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domingo, 25 de junho de 2017

Paradoxos do tempo

Nos últimos meses, vários processos de escrutínio popular produziram efeitos estonteantes, não apenas nos próprios países mas também em esferas mais alargadas, de âmbito regional ou mundial.
O referendo de 2016 no Reino Unido ditou o abandono deste país da comunidade de estados da União Europeia, processo político e económico que só agora está a ensaiar os primeiros passos e sobre o qual ninguém arrisca fazer previsões. No entanto, a Srª May, que já se mostrara tímida e subserviente na Casa Branca em Janeiro último, terá selado agora o seu destino político. As eleições legislativas de 8 de Junho, antecipadas de quase três anos, não lhe proporcionaram a confortável maioria que desejava ter em Westminster para negociar mais à vontade com a UE – antes pelo contrário –, mostrando claramente ser ela uma má jogadora no campo político-parlamentar-mediático. E não foi suficiente fazer causa comum com os restantes G7 face a Trump na cimeira da Sicília e na defesa do tratado de Paris sobre o clima. Várias coisas daqui se tiram: o resultado referendário das urnas fora tangencial (como geralmente acontece); os resultados eleitorais de agora constituíram mais  um “voto de protesto” contra os governantes de turno; a opinião pública do país ficou outra vez dividida a meio; e o “mau exemplo” foi dado para quem o quiser aproveitar, com os eurocépticos do continente fortalecidos com estas divisões, o presidente Juncker mais impante,  os nacionalistas e soberanistas anti-europeus exultantes (tal como o sr. Putin) e os autonomistas-nacionalistas pró-Europa (da Catalunha e mesmo da Escócia) esperançados em poder avançar mais um passo nos seus desígnios. É também provável que as negociações se arrastem inconclusivas quase até ao esgotamento do prazo de dois anos previsto e acredita-se que, não havendo nenhuma perturbação grave adicional, as partes acabem por chegar a um acordo razoável, com tarifas alfandegárias mútuas especiais e maior controlo dos movimentos de pessoas entre a Ilha e o espaço Shengen (como de resto acabará por acontecer no interior deste, da maneira que for mais compatível com a mobilidade dos factores económicos). Do prosseguimento da prosperidade dos britânicos nesse novo enquadramento (mundial) é que já é mais difícil vaticinar, mas acreditamos que, se não houver conflitos internos (regime monárquico, secessões, irredentismos ou levantamentos das suas comunidades asiáticas), eles saberão aproveitar ao máximo as suas relações preferenciais com os Estados Unidos e a Commonwealth, e usar o seu consabido pragmatismo para estabelecer laços económicos favoráveis com quem lhes interessar, da China aos países árabes, asiáticos ou africanos. E se as coisas correrem pior, talvez que as receitas proteccionistas e pro-sociais do Labour venham a ser úteis para gerir esse fatal empobrecimento.    
Em tempo de Páscoa cristã, a Turquia realizou um referendo de alterações à constituição, que passou do parlamentarismo herdado de Ataturk (sob tutela militar durante um larguíssmo período) para um presidencialismo islâmico que, não sendo ainda fundamentalista (no sentido da sharia), se vem colocando em posturas cada vez mais anti-ocidentais. É verdade que a União Europeia lhe foi progressivamente encerrando as suas portas (para uma admissão no clube) à medida que essa islamização ia progredindo. E que o acordo financeiro passado para que Ankara ficasse nos braços com o grosso dos refugiados sírios (e não só) foi uma jogada típica do “realismo dos mais ricos”. Por outro lado, as relações bilaterais russo-turcas tornaram-se de novo difíceis, com tantos motivos de convergência como de oposição de interesses próprios. Assim, a Turquia volta a ser uma crucial fronteira-tampão entre a Europa, a Rússia e o Médio-Oriente islâmico (incluindo a complexa situação dos Balcãs e as sempre suspeitosas repúblicas do sul da Federação Russa), espaço este onde se mantêm activíssimas e em simultâneo as manobras diplomáticas e propagandísticas, as guerras limitadas e as acções terroristas, com irrupções esporádicas de efervescências urbanas e intifadas, sob o olhar atento e interventivo de russos, americanos e dos maiores potentados da zona (em riqueza e poder militar). Só a presença dos turcos na NATO (até quando?) é que constitui um “cinto de segurança”, quiçá decisivo para a preservação da paz mundial.
Neste quadro, o Irão foi também a votos para o cargo presidencial (com mais de um milhar de candidatos à partida!). Felizmente, acabou por triunfar o moderado Rouhani, que já estava em funções, travando reorientações mais aventureiras, agora que o acordo obtido por Obama pode ser ignorado ou riscado de uma penada pelo seu sucessor. No mundo árabo-islâmico, as rivalidades podem não ter fim à vista entre as principais potências regionais – Irão, Arábia, Egipto e Turquia – sem esquecer os, por agora discretos, países do Magrebe e a sempre adiada solução Palestiniana.
É claro que a eleição de Trump nas eleições americanas de Novembro passado foi uma surpresa que deixou o mundo estupefacto. Já todas as análises foram feitas sobre a personagem e os motivos que levaram tão grande número de cidadãos yanquees a instalaram-no na Casa Branca, mais os amigalhaços e a família. É este um dos riscos maiores dos procedimentos democráticos tradicionais, mas somente quando assim se concretizam é que nós podemos apreciar o seu alcance e os prejuízos gerais que provocam. Sendo certa a sua absoluta ignorância da história, da política e da cultura, o homem parece fazer “o que lhe dá na gana” julgando poder gerir um país como aquele – sobretudo na ordem internacional – como se fosse mais um dos seus negócios de resorts ou de casinos. Aparentemente (mas talvez seja mesmo só aparência), lida com os media como se fosse apenas um descabelado americano comum, desafia algumas das mais sólidas instituições americanas, atreve-se a anunciar decisões até agora impensáveis e usa os seus soldados no mundo como se de “jogos-de-guerra” se tratasse, com o que põe em risco a credibilidade moral e mesmo a honra dos militares norte-americanos – obedientes ao poder político democrático, mas não às ordens de um louco. A curto e a médio prazo, isto vai ter os seus efeitos na cena mundial, o que já começou com a renúncia ao tratado de Paris sobre as alterações climáticas. A sua relação com Putin (sobretudo em relação ao Próximo-Oriente, onde os “terroristas” não são os mesmos para cada uma das partes) e o triângulo USA-China-Coreia do Norte são, de momento, os processos mais perigosos.
