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terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Imaginemos um pouco o que poderá ser o ano de 2035

Os nossos netos serão adultos, haverá transporte público pesado até Loures e o aeroporto estará em Alcochete. Por seu lado, funcionará rotineiramente o comboio TGV para Madrid e a Europa… mas não para o Porto, por desentendimentos internos e por um governo de Lisboa ter acabado por substituir os velhos comboios Corail e os Pendolino por tecnologia chinesa.
A indústria aero-espacial continuou a estar “na ponta” do progresso técnico (e na posse de apenas meia-dúzia de grandes potências mundiais) mas as bio-tecnologias mantiveram o seu imparável desenvolvimento, com grandes impactos na vida social e acesos debates nos planos filosófico, ético e religioso. 
Um novo salto tecnológico chegou com a invenção de “baterias sem peso” que permitiram a utilização de motores eléctricos em grande número de novas aplicações, incluindo os veículos automóveis, mas necessitando de um aumento considerável da capacidade de produção eléctrica instalada, o que só foi possível com um retorno em força à energia nuclear, com dispositivos de segurança melhorados.
A IPIS (International Police for Informatic Security) continua a recrutar agentes em todo o mundo e avançou a proposta de criação de uma instância judicial supra-nacional para julgar este tipo de crimes.
Em Portugal operou-se finalmente uma profunda reforma constitucional, de cariz presidencialista, o que levou certos analistas a falarem numa “4ª República”, e o PCP ainda conseguiu eleger 2 deputados nas últimas “legislativas”. Enquanto isto, recorda-se o tempo em que uma tal Hillary Clinton foi a primeira mulher eleita para a Casa Branca e a França teve o seu primeiro presidente negro retinto. Grande novidade, com poucas consequências foi a queda da monarquia inglesa, mais por falta de intérpretes com qualidade do que por convicções republicanas: o speaker da Câmara dos Comuns faz agora esse papel protocolar e a visita ao palácio de Bukingham figura em todos os roteiros turísticos.
Prenhe de consequências foi contudo a perturbação que percorreu a Espanha quando se declararam independências unilaterais de algumas das suas nacionalidades, acabando porém por a situação se estabilizar sob uma híbrida fórmula federal, com a qual Portugal tem conseguido manter boas relações e sempre intensas trocas económicas.
Já Angola entrou em nova fase de crise e desagregação, agora pela chegada de influências políticas islamitas radicais que nunca tinham aproximado o território mas que foram ultimamente progredindo para sul desde a África central e a bacia do Níger.
E a China viveu igualmente uma fase de grande convulsão, que afectou a economia mundial, mas que acabou por permitir o reconhecimento no país do pluripartidarismo e das liberdades civis, mas com o pragmático e “confucionista” partido comunista (com este ou outro nome) a deter sempre as rédeas do poder, embora cedendo quanto a ambições territoriais na sua periferia e tendo sido obrigado a reconhecer e aplicar normas internacionais de protecção climática e ambiental.
Também as regras internacionais da OIT e da OMC acabaram por fundir-se entre si, daqui resultando o que alguns chamaram o “toque de finados do direito do trabalho” mas também novas exigências quando à qualidade da produção de bens, combatendo a espionagem industrial e o dumping social. Como “mínimos” universais, as grandes potências e a ONU acabaram por adoptar, depois de farta discussão, uma “tábua de garantias” contra a exploração económica e a exclusão social, e protegendo a diversidade cultural. O que se mantém em aceso debate nestes areópagos é a forma de tornar eficazes estes novos princípios.   
Finalmente, a União Europeia conseguiu superar as suas crises, concentrou as suas instituições políticas em Bruxelas (ficando Estrasburgo como “sede cultural”) e adoptou um figurino de “confederação de estados” com um governo saído do parlamento europeu. O “sonho europeu” recuou em certos aspectos (com Portugal, por exemplo, a conseguir tirar melhor proveito negocial e estratégico da sua “área atlântica”), mas preservaram-se algumas políticas comuns e as liberdades de circulação interna, unificando-se todas as representações diplomáticas exteriores e existindo agora uma segurança-e-defesa mais integrada. Mantém, com dificuldade, o estatuto de grande potência (sempre com problemas de identidades sócio-culturais muito diversas no seu seio), a par dos Estados Unidos, da China, da Rússia, da Índia, da África-do-Sul e do Brasil – os “sete mais” da época –, o que fornece aos portugueses o motivo de orgulho de terem “um lusófono” colocado em tal galeria. O perigo do radicalismo islâmico foi esconjurado, mas a influência cultural desta grande mancha civilizacional mantém-se e talvez esteja em crescimento, o que constitui tema central das discussões internacionais, nomeadamente nas Nações Unidas, cuja reforma mais profunda continua à espera de melhores dias.
JF / 30.Dez.2015

domingo, 20 de dezembro de 2015

A Ibéria numa encruzilhada, a Europa numa embrulhada

Teresa de Sousa procura muitas vezes enfatizar o défice de liderança que tem afectado os últimos anos da União Europeia para explicar as suas dificuldades. Temo que, por vezes, a analista exagere a importância deste factor, embora ele não seja despiciendo. Mas, tal como Jorge Almeida Fernandes e muitos outros celebraram a reconversão realista do primeiro ministro grego Tsipras, também aquela é das que têm chamado a atenção para a evolução positiva do pensamento da Srª. Merkel em matéria de política externa (Público, de 2.Nov.2015).
A hipótese de integração da Turquia na EU já levantava fundadas dúvidas: estávamos a integrar nos padrões de liberdade e democracia ocidentais um país-charneira (antigo império que chegou a dominar por séculos uma boa terça-parte do continente europeu), crucial para influenciar positivamente todo o Médio-Oriente? Ou estaríamos a abrir a porta a uma doce subversão dos nossos valores por via de uma bomba demográfica irreprimível, face a uma sócio-cultura identitariamente bem diferenciada, para mais quando o estado turco é desde há anos dirigido por um partido islâmico que, embora moderado e até agora respeitador do pluralismo político interno, não hesita em empregar a “maneira dura” para com a sua minoria curda e outros opositores? É provável que a pertença à NATO (ditada por evidentes razões geoestratégicas, face à URSS) tenha inibido durante décadas este país de se lançar em aventuras na região (salvo um pontual desentendimento militar com os gregos) e, com a sua estabilidade, não ter lançado alguma acha adicional na fogueira árabo-israelita-ocidental. Mas o tempo da Turquia militarizada e não-confessional dirigida pelos herdeiros de Ataturk já lá vai e dela só sobrou a sua potente força bélica, enquanto a sociedade se tornava mais dividida, em particular entre as camadas laicas-urbanas aspirando ao clima de liberdade do Ocidente (como os promotores das “primaveras árabes”) e as imensas massas de povo sequiosas de alguma segurança e mais consumo, mas tradicionais nos seus modos de vida (civil e religiosa), e por isso susceptíveis de serem arrastadas por grupos políticos radicais para projectos pouco consentâneos com os que vigoram no espaço europeu.   
A União Europeia adiou sine diae essa possibilidade. Mas agora defronta-se com o facto iniludível de a Turquia ser o principal guarda-fronteira da entrada na Europa de centenas de milhar de refugiados e migrantes islâmicos (exigindo um preço por este serviço) ou, à boca pequena, de lhes indicar as rotas da Grécia e dos Balcãs para a miragem da Europa rica e que “pode pagar”. As eleições gerais de 1 de Novembro permitiram a Erdogan recuperar a maioria absoluta no parlamento mas não evitaram a permanência ali de uma representação da minoria curda, enquanto no terreno o Curdistão turco (e a bordadura adjacente sírio-iraquiana) voltou a ser palco de confrontos militares entre o exército e os guerrilheiros independentistas (do PKK ou outros), mesmo ao lado da frente de guerra muito complexa que se trava no espaço ocupado pelo Daesh (o chamado “Estado Islâmico do Iraque e do Levante”), abrangendo grande parte da Síria e o noroeste do Iraque.
A Rússia de Putin, que parece jogar forte na sua fronteira sudoeste, tem vindo a acusar Ankara de complacência ou mesmo de cumplicidade com estes facínoras sunitas pelo combate que fazem aos curdos (sempre a bête noire do poder turco) sobretudo porque não quer perder o ponto-de-apoio aeronaval que os Assad lhes permitiram ter directamente no Mediterrâneo, além de recear a efectiva constituição de um estado islâmico radical em toda esta região que talvez viesse a encurralar o Irão xiita (por via de uns talibãs triunfantes no Afeganistão e de uma queda do Paquistão em maior caos) contando com o apoio dos países produtores de petróleo da Arábia e do Golfo e o incentivo espiritual do seu wahhabismo. E neste tabuleiro instável que, vistas as lições do passado recente, os Estados Unidos do presidente Obama mostram cada vez menos vontade em empenhar peças fortes (sempre caras, financeiramente e em termos de opinião pública interna), sem deixarem de acautelar os seus interesses energéticos e de vigiar as ambições e avanços efectivos das maiores potências da região, incluindo naturalmente a Rússia.
Depois da sabotagem do avião de turistas vindo de Sharm-El-Sheik, dos atentados terroristas em Paris de 13 de Novembro e da tomada de reféns de Bamako, a França, a União Europeia, os Estados Unidos e a Rússia terão decidido elevar o nível do seu combate a estes radicais islâmicos e melhorar a coordenação das respectivas acções, não pondo em causa a perspectiva de acolhimento das centenas de milhar de pessoas que estão afluindo à Europa, entre refugiados de situações de guerra aberta e emigrantes de zonas paupérrimas ou instáveis de África e do Médio-Oriente. Mas é uma coligação frágil, dados os interesses contraditórios existentes no seu seio.
Estes dois fenómenos constituem, juntamente com o estado da economia financeira mundial, as questões mais graves e desafiantes do nosso futuro imediato e a médio prazo – enquanto no longo-prazo se mantêm indecisos os problemas climáticos e ambientais, o controlo das situações conflituais internacionais e a necessidade de um mais rápido e justo desenvolvimento para a metade mais pobre das populações do planeta, concentrada na América Latina, na Ásia e em África.
Para o nosso velho continente (e ao contrário do que alguns defendem), não se trata de fazer escolhas dicotómicas entre a “fortaleza Europa” e a “solidariedade”; ou entre “a austeridade” e “os países do Sul”. Vai ser preciso fazer ambas as coisas: incrementar a segurança (externa e interna) e, simultaneamente, reforçar o bom acolhimento dos forasteiros, aceitando a diversidade mas impondo a integração; controlar melhor os equilíbrios económicos, a despesa e o crédito e, ao mesmo tempo, unificar certas políticas em todo o espaço da UE – mas assegurando mecanismos de informação pública e de legitimação e escolha democrática para as grandes opções de política internacional e para a sua mais eficiente aplicação prática. Por exemplo: um “imposto europeu” pago directamente pelos cidadãos e empresas para alimentar um orçamento comunitário com algum significado económico; um intelligence e uma força militar conjunta permanente; alguma unificação de sanções penais; e maiores poderes para a Comissão Europeia, responsável pelo “governo da União” perante o Parlamento e o Conselho (europeus), deixando a este último órgão um papel mais parecido com o de uma “câmara alta” ou, melhor, de um “conselho de nações”. Mas como será isto possível com opiniões públicas desorientadas e lideranças políticas nacionais divididas e cada vez mais desafiadas por forças extremistas de direita?   
Concordo com Clara Ferreira Alves quando diz que o mundo mudou com o 11 de Setembro de 2001(suplemento ao Público, 11.Dez.2015). Apesar de, por vezes, me irritar a petulância e ligeireza com aborda oralmente certos assuntos, louvo-lhe a coragem de uma afirmação deste tipo, sem cair em outros alinhamentos automáticos de “recuo” ou fuga-para-diante. Confesso que só li superficialmente O Choque de Civilizações de Huntington mas parece-me que alguns comentadores ainda o leram menos e, apesar disso, o recusam porque… “cai bem” dizê-lo. Pela minha parte, acho que muito há ainda a fazer no que toca à cidadania e ao controlo social de certos poderes (novos ou herdados do passado); que a noção de Ocidente ganhou nova pertinência no século XXI; que a abertura ao mundo e à diferença é uma das suas marcas distintivas; que esse património cultural ocidental deve ser defendido de maneira adequada; e, por fim, que a construção de uma Europa-de-nações é um projecto pioneiro e interessante que justifica redobrados esforços para seguir adiante e não soçobrar perante as dificuldades actuais.      
Os esquemas de representação mental a que estávamos habituados na análise dos conflitos e relações internacionais (do género “simetria” ou “assimetria”, “mundial, regional ou local”, “segurança versus defesa”, etc.) encontram-se hoje baralhados pela diversidade de agentes, motivações e objectivos perseguidos, e pela compressão do tempo e do espaço – podendo este último ser simultânea ou conjugadamente “pontual” e ubíquo. Por isso, perderam eficácia compreensiva (e ainda menos explicativa) categorias como imperialismo (na versão mais recente de um Negri) e outras imbuídas de marxismo, ou ainda a polémica noção de “fim da história”.
Em todo o caso, para pessoas com a nossa memória histórica, causa impressão ver soldados de camuflado e béret rouge armados patrulhando as ruas de Paris, como se fosse a Argel das bombas em 1957 sob as ordens do general Massu. Afinal, para que mundo estamos nós a encaminhar-nos?
O Egipto só travou (por agora) o avanço do islamismo radical com o regresso em força do exército ao poder, cujo armamento e benesses são pagos pelos americanos. Virá o Ocidente a fazer o mesmo com a Turquia (para o que parece ser já tarde demais)?

