populismo televisivo que hoje são capazes de tomar conta da cabeça de um Estado: futebol-de-massas, RAIuno, grandes operações empresariais, criação do partido ForzaItalia (sobre os escombros de um espectro partidário corrompido e gasto), escândalos de costumes, manobras políticas para se eximir a vários casos judiciais, mau gosto e boçalidades, etc. – eis marcos que não deveriam voltar a ser percorridos.
A história da Itália política já é pródiga em figuras-bufas deste género. Mas isso não autoriza que as aceitemos simplesmente como o resultado das escolhas dos italianos.
O que é mau e rasca, deve ser denunciado.
JF / 8.Nov.2011
sábado, 5 de novembro de 2011
A tremura dos 'setenta'
Atingir-se a vizinhança das setenta primaveras significa hoje, geralmente, ser passado à categoria dos reformados, inactivos ou aposentados.
Vá lá que ainda guardam o direito de voto, mesmo quando a lucidez se foi e o viver se torna uma espera do fim. (Deve ser para não enfrentar a dificuldade de definir juridicamente o que é a liberdade de consciência…)
É certo que a experiência e os distanciamentos são também uma condição do saber científico – como antecipou o dito renascentista sobre “la madre de todalas cosas”. Mas essa sabedoria, que alguns alcançam no declinar das suas vidas, já não tem hoje qualquer valor que possa aproveitar à sociedade, talvez com a excepção da socialização dos pequenotes, ainda assim de forma muito parcial.
Em termos demográficos e geracionais, as “sociedades de classes médias” de hoje são dirigidas por elites de média-idade que parecem orientar-se prioritariamente pelo propósito de seduzir as camadas jovens e vão suportando os pensionistas porque estes, cada vez mais, pesam nos pleitos eleitorais.
Contudo, como se observou entre nós com o interessante “balão de ensaios” do Partido de Solidariedade Nacional do doutor Manuel Sérgio, os idosos não demonstram ter as condições anímicas e a identidade social necessárias para constituir uma força política autónoma.
Limitam-se, assim, a exercer um certo papel social – sobretudo, o de baby sitters dos netos, e também os de animadores e utentes de “actividades de terceira idade”, como sejam formas várias de voluntariado, universidades seniores ou “depositários da memória” para os cientistas sociais exercitarem as suas competências –, ao lado de um papel económico já significativo, dada a expressão numérica que corporizam:
-a grande maioria, com pequenas ou insuficientes pensões, justificando a cada vez maior quantidade de trabalhadores sociais (públicos, empresariais e do “3º sector”) que deles se ocupam e que alguém paga (os impostos do Estado, os próprios beneficiários ou a solidariedade social);
-os mais abonados ou afortunados, reciclando parte das poupanças das suas vidas em favor dos filhos – os jovens adultos, mesmo bem qualificados, que enfrentam grandes dificuldades de integração na vida activa – e gerindo o que resta dos seus rendimentos entre o usufruto de alguns prazeres há muito sonhados (uma viagem, um espectáculo, etc.) e os cálculos arriscados de quanto irão ter para acabar as suas vidas.
Quando o corpo já pesa, o dominó e o banco-de-jardim são a escapatória possível para os mais desmunidos.
O corte abrupto entre uma actividade de trabalho, remunerada, e a desocupação, há muito que se sabe ser penoso e perturbador, mas, por isso mesmo, já hoje respondido de muitas maneiras, segundo os gostos e possibilidades de cada qual. O que já é quase sempre uma novidade é a reaprendizagem psicológica do casal de reformados, agora levados a conviver 24 horas por dia, coisa que nunca tinha acontecido nas suas vidas, salvo os momentos absolutamente excepcionais de uma longínqua paixão amorosa ou os pequenos intermezzi de algumas férias.
Pior é, mais cedo ou mais tarde, a inevitável experiência do “ficar só”, marcada pelo irremediável da morte ou por uma sucessão de conflitos internos ou de personalidade que levam à rotura. O quase-forçado exercício de reflexão e auto-análise deste isolamento pode conduzir a descobertas pessoais até decisivas para o sentido-da-vida de cada um, mas é quase sempre tarde demais para um desejo correctivo com efeitos práticos. O mesmo se diga dos cada vez mais fugazes impulsos sexuais, perante a beleza irresistível de um corpo jovem e a improbabilidade de o tocar.
A nostalgia é então, muitas vezes, uma saída carinhosa para os próprios – seja vivida individualmente ou entre iguais –, porém tremendamente aborrecida para terceiros. Ainda mais incómoda para estes é a caquexia ou outros desarranjos físico-mentais que tantas vezes antecedem o falecimento, provocando então verdadeira tristeza nos próximos que o conheceram e amaram vivo-vivo. E patética é a tentativa desesperada de alguns para contrariar o natural envelhecimento, pela maquillage ou a persistência em estilos-de-vida a destempo.
Analistas reconhecidos (Filomena Mónica, Villaverde Cabral) procuram dar conta disto pelo escrito ou pela acção investigativa-institucional, e não faltam actualmente especialistas e políticos para se ocuparem do “testamento vital”, mas surpreende que pareçam só agora descobrir o problema (Adiaram-no, certamente, e terão feito bem!).
Mas talvez todos pudéssemos aprender com a maioria desta gente da “terceira idade” uma qualidade que não abunda por aí: a da serenidade.
JF / 4.Nov.2011
Vá lá que ainda guardam o direito de voto, mesmo quando a lucidez se foi e o viver se torna uma espera do fim. (Deve ser para não enfrentar a dificuldade de definir juridicamente o que é a liberdade de consciência…)
É certo que a experiência e os distanciamentos são também uma condição do saber científico – como antecipou o dito renascentista sobre “la madre de todalas cosas”. Mas essa sabedoria, que alguns alcançam no declinar das suas vidas, já não tem hoje qualquer valor que possa aproveitar à sociedade, talvez com a excepção da socialização dos pequenotes, ainda assim de forma muito parcial.