Como se previa já há largos meses, nas eleições presidenciais francesas (e sob o regime do estado de emergência, não o esqueçamos) a Srª Le Pen quase igualou o moderado Macron na 1ª volta mas este levou a melhor na 2ª por larga margem, provocando alívios no Ocidente e recriminações internas na Frente Nacional. Porém, a significativa abstenção (12 milhões = 25% do eleitorado), os brancos e nulos (4 milhões = 10%) e os 34% de votos expressos por ela recebidos constituem dados políticos relevantes que tiveram reflexos nas legislativas de 11/18  de Junho (onde a abstenção atingiu recordes, mostrando a expectativa e distanciamento do povo francês) e condicionarão a próxima legislatura, apesar da estrondosa vitória das posições centristas – “social-liberais” – do novo presidente. Maugrado a sua larguíssima maioria – porém insuficiente para permitir mexidas constitucionais, por causa do Senado conservado – e do “estado de graça” de que vem beneficiando, é preciso não esquecer que “a rua” vai fazer-se sentir em oposição a muitas reformas institucionais e económicas e que, nesta maioria, existe tanto de rejeição  à “politiquice” anterior  (e de sempre) como de oportunismo de velhos e novos “politiqueiros”. O seu principal trunfo, é, apesar disso, a existência de uma corrente de opinião capaz de lhe fornecer uma força política mais coerente, realista e disposta à mudança composta por um significativo sector de jovens qualificados e não “contaminados” pelos velhos hábitos.
Acredita-se que o centrismo de Macron procure responder às novas clivagens do nosso tempo e à erosão que tem laminado o prestígio e a reputação dos partidos políticos tradicionais, particularmente no caso da França (mas que é um fenómeno presente em outros países desenvolvidos), não só pelos casos de corrupção e pelas promessas eleitoralistas não cumpridas dos seus dirigentes (porque boa parte delas eram impossíveis de cumprir), mas também pela lógica sectária dos seus militantes de base, obsecados pela ocupação dos postos e instrumentos de poder e pelo combate contra os seus adversários, sem visível preocupação pelos efeitos nefastos que estes combates em arena fechada têm para a generalidade da população, numa época em que é intensa e muitas vezes imediata a relação entre política, economia, sociedade e cultura, por um lado, e entre o espaço local/nacional e o espaço global/mundial, por outro. Neste sentido, qualquer política nova tem de ser necessariamente centrista  e “social-liberal” mas suficientemente estruturada, clara e objectiva para se distinguir do “marais” (o habitual centrismo negativo “nem… nem…”). Se isto for possível, a sua corrente dinâmica atrairia obviamente gente dos partidos moderados de direita e de esquerda e, sobretudo, muitos dos actuais abstencionistas (que não sejam os a-sociais conhecidos em França por “pêcheurs-à-la-ligne”). Mas encontrará como adversários políticos os sectores mais ideologizados de direita e de esquerda, incluindo necessariamente as suas diversas franjas extremistas. Como é que tal dinâmica poderá desenvolver-se num quadro tão complicado como é o da França, onde o presidente dispõe de algumas armas raras (como governar por decretos [ordonnances], assumir os poderes especiais do Artº 16º da constituição, dissolver o parlamento ou levar a referendo projectos de alteração das normas fundamentais) mas não conseguirá ter orçamentos e ver aprovadas simples leis reformadoras na Assembleia e no Senado se a sua maioria começar a esboroar-se por falta de consolidação político-ideológica? E como poderá Macron responder às expectativas ora criadas quanto à superação da crise económica, do problema das migrações maciças e da sua integração socio-cultural – além de atender à segurança pública e opor-se com eficácia às ameaças e desafios de guerra – sem uma notória alteração dos posicionamentos da União Europeia, quando as relações com a Alemanha nunca serão fáceis, a saída do Reino Unido vai demorar a encontrar uma plataforma aceitável e será necessário lidar com os suspeitosos governos europeus de Leste, os grandes “lastros” que são a Itália e a Espanha e os recalcitrantes “pesos-plumas” (ou “pesos mortos”?) da Grécia e de Portugal? Por outro lado, a conjunção das oposições mais rudes de esquerda e de direita tornarão decerto muito estreita a margem de manobra de Macron. Mas que necessidade tinha este de lhes dar argumentos ao visitar Berlim logo no segundo dia do seu auspicioso mandato? Não poderia ter obtido um encontro na fronteira?
Para que o centrismo social-liberal possa vir a ter êxito precisará de afrontar as ideologias mais arreigadas à esquerda e à direita e estruturar uma sua própria ideologia baseada em equidade social, segurança pública, democracia participativa, prosperidade partilhada, desenvolvimento dos países mais pobres e populosos, cooperação internacional e precaução ambiental. E talvez possa chamar simbolicamente em seu favor os quatro princípios fundamentais identificados na Declaração de 1789: liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão.
A Frente Nacional dos Le Pen – de extrema-direita, nacionalista, xenófoba e anti-europeia, aparentemente moderada mas abrigando no seu seio franjas extremistas perigosas e violentas, que sempre existiram no país desde Maurras, Doriot e da governação de Pétain, colaborante com os invasores alemães em 1940-44 –, a FN, dizíamos, é provavelmente o partido mais coeso do espectro partidário do país, apesar das querelas de liderança, alimentado que é pelo ressentimento de o sistema eleitoral lhe negar uma força parlamentar à altura do eco favorável que obtém na opinião pública. Quase perdido o seu lugar de grande potência mundial devido às insuficiências do seu poder económico, a França profunda tem-se virado mais e mais para o nacionalismo e o fechamento perante o ressurgimento de velhos fantasmas (a Inglaterra, a Alemanha, os Estados Unidos), a mudança nos modos-de-vida, uma crescente população islamizada residente e nacional mas mal integrada, e as ameaças terroristas, a que o seu infeliz e inepto anterior presidente tentou responder com alguma coragem mas sem discernimento, ao enviar as suas tropas para combater jihadismos distantes e com outras medidas extraordinárias.
