Contribuidores

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Acerca da situação política

“Bagdad em Paris!” – era a sensação que podia viver-se naquela noite de sexta-feira 13 de Novembro dos inacreditáveis atentados terroristas perpetrados pelos fanáticos do islamismo político. Até há algumas décadas atrás, havia as guerras que se passavam nas “frentes” e a vida que continuava a viver-se nas “retaguardas”, com os seus conflitos, roubos, amores e desamores, mais os aplausos ou os apupos dirigidos aos combatentes ou aos seus mandantes. Hoje, essa distância espacial e psicológica desapareceu. A guerra, agora intermitente, é “aqui”, quando as vítimas e os estragos podem ser nossos, e todos podem seguir “em directo” a representação animada, com escassa montagem, de várias carnificinas.
Além destes factos horríveis, a situação político-social na Europa, em geral,  vai muito complicada, mas disso nos ocuparemos em breve.
Agora, sobre Portugal: mais uma vez me enganei nas previsões políticas que ousei fazer no dia seguinte às eleições de 4 de Outubro. Manifestamente, a minha racionalidade não é a mesma dos actores partidários. O PS e António Costa conseguiram, numa cambalhota difícil de prever para um observador de-fora-do-sistema, “unir a esquerda”, ainda que este governo fique, de certa maneira, a prazo, à espera de uma crise interna ou de um abanão vindo do exterior; que não da nova oposição parlamentar, que vai ficar numa espera atenta, que até pode passar por um processo de integração do CDS e do PSD se a tanto levarem as ambições pessoais das suas lideranças. Há medidas socialmente interessantes neste programa de esquerda mas o risco é grande de que acabe por deixar o país financeiramente mais encravado e politicamente numa situação ainda mais difícil ou bloqueada, favorecendo uma próxima nova maioria absoluta do centro-direita, sobretudo se o Presidente da República der uma ajudinha.
Mas não há dúvida que tal reviravolta foi uma novidade em quatro décadas de vida partidária democrática. A prazo, poderá vir a ter o efeito útil de amarrar o velho abencerragem comunista e o “esquerdismo organizado” às responsabilidades políticas de uma governação nacional e, por essa via, introduzir mais alguma racionalidade nos seus comportamentos. Porém, simultaneamente, é o papel tribunício destes partidos-de-protesto que começará a ser posto em causa e, assim, a abrir a porta ao aparecimento de novos pólos de atracção para os seus partidários e simpatizantes, seja à esquerda ou à direita, com idênticas características de seguidismo comunitário e afirmação vindicativa. É lícito pensar que, por exemplo, o forte PC francês (parecido com o nosso em muitos aspectos) começou a sua débacle após a experiência governativa do Programa Comum gizado por Mitterrand: a sua força eleitoral eclipsou-se e em boa parte foi inchar o outro nacionalismo disponível: o da extrema-direita. Por isso mesmo se viram agora todas as reticências a um tal comprometimento com as políticas estatais por parte do partido ainda liderado por Jerónimo de Sousa (e os “p’tanto’ das suas bengalas de expressão oral) mas já animado por gente de outra geração embora com a mesma vinculação mental aos procedimentos férreos do “centralismo democrático”. E se o Bloco de Esquerda (a quem alguns profetizavam uma inevitável re-grupusculização mas que inaugurou a moda de começar a falar para “as pessoas” criando assim uma nova categoria política) – se o Bloco, dizíamos, continuar a crescer, enfraquecendo o PC e a ala esquerda do PS, será sob a forma de um neo-populismo canhoto onde, com bandeiras vermelhas e punhos brandidos, se acolhem os militantes de todos os vanguardismos sociais e culturais, os meros protestantes de sempre e os desiludidos de muitas crenças ou expectativas, em clima de depressão económica.
É certo que a manobra política de António Costa revelou coragem, assunção do risco e inteligência táctica, sendo certamente um exercício interessante de observar, se se tratasse apenas de uma experimentação de laboratório “ao vivo”. Mas acontece que é sobretudo o destino a médio prazo de uma comunidade nacional que está em jogo, o que dificilmente autoriza que ele se decida sem a assunção de todas as pesadas responsabilidade que isso acarreta. No caso do dr. António Costa, que acabara de registar um claro insucesso eleitoral e sentia já “a corda no pescoço” face aos seus partidários e eleitores, ser-lhe-ia sempre difícil convencer muita gente de que esta “saída” não era sobretudo ditada por um instinto de sobrevivência. Agora, fica obrigado a “ter sucesso”.