O acordo climático agora obtido em Paris dá-nos alguma esperança de que um novo caminho possa ser trilhado ao longo das próximas décadas nos modelos de exploração energética, de produção industrial, de concentração urbana, de veículos de transporte e de consumo social. Mas será um processo difícil, cheio de contradições, em que uma consciência mundialista e de longo prazo (mas com sentido prático e sem fundamentalismos) terá de ser capaz de vencer inúmeras etapas e conjunturas conflituais. Em todo o caso, saudemos a unanimidade agora alcançada que, mesmo com as ambiguidades que encerra, constituirá a melhor forma de pressão contra os desvios e justificações de incumprimento, que não hão-de faltar. Em especial, esperemos de sejam travadas as tentativas de “mercantilização das poluições”, em que se vende aos países mais pobres os “dejectos” da nossa civilização material, bem como as tecnologias depredadoras do ambiente que as regulamentações protectoras já não consentem nos países ricos. Mas, além das transferências em investimentos e ajudas às zonas mais carenciadas do planeta, vai ser necessário despender muito dinheiro em investigação e desenvolvimento (em vez de consumo) para lograr essa desejável mudança de paradigma económico. E que os “capitais à solta” não baralhem tais esforços nem governantes corruptos e irresponsáveis se permitam aventuras com trágicos desfechos.

Espanha, 20 de Dezembro. Como se vinha anunciando, os “partidos do sistema” resistiram ao assalto dos “alternativos” e o voto regional/nacional de catalães e bascos nada trouxe de novo. Mas o xadrez parlamentar ficou muito alterado, sendo agora múltiplas as combinações e arranjos para encontrar uma solução mínima de governabilidade. É provável que o Podemos!, liderado por um esquerdismo parecido com o Siriza ou o nosso BE, fique por agora arredado do poder – a não ser que o exemplo português consiga suscitar em Madrid uma milagrosa união de esquerda. Mas o Ciudadanos, com postura mais centrista e desideologizada, pode também – tal como já aconteceu no passado (e talvez se repita) com as representações bascas e catalães – determinar muito os futuros governos. Simplesmente, cada um destes actores políticos visa objectivos de médio-prazo de natureza muito diversa: acossados, PP e PSOE tentam guardar a sua influência na sociedade, na opinião pública e nas instâncias descentralizadas do Estado; os nacionalistas querem avançar no processo autonómico ou mesmo alcançar a independência política; os “esquerdistas” querem o que sempre quis o radicalismo socialista (aguilhoar a luta-de-classes e alargar o Estado social); e só do Ciudadanos se pode esperar alguma novidade (incluindo o seu rápido esgotamento, por falta de suporte doutrinário). Como não há hoje indícios de disposição para acções violentas (as da ETA terão bastado), tudo deve jogar-se no campo da manobra política parlamentar e comunicativa, e talvez também das grandes manifestações de rua – pelo que o terreno constitucional (e o papel do rei: uma grande incógnita) poderá vir a constituir um espaço de afrontamento muito focado e crucial.
Nestas condições, dificilmente a Espanha exercerá no tabuleiro europeu uma acção de primeira grandeza (a não ser pela negativa). Por isto, o binómio franco-alemão terá, não só de fazer face, sozinho, à coorte dos “países periféricos” (cada um puxando para seu lado), como terá fundamentalmente de negociar com o Reino Unido a permanência deste na UE. Um grande e desafiante “bico de obra”! 
Por último, em Portugal as perspectivas eleitorais para escolher o novo inquilino de Belém parecem já “jogos feitos”. Depois de um contabilista, teremos provavelmente um florentino a reger esta orquestra mal afinada do sistema político português. Oxalá desta vez sem “banhadas” e não obstaculizando as mudanças que serão cada vez mais indispensáveis. 
Tudo isto está ligado, embora seja conveniente conhecer minimamente cada um destes processos de per si para se ter um entendimento mais aproximado e menos fantasioso do que vai determinando a vida das sociedades e, em alguma medida, as nossas próprias vidas.
JF / 20.Dez.2015

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Avanços e controvérsias culturais