Por seu lado, afogada entre divisões ideológicas e pessoais, a esquerda – e especialmente o outrora poderoso partido socialista – encontra-se mais enfraquecida do que nunca e prisioneira das querelas do passado (Veja-se esta pequena amostra do “delírio” existente entre alguns cientistas sociais, extraída de uma comunicação privada: « […] Touraine ou Wiewiorka  […] nous les considérons comme des réactionnaires»). O “gaulismo” também desapareceu face ao atractivo americain way of life e aos escândalos dos seus principais dirigentes. A estes dois antigos bastiões dominantes, resta-lhes, como capital político, a implantação territorial conseguida ao longo de décadas e a importância europeia do “eixo Paris-Berlim”, em cuja gestão o PS se mostrou sempre tão diligente quanto os seus adversários de centro-direita.
Assim – a menos que a União Europeia consiga um “golpe de rins” de recorte mais federalista (o que não se vê facilmente como, atendendo às atitudes nacionalistas dos países do Leste) –, a Frente Nacional aparecerá como a única força portadora de um projecto de mudança correspondente aos desafios do tempo actual: resposta errada e perigosa (tanto política como economicamente) mas que se distingue claramente dos outros “gestores do statu quo”, e como tal é reconhecida por uma parte significativa do eleitorado francês. Veremos o que vai acontecer daqui até 2022.
Aguardamos por Setembro para verificar os resultados das eleições gerais na Alemanha, e pelo Outono para a consolidação do arranjo de governo que vai seguir-se, sendo que a CDU-CSU vem ganhando vantagem, embora o cenário da continuação da “grande aliança” com o SPD não esteja afastado. Mas para além do titular da chancelaria (Merkel), será decisivo saber quem assumirá o ministério das finanças (Schäuble ou outro) e o score do partido euro-céptico Alternativa para a Alemanha (AfD), que agora parece em quebra. Na Holanda, no escrutínio de Março passado, o candidato populista Geert Wilders (cujo Partido da Liberdade dizem ser inexistente, apenas contando o seu discurso) obteve a segunda melhor posição no eleitorado mas ficou fora do governo. Na Áustria as correntes direitistas não desarmam mas não conseguiram eleger o novo presidente da república. Será que se está a atingir o patamar-limite do crescimento eleitoral das forças populistas de direita com um posicionamento anti-UE que, com diferentes matizes, é também o sustentado pelas esquerdas soberanistas? Ou será apenas uma pausa no geral enfraquecimento dos partidos do centro político (moderados de esquerda e de direita) e que a radicalização nos extremos possa levar a confrontos incontroláveis, dado que nenhuma destas forças aceitará de bom grado uma derrota? As travagens eleitorais que estes movimentos sofreram nos últimos meses em vários países da Europa podem não ser senão transitórias.   
Também para o Outono ou pouco mais tarde poderá haver novas eleições em Itália, onde o Movimento 5 Estrelas  (que reune anti-europeus de esquerda e de direita) fracassou nas recentes eleições municipais. Houve um acordo conseguido em finais de Maio entre os principais partidos sobre uma reforma da lei eleitoral, “à alemã”, que não alterará sensivelmente as condições de instabilidade governativa gerada por esta elite política, onde pesam sobretudo o populismo negocista de Berlusconi (e o fechamento xenófobo da Liga Norte), o populismo anti-sistema do M5S e a demagogia-de-esquerda de um líder “modernizador” como Renzi.

Bem mais discretas são as divergências em Portugal entre os partidos com acesso ao poder executivo, por via do apoio que PCP e Bloco de Esquerda emprestam no parlamento ao governo socialista de António Costa, por troca com a adopção de certas medidas legislativas e orçamentais por eles avançadas, ao mesmo tempo que se sentem livres para “falar contra o governo” em outras matérias, de molde a garantirem a suas respectivas bases eleitorais. Tudo isto é obra de Costa, de Centeno e do suporte que têm encontrado no inquilino de Belém. O primeiro confirma a arte negociadora por todos reconhecida e permanece exibindo as piruetas verbais que forem necessárias para continuar a sorrir. O segundo, com maior ou menor maquilhagem das contas públicas, consegue apresentar números que fazem calar tanto as oposições nacionais como os seus interlocutores europeus. E o terceiro continua a sua imparável acção de “popularização” da magistratura suprema do Estado, ao mesmo tempo que participa na governação (sobretudo na frente externa) e aposta na estabilidade governamental… enquanto esta durar. Também a tragédia humana dos mortos e feridos do incêndio de Pedrógão Grande pode vir a ter efeitos benéficos para o sentimento de coesão nacional (que o Presidente não se cansa de realçar), e por reflexo para a governação actual, bem ao contrário do que aconteceu com o equiparável acidente urbano acontecido em Londres uma semana antes.
A (estúpida e prejudicial) regra da coincidência temporal das eleições autárquicas não vai alterar significativamente o quadro político nacional, com as costumadas declarações de vitória de todos os partidos, a reafirmação de alguns candadatos independentes (quase todos “dinossauros” ou zangados com os seus correligionários) e uns ajustes de contas internos, como muitos admitem que possa acontecer no PSD. Mas vai dar argumentos aos vários componentes da coligação apoiante do governo para provocar reajustamentos e alterar prioridades quanto às medidas a tomar proximamente. Sobretudo, desencadeará discussões e ensaios de estratégia partidária face às eleições gerais seguintes. Estratégias que, porém, estarão sempre fundamentalmente sujeitas à melhor ou pior evolução da economia e a qualquer alteração que se verifique na envolvente externa. 