Esta governação de esquerda durará talvez meses, talvez anos, mas (se lá chegar) deverá viver a sua situação mais crítica entre o ano 1 e o ano 2 do seu mandato, quando os efeitos económicos da nova linha política começarem a fazer-se sentir em toda a sua extensão e ainda não for o caso de tentar planear eleitoralmente um final de legislatura satisfatório para todas as partes envolvidas (o que será sempre dificílimo porque concorrem todos sem piedade na mesma área eleitoral, e o PS em duas).  Além disso, se houver então um Presidente do centro-direita, o governo de esquerda terá de contar aí com um opositor inteligente e mefistofélico.  
Quando se concluir um dia este processo, os juízos avaliativos da actuação do líder Costa poderão variar entre a “genial” manobra para finalmente encalacrar os partidos à sua esquerda, culpando-os (sobretudo ao PC) por esta operação abortada ou interrompida e travando o esvaziamento do eleitorado do PS mais sensível ao discurso “unionista”, e a crítica de que aquilo que mais aproximou a esquerda nesta conjuntura foi o rancor à direita e às medidas de necessidade por ela implementadas, sendo que, neste caso, se poderá dizer que a decisão ideológica e estratégica do PS agora tomada deveria ter exigido sempre (politicamente) uma decisão tomada em congresso, e não sob a forma de negociações secretas de que ouvimos falar durante um mês – aliás em evidente contraste com a “transparência” e a “participação aberta” dos procedimentos que tinham sido postos em marcha aquando da ofensiva de 2014 de “costistas” contra “seguristas”. Como tal não foi feito, ou já o será tarde demais, o risco é, uma vez mais mas talvez mais do que nunca, o fraccionamento do PS.    
Mesmo entre as pessoas-que-pensam na área do centro-esquerda, as divisões e desconfianças perante este caminho seguido pela direcção do PS manifestaram-se publicamente: lembre-se as claras tomadas de posição contrária de António Barreto (em entrevista à RTP-Informação a 21.Out.2015), Francisco Assis (Público, 22.Out.) ou Miguel Sousa Tavares (em várias intervenções, incluindo no Expresso de 24.Out.), contrastando com as diferenças de tom, mas sempre apoiante, percebidas nos artigos de Maria de Lurdes Rodrigues e Paulo Trigo Pereira (saídos no Público, respectivamente a 17 e 19 do mesmo mês). Falta-nos saber o que terá andado a segredar aos seus amigos o dr. Mário Soares.
Porém, aquilo a que até agora, e mais uma vez, assistimos não foi bonito nem edificante. Todas as jogadas negociais e sucessivas declarações públicas dos diversos actores (mais as respectivas explorações editoriais) mostraram também a pior faceta do negocismo político, sempre a jogar em vários tabuleiros simultaneamente e a tentar seduzir hoje um, para o pressionar amanhã, a esconder aqui o que se revela acolá. Enfim, a mostrar competências aprendidas em Maquiavel (com excepção do assassinato físico) na sua luta sem quartel pela ocupação do poder de Estado. Estamos num jogo em que só há adversários e antagonismo, as colaborações ou alianças são apenas temporárias, a lealdade é inexistente e os perdedores totais (a população) estão fora deste tabuleiro. Esta apreciação aplica-se à coligação PSD-CDS e aos outros partidos mas, pela especificidade da situação criada, foi a direcção do PS que mais se evidenciou no à-vontade com que se exibiu neste domínio. Por onde andou o “superior interesse nacional” reclamado pelo Presidente Cavaco Silva? 
Agora, veremos o que vai passar-se. O acordo de esquerda sobre o programa de governo do PS cingiu-se essencialmente à matéria económica e a alguns actos simbólicos muito celebrados pela “nova esquerda” ou garantidores do poder do PC em algumas áreas específicas. Contempla certas medidas de indiscutível relevância social mas aposta sobretudo no aumento do rendimento disponível das classes médias e populares para alargar o mercado interno, baixar o desemprego e animar o crescimento. Veremos se essa animação não irá desequilibrar de novo a balança comercial, aumentar o endividamento e, sobretudo, se o acréscimo da despesa pública não vai acabar por furar o tecto de 3% para o défice orçamental sem que se tenha conseguido baixar de forma significativa o nível da dívida pública. Como é uma questão de crença e expectativa, acreditem os crentes e deixem os incrédulos apenas desejar que corra bem! Mas é muito duvidoso que, politicamente, Costa consiga fazer sobreviver um governo com este programa deixando os seus parceiros de mãos livres para fazerem todo o chinfrim que lhes aprouver.