Em termos demográficos e geracionais, as “sociedades de classes médias” de hoje são dirigidas por elites de média-idade que parecem orientar-se prioritariamente pelo propósito de seduzir as camadas jovens e vão suportando os pensionistas porque estes, cada vez mais, pesam nos pleitos eleitorais.
Contudo, como se observou entre nós com o interessante “balão de ensaios” do Partido de Solidariedade Nacional do doutor Manuel Sérgio, os idosos não demonstram ter as condições anímicas e a identidade social necessárias para constituir uma força política autónoma.
Limitam-se, assim, a exercer um certo papel social – sobretudo, o de baby sitters dos netos, e também os de animadores e utentes de “actividades de terceira idade”, como sejam formas várias de voluntariado, universidades seniores ou “depositários da memória” para os cientistas sociais exercitarem as suas competências –, ao lado de um papel económico já significativo, dada a expressão numérica que corporizam:
-a grande maioria, com pequenas ou insuficientes pensões, justificando a cada vez maior quantidade de trabalhadores sociais (públicos, empresariais e do “3º sector”) que deles se ocupam e que alguém paga (os impostos do Estado, os próprios beneficiários ou a solidariedade social);
-os mais abonados ou afortunados, reciclando parte das poupanças das suas vidas em favor dos filhos – os jovens adultos, mesmo bem qualificados, que enfrentam grandes dificuldades de integração na vida activa – e gerindo o que resta dos seus rendimentos entre o usufruto de alguns prazeres há muito sonhados (uma viagem, um espectáculo, etc.) e os cálculos arriscados de quanto irão ter para acabar as suas vidas.
Quando o corpo já pesa, o dominó e o banco-de-jardim são a escapatória possível para os mais desmunidos.
O corte abrupto entre uma actividade de trabalho, remunerada, e a desocupação, há muito que se sabe ser penoso e perturbador, mas, por isso mesmo, já hoje respondido de muitas maneiras, segundo os gostos e possibilidades de cada qual. O que já é quase sempre uma novidade é a reaprendizagem psicológica do casal de reformados, agora levados a conviver 24 horas por dia, coisa que nunca tinha acontecido nas suas vidas, salvo os momentos absolutamente excepcionais de uma longínqua paixão amorosa ou os pequenos intermezzi de algumas férias.
Pior é, mais cedo ou mais tarde, a inevitável experiência do “ficar só”, marcada pelo irremediável da morte ou por uma sucessão de conflitos internos ou de personalidade que levam à rotura. O quase-forçado exercício de reflexão e auto-análise deste isolamento pode conduzir a descobertas pessoais até decisivas para o sentido-da-vida de cada um, mas é quase sempre tarde demais para um desejo correctivo com efeitos práticos. O mesmo se diga dos cada vez mais fugazes impulsos sexuais, perante a beleza irresistível de um corpo jovem e a improbabilidade de o tocar.
A nostalgia é então, muitas vezes, uma saída carinhosa para os próprios – seja vivida individualmente ou entre iguais –, porém tremendamente aborrecida para terceiros. Ainda mais incómoda para estes é a caquexia ou outros desarranjos físico-mentais que tantas vezes antecedem o falecimento, provocando então verdadeira tristeza nos próximos que o conheceram e amaram vivo-vivo. E patética é a tentativa desesperada de alguns para contrariar o natural envelhecimento, pela maquillage ou a persistência em estilos-de-vida a destempo.
Analistas reconhecidos (Filomena Mónica, Villaverde Cabral) procuram dar conta disto pelo escrito ou pela acção investigativa-institucional, e não faltam actualmente especialistas e políticos para se ocuparem do “testamento vital”, mas surpreende que pareçam só agora descobrir o problema (Adiaram-no, certamente, e terão feito bem!).
Mas talvez todos pudéssemos aprender com a maioria desta gente da “terceira idade” uma qualidade que não abunda por aí: a da serenidade.
JF / 4.Nov.2011
sábado, 29 de outubro de 2011
Entre o universalismo de esquerda e o assistencialismo de direita
Para além dos modernos sistemas de solidariedade e previdência social (em que todos contribuem para aqueles que são atingidos pelo desemprego, a doença ou o acidente de trabalho e, por outro lado, se garante uma pensão aos idosos e incapazes), boa parte da chamada “acção social do Estado” tem dado origem ao cavar de fosso entre duas perspectivas principais, entre as actuais forças políticas de direita e de esquerda.
As “esquerdas”, geralmente conotadas com a defesa dos interesses e direitos dos mais fracos e numerosos, tenderam a estabelecer direitos universalmente usufruíveis (gratuitos, se possível), pagos pelo orçamento do Estado que, por sua vez, através dos impostos, deveria penalizar fortemente os mais ricos e assim corrigir as desigualdades económicas existentes na sociedade (e que estão longe de ser apenas fruto do capitalismo). Com isto, operaram alguma distribuição de rendimentos mas fizeram crescer enormemente uma burocracia de funcionários públicos, ainda por cima geralmente pouco eficiente, criando também novos lugares de decisão, ao alcance da sua intelligentsia, mais bem preparada intelectualmente. E recordo-me de, no início dos anos 70, um notável sociólogo da Europa do norte ter chamado a atenção para uma provável “revolta dos contribuintes”, tal o nível aí atingido pela fiscalidade para fazer face à despesa pública crescente, ainda antes da aceleração da circulação do dinheiro e do triunfo das engenharias financeiras, com os riscos de “descoberto” que agora se vêem.