Falando em regras institucionais, pode observar-se que, em muitos países e alguns dos mais importantes, se está criando a sensação de que os processos eleitorais de constituição de assembleias parlamentares ou de escolha directa de governantes começam a deixar um crescente número de cidadãos insatisfeitos com os resultados dos mesmos e os desempenhos desses seus representantes, seja por falta de cumprimento de promessas feitas, seja por suspeitas de corrupção ou sujeição a interesses espúrios, ou ainda pela abertura de uma notória clivagem entre as elites, os partidos e a grande maioria do povo eleitor. Estes defeitos dos regimes políticos democráticos são há muito conhecidos mas, com naturais altos e baixos, mantiveram-se geralmente dentro de um padrão de razoabilidade que satisfazia o pragmatismo da maioria, a qual também não vislumbrava qualquer outra alternativa institucional superior. A legitimação de partidos e líderes governantes pelos aplausos de uma multidão em delírio ou pela “razão das armas” de um golpe-de-Estado ou luta revolucionária triunfante foi aceite no século passado apenas no caso de povos atrasados – sempre evoluindo para ditaduras mais ou menos afirmadas – e, excepcionalmente, na débacle de regimes autoritários mas logo confirmado por processos de escrutínio popular livre (isto é, com garantia de expressão individual sigilosa). Hoje, são populações há muito escolarizadas e habituadas a governos democráticos que não se revêem nas propostas dos partidos e dão apoio a acenos de ruptura, vindos de forças radicais de esquerda ou, mais frequentemente, das direitas. E as tímidas propostas de reforma constitucional que emergem – por exemplo, de Renzi em Itália, num sentido federalista na vizinha Espanha ou agora por Macron em França – não encontram acolhimento suficiente face às rupturas anunciadas por líderes carismáticos neo-nacionalistas. Parece que estamos à beira de um novo choque traumático – desta vez essencialmente económico e político, à escala internacional – que talvez permita enfim que os povos mais cultos e educados façam prevalecer a voz da razão e do entendimento sobre os esgares dos condotieri e a algazarra dos seus apoiantes.
Por todo o lado, os processos eleitorais e as regras tradicionais da representação estão a evidenciar um acentuado desgaste e necessidade de regneração. Nestas circunstâncias, mais se nota a urgência de uma renovada forma de intermediação entre os cidadãos (trabalhadores-consumidores-eleitores) e o exercício da governação para um melhor-estar das populações, porém desgraçadamente numa época em que os mandatários populares se mostram mais fechados sobre si próprios e permeáveis aos fenómenos da corrupção, do  negocismo e da falta de ética.
Entretanto, nesta álgida situação que a humanidade atravessa, deve perguntar-se o que andará fazendo um António Gueterres quase desaparecido. Talvez esteja tentando reanimar a máquina burocrática da ONU ou diligenciando discretamente junto dos principais líderes mundiais. Oxalá a ausência de eco da sua acção não signifique ter já sido abafado por forças mais poderosas do que o consenso das não-oposições que permitiram a sua ascensão ao cargo de secretário-geral daquela incontornável organização internacional.

JF / 24.Jun.2017

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Actos de guerra, desespero, violência e “intoxicação” informativa

A cidade de Raqa, capital proclamada do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL ou ISIS), parece já estar a ser assediada por milicianos curdos apoiados (e orientados?) pelos Estados Unidos. O cerco de Mossul por forças do exército do Iraque e milícias xiitas iraquianas e curdas, com idêntico apoio aéreo de países ocidentais, vai prosseguindo, sem que se consiga socorrer eficazmente a população civil refém dos cruéis combatentes do Daesh nem, por outro lado, evitar pilhagens e vinganças sangrentas de xiitas sobre sunitas. E na zona ocidental da Síria o poder militar do presidente Assad, com os bombardeamentos aéreos dos seus aliados russos e a preciosa ajuda das milícias xiitas do Hezbolah, vai pouco a pouco reassumindo o controlo da maior parte do território e das principais vias de comunicação terrestres, isolando as bolsas do ISIL em Palmira e outros lugares, e as dos rebeldes anti-governamentais sírios em zonas cada vez mais restritas. Apenas na fronteira norte os Curdos em armas não foram ainda afrontados, mas estes são de vez em quando fustigados por retaliações e ataques das forças da Turquia (com o material NATO de que dispõem). É legítimo reconhecer ao povo curdo a ambição de vir a constituir uma entidade política nacional reconhecida pelos restantes estados, mas o recurso ao bombismo e à guerra de guerrilhas dos seus peshmergas, colocando-os na dependência de russos, americanos ou de quem lhes forneça armas, não augura nada de muito interessante quanto ao regime que conseguirão porventura instalar na região montanhosa que partilham com o Irão, o Iraque, a Turquia e a Síria. E talvez que a natureza das relações que consigam manter com a minoria religiosa Iazidi nos venha a indicar a futura tolerância do seu Estado, ou a sua ausência.      
Temos, pois, nestes vastos territórios maioritariamente desérticos, uma guerra convencional de baixa intensidade travada no terreno em torno de cidades (onde se apinham populações pobres), com base em assaltos de infantaria e veículos armados com castigos de artilharia, completados por bombardeamentos aéreos (e ocasionalmente navais de longa distância, sempre de potências estranhas) sobre nós de comunicações, depósitos, reservas e postos de comando dos insurgentes. Nestas condições, as discretas operações de infiltração de tropas especiais ocidentais e russas (ou autóctones, por estes treinadas) e a espionagem e contra-informação militar a partir de satélites e no ciber-espaço têm um papel muito importante, a que se liga a propaganda soltada para os mass media e “redes sociais”. Estes meios têm autonomia própria, que pode agir em sentidos diversos e opostos, mas não são imunes àquelas penetrações.
Manobras de guerra de maior intensidade militar mas de curta duração ocorreram na Ucrânia há três anos, após o episódio da Crimeia e com mal-disfarçado envolvimento da Rússia, seguindo-se uma rápida passagem para intermináveis e inconclusivas negociações diplomáticas, que não livraram Putin de medidas de retaliação ocidental gravosas para a sua economia e do isolamento de que ainda agora padece, que só tem vindo a ser rompido pela surpreendente estratégia do novo presidente Trump. 