Além disto, os constrangimentos externos e estruturais da economia e da sociedade portuguesas são muito fortes e baralham as etiquetagens políticas tradicionais. Quem é “liberal” nos dias de hoje? A coligação de direita que governou nos últimos quatro anos privatizando certas actividades públicas, mas que realizou um “brutal aumento de impostos”? Ou a política de ciência do tempo dos governos PS apostando que a concorrência geraria a capacidade de crescimento dos melhores centros de investigação, em vez de seleccionar os sectores mais capazes de modernizar da economia? Um George Orwell deveria saber encontrar novas fórmulas de entendimento destes desajustamentos conceptuais!
A “crispação” esquerda-direita parece de facto estar a transmitir-se dos topos da política mediática para as bases militantes e uma parte dos eleitorados. É uma situação desagradável, que faz lembrar o que se passou em Portugal no início de 1915 com pretextos no cumprimento, ou não, dos preceitos constitucionais, quando a envolvente internacional se tornava mais premente, e que acabou então numa sangrenta insurreição político-militar no mês de Maio seguinte, o das flores. Oxalá nunca mais voltem esses tempos! Mas, então como agora, o desempenho do Presidente da República deixou muito a desejar – por inabilidade, no primeiro caso; por incompetência e auto-suficiência mesquinha, no segundo – sendo lícito interrogarmo-nos sobre a bondade da actual arquitectura constitucional, também neste particular. 
Os actores partidários e comentadores estão sempre a interpretar os resultados eleitorais quando afirmam sem pestanejar que ganharam estes e perderam aqueles. De facto, só com a AD em 1980, o PSD em 1987 e 1991, e o PS em 2005, uma afirmação de vitória poderia ser admitida, perante as maiorias absolutas então alcançadas. Desta vez, só podemos constatar que foi a aliança PSD-CDS que obteve, não uma vitória, mas apenas o maior número de votos e de deputados; e os outros partidos, ainda menos. Se daqui decorre uma inextricável situação política donde não é consensual quem deve governar – com pesadíssimas consequências para todo o país –, dever-se-ia logicamente questionar de novo o tipo de regras constitucionais e legais que permitem e geram tais situações. E mudá-las de modo a que isso não possa voltar a acontecer. De quem é a responsabilidade de tal quadro legal, se não dos partidos que há quarenta anos ocupam todo o espaço do poder?
Acresce que estas dificuldades de entendimento parecem hoje ser menos determinadas por convicções ideológicas inconciliáveis do que sobretudo por dois tipos de lógicas, ambas internas ao sistema de partidos e excludentes de um maior interesse e participação dos cidadãos na vida pública: por um lado, a especialização e profissionalização das elites partidárias neste tipo de “saberes”, golpes e armadilhas; por outro lado, o apetite pelos lugares de poder, de onde alguns (muitos?) podem vislumbrar oportunidades de ganhos económicos pessoais, à boleia dos grandes contratos públicos, de decisões que afectem as muito grandes empresas ou de futura disponibilização (em privado) de conhecimentos adquiridos – seja em termos quase-imediatos ou a mais longo prazo, após a cessação dos respectivos mandatos (e não estamos a falar aqui necessariamente de corrupção ou de situações ilegais). Lembremo-nos de Valentim Loureiro, Carlos Melancia, Ângelo Correia, Cardoso e Cunha, Miguel Cadilhe, Joaquim Ferreira do Amaral, Álvaro Barreto, Fernando Nogueira, Mira Amaral, Oliveira Costa, Dias Loureiro, João Cravinho, Pina Moura, Murteira Nabo, Faria de Oliveira, Duarte Lima, Jorge Coelho, Fernando Gomes, Armando Vara, Luís Amado, Isaltino Morais, Nogueira Leite, Vítor Ramalho, Celeste Cardona, Nobre Guedes, Miguel Relvas, Marques Mendes, José Luís Arnaut, Luís Filipe Pereira, António Mexia, Bagão Félix, Mário Lino, Manuel Pinho, José Sócrates, Miguel Macedo – eis uma colecção de figuras da nossa plêiade governativa que, entre outras, correspondem a esta perigosa simbiose entre elites políticas e económico-financeiras, existindo provavelmente na opinião pública arreigadas desconfianças de que nem sempre todos tenham agido em prol do bem comum nacional.