Apesar de todos os defeitos e deficiências que se possam apontar ao nosso viver actual, é talvez na esfera da cultura que melhor se podem constatar os progressos feitos pelas sociedades modernas ocidentais – sem falar, é claro, do aumento do rendimento económico e da disponibilidade de bens e serviços para a maioria da população.
Desde logo, a maior escolarização induz, se não hábitos, pelo menos possibilidades de leitura e de ajuizamento próprio entre variáveis, que são ingredientes básicos do conhecimento e do apuramento de sensibilidades menos evidentes.
Em segundo lugar, em cerca de um século, criaram-se poderosas máquinas de difusão estética e cultural aptas a estimular nas classes médias e populares uns padrões determinados de públicos adeptos, bem diversificados entre si, mas acedendo pela primeira vez em massa a certas fruições. Um exemplo: se a música tinha no campesinato uma tradição secular, baseada no trabalho e em vivências comunitárias, as músicas urbanas suplantaram e destruíram tal cultura, pela via de identidades bairristas, primeiro, e maciça difusão sonora pela rádio e indústria discográfica, depois, e finalmente pela televisão e outros meios mais recentes de registo e reprodução áudio. Mas alargaram porém enormemente o universo dos ouvintes apreciadores e também o número e a variedade dos artistas e dos géneros musicais, passando a haver canções que se internacionalizaram e foram cantaroladas por gente de muitos e diversos países.
Neste sentido, um salto maior foi dado nos anos de 1950-60 quando chegou a moda do rock e da pop, e das “bandas” de quatro ou cinco executantes, que se agitavam em gestos frenéticos. Não por acaso, estamos a citar palavras inglesas sincopadas que, respectivamente, fazem referência à “pedra rolada” (e aos instintos mais genuínos dos homens-das-cavernas) e a uma música “popular”, que quereria significar “urbana” e “não-erudita”. Isto é: estávamos perante a irrupção de uma expressão de cultura juvenil (necessariamente irreverente) e de gente habitando os subúrbios das cidades, que queria justamente demarcar-se dos núcleos onde se concentravam os poderes (político, financeiro e de gosto requintado). Como essa era a situação comum em quase todos os países do mundo já medianamente desenvolvidos, gerou-se um fenómeno de contágio e identificação semelhante àquele que, um século antes, tinha querido apelar a “proletários de todos os países, uni-vos!”, agora transformado em: “jovens de todas as condições, gozemos!”. E foi por isso que o eco chegou, com poucas décadas de atraso e com as naturais adaptações e sincretismos locais, mesmo aos países do “terceiro mundo”, tornando o fenómeno verdadeiramente universal, numa comunhão emocional que nenhuma religião houvera conseguido ao longo da história.
No caso português, é um facto que o período de liberdade e democracia que vivemos desde os anos 70 permitiu um enorme desenvolvimento de toda a sorte de música popular, sem qualquer medida comum com o “pirosismo nacional” das décadas anteriores. Têm emergido compositores, poetas e intérpretes, vocais e instrumentais, de enorme qualidade, configurando uma “música pop portuguesa”, estreitando laços com o passado mais longínquo ou com os ritmos africanos, ensaiando novos arranjos e sonoridades e até resgatando o fado dos piores vícios em que estava metido.
A música dita clássica ou a ópera também alargaram as fronteiras dos seus públicos (eruditos ou elitistas), mas sempre em clara perda relativamente à supracitada música popular urbana, e ainda que o tivessem feito com recurso a formas musicais híbridas e de transição como a opereta, o “musical” ou a ópera-rock e embrenhando-se na transgressão cénica das convenções tradicionais (transfigurando os cenários e o guarda-roupa, banalizando a indumentária dos músicos, transportando-se para novos espaços, permitindo as transmissões televisíveis, etc.).
O teatro, que teve épocas de glória entre meados do século XIX e meados do século XX, estagnou depois e entrou em declínio perante as novas formas de arte de massas, refugiando-se no intimismo e no experimentalismo das interacções humanas, tão do agrado de certas minorias vanguardistas e de psicólogos (que, como os padres-confessores, gostam de nos espreitar a alma), mas alienando os grandes públicos urbanos (de classe média e populares) que haviam feito o seu sucesso.
Há raríssimas excepções, mas os artistas sofrem em geral do mal de um ego incontrolado. Entre os escritores, ainda podemos encontrar gente como os poetas António Ramos Rosa ou Herberto Helder, completamente avessos à publicidade pessoal. E há decerto bons criadores cujos textos nunca saíram da sua gaveta e por isso nunca chegaram a ser obras – para já não lembrar o inacreditável caso de Fernando Pessoa, que escreveu o que escreveu… “para o baú”. Este será talvez o mais extraordinário exemplo do anti-artista.  
Mas nunca como no nosso tempo estes criadores foram tão explorados publicitária e mediaticamente, através da idealização da sua “imagem”. O star system, que se iniciou na América do cinema, estendeu-se rapidamente à canção, ao espectáculo desportivo, aos “modelos” (vestimentários), aos artistas plásticos, aos entertainers, mesmo aos escritores, etc., e nele ocupam os políticos também um lugar indispensável. Todos devem hoje ser considerados como integrando, em alguma medida, o chamado show buzz. 
Se a função de exemplo e imitação mostra eficácia na multiplicação da descoberta de talentos que de outra forma permaneceriam apenas potenciais, também se torna por vezes insuportável o endeusamento que actualmente é feito, insistentemente, de muitas destas personalidades. Decerto que elas revelam capacidades fora do comum para terem atingido tal estatuto, mas essa focagem dos holofotes da fama obscurece o esforço persistente que o ajudou a construir (esse, sim, digno de ser louvado), e também quase sempre o trabalho colectivo (das equipas de apoio à produção e responsáveis pela “promoção”) que permitiu a emergência da obra.
Naturalmente, aos artistas assim projectados no imaginário de milhões de fans (que é, não o esqueçamos, a abreviatura inglesa de fanáticos), cai maravilhosamente bem este engrandecimento do seu ego (quando têm estrutura psicológica para tal, quando não quebram como o Fernando Mamede, ou acabam como a Cândida Branca Flor ou a Maryleen Monroe). E são então chamados, com o microfone à frente a boca, a pronunciarem-se sobre qualquer coisa, desde o que dominam mas é irrelevante até ao que desconhecem em absoluto. Mas quando o exagero ultrapassa certos limites, apetece dizer: “Óh homem (ou senhora), cante! (ou pinte!, ou faça o que sabe fazer excelentemente). Mas, por favor, poupe-nos às suas opiniões...”
No século XX, a liberdade e as novas tecnologias permitiram a criação e o desenvolvimento exponencial de novas formas de arte e cultura. De certo modo, a fotografia veio concorrenciar a pintura, e a escultura teve que se desdobrar em novos objectos, multiformes e de “perenidade variável” que vão hoje desde as “instalações”, ao uso de materiais pobres ou à própria arquitectura (enquanto grande esforço de “esculpir no tecido urbano”). Mas o cinema foi sem dúvida a arte que mais revolucionou o panorama cultural audiovisual contemporâneo, com os seus “sub-produtos” que foram as “séries” e as novelas televisíveis. Como em tudo o resto (mas com efeitos sociais multiplicados), existem em todos estes campos artísticos e de produção cultural obras-primas geniais, sucessos-de-bilheteira, ensaios arrojados (incompreendidos no seu tempo) e fancaria sem qualidade, só para exemplificar o mau-gosto ou servir projectos inconfessáveis. A educação dos públicos é então um factor importante para se perceberem melhor estas destrinças.  
Com a literatura, estamos, apesar de tudo, num outro patamar. A invenção técnica da imprensa, a difusão moderna do jornal e do livro, a escolarização e a burocratização das administrações públicas constituíram passos decisivos a nossa actual civilização do escrito, onde a criação literária ficcionista e mesmo a poesia puderam medrar, suscitar autores e alargados públicos leitores amadores de arte. É este “império da escrita” que talvez se encontre hoje ameaçado perante a concorrência avassaladora do audiovisual. A beleza da linguagem escrita – mesmo considerando apenas os nossos melhores escritores e poetas modernos –, para depois ser lida pausadamente e com ponderação, transmite ao leitor momentos de fruição inigualável, algures entre o sentimento e a imaginação. Até na discursiva parlamentar havia elegância quando, com voz apropriada, alguém exclamava, virado para a bancada oposta: “Vossa Excelência é uma refinadíssima besta!”. Mas esse tempo parece ter acabado.
A aventura humana irá continuar, mesmo porventura para além da “era do papel”. Mas como não podemos imaginar como será – e não há qualquer garantia que seja melhor – cumpre-nos a nós, supostos prosélitos da criação e da descoberta, o ingrato papel de velhos do Restelo, chamando a atenção para o que de maravilhoso e excelente tem sido produzido nestes últimos séculos no domínio da cultura e que pode jamais se repetir.
A erudição é uma qualidade pessoal excepcional que só alguns alcançam. Quando esse saber não fica fechado apenas entre pares e é difundido sem discriminações a quem é capaz de o acompanhar – como é, por exemplo, o caso dos artigos na imprensa que António Valdemar nos vai oferecendo, sobre acontecimentos ou personalidades da história e da cultura –, então somos todos nós, simples mortais, que ascendemos momentaneamente a patamares mais altos, lastimando embora que não possamos ser acompanhados pela maioria. Mas não há dúvida que o “progresso” existe, no sentido em que os horizontes culturais do grosso da população se tem vindo sempre a alargar, com a alfabetização, primeiro, a escolarização, depois, e na nossa contemporaneidade com a espantosa difusão dos meios audiovisuais, embora aqui de maneira mais complexa ou contraditória.
JF / 10.Dez.2015