Assistiu-se também há pouco, na retaguarda, a manobras diplomáticas da mais alta importância acerca das quais, nem nós nem a maioria dos comentadores foram capazes de captar todo o entendimento, naquilo que traziam escondido e no que foi revelado. Na viagem inaugural de Trump pelo mundo, focou-se sobretudo a venda de armamento à Arábia Saudita mas menos o seu discurso a uma alargada assembleia de chefes de estado do mundo árabe; e nas cimeiras da NATO e do G7 de Taormina, o quase completo desacordo com os outros ocidentais. Mas já se percebe agora que a operação de isolamento diplomático do Qatar que ocorreu dias depois foi uma decorrência directa de compromissos então tomados em Riad para cercar os bastiões xiitas na Síria, no Iémen e sobretudo na potência regional que é o Irão, ainda que sacrificando o Daesh e alguns dos seus apoiantes do Golfo Pérsico. Irá o conflito religioso entre sunitas e xiitas passar a uma nova fase protagonizada por um inédito realinhamento de estados na região, e a um outro nível de confronto bélico? Ou terá sido mais um ímpeto publicitário “à Trump” e no Golfo tudo voltará em breve ao que era antes, enquanto entidades públicas ou privadas sauditas continuam a financiar os sunitas armados do Levante ou a construção de mesquitas e a acção proselitista dos seus imãs na Europa?
Enquanto esperamos pela decantação desta complexa situação, as derrotas militares sofridas e a redução do espaço de manobra do Estado Islâmico no seu califado levantino determinaram já há algum tempo uma sua operação estratégica de retirada, para outros objectivos e outros meios de actuação. É de crer que a aventura do Estado Islâmico e a sua guerra impiedosa na Síria e no Iraque estejam terminadas em breve, embora seja provável que prossiga o conflito entre os curdos e o governo turco. As autoridades de Bagdad e Damasco (com ou sem a presença de Assad) estarão sempre enfraquecidas e deverão resignar-se a ver os curdos afirmarem-se mais autonomamente nas suas províncias setentrionais. E não é crível que a Rússia se empenhe em tal caso, uma vez que o seu grande objectivo nesse flanco é a saída para o Mediterrâneo e uma Turquia que não lhe levante obstáculos. Em qualquer caso, acabando a guerra aberta na Síria e no norte do Iraque, sobra para a União Europeia o problema das centenas de milhar de refugiados que aqui se acolheram, e persistirá o êxodo de africanos e asiáticos pela porta escancarada da Líbia e do Mediterrâneo cuja resposta militar ou de segurança será sempre de muito pequeno efeito sobre as causas do fenómeno.
Os dois instrumentos principais usados pelo ISIL na sua campanha guerreira – a crueldade sangrenta sobre quaisquer alvos humanos e a hábil adaptação e utilização da actual cultura informática global, sobretudo por via das “redes sociais” – mantêm-se nos atentados ultimamente praticados na Europa mas estes têm descido progressivamente de escala e grau de gravidade. Os atentados bombistas ou tomadas de reféns colectivos têm-se tornado mais raros – ao contrário do que continua a acontecer em África e sobretudo na Ásia – e as violências com intenção terrorista são hoje cometidas por “amadores” com instrumentos rudimentares: estamos a passar do uso de armas portáteis automáticas para as facas de cozinha. Isto, sem que o alarme público deixe de soar e que as pessoas se sintam menos ameaçadas, graças sobretudo ao efeito multiplicador dos mass media. O livre escrutínio dos acontecimentos por parte destes órgãos informativos é uma marca constitutiva da nossa cultural ocidental, visível sobretudo no papel dos comentaristas e no confronto de opiniões. Mas o apetite pelo “furo informativo” torna estes meios quase-aliados do terrorismo quando eles contribuem para instilar nas populações sentimentos de pânico e estes servem para virar os cidadãos de ascendência nacional contra as comunidades imigradas mais recentes, em especial as de religião islâmica. Esta é uma linha estratégica fundamental do terrorismo contemporâneo.     
Não somos capazes de escapar ao impacto mediático da actualidade. Quase ao mesmo tempo em que se celebrava um espectáculo desportivo de alto nível onde alguns europeus do sul davam cartas (com destaque para o “nosso” Cristiano Ronaldo), 80 mil jovens alemães tinham de ser evacuados de um local aberto de concerto rock por alarme de bomba, centenas de tiffosi ficavam feridos por pânico e atropelo em Turim quando assistiam à derrota da Juve em ecrãs gigantes e o mundo ficou toda a noite suspenso das imagens de mais um atentado praticado em Londres contra inocentes, com toda a marca de radicais islamitas.
O terrorismo – seja ele escrito com ou sem aspas – vem cada vez mais fazendo parte do nosso quotidiano, como os desastres de automóveis ou as incivilidades e violências urbanas. Provoca geralmente menos vítimas nos países do Ocidente do que no Médio Oriente graças aos nossos serviços de informação e de segurança, mas é muito mais amplificado do que esses devido aos aparelhos mediáticos, à sensibilidade das populações a qualquer morte (ou ofensa física, por hedonismo) e às prioridades de agenda dos actores políticos.
Há um século atrás, ainda havia quem conseguisse concretizar atentados mortíferos sobre chefes de Estado ou outros altos responsáveis políticos: em Portugal, por exemplo, assistimos ao regicídio de 1908, à morte do presidente Sidónio em 1918 e ao assassínio do primeiro-ministro Granjo em 1921. Isso hoje já não é possível. Os estadistas, governantes e outras altas patentes públicas – e as suas cimeiras ou encontros internacionais – estão permanentemente rodeados de uma fortíssima cintura de segurança, dobrada por uma outra cerca informativa gerada pelas televisões, rádios e imprensa escrita. Apenas as “redes sociais” escapam a tal controlo mas, em contrapartida, permitem e estimulam toda a sorte de insanidades e esvaziamento de frustrações, para além das manipulações, grosseiras ou sofisticadas, de que estamos a tomar agora mais consciência.