Que diabo! Dada a situação periclitante do país, se este “bem comum” estivesse minimamente presente nas preocupações dos dirigentes, não seria possível um acordo entre as principais forças políticas, não para governar em coligação ou dar “carta branca” ao executivo, mas para se entenderem por espaço de duas legislaturas no que toca às grandes linhas da política externa, ao progressivo reequilíbrio das contas públicas, à sustentabilidade da segurança social e numa reforma do sistema político (que tão carecido está dela)? E que em matérias mais controversas ou divergentes (como o modo de relançar a economia e o emprego, melhorar a educação e a saúde pública, ajudar os mais desprotegidos ou apoiar a cultura) se pudesse beneficiar da abstenção do partido oposicionista, e não fazerem tudo ao contrário logo que chegam ao poder!? Com tantos outros temas onde os partidos poderiam contrapor-se, aplicando-se a posição maioritária e alterando-a logo que fosse possível… – seria isto pedir demasiado? 
Deste tipo de observações críticas dirigidas ao sistema político-partidário que temos, pode imaginar-se que estaríamos a justificar ou a “abrir a porta” a uma qualquer intervenção não-democrática (autoritária e liberticida) na esfera do poder político. Pelo contrário, é porque detestaríamos qualquer desenlace deste género que tomamos posição (ineficaz, porque sem qualquer eco na “opinião publicada”) em favor de alterações profundas do constitucionalismo em que vamos vivendo. Do que não temos grandes dúvidas é que, se existissem forças anímicas profundas – nas instituições armadas do Estado ou num movimento de cariz político fascizante –, o trânsito actual da 3ª República acabaria a prazo mais ou menos breve num golpe-de-Estado. Felizmente, não existem essas forças (graças à “vacina” do salazarismo) e a tão decantada União Europeia ainda é para nós um “cinto de segurança” contra tais aventuras. Mas, a médio prazo, não estamos imunes ao surgimento de um populismo-de-direita “justicialista” que, com fundadas acusações à degradação interna e às ameaças externas, tome medidas gravosas para o convívio pacífico e a liberdade dos cidadãos. É ver, como anúncio, o que se passa em países como a Hungria ou a Polónia, ainda marcados pelos regimes ditatoriais-de-partido a que estiveram sujeitos.  
Com a tendência imparável para a personificação e espectacularização mediática que atinge hoje a vida política (como a música, o cinema, o desporto, a cultura, etc.), torna-se ainda mais difícil para o cidadão comum entender, discutir e opinar sobre o presente e o futuro da sociedade a que pertence. Tudo o empurra para ser ferrenho do Passos ou do Costa, do Ronaldo ou do Messi, ser acérrimo defensor do Papa ou crítico do Obama. Enquanto este “pão e circo” entretém as massas, são centenas de milhares de estranhos que rumam à Europa em terríveis condições sem que os dirigentes desta se mostrem capazes de pôr em marcha uma resposta à altura das circunstâncias, tendo em conta a urgência, mas também acautelando o futuro. E não bastam, neste caso, os esforços da sociedade civil, que são todavia benfazejos e indispensáveis. Veja-se o caso da Amnistia Internacional (que me orgulho de ter ajudado a fundar em Portugal, e de cuja alteração de mandato discordei há duas décadas atrás), que foi quase a única entidade a mobilizar vontades em apoio aos presos de consciência em Angola.
A nossa condição de cidadãos portugueses e, com menor força, da União Europeia autoriza-nos – melhor diria, obriga-nos – a exigir a existência de mecanismos de controlo da representação política eficazes e ajustados ao nosso tempo, e dos representantes eleitos contas claras das decisões que tomam em nosso nome. É tudo isso que vai faltando bastante.