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Acerca da situação política

“Bagdad em Paris!” – era a sensação que podia viver-se naquela noite de sexta-feira 13 de Novembro dos inacreditáveis atentados terroristas perpetrados pelos fanáticos do islamismo político. Até há algumas décadas atrás, havia as guerras que se passavam nas “frentes” e a vida que continuava a viver-se nas “retaguardas”, com os seus conflitos, roubos, amores e desamores, mais os aplausos ou os apupos dirigidos aos combatentes ou aos seus mandantes. Hoje, essa distância espacial e psicológica desapareceu. A guerra, agora intermitente, é “aqui”, quando as vítimas e os estragos podem ser nossos, e todos podem seguir “em directo” a representação animada, com escassa montagem, de várias carnificinas.
Além destes factos horríveis, a situação político-social na Europa, em geral,  vai muito complicada, mas disso nos ocuparemos em breve.
Agora, sobre Portugal: mais uma vez me enganei nas previsões políticas que ousei fazer no dia seguinte às eleições de 4 de Outubro. Manifestamente, a minha racionalidade não é a mesma dos actores partidários. O PS e António Costa conseguiram, numa cambalhota difícil de prever para um observador de-fora-do-sistema, “unir a esquerda”, ainda que este governo fique, de certa maneira, a prazo, à espera de uma crise interna ou de um abanão vindo do exterior; que não da nova oposição parlamentar, que vai ficar numa espera atenta, que até pode passar por um processo de integração do CDS e do PSD se a tanto levarem as ambições pessoais das suas lideranças. Há medidas socialmente interessantes neste programa de esquerda mas o risco é grande de que acabe por deixar o país financeiramente mais encravado e politicamente numa situação ainda mais difícil ou bloqueada, favorecendo uma próxima nova maioria absoluta do centro-direita, sobretudo se o Presidente da República der uma ajudinha.
Mas não há dúvida que tal reviravolta foi uma novidade em quatro décadas de vida partidária democrática. A prazo, poderá vir a ter o efeito útil de amarrar o velho abencerragem comunista e o “esquerdismo organizado” às responsabilidades políticas de uma governação nacional e, por essa via, introduzir mais alguma racionalidade nos seus comportamentos. Porém, simultaneamente, é o papel tribunício destes partidos-de-protesto que começará a ser posto em causa e, assim, a abrir a porta ao aparecimento de novos pólos de atracção para os seus partidários e simpatizantes, seja à esquerda ou à direita, com idênticas características de seguidismo comunitário e afirmação vindicativa. É lícito pensar que, por exemplo, o forte PC francês (parecido com o nosso em muitos aspectos) começou a sua débacle após a experiência governativa do Programa Comum gizado por Mitterrand: a sua força eleitoral eclipsou-se e em boa parte foi inchar o outro nacionalismo disponível: o da extrema-direita. Por isso mesmo se viram agora todas as reticências a um tal comprometimento com as políticas estatais por parte do partido ainda liderado por Jerónimo de Sousa (e os “p’tanto’ das suas bengalas de expressão oral) mas já animado por gente de outra geração embora com a mesma vinculação mental aos procedimentos férreos do “centralismo democrático”. E se o Bloco de Esquerda (a quem alguns profetizavam uma inevitável re-grupusculização mas que inaugurou a moda de começar a falar para “as pessoas” criando assim uma nova categoria política) – se o Bloco, dizíamos, continuar a crescer, enfraquecendo o PC e a ala esquerda do PS, será sob a forma de um neo-populismo canhoto onde, com bandeiras vermelhas e punhos brandidos, se acolhem os militantes de todos os vanguardismos sociais e culturais, os meros protestantes de sempre e os desiludidos de muitas crenças ou expectativas, em clima de depressão económica.
É certo que a manobra política de António Costa revelou coragem, assunção do risco e inteligência táctica, sendo certamente um exercício interessante de observar, se se tratasse apenas de uma experimentação de laboratório “ao vivo”. Mas acontece que é sobretudo o destino a médio prazo de uma comunidade nacional que está em jogo, o que dificilmente autoriza que ele se decida sem a assunção de todas as pesadas responsabilidade que isso acarreta. No caso do dr. António Costa, que acabara de registar um claro insucesso eleitoral e sentia já “a corda no pescoço” face aos seus partidários e eleitores, ser-lhe-ia sempre difícil convencer muita gente de que esta “saída” não era sobretudo ditada por um instinto de sobrevivência. Agora, fica obrigado a “ter sucesso”.
Esta governação de esquerda durará talvez meses, talvez anos, mas (se lá chegar) deverá viver a sua situação mais crítica entre o ano 1 e o ano 2 do seu mandato, quando os efeitos económicos da nova linha política começarem a fazer-se sentir em toda a sua extensão e ainda não for o caso de tentar planear eleitoralmente um final de legislatura satisfatório para todas as partes envolvidas (o que será sempre dificílimo porque concorrem todos sem piedade na mesma área eleitoral, e o PS em duas).  Além disso, se houver então um Presidente do centro-direita, o governo de esquerda terá de contar aí com um opositor inteligente e mefistofélico.  
Quando se concluir um dia este processo, os juízos avaliativos da actuação do líder Costa poderão variar entre a “genial” manobra para finalmente encalacrar os partidos à sua esquerda, culpando-os (sobretudo ao PC) por esta operação abortada ou interrompida e travando o esvaziamento do eleitorado do PS mais sensível ao discurso “unionista”, e a crítica de que aquilo que mais aproximou a esquerda nesta conjuntura foi o rancor à direita e às medidas de necessidade por ela implementadas, sendo que, neste caso, se poderá dizer que a decisão ideológica e estratégica do PS agora tomada deveria ter exigido sempre (politicamente) uma decisão tomada em congresso, e não sob a forma de negociações secretas de que ouvimos falar durante um mês – aliás em evidente contraste com a “transparência” e a “participação aberta” dos procedimentos que tinham sido postos em marcha aquando da ofensiva de 2014 de “costistas” contra “seguristas”. Como tal não foi feito, ou já o será tarde demais, o risco é, uma vez mais mas talvez mais do que nunca, o fraccionamento do PS.    
Mesmo entre as pessoas-que-pensam na área do centro-esquerda, as divisões e desconfianças perante este caminho seguido pela direcção do PS manifestaram-se publicamente: lembre-se as claras tomadas de posição contrária de António Barreto (em entrevista à RTP-Informação a 21.Out.2015), Francisco Assis (Público, 22.Out.) ou Miguel Sousa Tavares (em várias intervenções, incluindo no Expresso de 24.Out.), contrastando com as diferenças de tom, mas sempre apoiante, percebidas nos artigos de Maria de Lurdes Rodrigues e Paulo Trigo Pereira (saídos no Público, respectivamente a 17 e 19 do mesmo mês). Falta-nos saber o que terá andado a segredar aos seus amigos o dr. Mário Soares.
Porém, aquilo a que até agora, e mais uma vez, assistimos não foi bonito nem edificante. Todas as jogadas negociais e sucessivas declarações públicas dos diversos actores (mais as respectivas explorações editoriais) mostraram também a pior faceta do negocismo político, sempre a jogar em vários tabuleiros simultaneamente e a tentar seduzir hoje um, para o pressionar amanhã, a esconder aqui o que se revela acolá. Enfim, a mostrar competências aprendidas em Maquiavel (com excepção do assassinato físico) na sua luta sem quartel pela ocupação do poder de Estado. Estamos num jogo em que só há adversários e antagonismo, as colaborações ou alianças são apenas temporárias, a lealdade é inexistente e os perdedores totais (a população) estão fora deste tabuleiro. Esta apreciação aplica-se à coligação PSD-CDS e aos outros partidos mas, pela especificidade da situação criada, foi a direcção do PS que mais se evidenciou no à-vontade com que se exibiu neste domínio. Por onde andou o “superior interesse nacional” reclamado pelo Presidente Cavaco Silva? 