Os “mediadores de massas” – sejam eles chefes tribais, párocos de aldeia, caciques locais, jornais, discursos de caudilhos amplificados pela propaganda, mass media ou agora as novas tecnologias de informação – quase sempre colocam os indivíduos comuns numa tutela menorizada, como se não fossem capazes de pensar por si mesmos. Talvez as ciências sociais e humanas, ou mesmo as biológicas e médicas, confirmem isto mesmo, pelo menos em sociedades massificadas e onde a escolarização se limitou a adaptar os indivíduos para a vida e a economia modernas, enquanto consumidores. Porém, apesar disso, a difusão da ciência (e dos seus resultados com aplicações práticas), por um lado, e uma mais cuidada captação (do caos) da informação por parte dos públicos, por outro lado, tornarão talvez possível uma real emancipação dos indivídios face àqueles aparelhos de poder – que no fundo são, embora se apresentem hoje sob sofisticadas formas tecnológicas. É o que se nota já entre as camadas mais jovens muito qualificadas pela formação escolar.
Nesta perspectiva, os efeitos paralisantes das acções terroristas tenderão a desaparecer ou ser superados pelos comportamentos das pessoas normais, num ambiente social de razoável convivência inter-identitária (étnica, religiosa, cultural, partidária ou linguística, porque geralmente pensamos com a língua). Veja-se o exemplo da actual cidade de Lisboa: metrópole cosmopolita, multicultural e poliglota, onde se cruzam portugueses, europeus, africanos, asiáticos e norte ou latinoamericanos, sem problemas de maior, à parte o incómodo das suas bagagens de mão, o excesso de actividades comerciais pró-turista e o número de garrafas de cerveja vazias nas mesas das esplanadas, a discutível renovação habitacional dos centros históricos ou as deficiências infraestruturais dos nossos transportes públicos. O mesmo se diria do Porto, a “capital do norte”. Tudo isto é frágil e facilmente reversível, mas não deve ser negado antes que aconteça.
Guerra convencional de baixa intensidade é também a que se vive no Iémen, onde forças Houtis do norte, de tendência xiita, dominam boa parte do território mas são combatidas pelo governo sunita de Áden que beneficia do apoio, agora com reforço aéreo, de uma coligação internacional da mesma tendência religiosa liderada pela Arábia, com pequeno envolvimento dos americanos. A ver se, com o incentivo de Trump, este campo de batalhas não se transforma numa guerra mais permanente, intensa e definida, como aquela que teima em não acabar no Afeganistão entre os intratáveis taliban (sunitas radicais) e a instável aliança tribal que sustenta o governo de Cabul, a quem a NATO tem dado o principal músculo militar desde há década e meia, apesar disso insuficiente para vencer a guerra.  
Os casos de violência política no Paquistão, Indonésia e Filipinas, no arco islâmico do sul do continente asiático; e na Líbia, Mali, Nigéria, Sudão, Somália e outros territórios a sul do Sael, representam a mais bem tipificada actividade guerrilheira levada a cabo por grupos islâmicos radicais (Boko Haram, etc.) em conexão por vezes íntima com meros traficantes de pessoas e mercadorias com as quais realizam lucros pecuniários, sem porém hesitarem no recurso às armas, nas ameaças sobre reféns e outras formas de pressão violenta. Já mais para sul, na África central, os intermitentes conflitos que ali ocorrem derivam as mais das vezes de espoliações e vinganças por gente às ordens de ditadores estatais ou então de animosidades étnicas ou tribais, sob fundo de uma miséria e subdesenvolvimento de populações rurais ou amontoadas em gigantescas periferias suburbanas. 
Numa posição lateral em relação aos cenários de guerra e de terrorismo ou luta subversiva, a contestação juvenil e popular contra o governo da Venezuela evoca o que se passou há poucos anos com as “Primaveras árabes”: embora com os traços típicos das ditaduras sul-americanas (profundamente corruptas mas nem por isso menos sanguinárias, com “jagunços” e esquadrões-da-morte, chefes “de opereta”, etc.), o seu deslizamento para cenários mais graves não está afastado, até porque existe um antigo conflito fronteiriço com a Colômbia e os exércitos de guerrilheiros têm tradição na região. E, embora sem as características da violência estatal, a corrupção da classe política e os protestos da baixa classe média urbana colocam o Brasil na calha para evoluções pouco recomendáveis.   
Por último, falando sempre de ameaças violentas que impendem sobre as cabeças das pessoas, não podemos esquecer a situação no Extremo-Oriente criada em torno do regime político agressivo e anacrónico da Coreia do Norte. Decerto construída com “fugas” da China ou da União Soviética, a capacidade nuclear de Pyongyang já não pode ser ignorada, apesar dos efeitos de propaganda procurados. Os seus esforços parecem concentrar-se agora no veículo técnico capaz de levar a ameaça a terras mais distantes, do outro lado do oceano. Mas, desde já, são os vizinhos coreanos do sul e o Japão os mais directamente ameaçados, desempenhando a China o principal papel de contenção para dramáticas derrapagens na região. Se do lado dos dirigentes comunistas coreanos se conhecem os limites essenciais da sua irracionalidade, o mesmo não acontece agora com o líder eleito do gigante americano, que parece disposto a ensaiar lances de “cheque-ao-rei” face ao seu pequeno desafiador, sempre com a pesada China por perto. Trata-se de novos, inúteis e perigosos “jogos de guerra”.
Todas estas coisas mostram o contraste entre o progresso científico, técnico, económico e cultural que tínhamos alcançado neste início do século XXI e a persistência de formas de guerra e violência que oscilam entre o bárbaro e pós-moderno. Isto parece recomendar-nos uma próxima revisitação do que foi a Europa pré-moderna que nos antecedeu.