As “direitas”, evoluíram mais rápida e notoriamente: vieram do conservadorismo classista que considerava as populações operárias e camponesas como desprezíveis; integraram parte do estatismo e do populismo das ideologias autoritárias europeias da primeira metade do século XX; absorveram o sentido cristão da caridade ou da solidariedade; mantiveram o apego aos valores da propriedade, do mercado e da livre iniciativa; souberam passar do proteccionismo ao livre-cambismo e à concorrência cada vez mais aberta; e, last but not the least, deixaram de se apresentar como guardiões do statu quo e passaram igualmente a defensores da “mudança”.
No plano aqui em discussão, têm porém visões bem diferentes da esquerda sobre o que deve ser o “Estado social”. Por exemplo, defendem geralmente o princípio do “utilizador-pagador” (de uma auto-estrada ou outro equipamento colectivo), em vez da gratuitidade; não só propõem “taxas moderadoras” na saúde (e outros serviços públicos, para evitar o seu uso não justificado) como acham mesmo que, quem mais tem, mais deve pagar no uso que faz daqueles caríssimos recursos; na educação, propõem o “cheque-ensino”, para permitir a livre escolha dos melhores estabelecimentos de ensino e sustentar a oferta privada no sector; avançam com “plafonamentos” dos descontos obrigatórios para a segurança social para aliviar o Estado do ónus da evolução demográfica e interessar os seguros de capitalização; julgam que muitos serviços públicos (transportes, correios, energia, águas ou televisão) podem ser privatizados, com vantagem para os cidadãos, menores custos para o Estado e oportunidades de negócio para a iniciativa privada; etc.
Presa no seu imobilismo ideológico, a esquerda tem cedido, pouco a pouco, em diversos pontos deste programa. Em compensação, inovou no capítulo dos “novos direitos” para responder a reivindicações de minorias (na sexualidade, relações inter-étnicas, fruição cultural, direito civil, etc.).
Entre estas duas visões dominantes, pouco espaço resta para uma alternativa se afirmar. No entanto, ela existe já, e especialmente apta para lidar com “problemas sociais” deste tipo: encontra-se no “3º sector” e é constituída por uma apreciável rede de instituições locais de entreajuda e solidariedade social (mutualidades, misericórdias, associações, ONG’s). Aqui, não existem objectivos lucrativos (como nas empresas), há maior sensibilidade humana e relações de proximidade (ao contrário das instituições públicas), dá-se oportunidade de uma acção socialmente útil a um significativo número de colaboradores voluntários (não remunerados) e ainda se contribui para o emprego de uns largos milhares de trabalhadores, muitos deles de parcas qualificações profissionais. É verdade que, entre nós, a maioria destas instituições é de inspiração católica e serve também os seus intuitos proselitistas, mas esse é um desafio que outras orientações espirituais, éticas ou políticas já deveriam ter resgatado há muito tempo, fazendo igual ou melhor no mesmo campo.
O que falta então? Faltam “empreendedores sociais” mais imaginativos e responsáveis e, em especial, os financiamentos para construir e manter tais equipamentos, uma vez que quase não se pode contar com as contribuições dos beneficiários. O Estado subsidia (e bem) estas actividades, mas aí se criou também uma excessiva dependência, que só pode ter efeitos nefastos. Seria, pois, muito desejável que, na base do altruísmo, se desenvolvessem os mecanismos de “recolha de fundos” no seio da sociedade civil (como acontece em países anglo-saxónicos), logicamente apelando sobretudo aos níveis mais elevados de rendimentos, para que o “3º sector” pudesse ganhar uma outra auto-sustentação.
JF / 28.Nov.2011
As “esquerdas”, geralmente conotadas com a defesa dos interesses e direitos dos mais fracos e numerosos, tenderam a estabelecer direitos universalmente usufruíveis (gratuitos, se possível), pagos pelo orçamento do Estado que, por sua vez, através dos impostos, deveria penalizar fortemente os mais ricos e assim corrigir as desigualdades económicas existentes na sociedade (e que estão longe de ser apenas fruto do capitalismo). Com isto, operaram alguma distribuição de rendimentos mas fizeram crescer enormemente uma burocracia de funcionários públicos, ainda por cima geralmente pouco eficiente, criando também novos lugares de decisão, ao alcance da sua intelligentsia, mais bem preparada intelectualmente. E recordo-me de, no início dos anos 70, um notável sociólogo da Europa do norte ter chamado a atenção para uma provável “revolta dos contribuintes”, tal o nível aí atingido pela fiscalidade para fazer face à despesa pública crescente, ainda antes da aceleração da circulação do dinheiro e do triunfo das engenharias financeiras, com os riscos de “descoberto” que agora se vêem.
As “direitas”, evoluíram mais rápida e notoriamente: vieram do conservadorismo classista que considerava as populações operárias e camponesas como desprezíveis; integraram parte do estatismo e do populismo das ideologias autoritárias europeias da primeira metade do século XX; absorveram o sentido cristão da caridade ou da solidariedade; mantiveram o apego aos valores da propriedade, do mercado e da livre iniciativa; souberam passar do proteccionismo ao livre-cambismo e à concorrência cada vez mais aberta; e, last but not the least, deixaram de se apresentar como guardiões do statu quo e passaram igualmente a defensores da “mudança”.
No plano aqui em discussão, têm porém visões bem diferentes da esquerda sobre o que deve ser o “Estado social”. Por exemplo, defendem geralmente o princípio do “utilizador-pagador” (de uma auto-estrada ou outro equipamento colectivo), em vez da gratuitidade; não só propõem “taxas moderadoras” na saúde (e outros serviços públicos, para evitar o seu uso não justificado) como acham mesmo que, quem mais tem, mais deve pagar no uso que faz daqueles caríssimos recursos; na educação, propõem o “cheque-ensino”, para permitir a livre escolha dos melhores estabelecimentos de ensino e sustentar a oferta privada no sector; avançam com “plafonamentos” dos descontos obrigatórios para a segurança social para aliviar o Estado do ónus da evolução demográfica e interessar os seguros de capitalização; julgam que muitos serviços públicos (transportes, correios, energia, águas ou televisão) podem ser privatizados, com vantagem para os cidadãos, menores custos para o Estado e oportunidades de negócio para a iniciativa privada; etc.