JF / 25.Nov.2015

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

A superioridade relativa da cidadania burguesa

As instituições políticas criadas pela Modernidade no Ocidente e que ainda hoje perduram e regulam parte das nossas vidas foram, no essencial, forjadas ao jeito dos interesses colectivos da burguesia. Burgueses eram originariamente os que habitavam nos burgos, nas vilas e cidades, mas como aí não era possível viver da agricultura, da pastorícia ou da guerra, os residentes (fora os servidores-de-quem-quer-que-fosse e os miseráveis) dedicavam-se necessariamente ao comércio, à produção artesanal e, pouco a pouco, à exploração da propriedade. Daí a assimilação de burguês-citadino a burguês-possuidor de bens. No século XIX, com a queda dos Antigos Regimes aristocráticos e a ascensão política e económica da burguesia, o termo foi ganhando uma conotação cada vez mais negativa e fixada sobre a ideia de posse, de apropriação ou mesmo de roubo legal. Mas isto – ingrediente da legitimação das nascentes ideologias socialistas e operárias – era esquecer que o ethos económico dessas classes sociais não era tanto marcado pela herança e a taxação (de que vivia a nobreza, mais os factos de guerra que lhe fossem favoráveis), antes pela iniciativa, as decisões, o risco, o investimento e o lucro daí adveniente: de certa maneira, era uma lógica de acção que apostava no trabalho bem recompensado, na indústria, no industrioso criador (e distribuidor) de riqueza e não apenas na figura do rentier que fica passivo à espera de usufruir algo doque outros lograrem amealhar.
Num certo sentido, a burguesia foi aliada do Trabalho (assalariado ou autónomo), mesmo quando explorou em termos económicos os trabalhadores: fornecendo emprego e rendimento certo (contra o aleatório da agricultura), comprando e vendendo mercadorias mais baratas, estimulando o crescimento das economias. Mas, atenção! Houve também muitos patrões que extorquiram dos seus assalariados mais do que eles podiam produzir e pagaram matérias-primas “ao preço da chuva”; a concorrência económica inter-pares foi por vezes feroz (embora menos mortífera do que os antagonismos aristocráticos ou tribais); houve gente rica que se distinguiu pelo esbanjamento e o consumo ostensivo que ofende e humilha os desgraçados e usou da sua capacidade financeira para corromper ou comprar o que lhe era adverso; e houve um sector da burguesia que, manipulando os valores monetários e financeiros, especulou, se apropriou rapidamente de grandes fortunas e não hesitou em esmagar economicamente todos aqueles que levantavam obstáculos aos seus interesses, fossem eles concorrentes burgueses, aristocratas em perda ou populações desprovidas de bens próprios.
Ao longo dos séculos XIX e XX o livre-cambismo triunfou sobre os proteccionismos, com vantagens para todos e especialmente para os núcleos estatal-capitalistas mais poderosos. Neste processo, os trabalhadores assalariados pagaram o tributo mais caro mas souberam unir-se, resistir e finalmente impor limites e condições, beneficiando também do crescimento da riqueza produzida; mas, incapazes de agirem por si próprios, entregaram o seu destino colectivo nas mãos de uma classe de representantes/intermediários (sindicais, partidários e finalmente estatais) que criou e alimentou interesses próprios. As economias de mercado expansivas, com predomínio dos interesses do capital, ajustaram-se transitoriamente às condições políticas e culturais existentes na Europa e no mundo (monarquias, religiões, tribalismos); compatibilizaram-se depois com poderes guerreiros e despóticos entretanto surgidos; mas tenderam a fazer alastrar um figurino liberal-democrático propício à sua reprodução alargada, isto é, envolvendo sempre mais populações até então vivendo à margem ou em autarcia: free markets and free minds. São os princípios ideológicos em que assenta o nosso mundo desenvolvido actual, onde convergiram contributos da tradição judeo-cristã, do utilitarismo britânico e dos iluministas franceses, sobre a base do conhecimento técnico-científico moderno e da expansão industrial, a saber:
-Tudo o que não é proibido, é permitido, é lícito. É este o fundamento da liberdade que conhecemos;
-A minha liberdade não pode sobrepor-se à liberdade dos outros;
-A sociedade tem as suas próprias dinâmicas; a lei governamental só deve interferir nelas, criando interditos e penalizações, para evitar maiores conflitos ou para impor uma razão superior de bem comum;