Agora, veremos o que vai passar-se. O acordo de esquerda sobre o programa de governo do PS cingiu-se essencialmente à matéria económica e a alguns actos simbólicos muito celebrados pela “nova esquerda” ou garantidores do poder do PC em algumas áreas específicas. Contempla certas medidas de indiscutível relevância social mas aposta sobretudo no aumento do rendimento disponível das classes médias e populares para alargar o mercado interno, baixar o desemprego e animar o crescimento. Veremos se essa animação não irá desequilibrar de novo a balança comercial, aumentar o endividamento e, sobretudo, se o acréscimo da despesa pública não vai acabar por furar o tecto de 3% para o défice orçamental sem que se tenha conseguido baixar de forma significativa o nível da dívida pública. Como é uma questão de crença e expectativa, acreditem os crentes e deixem os incrédulos apenas desejar que corra bem! Mas é muito duvidoso que, politicamente, Costa consiga fazer sobreviver um governo com este programa deixando os seus parceiros de mãos livres para fazerem todo o chinfrim que lhes aprouver.
Além disto, os constrangimentos externos e estruturais da economia e da sociedade portuguesas são muito fortes e baralham as etiquetagens políticas tradicionais. Quem é “liberal” nos dias de hoje? A coligação de direita que governou nos últimos quatro anos privatizando certas actividades públicas, mas que realizou um “brutal aumento de impostos”? Ou a política de ciência do tempo dos governos PS apostando que a concorrência geraria a capacidade de crescimento dos melhores centros de investigação, em vez de seleccionar os sectores mais capazes de modernizar da economia? Um George Orwell deveria saber encontrar novas fórmulas de entendimento destes desajustamentos conceptuais!
A “crispação” esquerda-direita parece de facto estar a transmitir-se dos topos da política mediática para as bases militantes e uma parte dos eleitorados. É uma situação desagradável, que faz lembrar o que se passou em Portugal no início de 1915 com pretextos no cumprimento, ou não, dos preceitos constitucionais, quando a envolvente internacional se tornava mais premente, e que acabou então numa sangrenta insurreição político-militar no mês de Maio seguinte, o das flores. Oxalá nunca mais voltem esses tempos! Mas, então como agora, o desempenho do Presidente da República deixou muito a desejar – por inabilidade, no primeiro caso; por incompetência e auto-suficiência mesquinha, no segundo – sendo lícito interrogarmo-nos sobre a bondade da actual arquitectura constitucional, também neste particular. 
Os actores partidários e comentadores estão sempre a interpretar os resultados eleitorais quando afirmam sem pestanejar que ganharam estes e perderam aqueles. De facto, só com a AD em 1980, o PSD em 1987 e 1991, e o PS em 2005, uma afirmação de vitória poderia ser admitida, perante as maiorias absolutas então alcançadas. Desta vez, só podemos constatar que foi a aliança PSD-CDS que obteve, não uma vitória, mas apenas o maior número de votos e de deputados; e os outros partidos, ainda menos. Se daqui decorre uma inextricável situação política donde não é consensual quem deve governar – com pesadíssimas consequências para todo o país –, dever-se-ia logicamente questionar de novo o tipo de regras constitucionais e legais que permitem e geram tais situações. E mudá-las de modo a que isso não possa voltar a acontecer. De quem é a responsabilidade de tal quadro legal, se não dos partidos que há quarenta anos ocupam todo o espaço do poder?
Acresce que estas dificuldades de entendimento parecem hoje ser menos determinadas por convicções ideológicas inconciliáveis do que sobretudo por dois tipos de lógicas, ambas internas ao sistema de partidos e excludentes de um maior interesse e participação dos cidadãos na vida pública: por um lado, a especialização e profissionalização das elites partidárias neste tipo de “saberes”, golpes e armadilhas; por outro lado, o apetite pelos lugares de poder, de onde alguns (muitos?) podem vislumbrar oportunidades de ganhos económicos pessoais, à boleia dos grandes contratos públicos, de decisões que afectem as muito grandes empresas ou de futura disponibilização (em privado) de conhecimentos adquiridos – seja em termos quase-imediatos ou a mais longo prazo, após a cessação dos respectivos mandatos (e não estamos a falar aqui necessariamente de corrupção ou de situações ilegais). Lembremo-nos de Valentim Loureiro, Carlos Melancia, Ângelo Correia, Cardoso e Cunha, Miguel Cadilhe, Joaquim Ferreira do Amaral, Álvaro Barreto, Fernando Nogueira, Mira Amaral, Oliveira Costa, Dias Loureiro, João Cravinho, Pina Moura, Murteira Nabo, Faria de Oliveira, Duarte Lima, Jorge Coelho, Fernando Gomes, Armando Vara, Luís Amado, Isaltino Morais, Nogueira Leite, Vítor Ramalho, Celeste Cardona, Nobre Guedes, Miguel Relvas, Marques Mendes, José Luís Arnaut, Luís Filipe Pereira, António Mexia, Bagão Félix, Mário Lino, Manuel Pinho, José Sócrates, Miguel Macedo – eis uma colecção de figuras da nossa plêiade governativa que, entre outras, correspondem a esta perigosa simbiose entre elites políticas e económico-financeiras, existindo provavelmente na opinião pública arreigadas desconfianças de que nem sempre todos tenham agido em prol do bem comum nacional.
Que diabo! Dada a situação periclitante do país, se este “bem comum” estivesse minimamente presente nas preocupações dos dirigentes, não seria possível um acordo entre as principais forças políticas, não para governar em coligação ou dar “carta branca” ao executivo, mas para se entenderem por espaço de duas legislaturas no que toca às grandes linhas da política externa, ao progressivo reequilíbrio das contas públicas, à sustentabilidade da segurança social e numa reforma do sistema político (que tão carecido está dela)? E que em matérias mais controversas ou divergentes (como o modo de relançar a economia e o emprego, melhorar a educação e a saúde pública, ajudar os mais desprotegidos ou apoiar a cultura) se pudesse beneficiar da abstenção do partido oposicionista, e não fazerem tudo ao contrário logo que chegam ao poder!? Com tantos outros temas onde os partidos poderiam contrapor-se, aplicando-se a posição maioritária e alterando-a logo que fosse possível… – seria isto pedir demasiado? 
Deste tipo de observações críticas dirigidas ao sistema político-partidário que temos, pode imaginar-se que estaríamos a justificar ou a “abrir a porta” a uma qualquer intervenção não-democrática (autoritária e liberticida) na esfera do poder político. Pelo contrário, é porque detestaríamos qualquer desenlace deste género que tomamos posição (ineficaz, porque sem qualquer eco na “opinião publicada”) em favor de alterações profundas do constitucionalismo em que vamos vivendo. Do que não temos grandes dúvidas é que, se existissem forças anímicas profundas – nas instituições armadas do Estado ou num movimento de cariz político fascizante –, o trânsito actual da 3ª República acabaria a prazo mais ou menos breve num golpe-de-Estado. Felizmente, não existem essas forças (graças à “vacina” do salazarismo) e a tão decantada União Europeia ainda é para nós um “cinto de segurança” contra tais aventuras. Mas, a médio prazo, não estamos imunes ao surgimento de um populismo-de-direita “justicialista” que, com fundadas acusações à degradação interna e às ameaças externas, tome medidas gravosas para o convívio pacífico e a liberdade dos cidadãos. É ver, como anúncio, o que se passa em países como a Hungria ou a Polónia, ainda marcados pelos regimes ditatoriais-de-partido a que estiveram sujeitos.  
Com a tendência imparável para a personificação e espectacularização mediática que atinge hoje a vida política (como a música, o cinema, o desporto, a cultura, etc.), torna-se ainda mais difícil para o cidadão comum entender, discutir e opinar sobre o presente e o futuro da sociedade a que pertence. Tudo o empurra para ser ferrenho do Passos ou do Costa, do Ronaldo ou do Messi, ser acérrimo defensor do Papa ou crítico do Obama. Enquanto este “pão e circo” entretém as massas, são centenas de milhares de estranhos que rumam à Europa em terríveis condições sem que os dirigentes desta se mostrem capazes de pôr em marcha uma resposta à altura das circunstâncias, tendo em conta a urgência, mas também acautelando o futuro. E não bastam, neste caso, os esforços da sociedade civil, que são todavia benfazejos e indispensáveis. Veja-se o caso da Amnistia Internacional (que me orgulho de ter ajudado a fundar em Portugal, e de cuja alteração de mandato discordei há duas décadas atrás), que foi quase a única entidade a mobilizar vontades em apoio aos presos de consciência em Angola.
A nossa condição de cidadãos portugueses e, com menor força, da União Europeia autoriza-nos – melhor diria, obriga-nos – a exigir a existência de mecanismos de controlo da representação política eficazes e ajustados ao nosso tempo, e dos representantes eleitos contas claras das decisões que tomam em nosso nome. É tudo isso que vai faltando bastante.
JF / 25.Nov.2015