Presa no seu imobilismo ideológico, a esquerda tem cedido, pouco a pouco, em diversos pontos deste programa. Em compensação, inovou no capítulo dos “novos direitos” para responder a reivindicações de minorias (na sexualidade, relações inter-étnicas, fruição cultural, direito civil, etc.).
Entre estas duas visões dominantes, pouco espaço resta para uma alternativa se afirmar. No entanto, ela existe já, e especialmente apta para lidar com “problemas sociais” deste tipo: encontra-se no “3º sector” e é constituída por uma apreciável rede de instituições locais de entreajuda e solidariedade social (mutualidades, misericórdias, associações, ONG’s). Aqui, não existem objectivos lucrativos (como nas empresas), há maior sensibilidade humana e relações de proximidade (ao contrário das instituições públicas), dá-se oportunidade de uma acção socialmente útil a um significativo número de colaboradores voluntários (não remunerados) e ainda se contribui para o emprego de uns largos milhares de trabalhadores, muitos deles de parcas qualificações profissionais. É verdade que, entre nós, a maioria destas instituições é de inspiração católica e serve também os seus intuitos proselitistas, mas esse é um desafio que outras orientações espirituais, éticas ou políticas já deveriam ter resgatado há muito tempo, fazendo igual ou melhor no mesmo campo.
O que falta então? Faltam “empreendedores sociais” mais imaginativos e responsáveis e, em especial, os financiamentos para construir e manter tais equipamentos, uma vez que quase não se pode contar com as contribuições dos beneficiários. O Estado subsidia (e bem) estas actividades, mas aí se criou também uma excessiva dependência, que só pode ter efeitos nefastos. Seria, pois, muito desejável que, na base do altruísmo, se desenvolvessem os mecanismos de “recolha de fundos” no seio da sociedade civil (como acontece em países anglo-saxónicos), logicamente apelando sobretudo aos níveis mais elevados de rendimentos, para que o “3º sector” pudesse ganhar uma outra auto-sustentação.
JF / 28.Nov.2011
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
E lá vão dois anos já
Foi há dois anos que iniciámos uma colaboração que se tornou regular, de base semanal, neste blogue ‘A Ideia Livre’. Não havia tal intenção à partida, embora fosse previsível.
Estava o mundo em plena crise financeira e económica e os eleitores portugueses acabavam de renovar o mandato do governo PS de José Sócrates, já marcado por muita desconfiança e críticas crescentes. E surgiam novos passos em causas fracturantes na “frente de esquerda dos costumes”.
Entretanto, os sinais de crise económica mudaram de aspecto e chicotearam nações desatentas como a Grécia e Portugal, enquanto continuaram a crescer notoriamente (economicamente e não só) grandes países do “3º mundo” como a China, a Índia, o Brasil, a África do Sul ou a Turquia, e com a Rússia a reocupar o lugar a que aspira. Os soldados do “bloco americano” foram-se progressivamente desencastrando dos cenários do Médio-Oriente e surgiram as insurreições da “rua árabe” para apear os seus regimes autoritários. Estamos, de facto, em época de grandes mudanças.
Veremos como andará daqui a um ano o globo, e o país, se cá estivermos.
JF / 25.Out.2011
Estava o mundo em plena crise financeira e económica e os eleitores portugueses acabavam de renovar o mandato do governo PS de José Sócrates, já marcado por muita desconfiança e críticas crescentes. E surgiam novos passos em causas fracturantes na “frente de esquerda dos costumes”.
Entretanto, os sinais de crise económica mudaram de aspecto e chicotearam nações desatentas como a Grécia e Portugal, enquanto continuaram a crescer notoriamente (economicamente e não só) grandes países do “3º mundo” como a China, a Índia, o Brasil, a África do Sul ou a Turquia, e com a Rússia a reocupar o lugar a que aspira. Os soldados do “bloco americano” foram-se progressivamente desencastrando dos cenários do Médio-Oriente e surgiram as insurreições da “rua árabe” para apear os seus regimes autoritários. Estamos, de facto, em época de grandes mudanças.
Veremos como andará daqui a um ano o globo, e o país, se cá estivermos.
JF / 25.Out.2011
sábado, 22 de outubro de 2011
Give peace a chance!
“Dêem uma oportunidade à paz!” O apelo parece apropriado no momento em que o ditador Kadafi tombou varado por balas na batalha de Kirte e em que, por casualidade, o que resta da ETA guerrilheira afirma renunciar à luta armada.
No primeiro caso – a supor que esta vitória dos insurrectos apoiados pela NATO dará finalmente ao CNT o controlo militar e de segurança do país –, resta saber se este modo manu militare de abater um regime não vai prolongar-se em campanhas vingativas ou lutas armadas entre tribos ou facções, e se forças radicais islamistas não tentarão apropriar-se de mecanismos importantes de dominação social (educação, solidariedade) ou política (exército, justiça, comunicação), que irão certamente ser agora levantados até com ajuda de dinheiros externos, ou aproveitarão oportunidades futuras para afirmar o posicionamento da Líbia no seu “indefectível apoio à causa palestiniana” ou contra a “ingerência imperialista nos seus assuntos internos”.