-A igualdade das pessoas perante a lei procura assegurar uma compatibilização deste valor com o da liberdade (que, sendo dinâmica, gera necessariamente novas desigualdades);
-Deve haver uma separação clara entre a esfera privada (intimidade, sexualidade, família, religião, consciência, criatividade, devaneios, “negócios”, etc.) e a esfera pública-legal (registo civil, direitos de propriedade, comércio, impostos, justiça, sanidade e segurança);
-Existirá um modo de governo tendo por base a escolha livremente expressa da maioria dos cidadãos, tempestivamente revogável e limitado pela lei;
-Nenhum povo politicamente organizado deve poder impor a sua vontade discricionária a um outro povo. E a guerra é um último recurso de defesa colectiva;
-As instituições do Estado-nação foram pensadas para regular a vida social, exigindo-se a “separação de poderes”, o “monopólio da violência” (pela polícia e o exército nacionais), a independência da justiça e o socorro urgente aos mais necessitados, o que deveria impedir a tirania, prevenir as revoltas e evitar a desordem. Na ordem externa, prima a igualdade formal dos Estados-nação;
-Porém, esta construção de equilíbrios, controlos e compensações (checks and balances) – feita por teóricos e políticos constituintes – não levantou a suspeita de que pudesse vir a permitir uma concentração de poder de tal magnitude que fosse apetecível e apropriável por um disciplinado grupo restrito da sociedade: seja de poder pessoal (ditatorial), seja de “partido único”, seja ainda de uma oligarquia de formações sectárias concorrentes entre si mas fundamentalmente de acordo para garantir essa sua posição de privilégio social. A história mostrou que isso era possível;
-A governação do Estado-nação presta-se bem à consumação deste desígnio; mas quando os seus limites são transbordados, a guerra entre nações torna-se um risco sério. Contudo, é esta compartimentação territorial aleatória (modelada pela história) que também cerceia hoje as megalomanias de um poder ainda mais extenso, imperial;
-É aqui que se levanta a questão da formação, exercício e controlo do poder político que os anarquistas do passado pensaram resolver através da “socialização do Estado” (eles diziam, em sua linguagem provocatória, “abolição do Estado”) mas foram vencidos nas tentativas de a pôr em prática, talvez generosas mas também desajustadas ou desastradas. Hoje, nas condições de mundialização existentes, parece ser importante tentar de novo responder a este desafio;
-Mas a história actual também vem mostrando que existe o perigo real da desestruturação violenta de uma sociedade a partir da implosão ou desmembramento do Estado. Para países de grande extensão ou diversidade cultural, o modelo federal oferece alternativas viáveis. Mas nem isso pode ser suficiente para resistir a uma estratégia visando criar intencionalmente uma situação de desagregação e descontrolo, ou àquelas dinâmicas de sucessivos erros e omissões que conduzem os povos ao desastre;
-A existência de instituições mundiais (umas, derivadas dos Estados-nação, outras de natureza não-governamental) foi um passo positivo e necessário para a regulação da vida no planeta e para assegurar a sua sustentação e o progresso humano. Há que esperar delas novos contributos.
No entanto, tudo isto se pode perder repentinamente numa chaga de dor… ou na in-cons-ciência.
Uma questão final: será que os exageros “neo-liberais” que terão atirado o Ocidente e a Europa para a estagnação actual (esta última com a ajuda de uma social-democracia “mãos largas”) também já estão a atingir a China (e necessariamente os outros “BRICS”), fazendo entrar a economia global numa crise mais geral? Porém, nem por isso deverão exultar os apóstolos da esquerda estatista perante este aparente reconhecimento das suas teses, pois se é certo que o Estado pode disciplinar a concorrência, impedir os monopólios e sobrepor razões sociais à mera racionalidade económica, também é verdade que as suas decisões discricionárias podem corresponder mais aos desígnios próprios dos “ocupantes do Estado” do que ao interesse geral da sociedade, ainda que aqueles sejam eleitos democraticamente. Ao que, na situação presente, devemos acrescentar o silogismo seguinte: se há países onde a razão-de-Estado se impõe absolutamente, entre eles está certamente a China; e se são os excessos do crédito que estão a levar a China à crise financeira e económica – então, esta última deriva de causas para as quais o controlo estatal é impotente.
JF / 9.Nov.2015
(Dedicado ao meu amigo A. J. Azeredo Lopes e às suas preocupações sociais)

Arquivo do blogue