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A superioridade relativa da cidadania burguesa

As instituições políticas criadas pela Modernidade no Ocidente e que ainda hoje perduram e regulam parte das nossas vidas foram, no essencial, forjadas ao jeito dos interesses colectivos da burguesia. Burgueses eram originariamente os que habitavam nos burgos, nas vilas e cidades, mas como aí não era possível viver da agricultura, da pastorícia ou da guerra, os residentes (fora os servidores-de-quem-quer-que-fosse e os miseráveis) dedicavam-se necessariamente ao comércio, à produção artesanal e, pouco a pouco, à exploração da propriedade. Daí a assimilação de burguês-citadino a burguês-possuidor de bens. No século XIX, com a queda dos Antigos Regimes aristocráticos e a ascensão política e económica da burguesia, o termo foi ganhando uma conotação cada vez mais negativa e fixada sobre a ideia de posse, de apropriação ou mesmo de roubo legal. Mas isto – ingrediente da legitimação das nascentes ideologias socialistas e operárias – era esquecer que o ethos económico dessas classes sociais não era tanto marcado pela herança e a taxação (de que vivia a nobreza, mais os factos de guerra que lhe fossem favoráveis), antes pela iniciativa, as decisões, o risco, o investimento e o lucro daí adveniente: de certa maneira, era uma lógica de acção que apostava no trabalho bem recompensado, na indústria, no industrioso criador (e distribuidor) de riqueza e não apenas na figura do rentier que fica passivo à espera de usufruir algo doque outros lograrem amealhar.
Num certo sentido, a burguesia foi aliada do Trabalho (assalariado ou autónomo), mesmo quando explorou em termos económicos os trabalhadores: fornecendo emprego e rendimento certo (contra o aleatório da agricultura), comprando e vendendo mercadorias mais baratas, estimulando o crescimento das economias. Mas, atenção! Houve também muitos patrões que extorquiram dos seus assalariados mais do que eles podiam produzir e pagaram matérias-primas “ao preço da chuva”; a concorrência económica inter-pares foi por vezes feroz (embora menos mortífera do que os antagonismos aristocráticos ou tribais); houve gente rica que se distinguiu pelo esbanjamento e o consumo ostensivo que ofende e humilha os desgraçados e usou da sua capacidade financeira para corromper ou comprar o que lhe era adverso; e houve um sector da burguesia que, manipulando os valores monetários e financeiros, especulou, se apropriou rapidamente de grandes fortunas e não hesitou em esmagar economicamente todos aqueles que levantavam obstáculos aos seus interesses, fossem eles concorrentes burgueses, aristocratas em perda ou populações desprovidas de bens próprios.
Ao longo dos séculos XIX e XX o livre-cambismo triunfou sobre os proteccionismos, com vantagens para todos e especialmente para os núcleos estatal-capitalistas mais poderosos. Neste processo, os trabalhadores assalariados pagaram o tributo mais caro mas souberam unir-se, resistir e finalmente impor limites e condições, beneficiando também do crescimento da riqueza produzida; mas, incapazes de agirem por si próprios, entregaram o seu destino colectivo nas mãos de uma classe de representantes/intermediários (sindicais, partidários e finalmente estatais) que criou e alimentou interesses próprios. As economias de mercado expansivas, com predomínio dos interesses do capital, ajustaram-se transitoriamente às condições políticas e culturais existentes na Europa e no mundo (monarquias, religiões, tribalismos); compatibilizaram-se depois com poderes guerreiros e despóticos entretanto surgidos; mas tenderam a fazer alastrar um figurino liberal-democrático propício à sua reprodução alargada, isto é, envolvendo sempre mais populações até então vivendo à margem ou em autarcia: free markets and free minds. São os princípios ideológicos em que assenta o nosso mundo desenvolvido actual, onde convergiram contributos da tradição judeo-cristã, do utilitarismo britânico e dos iluministas franceses, sobre a base do conhecimento técnico-científico moderno e da expansão industrial, a saber:
-Tudo o que não é proibido, é permitido, é lícito. É este o fundamento da liberdade que conhecemos;
-A minha liberdade não pode sobrepor-se à liberdade dos outros;
-A sociedade tem as suas próprias dinâmicas; a lei governamental só deve interferir nelas, criando interditos e penalizações, para evitar maiores conflitos ou para impor uma razão superior de bem comum;
-A igualdade das pessoas perante a lei procura assegurar uma compatibilização deste valor com o da liberdade (que, sendo dinâmica, gera necessariamente novas desigualdades);
-Deve haver uma separação clara entre a esfera privada (intimidade, sexualidade, família, religião, consciência, criatividade, devaneios, “negócios”, etc.) e a esfera pública-legal (registo civil, direitos de propriedade, comércio, impostos, justiça, sanidade e segurança);
-Existirá um modo de governo tendo por base a escolha livremente expressa da maioria dos cidadãos, tempestivamente revogável e limitado pela lei;
-Nenhum povo politicamente organizado deve poder impor a sua vontade discricionária a um outro povo. E a guerra é um último recurso de defesa colectiva;
-As instituições do Estado-nação foram pensadas para regular a vida social, exigindo-se a “separação de poderes”, o “monopólio da violência” (pela polícia e o exército nacionais), a independência da justiça e o socorro urgente aos mais necessitados, o que deveria impedir a tirania, prevenir as revoltas e evitar a desordem. Na ordem externa, prima a igualdade formal dos Estados-nação;
-Porém, esta construção de equilíbrios, controlos e compensações (checks and balances) – feita por teóricos e políticos constituintes – não levantou a suspeita de que pudesse vir a permitir uma concentração de poder de tal magnitude que fosse apetecível e apropriável por um disciplinado grupo restrito da sociedade: seja de poder pessoal (ditatorial), seja de “partido único”, seja ainda de uma oligarquia de formações sectárias concorrentes entre si mas fundamentalmente de acordo para garantir essa sua posição de privilégio social. A história mostrou que isso era possível;
-A governação do Estado-nação presta-se bem à consumação deste desígnio; mas quando os seus limites são transbordados, a guerra entre nações torna-se um risco sério. Contudo, é esta compartimentação territorial aleatória (modelada pela história) que também cerceia hoje as megalomanias de um poder ainda mais extenso, imperial;
-É aqui que se levanta a questão da formação, exercício e controlo do poder político que os anarquistas do passado pensaram resolver através da “socialização do Estado” (eles diziam, em sua linguagem provocatória, “abolição do Estado”) mas foram vencidos nas tentativas de a pôr em prática, talvez generosas mas também desajustadas ou desastradas. Hoje, nas condições de mundialização existentes, parece ser importante tentar de novo responder a este desafio;
-Mas a história actual também vem mostrando que existe o perigo real da desestruturação violenta de uma sociedade a partir da implosão ou desmembramento do Estado. Para países de grande extensão ou diversidade cultural, o modelo federal oferece alternativas viáveis. Mas nem isso pode ser suficiente para resistir a uma estratégia visando criar intencionalmente uma situação de desagregação e descontrolo, ou àquelas dinâmicas de sucessivos erros e omissões que conduzem os povos ao desastre;
-A existência de instituições mundiais (umas, derivadas dos Estados-nação, outras de natureza não-governamental) foi um passo positivo e necessário para a regulação da vida no planeta e para assegurar a sua sustentação e o progresso humano. Há que esperar delas novos contributos.
No entanto, tudo isto se pode perder repentinamente numa chaga de dor… ou na in-cons-ciência.
Uma questão final: será que os exageros “neo-liberais” que terão atirado o Ocidente e a Europa para a estagnação actual (esta última com a ajuda de uma social-democracia “mãos largas”) também já estão a atingir a China (e necessariamente os outros “BRICS”), fazendo entrar a economia global numa crise mais geral? Porém, nem por isso deverão exultar os apóstolos da esquerda estatista perante este aparente reconhecimento das suas teses, pois se é certo que o Estado pode disciplinar a concorrência, impedir os monopólios e sobrepor razões sociais à mera racionalidade económica, também é verdade que as suas decisões discricionárias podem corresponder mais aos desígnios próprios dos “ocupantes do Estado” do que ao interesse geral da sociedade, ainda que aqueles sejam eleitos democraticamente. Ao que, na situação presente, devemos acrescentar o silogismo seguinte: se há países onde a razão-de-Estado se impõe absolutamente, entre eles está certamente a China; e se são os excessos do crédito que estão a levar a China à crise financeira e económica – então, esta última deriva de causas para as quais o controlo estatal é impotente.
JF / 9.Nov.2015
(Dedicado ao meu amigo A. J. Azeredo Lopes e às suas preocupações sociais)

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

E agora, políticos?