Em geral, as revoluções tendem a engendrar processos contra-revolucionários, que podem afundar as sociedades em conflitos intermináveis. As “boas revoluções” são as que encontram uma ampla base de apoio/compreensão social para a remoção do estado-de-coisas anterior, que se eternizara, e que se distinguem pelo uso excepcional da força, de muito curta duração. Neste caso, o facto da iniciativa da revolta (em Bengazi) ter provindo em larga medida do mesmo de tipo de “coligação-de-rua” que protagonizou as mudanças na Tunísia e no Egipto – isto é, jovens de classe média ocidentalizados, quadros dissidentes e povo urbano sofredor –, a discreta ajuda militar e política obtida de França, Inglaterra e Estados Unidos, a circunstância da Líbia ter recursos económicos (petróleo, relevante para os ocidentais) com que pagar os custos económicos da reconstrução e o próprio contexto “progressista-democrático” destas actuais “revoluções árabes” permite alimentar algumas esperanças quanto a uma evolução razoavelmente bem sucedida. Também parece positiva a maneira como a vida urbana tem sido retomada e reorganizada nas cidades sucessivamente ganhas aos “kadafistas”. Mas, é claro que têm razão os analistas que apontam a incógnita de como vai ser possível gerir este processo e construir uma legitimidade democrática para o novo poder onde não existem instituições de Estado que permaneçam (administração pública, justiça, segurança, etc.) e onde as forças políticas partirão do zero. Sairá antes um poder de Estado assente numa negociação com as tribos tradicionais (parecido com o de Karzai no Afeganistão)?
No que toca à nossa vizinha Espanha, o passo agora dado – parece que com o “conselho” dos ex-guerrilheiros irlandeses – significará o fim do “abcesso de fixação serôdio” que constituía este recurso à acção terrorista por parte de nacionalistas bascos, num país que goza de ampla liberdade de expressão e actuação cidadã, bem como de instituições legitimadas pelo voto das populações. Bem entendido, a questão política da integração da nação basca no Estado espanhol vai permanecer – como bem mostra o caso da Catalunha –, porém noutras plataformas e com outras conjunturas e processos. Oxalá a inevitável “resistência” dos mais impetuosos e dos “sacrificados” a esta nova fase seja breve e mínima, para que também cesse, efectivamente, a insuportável “violência de baixa intensidade” dos jovens nacionalistas arruaceiros, corajosamente denunciada por um filósofo libertário como é Fernando Savater.
JF / 22.Out.2011
No primeiro caso – a supor que esta vitória dos insurrectos apoiados pela NATO dará finalmente ao CNT o controlo militar e de segurança do país –, resta saber se este modo manu militare de abater um regime não vai prolongar-se em campanhas vingativas ou lutas armadas entre tribos ou facções, e se forças radicais islamistas não tentarão apropriar-se de mecanismos importantes de dominação social (educação, solidariedade) ou política (exército, justiça, comunicação), que irão certamente ser agora levantados até com ajuda de dinheiros externos, ou aproveitarão oportunidades futuras para afirmar o posicionamento da Líbia no seu “indefectível apoio à causa palestiniana” ou contra a “ingerência imperialista nos seus assuntos internos”.
Em geral, as revoluções tendem a engendrar processos contra-revolucionários, que podem afundar as sociedades em conflitos intermináveis. As “boas revoluções” são as que encontram uma ampla base de apoio/compreensão social para a remoção do estado-de-coisas anterior, que se eternizara, e que se distinguem pelo uso excepcional da força, de muito curta duração. Neste caso, o facto da iniciativa da revolta (em Bengazi) ter provindo em larga medida do mesmo de tipo de “coligação-de-rua” que protagonizou as mudanças na Tunísia e no Egipto – isto é, jovens de classe média ocidentalizados, quadros dissidentes e povo urbano sofredor –, a discreta ajuda militar e política obtida de França, Inglaterra e Estados Unidos, a circunstância da Líbia ter recursos económicos (petróleo, relevante para os ocidentais) com que pagar os custos económicos da reconstrução e o próprio contexto “progressista-democrático” destas actuais “revoluções árabes” permite alimentar algumas esperanças quanto a uma evolução razoavelmente bem sucedida. Também parece positiva a maneira como a vida urbana tem sido retomada e reorganizada nas cidades sucessivamente ganhas aos “kadafistas”. Mas, é claro que têm razão os analistas que apontam a incógnita de como vai ser possível gerir este processo e construir uma legitimidade democrática para o novo poder onde não existem instituições de Estado que permaneçam (administração pública, justiça, segurança, etc.) e onde as forças políticas partirão do zero. Sairá antes um poder de Estado assente numa negociação com as tribos tradicionais (parecido com o de Karzai no Afeganistão)?
No que toca à nossa vizinha Espanha, o passo agora dado – parece que com o “conselho” dos ex-guerrilheiros irlandeses – significará o fim do “abcesso de fixação serôdio” que constituía este recurso à acção terrorista por parte de nacionalistas bascos, num país que goza de ampla liberdade de expressão e actuação cidadã, bem como de instituições legitimadas pelo voto das populações. Bem entendido, a questão política da integração da nação basca no Estado espanhol vai permanecer – como bem mostra o caso da Catalunha –, porém noutras plataformas e com outras conjunturas e processos. Oxalá a inevitável “resistência” dos mais impetuosos e dos “sacrificados” a esta nova fase seja breve e mínima, para que também cesse, efectivamente, a insuportável “violência de baixa intensidade” dos jovens nacionalistas arruaceiros, corajosamente denunciada por um filósofo libertário como é Fernando Savater.
JF / 22.Out.2011
domingo, 16 de outubro de 2011
Em Portugal, agora vai doer... mas o protesto é global
“Anestesiados” com este estio prolongado, aí estão as medidas duras que se já previam para o Orçamento do Estado de 2012!
Como o Estado representa metade da nossa economia e se deixou endividar mais do que podia, agora é toda a sociedade que tem de arcar com os prejuízos.
“Toda”, não é bem assim, pois se no consumo há algumas excepções que aliviam bens alimentares essenciais, despesas de saúde, educação, etc., pareceria justo que o IVA pudesse ser sobrecarregado nos artigos de luxo. Por seu lado, no IRS sabe-se que a maioria dos portugueses nada paga, seja porque os seus rendimentos são muito baixos, seja porque, não sendo assalariados, dele conseguem fugir. E na propriedade e nos negócios há situações excessivamente contrastantes: prédios rústicos ridiculamente taxados devido a um cadastro caduco versus as “artes” e matreirices em que os poderosos são exímios.