JF / 10.Jun.2017

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Crença, cepticismo, lucidez

Mesmo num mundo já em grande medida comandado pela ciência, as crenças estão longe de ter desaparecido, sejam elas religiosas, político-ideológicas, nacionalistas ou de fé em qualquer outro tipo de verdades – indemonstráveis racionalmente mas sempre plausíveis, face à inesgotável imaginação dos humanos. Elas (as crenças), quando partilhadas por muitos, também proporcionam integração comunitária, segurança e satisfação pessoal para os indivíduos assim integrados. Mas quase sempre vêem com desconfiança, ou por vezes mesmo com animosidade, aqueles que não pertencem à sua “fratria”, em especial quando ambas concorrem pela apropriação de certo tipo de recursos, materiais ou simbólicos. As guerras religiosas e as guerras inter-nacionais foram fenómenos extremos destas tensões, mas nem por isso raras nem menos significativas – e também sempre produtoras de sofrimento e destruição. Neste sentido, deve ser saudado o esforço ocorrido na modernidade para, por meio de negociações, tratados e organizações supra-nacionais, superar os antagonismos entre poderes estatais, a benefício de uma ordem mundial mais pacífica e, se possível, mais justa. E devem igualmente ser saudados os passos dados por algumas das grandes religiões instituídas em direcção a um maior ecumenismo, tolerância ou fraternização inter-religiosa.
Hoje, podemos constatar em nossa própria casa o caminho percorrido por confissões religiosas dominantes desde o tempo em que ocorriam matanças anti-judaicas (como o progrom de Lisboa de 1506) até às pacíficas manifestações de fé religiosa como Fátima agora exibiu; e confrontá-lo, em outros lugares, com os morticínios acidentais que que não raro acontecem em Meca, sem hereje por perto, apenas devido ao descontrolo de massas fanatizadas, ou a indignidade dos conflitos inter-religiosos que mesmo agora têm ocorrido em Jerusalém pela apropriação simbólica dos “lugares santos”. Estes são factos que interpelam sobretudo as lideranças dos movimentos religiosos, onde se situam os seus mais altos chefes, os teólogos e os organizadores da cadeia ou estrutura clerical que, no conjunto, funcionam como intermediários entre os crentes e a divindade (e amiúde mereciam ser criticados). Mas isto não explica nem resolve o fenómeno da crença religiosa com que a humanidade se tem confrontado, a partir da dúvida existencial que subsiste em cada ser, enquadrada pelo meio social em que se encontra inserido. A confissão de um “retorno à fé” por parte de uma personalidade culta, inteligente e afirmativa como Clara Ferreira Alves (ver o Expresso de 13.Maio.2017 e também a entrevista já aí publicada a 21.Novembro.2015) tem, nestas circunstâncias, um valor intrínseco que, independentemente de argumentos, críticas ou louvores, deve ser respeitado e suscitar a reflexão de terceiros.
Todo o poder político moderno, particularmente no caso do Estado-nação, coloca em termos semelhantes a relação da “classe dirigente” com os seus cidadãos. O governo democrático – do povo e para o povo – exige necessariamente esse mesmo papel de intermediação, e daí os inevitáveis instrumentos que são os partidos políticos e as consultas eleitorais ou referendárias. Mas, como diria alguém, não há intermediações grátis: não somenta elas têm um custo quantificável mas também desenvolvem interesses e estratégias próprias, que lhes importa conservar e alargar.
Voltemos, porém, à questão da crença para afirmar que nenhuma crença colectiva ou partilhada consegue marcar duradouramente o meio social onde existe se não se dotar dos instrumentos de acção colectiva indispensáveis para alargar a sua influência, subsistir face à evolução dos tempos ou às agressões de que possa ser alvo. E não se pode falar de acção, nesta escala já grandiosa, sem a ela juntar os dispositivos de organização capazes de lhe permitir a continuidade, a regularidade e a normatividade convenientes – isto é: capazes de actuar durante, e permanecer para além, das meras conjunturas. Nestas últimas, imperam a criatividade, as lideranças carismáticas, a resiliência e capacidade de reacção. Para além delas, tem de salientar-se o papel das instituições, que têm tanto de efeitos de congelação dos impulsos e gestas emocionais como, simultaneamente, garantem o papel de regularizadores da vida colectiva e de provedores da previsibilidade de que cada ser humano necessita para sustentar a sua existência e os laços que o unem a terceiros.
O espírito de seita e o antagonismo doutrinário manifestam-se frequentemente nas formações voluntárias de cidadãos. Estas, representam interesses, identidades e visões de futuro diferentes (quer sejam movimentos, sindicatos, partidos ou lobbies), todas legítimas, é certo, mas que se encontram quase sempre submetidas à lógica da luta pelo poder de Estado (ou procuram influir na sua actuação) e por isso se deixam cegar, a ponto de perderem totalmente a noção de bem-comum na sociedade de que fazem parte, seja ela de enraizamento local, nacional ou (hoje) mundial. Pior, claro, é quando no território de um Estado-nação as partes desavindas pegam em armas e instauram uma situação de guerra civil.
Laboriosamente, os estados ocidentais curaram desde há mais de um século de introduzir normas jurídicas regularizadoras dos conflitos guerreiros, para travar ou limitar o potencial de barbárie aí existente e tão conhecida no passado mais longínquo. Porém, parece ter acontecido que as partes beligerantes mais fracas se sentiram impelidas a ignorar as referidas regras, seja violando-as grosseiramente e ridicularizando o seu alcance, seja contornando-as por via da “guerra subversiva”, do “terrorismo” ou actualmente por meio da “ciber-guerra”. É certo que factores como a capacidade económica, os jogos diplomáticos ou as chantagens sobre populações civis sempre estiveram presentes nos conflitos entre poderes soberanos ou fácticos. Contudo, no último meio século foram raras as guerras “regulares” mas inúmeros os conflitos não-declarados, o que poderá dar alguma consistência a esta tese da contemporânea “desregulação da guerra” e da sua nova “mercenarização” e “barbarização”, coexistindo aliás (não por acaso) com o maior e mais completo dispositivo jurídico de protecção da vida humana que alguma vez existiu à face da Terra.     