E o fim do Verão chegou com o desenrolar do inacreditável êxodo de fugitivos do Médio-Oriente e Norte de África, qual onda avassaladora, a ultrapassar todos os dispositivos e sinalizações dos estados europeus e só acudidos escassamente por voluntários de algumas organizações da sociedade civil, sob os apelos sem resposta de Ban Ki-Moon, Juncker, Guterres, do Papa Francisco, da Human Rights Watch ou da Amnistia Internacional.
O fim do Verão traz as habituais tempestades e esse conhecimento terá apressado os migrantes a aproveitarem a oportunidade da indecisão política da União Europeia para, com o seu fantástico e ininterrupto caudal (pedestre, como desde a antiguidade), forçarem o acolhimento nos territórios dos governos mais ricos e também mais inteligentes face às suas carências demográficas de longo prazo e ao nível nédio de qualificação escolar e profissional (dos refugiados sírios), como logo viram ministros alemães ou dirigentes do Banco Central Europeu: tentar transformar uma crise conjuntural numa oportunidade estrutural. Mas, nestes afloramentos, evita-se referir as dificuldades que até lá se levantarão quanto à integração sócio-cultural destas populações, os salários pressionados para a baixa que lhes serão propostos, as reacções xenófobas de alguns residentes e as possíveis rebeliões dos socorridos, que elementos radicais não deixarão de atiçar contra as discriminações impostas pelos países de acolhimento.
É certo que as autoridades governamentais da Hungria exibem constantemente reflexos autoritários e xenófobos muito condenáveis. Mas, no “jogo do empurra” que há meses se arrastava, alguém tinha que tomar medidas de contenção física e controlo das entradas, paralelamente ao socorro e auxílio a esta mole humana. Foi o que os húngaros fizeram de bom grado (e exagerando em rispidez) e que a Áustria e a Alemanha fizeram a contra-gosto, perante a manifesta incapacidade da Grécia, dos diferentes países balcânicos ou mesmo da Itália de gerir sozinhos esta situação.
Já dentro do Outono e com o Inverno à vista, virão as chuvas, os frios e as neves que produzirão verdadeiras catástrofes humanitárias se todas estas gentes não forem socorridas e orientadas para destinos protegidos e razoáveis.       
Estimava-se que a Síria tivesse 18 milhões de habitantes antes da situação de guerra (nem totalmente civil, nem completamente externa) em que mergulhou. Não é, em síntese demográfica, um país pequeno, ainda que a larga maioria do território seja desértico e a população se concentre em algumas dezenas de cidades. Hoje, segundo a agência especializada da ONU, estarão expatriados cerca de 4 milhões de pessoas no Líbano, na Jordânia e na Turquia, também no Iraque. As centenas de milhar que estão agora em marcha para a Europa são apenas uma pequena parcela e quase certamente a mais bem nutrida de meios económicos, estatuto e relacionamentos sociais (vista a forma como acedem e se movem já em solo europeu). Neste aspecto, nem são estes os mais necessitados por causa da guerra síria; e são aqueles que melhor poderão integrar-se, e os que à Europa egoisticamente mais convém receber. Pelo que é indispensável socorrer também a maioria das vítimas estacionadas na Ásia Menor. E não esquecer que, no afluxo que agora tenta penetrar na Europa, os sírios são acompanhados também por importantes correntes migratórias oriundas do Afeganistão (através do Irão ou da Arábia Saudita?), do Paquistão, talvez do Bangladesh e do Iémen, do Iraque e mesmo do Egipto, havendo provavelmente “teóricos da conspiração” que pensem tratar-se de movimentos incentivados e estimulados por poderes ocultos, na experimentação de uma nova estratégia para embaraçar o Ocidente. Mas tudo parece apontar que se trata, antes de mais, de um processo social de imitação, contágio e desespero que leva tantos milhares de pessoas a meterem em mochilas o que têm de mais valioso e lançarem-se nesta aventura, mediante o apoio de redes de parentesco e os gestos de solidariedade espontânea entre fugitivos (que facilmente também naturalmente degeneram em competição agónica face à escassez, por um lugar de viagem ou uma merenda), percebendo que a sua única força está no efeito-de-avalancha e no impacto que este produz nas opiniões públicas ocidentais, catapultado pelos mass media. 
Simultaneamente, prossegue no Mediterrâneo central o outro fluxo ascendente que vem dos confins da África e se lança ao mar a partir da Líbia buscando um refúgio mais seguro e prometedor nos países europeus, fluxo este controlado no essencial por traficantes locais e mais mesclado nas motivações dos migrantes, mas onde também existem numerosos casos de fuga a situações de violência e descontrolo na faixa que vai das Guinés até à Somália e, no sentido norte-sul, dos grandes desertos até aos altos planaltos da África central onde antagonismos tribais e senhores da guerra continuam a aterrorizar populações.  
Para estes diferentes problemas, a consciência humana exigiria que fosse encontrada com brevidade a forma mais justa e eficaz de devolver a paz, alimento, cuidados (médicos, etc.) e alguma ordem social a essas regiões. No limite, que as Nações Unidas declarassem formalmente como “Estados falhados” algumas delas e assumissem transitoriamente (?) a sua administração (como aconteceu no passado com Tânger, por exemplo, e alguém já propôs para Jerusalém), com os recursos financeiros, a capacidade legal e os poderes coercivos necessários, disponibilizados pela comunidade internacional. Esta é, porém (infelizmente, sabemo-lo bem), uma perspectiva de momento politicamente impossível de realizar. Pelo contrário, no grande espaço cultural islâmico multiplicam-se os conflitos armados intestinos; e os potenciais “aliados da paz” aqui, podem ser os piores inimigos ali, ou amanhã – para já não falar nos riscos do intervencionismo russo no teatro do Mediterrâneo oriental. Por isso, a crise humanitária vai manter-se e, pela sua dimensão e ineditismo, arrisca a combinar-se com outras crises (económicas e políticas) que estão latentes, aprofundando-as.
É possível porém que a União Europeia, com o seu “método da última hora”, consiga mitigar o actual drama dos refugiados, acolhendo umas boas centenas de milhar e rejeitando outros tantos por modos mais suaves do que a mera manu militari. Mas não nos iludamos: tal como perante o dilema de aceitar ou não a Turquia na UE, o que se perfila no horizonte para a Europa é um processo totalmente em aberto, onde tanto pode verificar-se uma interessante interpenetração de culturas e assimilação de hábitos de respeito-mútuo e vivência democrática por parte de comunidades a isso não acostumadas; como, pelo contrário, agudizarem-se os conflitos no quadro de uma latente “guerra religiosa” entre o mundo laico ocidental e um islamismo ameaçador. Neste aspecto, os movimentos extremistas de direita na Europa que se comportam como xenófobos devem ser combatidos politicamente mais por aquilo que são e não confessam – violentos e herdeiros ideológicos do nazi-fascismo – do que pelos alertas que lançam em relação ao perigo da “invasão islâmica”. Porque, se esta é uma expressão falsa e perigosa pelas emoções epidérmicas que provoca, também é mais que provável que haja cérebros, centros-de-decisão e espíritos fanáticos prontos a aproveitarem estes movimentos inorgânicos de massas para fazer progredir os seus desígnios de combate contra o Ocidente, e em especial os valores laicos, de liberdade e de igualdade básica entre seres humanos que aqui foram conquistados, e melhor ou pior preservados.
Mas o que é fundamental na resposta ocidental a essas ameaças é ser capaz de opor-se a tais intentos e, simultaneamente, encarar adequadamente a imensa maioria dos povos islamizados, sem negar na prática aqueles princípios constitutivos da Modernidade que proclamamos. Por esta razão, as esquerdas políticas e culturais seriam avisadas se conseguissem rever o seu discurso tradicional, aceitando que o caminho que estamos trilhando para sociedades cada vez mais urbanas, individualistas e cosmopolitas deva ser mais gradual e lento do que aquilo que está a ser – proporcionando melhores condições de integração e identidade sócio-cultural –, em vez do “tudo e já!” geralmente inscrito nos seus habitus.  
É verdade que os governos europeus têm neste processo da crise migratória (como no caso da Grécia e noutros) dado mostras de enorme dificuldade de entendimento e cooperação – e agora, no limite, de desumanidade. Mas só por oportunismo partidário ou facciosismo ideológico se lhes pode assacar a responsabilidade inteira desta tragédia. Neste caso, mais do que os seus interesses próprios de classe dirigente, são as opiniões públicas europeias e as perspectivas eleitorais que lhes impõem estes comportamentos (por respeito aos eleitores ou antevendo perdas substanciais e a ascensão de forças nacionalistas autoritárias ou violentas). Ou seja: está-se a pagar o necessário tributo às normas funcionais da democracia política nacional, quando este tipo de problemas é já claramente de natureza supra-nacional (como o são também os ambientais ou os da economia e da comunicação tecnológica actuais). Mas a quem ouço reclamar acções imediatas e decisivas neste plano, eu tendo a responder em tom irónico: “Só Deus…”. 
Depois da crise grega, a tragédia dos migrantes de África e da Ásia ajudou a revelar os enormes impasses em que se encontra a Europa política: só um salto-em-frente para uma federação mais constrangedora das soberanias nacionais actuais poderia porventura responder às necessidades de integração deste bloco face aos problemas políticos, económicos, sociais e de segurança com que está confrontado. Mas que eleitorados europeus estariam prontos para aceitar essa cedência? E que dirigentes das maiores potências aceitariam perder as suas posições em favor de uma “totalidade” que eles já não controlariam inteiramente (pelo menos durante um lapso de tempo previsível)? 
Não foram as “classes políticas” ocidentais que essencialmente criaram estas crises e estes impasses (até porque também elas herdaram “presentes envenenados” do passado histórico), outrossim as convulsões e estrangulamentos derivados do próprio processo global de mundialização que estamos vivendo. Mas nem por isso elas devem ser descartadas das responsabilidades que assumem por vontade e apetite próprios (e com os respectivos lucros, mesmo já não pensando na corrupção de alguns, talvez em número crescente). Os comportamentos abstencionistas em vastos eleitorados europeus são um sinal inequívoco de desafeição por estes seus representantes institucionais. Mas pior ainda é quando, por falta de cultura e memória histórica, buscam alternativas em partidos populistas, nacionalistas-extremistas e autoritários.  

As eleições de 20 de Setembro na Grécia deram uma confortável vantagem ao partido do senhor Tsipras, agora desembaraçado da sua ala mais esquerdista (o que lhe deve fazer pensar, como Estáline, que “quando o partido depura, fortalece-se!”). Apesar da enorme abstenção, difícil de medir por causa da emigração, a Grécia tem agora condições institucionais para enfrentar a austeridade dos próximos tempos. O governo logo formado (com uma rapidez em que os gregos são campeões) é de novo uma coligação estranha entre uma extrema-esquerda realista rendida à palavra do seu líder e um partido nacionalista que vela para manter os militares na ordem e alguma opinião de direita controlada. Tsipras afirmou-se nestes meses como um político hábil e corajoso, e terá dito no discurso de vitória que o programa era agora de “trabalho e luta”: o que augura que o seu estilo simultaneamente contundente, afável e populista (procurando sempre um “diálogo” directo com a rua) vai manter-se; e indica que a sua mais próxima batalha será a de impor internamente as primeiras medidas gravosas do “memorando” e lançar-se numa dura negociação externa sobre o “alívio da dívida”. Entretanto, obtém apoios populares enquanto conseguir manter em boa parte do eleitorado a ideia de que a sua governação constitui uma ruptura relativamente aos anteriores “partidos de poder”, a Nova Democracia e o Pasok, desacreditados e vistos geralmente (sobretudo este último) como agrupamentos marcados pela corrupção e o compadrio – coisa que ainda não aconteceu em Portugal. 

Uma semana depois, na Catalunha os eleitores deram uma composição parlamentar confortável aos independentistas na Generalitat mas frustraram as suas ambições de um resultado nas urnas superior a 50% que poderia ser brandido com prova da vontade separatista da região. Com o apoio parlamentar dos esquerdistas da CUT (Coligação Unitária Popular), o próximo governo regional da Catalunha vai provavelmente prosseguir a sua luta política contra Madrid mas esperará pelos resultados das eleições gerais de Dezembro para ver mais claro de que forma os seus eleitos poderão pesar na solução governativa que então se desenhar para o Estado Espanhol. O partido conservador dificilmente renovará a sua maioria; mas o PSOE pode talvez vir a entender-se com o Podemos! (esquerdistas renovadores) e sobretudo com o Ciudadanos (renovador centrista) para gerar um governo de coligação que proponha uma evolução do estatuto autonómico da Catalunha. Que estes independentistas aceitem tal plataforma como etapa transitória ou optem por “esticar a corda” desde já, depende, em grande parte, das novas aritméticas parlamentares e das lideranças – tal como o quorum e as condições políticas (nacionais e inter-regionais) para fazer uma revisão constitucional em direcção a um Estado Federal, que o PSOE defende e que o Ciudadanos e o Podemos! talvez viessem a aceitar. Em todo o caso, até agora (e como na Escócia), este grande processo de mobilização cidadã na Catalunha tem tido assinalável carácter cívico, democrático e completamente pacífico, como realçou o jornalista Ramón Font, o que é sempre de saudar, sobretudo em Espanha, e deve constituir uma referência para bascos e irlandeses.
       