Diz já o jornalista económico Nicolau Santos que o fim do 13º e 14º meses é para ficar e para estender ao sector privado (como seria lógico do ponto de vista da equidade e do embaratecimento dos custos do trabalho, mais do que o alongamento do horário), embora isso provoque um rombo na procura interna. As subidas do IVA e das tarifas dos transportes e da energia agravarão a competitividade das empresas e atacam a carteira dos cidadãos, tal como os custos da saúde. Mais créditos particulares (sobretudo na habitação) ficarão por honrar. E não se vislumbra maneira de o emprego voltar a crescer, antes pelo contrário. Perguntar-se-á mesmo até quando os funcionários públicos manterão o seu estatuto protegido. Mas deve reconhecer-se o esforço para que tudo isto só atinja de raspão os dois ou três milhões de pessoas com mais baixos rendimentos.
Em todo o caso, no aumento dos preços e dos impostos, nos cortes aos salários e na recessão da economia, é a sociedade no seu conjunto que empobrece e se torna mais azeda; e é o volume dos declaradamente pobres e assistidos que vai aumentar ainda mais, com o correspondente agravamento do desequilíbrio da segurança social (embora seja questionável que esta seja considerada, por inteiro, uma despesa do Estado).
Simplesmente, é ilusório atirar pedras. Já sabemos hoje demais para que se acredite piamente que a culpa é dos ricos, da banca, dos americanos, da Alemanha ou dos “mercados”. Ou até que culpemos os políticos que “nos roubam” – mas que foram eleitos pela maioria dos cidadãos que se exprimiu nas urnas.
Agora, estando os portugueses na péssima situação em que estão (e os gregos ainda pior), o que também não há dúvidas é que vivemos actualmente uma fase de grande indeterminação no espaço europeu e na economia global. Incertezas nos mercados monetários e financeiros, crises de dívida soberana e de solvabilidades bancárias, tendo como pano de fundo o ascenso de poder económico das novas potências – tudo isso nos pinta um quadro de grande perplexidade. E se em Portugal a situação é de emergência nacional, na Europa, face ao mundo, evidencia-se o desajustamento entre a urgência das decisões económicas e a lentidão e contradições do processo de decisão política da UE. É claro que é quase ofensivo o modo como os líderes da dupla franco-alemã têm tentado avançar. Mas que dizer da coerência de 27 representantes de interesses nacionais distintos sentados à volta da grande mesa do “conselho” ou nas bancadas do parlamento europeu? Poderá a crise actual superar-se com uma maior integração das nações da Europa?
As manifestações de rua de 15 de Outubro, um pouco por todo o mundo desenvolvido, foram aquilo que podiam ser: um protesto, um sinal de dissensão e de desespero das populações jovens e urbanas face a este agravamento das suas perspectivas de vida. Têm boas razões para tal. Como sempre, os organizadores políticos das ditas tentam capitalizar este descontentamento para as suas respectivas ideologias ou objectivos instrumentais. Mas todos sabemos que não dispõem de qualquer solução alternativa e melhor para contrapor a este nosso declínio.
Tentemos ser lúcidos no meio da confusão, e não acrescentá-la.
JF / 16.Out.2011
Como o Estado representa metade da nossa economia e se deixou endividar mais do que podia, agora é toda a sociedade que tem de arcar com os prejuízos.
“Toda”, não é bem assim, pois se no consumo há algumas excepções que aliviam bens alimentares essenciais, despesas de saúde, educação, etc., pareceria justo que o IVA pudesse ser sobrecarregado nos artigos de luxo. Por seu lado, no IRS sabe-se que a maioria dos portugueses nada paga, seja porque os seus rendimentos são muito baixos, seja porque, não sendo assalariados, dele conseguem fugir. E na propriedade e nos negócios há situações excessivamente contrastantes: prédios rústicos ridiculamente taxados devido a um cadastro caduco versus as “artes” e matreirices em que os poderosos são exímios.
Diz já o jornalista económico Nicolau Santos que o fim do 13º e 14º meses é para ficar e para estender ao sector privado (como seria lógico do ponto de vista da equidade e do embaratecimento dos custos do trabalho, mais do que o alongamento do horário), embora isso provoque um rombo na procura interna. As subidas do IVA e das tarifas dos transportes e da energia agravarão a competitividade das empresas e atacam a carteira dos cidadãos, tal como os custos da saúde. Mais créditos particulares (sobretudo na habitação) ficarão por honrar. E não se vislumbra maneira de o emprego voltar a crescer, antes pelo contrário. Perguntar-se-á mesmo até quando os funcionários públicos manterão o seu estatuto protegido. Mas deve reconhecer-se o esforço para que tudo isto só atinja de raspão os dois ou três milhões de pessoas com mais baixos rendimentos.
Em todo o caso, no aumento dos preços e dos impostos, nos cortes aos salários e na recessão da economia, é a sociedade no seu conjunto que empobrece e se torna mais azeda; e é o volume dos declaradamente pobres e assistidos que vai aumentar ainda mais, com o correspondente agravamento do desequilíbrio da segurança social (embora seja questionável que esta seja considerada, por inteiro, uma despesa do Estado).
Simplesmente, é ilusório atirar pedras. Já sabemos hoje demais para que se acredite piamente que a culpa é dos ricos, da banca, dos americanos, da Alemanha ou dos “mercados”. Ou até que culpemos os políticos que “nos roubam” – mas que foram eleitos pela maioria dos cidadãos que se exprimiu nas urnas.