Ao contrário da crença (ou da fé verdadeira), a hipocrisia comanda muitas vezes expressões verbais e comportamentos gestuais dos indivíduos apenas ditados pelo interesse, a pusilanimidade ou a cobardia. Acontecem também formas de oportunismo colectivo por vezes bem intrincadas com crenças ideológicas. Um exemplo, sem intuitos de melindre pessoal: ouvir o socialista dr. Jorge Coelho, em espaço de grande audiência televisiva e com aquela convicção que lhe é habitual, dizer que a única maneira de um país como Portugal se realizar, para corresponder aos anseios do seu povo, é (cito de memória) “lograr um crescimento económico significativo e de forma sustentada” será apenas um exercício de realismo? ou antes a proclamação de uma condenação sem remissão das doutrinas socialistas (que, se eu não ainda não “endoidei”, se construíram na crítica do regime económico do capitalismo)? ou ainda uma demonstração da hipocrisia a que me referia acima? 

A ciência e a reflexão filosófica resultaram essencialmente da inquietação e vontade de saber. O método científico moderno constituiu a base axiológica sobre a qual se desenvolveu, a um ritmo inusitado, todo o progresso técnico contemporâneo, a economia de mercado capitalista e, por último, o recente (há pouco mais de um século) desabrochamento das ciências humanas. Nessa plataforma epistemológica definitiva (até quando?), a possibilidade de repetição de prova empírica passou a desempenhar um papel crucial, substituível em certos casos por uma acumulação de dados captados na empiria que constituissem indícios convincentes de que uma nova “lei” (regularidade objectiva, não dependente das preferências do cientista) podia ser tomada como verdadeira, porém somente enquanto alguma nova formulação não viesse, pelos mesmos métodos, infirmar aquela verdade.
Este derivação serve-nos aqui apenas para colocar a disposição-de-espírito do cepticismo, não tanto como uma atitude filosófica – cujas origens radicam, como outras, nos Antigos Gregos –, mas antes como uma precaução metodológica acessória ao pensamento moderno que, em última análise, se fundará sobre os pressupostos epistemológicos da ciência que conhecemos e sobre as ilações que podemos eventualmente retirar de uma análise atenta do desenvolvimento técnico-científico-económico-cultural dos últimos dois ou três séculos. Mesmo homens de pensamento e acção como o conservador Churchill ou o anarquista Malatesta (da maturidade) deixaram-nos escritos avisando para a prudência a observar na gestão das resistências ou das mudanças sociais que só podem decorrer da presença nos seus espíritos de uma determinada componente de cepticismo, que diríamos ser de natureza epistemo-metodológica.
Esta, a origem e fundamentação da atitude céptica contemporânea. Mas ela sempre esteve impregnada em muitas circunstâncias da vida dos povos e das relações entre as pessoas, das suas próprias mundividências. Nem no primeiro caso temos de a reverenciar como algo de transcendente ou só ao alcance de uns poucos, nem no segundo se deve desvalorizar excessivamente essa sua difusão entre as largas massas de população. No Ocidente, a esmagadora influência das crenças religiosas cristãs (e judaicas, embora amarfanhadas por aquelas) começou a ser desafiada pelo pensamento iluminista e em seguida pelo desenvolvimento da ciência moderna. O cepticismo, em relação à existência de um Ser Supremo criador do universo e definidor das grandes linhas da sua existência, foi-se naturalmente instalando no espírito dos Homens com apoio nos progressos da ciência mas, sobretudo, devido às comodidades facilitadas pelo progresso técnico e a abundância de produtos a que as sociedades contemporâneas se foram cada vez mais acostumando. Para quem tem hábitos alimentares, a fome é geralmente insuportável e supri-la é a prioridade. Mas quem já está saciado arranja sempre outras formas de focalizar a sua capacidade de inteligência e acção, para o bem como para o mal, podendo então desafiar com mais à-vontade as verdades e as regras estabelecidas.
Mesmo nas regiões do mundo mais arcaicas, a racionalidade instrumental do capitalismo moderno, através da exploração do trabalho ou da apropriação das riquezas naturais ou produzidas, minou a estrutura de crenças religiosas ou animistas de muitos desses povos, ao mesmo tempo que a cultura ocidental percutia de modo mais ou menos frontal as formas mais chocantemente desiguais da sua organização social (submissão feminina, poder tribal, escravização, etc.). Deixou muitas vezes o deserto e o desamparo – e talvez as raízes de uma atitude céptica –, mas não se pode dizer que se tratou de uma mera operação de expropriação imperialista dos mais fracos: ao lado da vantagem económica, seguiu a missionação evangélica para “a salvação das almas”, que foi de par com a difusão iluminista de algum saber erudito, com a alfabetização e com a higienização dos corpos e dos espaços habitacionais. As ideias emancipalistas também brotaram deste back ground.                
O verdadeiro cepticismo não pode ser confundido com um cepticismo trapaceiro, maneira popular de referir a atitude tipológica do cinismo – não a defendida por certos filósofos Gregos amantes da virtude, mas antes a propugnada por analistas e teóricos do poder como foi o notável renascentista Maquiavel.

Tocamos aqui, ao de leve, a terceira posição que procuraríamos explorar, a da lucidez.
Não ser crente, mas ser capaz de compreender e interpretar as razões das crenças, pode ser um passo na direcção da lucidez. Controlar o cepticismo inerente ao espírito científico sem cair no cinismo ou na depressão psicológica ajudará decerto à aquisição de um estado de lucidez que só poderá enriquecer-se com quantos maiores contributos puderem ser apropriados no âmbito do conhecimento da história e nos domínios da cultura. Neste ponto, é também muito instrutiva a leitura de um sintético mas felicíssimo artigo de opinião da autoria do universitário João Paiva, enganadoramente intitulado “A apologia da ciência e a inutilidade das artes e das humanidades”, que foi ontem divulgado (Público, 1.Junho.2017).
Mas não se iluda o lúcido, nem aqueles que o queiram admirar ou imitar. A lucidez não traz felicidade e talvez aproxime do inferno. Sobretudo, para que possa com mais impacto transmitir-se a terceiros, faltam-lhe as armas decisivas da acção e da organização. E geralmente, como se diz em linguagem corrente, sobra-lhe o defeito de, porventura, “ter razão antes do tempo”.

JF / 2.Jun.2017

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