Finalmente, em Portugal os resultados do escrutínio de 4 de Outubro só não foram uma surpresa porque este desenlace se desenhava desde há várias semanas. Mas quem, há um ano ou há seis meses atrás, ousaria imaginar isto? Com um governo de legislatura em que, sob a férula das instituições prestamistas internacionais, se reduziu o rendimento e o emprego dos portugueses, se acelerou fortemente a emigração (com muita gente qualificada), se comprimiram os auxílios sociais do Estado, se cumpriu um programa de privatização de empresas públicas, se enfrentaram choques com o Tribunal Constitucional, se falhou rotundamente a “reforma do Estado”, se obteve alguma entrada de capitais estrangeiros mas de forma e origens pouco convincentes (angolanos, chineses, “vistos dourados”, etc.), a retoma pelo consumo assumiu logo os defeitos de anteriormente e, apesar de tudo isto, a despesa pública foi sempre crescente, com os défices (embora em queda) a continuarem a alimentar a dívida e uma estrutura orçamental mantida à custa de elevados impostos… – poucos imaginariam, de facto, que o eleitorado não aproveitasse esta oportunidade para mudar os governantes de turno.
Apesar da ocorrência de dois momentos simbólicos de significativo protesto juvenil e popular contra esta degradação das condições de vida (Março de 2011 e Setembro de 2012, com governos de cor diferente), o povo português comportou-se resignadamente durante este período difícil. Certos grupos atingidos e mobilizáveis protestaram pontualmente e muitas vezes de forma veemente, mas o povo recusou-se a servir de “massa de manobra” para os diversos estados-maiores partidários, que de bom grado os conduziriam a algum desastre ou, às suas custas, procurariam chegar ao poder. Fechou-se no seu proverbial “individualismo” e endossou os restos de paroquialismo (conterrâneo, familiar ou amiguista) para atingir objectivos modestos mas próprios (como um posto de trabalho em país estrangeiro, um negócio na fronteira da legalidade ou mesmo a subscrição de um protesto pontual que o abrangesse). Porém, no íntimo do seu julgamento, terá desqualificado de maneira ainda mais drástica a opinião que já tinha da “corja de malandros que nos governam”.   
Como seria de esperar, os critérios jornalísticos da imprensa e os comentadores empurraram decididamente a opinião pública para os actores partidários já instalados, mas também é verdade que a emergência de forças realmente alternativas não passou, entre nós, de pequenos balbuciamentos entre as elites pós-modernas ou grupos oportunistas. Daí o não aparecimento de formações de alternativa política convincentes. 
A longa pré-campanha e a campanha eleitoral só tiveram de novidade uma louvável contenção dos porta-vozes das principais candidaturas à governação quanto às “promessas” – lembrados que estávamos, todos, da demagogia habitual dos partidos nestes períodos, e da sua negação, uma vez no poder. Mas este realismo deu margem a que, à esquerda do PS, se soltassem as amarras para acolher os mais impacientes, desesperados e raivosos da governação PSD-CDS.
As eleições são hoje um fenómeno mediático onde, sobre um soclo de voto ideológico e de escolha informada e ponderada por parte de uma certa fracção do eleitorado, actuam sobretudo as correntes emocionais e miméticas gizadas pelos grandes debates televisivos, pelas ideias e imagens fragmentadas que passam nas “redes sociais” e, em alguma medida, pela presença continuada de certos opinion makers na comunicação social. Os comícios, jantares e arruadas apenas servem para marcar presença nos telejornais. 
No período legal da campanha de rua, mais uma vez se repetiram os desconchavos verbais, com o ingrediente suplementar de algumas intervenções agitadas dos “espoliados do BES”. Como reconhece Paquete de Oliveira, provedor do leitor de um jornal de referência, estas práticas, «com uma propaganda feita de slogans, de promessas fátuas, explorando ‘apegos sentimentais e emocionais’, só ampliam a indecisão e, sobretudo, a descrença e o afastamento crescente dos cidadãos» (Público, 27.Set.2015).
Mas foi neste período final que as tendências das sondagens acabaram por inverter as gerais expectativas, com o tom pessoal, cordato e responsável do discurso de Passos Coelho a contrastar vivamente com a excitação e gesticulação absurda de um António Costa, que já de ordinário se exprime mal e julgou assim conquistar a populaça. Deste modo, pareceu esquecer (e ocultava) aquele que é o seu melhor capital pessoal: o conhecido pragmatismo e capacidade negociadora.
No dia 4, mais uma vez a maioria dos cidadãos manifestou-se pela sua filiação no universo dos descrentes nas alternativas do actual espectro partidário (os abstencionistas, brancos e nulos) com um score global de 45% em relação ao universo oficial de eleitores. Porém, dada a pouca confiança deste último número e tendo em conta a emigração recente, é provável que uma boa parte dos portugueses tenha querido mostrar a sua vontade de influir no destino do país. O PS logrou 32% dos votos “validamente expressos” e a coligação PSD-CDS atingiu os 39%, beneficiando provavelmente da inteligência e firmeza política de Passos Coelho, que “meteu no bolso” Paulo Portas a partir de Agosto de 2013 e cujo estilo de homem público agrada a muitos eleitores. Quanto aos “pequenos partidos”, praticamente todos à esquerda, conseguiram em conjunto 25% dos votos em urna, o que permitiria várias soluções de governação, não fosse a petrificação ideológica em que vivem os dirigentes e militantes do Bloco de Esquerda (com um resultado surpreendente) e do Partido Comunista, e a inutilidade governativa de muitos outros. No entanto, como porta-vozes independentes e de diversas causas, é pena que, por exemplo, o Livre e o partido de Marinho e Pinto tenham sido “arrasados” eleitoralmente, com a surpresa adicional da eleição de um deputado do partido PAN, de cuja direcção o filósofo Paulo Borges (promotor da vinda do Dalai Lama a Portugal) disse há poucos meses “cobras e lagartos”, no momento de ruptura com o ex-“Partido dos Animais” de que ele fora um dos principais fundadores.     
Já me enganei redondamente na crise política do Verão de 2013 quanto ao maquiavelismo político de Cavaco Silva e arrisco agora idêntico falhanço, mas não quero deixar de me pronunciar num dia 5 de Outubro que o residente de Belém resolveu este ano desprezar.
Nas condições presentes, o Presidente da República – que pode vir a deixar Belém sob uma azoada de “lenços brancos” – deverá encarregar o líder da formação maioritária em S. Bento de formar um governo que não tem condições políticas para cumprir a próxima legislatura. Ou cairia de imediato (com uma “gestão corrente” prolongada sem orçamento aprovado para 2016, coisa que o PS não deve deixar que aconteça), ou vai “navegar à vista”, dependente da “margem de compromisso” com o maior-partido-da-oposição (como já aconteceu em tempos de pantanosa memória) ou teremos novas eleições dentro de oito meses ou um pouco mais: tudo perspectivas pouco animadoras para a sanidade da vida social e económica do país, mas sobretudo eficazes para afastar cada vez mais os portugueses destes seus representantes institucionais, que há 40 anos monopolizam o campo político.
O decepcionante resultado eleitoral agora obtido pelo Partido Socialista mostra o estado adiantado de crise e decomposição da esquerda portuguesa, que já esqueceu as referências do republicanismo e do anti-fascismo, e se perdeu nas aventuras do pós-modernismo e da financeirização da economia mundial. Apesar de, notoriamente, possuir melhores quadros técnicos em quase todas as áreas, e da estreiteza cultural de que dão mostras as elites de centro-direita, foi este último sector político que entre nós demonstrou maior capacidade de adesão popular num momento decisivo como este. Convenhamos também que, com esta coligação em condições de governar (o que não é agora o caso), seriam alterações ainda mais profundas do que as já experimentadas aquelas que aguardariam a sociedade e a economia portuguesa na próxima década, que todavia ficariam incompletas ou mesmo bloqueadas se o Partido Socialista não se dispusesse a entender-se com ela numa reforma constitucional e de certas leis estruturantes. E, no espaço mundial, se há alguma revolução em curso, ela é a do declínio do Estado-nação e da emergência de forças económicas e espirituais que cruzam despreocupadamente as fronteiras tradicionais.
“Há mais vida para além do orçamento!”, proclamou um dia Jorge Sampaio, talvez com mais razão do que aquela que então o movia. De facto, se o sistema político está encravado desde há anos, sobretudo (mas não exclusivamente) devido aos três grandes partidos de governo, seria importante que surgissem propostas de reforma profunda do nosso funcionamento democrático. E aqui o panorama é: “zero!”. Contudo, também é verdade que “as ideias” ficam impotentes quando “os números” (que traduzem “factos”) se impõem inexoravelmente, seja em termos económicos ou demográficos. O problema é que esta objectividade só se torna evidente a longo prazo (ou à distância histórica) e que entretanto os seus “tradutores” também merecem pouca confiança, porque estão sujeitos como quaisquer outros às simpatias, antipatias e aliciamentos do poder, e não somente aos erros, como seria lícito.
O país vai provavelmente continuar a ter um Estado deficiente e gastador, com uma governação de curto prazo, sem capacidade de afirmação própria nem o entendimento de uma estratégia consistente para melhor se situar no difícil contexto internacional.
JF / 5.Out.2015

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