Agora, estando os portugueses na péssima situação em que estão (e os gregos ainda pior), o que também não há dúvidas é que vivemos actualmente uma fase de grande indeterminação no espaço europeu e na economia global. Incertezas nos mercados monetários e financeiros, crises de dívida soberana e de solvabilidades bancárias, tendo como pano de fundo o ascenso de poder económico das novas potências – tudo isso nos pinta um quadro de grande perplexidade. E se em Portugal a situação é de emergência nacional, na Europa, face ao mundo, evidencia-se o desajustamento entre a urgência das decisões económicas e a lentidão e contradições do processo de decisão política da UE. É claro que é quase ofensivo o modo como os líderes da dupla franco-alemã têm tentado avançar. Mas que dizer da coerência de 27 representantes de interesses nacionais distintos sentados à volta da grande mesa do “conselho” ou nas bancadas do parlamento europeu? Poderá a crise actual superar-se com uma maior integração das nações da Europa?
As manifestações de rua de 15 de Outubro, um pouco por todo o mundo desenvolvido, foram aquilo que podiam ser: um protesto, um sinal de dissensão e de desespero das populações jovens e urbanas face a este agravamento das suas perspectivas de vida. Têm boas razões para tal. Como sempre, os organizadores políticos das ditas tentam capitalizar este descontentamento para as suas respectivas ideologias ou objectivos instrumentais. Mas todos sabemos que não dispõem de qualquer solução alternativa e melhor para contrapor a este nosso declínio.
Tentemos ser lúcidos no meio da confusão, e não acrescentá-la.
JF / 16.Out.2011
sábado, 8 de outubro de 2011
Obesidade e subnutrição
Ambas são patologias médicas, mas quase sempre com causas sociais por trás.
Para além dos fenómenos de carência psico-afectiva, a obesidade é uma doença de (países) ricos, associada a excessos alimentares vários e à sedentariedade e falta de exercício físico, provocando por sua vez maiores incidências de hipertensão, cardiopatias, diabetes, gota, etc.
Para além do efeito da gula por parte das cozinhas e confeitarias tradicionais – sempre muito apetecíveis –, esta tendência é hoje particularmente estimulada junto de crianças e jovens por uma publicidade e uma oferta omnipresente e “agressiva”/sedutora de produtos tais como: açucares e chocolates doces, carnes e batatas fritas, pastilhas de mascar, refrigerantes e alcoóis. As respectivas indústrias agro-alimentares têm óbvios interesses neste crescimento do consumo mas são sobretudo as técnicas comerciais do marketing e da publicidade que directamente impulsionam formas de experimentação, de consumo, habituação, excesso e mesmo de compulsão ou dependência pessoal de tais ingredientes. Neste ponto, a função informativa dessas práticas comerciais e a concorrência que leva à diversificação estão aqui muito esmagadas pela pressão do lucro e a manutenção/disputa de posições nos mercados. No final da cadeia, os múltiplos agentes da restauração e venda-a-retalho (que constituem sempre um segmento importante para a vida social) não dispõem geralmente dos conhecimentos profissionais suficientes para articular o compreensível interesse da venda com o desejável cuidado relativo à qualidade do produto. E os pais – cada vez mais oriundos de estratos sociais carenciados – são levados intuitivamente a “compensar” nos regimes alimentares dos filhos (para além de brinquedos, artigos de vestuário e outros artefactos) as suas próprias frustrações de infância, descurando informar-se devidamente sobre aquilo que melhor lhes conviria.
Por seu lado, a subnutrição é um flagelo antigo que todavia persiste no planeta, agora de uma maneira mais chocante, tendo em conta as potencialidades económicas e técnicas existentes, que já deveriam ter conseguido a sua erradicação. Concentra-se hoje quase exclusivamente em grandes zonas de África e, muito mais limitadamente, na Ásia, Próximo-Oriente ou América latina, associada à pobreza e, de modo mais conjuntural, a fenómenos de perturbações climáticas (secas, cheias, etc.), depressão económica ou exclusão social, situações de isolamento ou migrações urgentes provocadas por guerras, genocídios ou outros actos humanos.
No entanto, a fronteira entre pobreza e “fome” não é fácil de estabelecer e a interdependência circular de vários factores (recursos naturais, estrutura social e tradições, infraestruturas materiais, tecnologias e fundos financeiros disponíveis, educação, estado sanitário, meios de intervenção, poder político, segurança, etc.) dificulta muito a tipificação de estratégias de acção eficazes e de efeitos duráveis.
Mas, de entre os processos mais pertinazes das situações não-catastróficas da fome e subnutrição que atingem esses povos, há talvez dois que mereçam uma especial referência. O primeiro é o da rarefacção da base económica natural que garantiu a sua sobrevivência ao longo de séculos: terrenos aráveis capazes de permitir alguma agricultura de subsistência (ou pastagens suficientes, para povos vivendo dos seus rebanhos; ou ainda condições viáveis de pesca local/costeira) e comunidades bem integradas do ponto de vista sócio-cultural – que agora poderiam ser apoiadas por políticas sócio-económicas adequadas promovidas pelos seus governos centrais, com ajudas recebidas do mundo desenvolvido, no sentido de se poderem progressivamente modernizar sem ter que abandonar os seus espaços de ocupação territorial tradicionais, ou já suficientemente estabilizados, na paisagem rural. Na realidade, não parece que esta tenha sido uma preocupação dos decisores, locais, nacionais ou extra-nacionais. E quando a terra se lhes mingua ou propõem trabalhos-a-salário que implicam deslocações, é quase certo que se rompem equilíbrios essenciais. (Nesse aspecto, as migrações são quase sempre um drama.)
O segundo processo de criação de condições propícias à miséria e à subnutrição (e de aculturação mais ou menos violenta) é justamente o do êxodo dessas populações rurais que vão “suburbanizar-se” para as periferias das gigantescas cidades do “3º mundo”. Cairo, Lagos, Kinshasa, Joannesburg, Maputo ou Luanda (para não sairmos de África) tornaram-se metrópoles pobres onde a sobrevivência passa, para a maioria da população, por lutas diárias interpessoais para angariar sustento, a evitação de perigos vários, desarticulação social e desprotecção contra as novas patologias insidiosas (sida e outras) ou os apelos para caminhos de marginalização e violência (droga, banditismo, etc.).
São, de facto, dois programas grandiosos para os homens e mulheres do século XXI: redescobrir uma economia rural sustentável para estes povos; e tornar efectivamente urbanas as populações hoje amontoadas nos subúrbios das suas metrópoles. O equilíbrio numérico mundial hoje atingido entre estes dois meios de vida contrastantes – o rural e o urbano – deveria dar lugar a uma relação mais equitativa da riqueza e do bem-estar produzidos num e noutro (e necessariamente no interior da cidade).
JF / 8.Out.2011
Para além dos fenómenos de carência psico-afectiva, a obesidade é uma doença de (países) ricos, associada a excessos alimentares vários e à sedentariedade e falta de exercício físico, provocando por sua vez maiores incidências de hipertensão, cardiopatias, diabetes, gota, etc.
Para além do efeito da gula por parte das cozinhas e confeitarias tradicionais – sempre muito apetecíveis –, esta tendência é hoje particularmente estimulada junto de crianças e jovens por uma publicidade e uma oferta omnipresente e “agressiva”/sedutora de produtos tais como: açucares e chocolates doces, carnes e batatas fritas, pastilhas de mascar, refrigerantes e alcoóis. As respectivas indústrias agro-alimentares têm óbvios interesses neste crescimento do consumo mas são sobretudo as técnicas comerciais do marketing e da publicidade que directamente impulsionam formas de experimentação, de consumo, habituação, excesso e mesmo de compulsão ou dependência pessoal de tais ingredientes. Neste ponto, a função informativa dessas práticas comerciais e a concorrência que leva à diversificação estão aqui muito esmagadas pela pressão do lucro e a manutenção/disputa de posições nos mercados. No final da cadeia, os múltiplos agentes da restauração e venda-a-retalho (que constituem sempre um segmento importante para a vida social) não dispõem geralmente dos conhecimentos profissionais suficientes para articular o compreensível interesse da venda com o desejável cuidado relativo à qualidade do produto. E os pais – cada vez mais oriundos de estratos sociais carenciados – são levados intuitivamente a “compensar” nos regimes alimentares dos filhos (para além de brinquedos, artigos de vestuário e outros artefactos) as suas próprias frustrações de infância, descurando informar-se devidamente sobre aquilo que melhor lhes conviria.
Por seu lado, a subnutrição é um flagelo antigo que todavia persiste no planeta, agora de uma maneira mais chocante, tendo em conta as potencialidades económicas e técnicas existentes, que já deveriam ter conseguido a sua erradicação. Concentra-se hoje quase exclusivamente em grandes zonas de África e, muito mais limitadamente, na Ásia, Próximo-Oriente ou América latina, associada à pobreza e, de modo mais conjuntural, a fenómenos de perturbações climáticas (secas, cheias, etc.), depressão económica ou exclusão social, situações de isolamento ou migrações urgentes provocadas por guerras, genocídios ou outros actos humanos.
No entanto, a fronteira entre pobreza e “fome” não é fácil de estabelecer e a interdependência circular de vários factores (recursos naturais, estrutura social e tradições, infraestruturas materiais, tecnologias e fundos financeiros disponíveis, educação, estado sanitário, meios de intervenção, poder político, segurança, etc.) dificulta muito a tipificação de estratégias de acção eficazes e de efeitos duráveis.
Mas, de entre os processos mais pertinazes das situações não-catastróficas da fome e subnutrição que atingem esses povos, há talvez dois que mereçam uma especial referência. O primeiro é o da rarefacção da base económica natural que garantiu a sua sobrevivência ao longo de séculos: terrenos aráveis capazes de permitir alguma agricultura de subsistência (ou pastagens suficientes, para povos vivendo dos seus rebanhos; ou ainda condições viáveis de pesca local/costeira) e comunidades bem integradas do ponto de vista sócio-cultural – que agora poderiam ser apoiadas por políticas sócio-económicas adequadas promovidas pelos seus governos centrais, com ajudas recebidas do mundo desenvolvido, no sentido de se poderem progressivamente modernizar sem ter que abandonar os seus espaços de ocupação territorial tradicionais, ou já suficientemente estabilizados, na paisagem rural. Na realidade, não parece que esta tenha sido uma preocupação dos decisores, locais, nacionais ou extra-nacionais. E quando a terra se lhes mingua ou propõem trabalhos-a-salário que implicam deslocações, é quase certo que se rompem equilíbrios essenciais. (Nesse aspecto, as migrações são quase sempre um drama.)
O segundo processo de criação de condições propícias à miséria e à subnutrição (e de aculturação mais ou menos violenta) é justamente o do êxodo dessas populações rurais que vão “suburbanizar-se” para as periferias das gigantescas cidades do “3º mundo”. Cairo, Lagos, Kinshasa, Joannesburg, Maputo ou Luanda (para não sairmos de África) tornaram-se metrópoles pobres onde a sobrevivência passa, para a maioria da população, por lutas diárias interpessoais para angariar sustento, a evitação de perigos vários, desarticulação social e desprotecção contra as novas patologias insidiosas (sida e outras) ou os apelos para caminhos de marginalização e violência (droga, banditismo, etc.).
São, de facto, dois programas grandiosos para os homens e mulheres do século XXI: redescobrir uma economia rural sustentável para estes povos; e tornar efectivamente urbanas as populações hoje amontoadas nos subúrbios das suas metrópoles. O equilíbrio numérico mundial hoje atingido entre estes dois meios de vida contrastantes – o rural e o urbano – deveria dar lugar a uma relação mais equitativa da riqueza e do bem-estar produzidos num e noutro (e necessariamente no interior da cidade).
JF / 8.Out.2011
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