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sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Um balanço do ano

A cimeira das Nações Unidas de Novembro último em Varsóvia sobre as alterações climáticas saldou-se por resultados pouco animadores. Como é frequente nestes ambientes diplomáticos, um compromisso de última hora impediu que os noticiários falassem em fracasso, mas nem as ONG’s lamentaram ter-se retirado antes do final nem os comentadores mais bem informados interpretaram o esforço como algo mais do que um adiamento para 2015 dos problemas mais difíceis. Grandes países como os Estados Unidos e a China continuam a ser os maiores emissores de gases nocivos para a atmosfera; outras potências em ascensão não querem ver travados os seus processos de industrialização mais ou menos “suja”; e apenas a Europa parece fazer aquela figura da velha senhora virtuosa de quem afinal todos conhecem o seu passado pouco recomendável. E, no entanto, os cataclismos naturais vão-se integrando cada vez mais na realidade do nosso quotidiano, muito para além daquilo a que exploração do tema pelo cinema de Wollywood nos habituou. O tsunami que varreu o oceano Índico ou o maremoto que provocou o acidente nuclear de Tukushima há poucos anos atrás foram originados por fenómenos geológicos que nada terão a ver com o clima. Mas o furação que inundou a cidade de New Orleans ou o tufão de incrível violência que agora se abateu sobre parte das Filipinas – para já não falar da tempestade que assolou ultimamente a Sardenha e daquelas que vêm fustigando os continentes europeu e americano fora das regiões tropicais, ou ainda dos “tornados de Verão” nas mesmas zonas –, são acontecimentos que parecem dar razão àqueles que ligam estes fenómenos climáticos extremos aos impactos de longo prazo provocados pela industrialização e pelas gigantescas concentrações urbanas de que a humanidade foi já a responsável, no último século-e-meio.
Algo de semelhante – positivo mas muito aquém do desejável – se poderá dizer sobre o acordo saído da conferência de Bali da Organização Mundial do Comércio, um lugar de encontro universal que é hoje de extraordinária importância para a situação económica e social dos povos do planeta e onde a confiança entre os actores, neste caso os governos nacionais, é ainda frágil e insuficiente. 
A transmissão de liderança na Igreja Católica teve foros de absoluto ineditismo. E o novo Papa Francisco tem porfiado em manter os pequenos passos que transmitem a sensação de que ele está bem consciente da dimensão gigantesca dos problemas que a sua congregação hoje enfrenta, interna e externamente. Quem cá estiver daqui a vinte ou trinta anos poderá apreciar se os católicos estarão então mais unidos ou desavindos entre si, decerto conforme o vigor e veracidade da sua fé, mas também certamente em função do modo como se tiverem posicionado perante as encruzilhadas do mundo contemporâneo. A crítica explícita feita pelo Papa ao “capitalismo sem alma” é tanto destinada a dar alento aos pobres e às vítimas da actual crise económica como a procurar alinhar a Igreja entre as forças sociais que podem influenciar uma próxima reorganização do mundo e, a esse título, constitui também um recado para dentro do seu próprio “rebanho” e alguns dos seus pastores.
E quem saberá explicar as razões da ausência do Dalai Lama nas cerimónias fúnebres de Nelson Mandela?
E como se vai construindo a identidade cultural internacional daquela já imensa minoria de jovens adultos que trabalham em países diferentes de onde nasceram e foram socializados, realizando agora, aqui ou acolá, actividades profissionais locais ou “abertas ao mundo” pela Internet? Não se trata de uma nova religião (por ausência de qualquer laivo de espiritualidade), mas é provável que, face às tradicionais culturas nacionais, se estejam gerando uma “ideologia da comunicabilidade” e forjando novas identidades comunitárias, com o que de bom e de mau isso possa significar.
Nos Estados Unidos da América, o segundo mandato do presidente Obama continua enredado nos meandros e armadilhas da política interna e nas cautelas defensivas face aos desafios a curto e médio prazo que lhe vêm do exterior. Embora se tenha dito que a paralisação da administração pública de Outubro tenha acabado com um efeito de boomerang, não é certo que a radicalização do “tea party” no campo republicano esteja prestes a perder fôlego e não possa relança-se oportunamente num novo lance arriscado da confrontação entre Obama e os seus opositores. Na emblemática reforma dos seguros obrigatórios de saúde para os deserdados da economia e do muito competitivo sistema social americano o presidente já teve que conceder vários ajustamentos aos seus adversários, que não querem acrescentar novos encargos à despesa pública e que se recusam a reconhecer que a população já não é apenas a descendente dos “velhos colonos” nem das comunidades europeias fugidas da opressão ou da miséria e desejosas de se integrarem, enquanto tais, no melting pot da nação americana.
A sociedade americana é hoje um espelho e o mais avançado exemplo das sociedades multi-étnicas e multi-culturais que se vão construindo por todo o mundo, naturalmente com as características específicas das suas origens e da sua própria evolução, mas agindo e comportando-se em ambientes urbanos – isto é, inteiramente organizados pela mão humana –, no meio de sinais omnipresentes de abundância económica e de constantes inovações técnicas, onde um número crescente de indivíduos aspira não apenas a alguma ascensão social mas também a ter uma palavra a dizer sobre as decisões que modelam o sentido da vida colectiva em que estão inseridos. Isto está a pôr em causa a legitimidade e a organização do poder político dos países, onde os regimes democráticos se constituem como modelos inultrapassáveis e nos quais as populações mais instruídas e economicamente confortáveis se revêem mas, simultaneamente, as intermediações partidárias e algumas das suas práticas políticas (eleitoralismo, demagogia, carreirismo, conluios de interesses, corrupção) se vão tornando obstáculos ao que é a essência da democracia: a participação dos cidadãos no governo da sua nação.
Ora, apesar da aparente solidez do seu sistema bi-partidário, os Estados Unidos parecem estar a viver um período de enfraquecimento da solidariedade política nacional, não conseguindo negociar as suas divergências sobre as finanças da União, ao ponto de fecharem temporariamente uma parte significativa dos serviços públicos, cenário que pode vir a repetir-se já no início do novo ano. E não se sabe até quando a política financeira e monetária seguida nos últimos anos conseguirá os necessários consensos para ser mantida, um tópico que pode ser objecto de pressões internacionais, nomeadamente no quadro das relações bilaterais com a Europa, com os países emergentes e principalmente com a China. Fica então a pergunta sobre se as oposições caseiras suscitadas pelo presidente Obama não serão, no fundo, derivadas de velhos ressentimentos alimentados no “yankismo” mais tradicional, ou se, pelo contrário, serão sinais anunciadores de um período de declínio e retraimento externo em que aos seus governos interessará principalmente conservar o nível de bem-estar a que a sua população se habituou no último meio-século.
Em tal quadro, a construção europeia vive um período de grandes hesitações. As eleições alemãs deram o que se esperava. Os partidos eurocépticos, nacionalistas e xenófobos recrutam e aumentam as suas votações em diversos países, havendo já grande expectativa sobre a composição ideológica do próximo parlamento europeu. Mas, mau-grado a crise económica e financeira que grassa na Europa, países como a Ucrânia vêem as fracções mais modernas das suas sociedades baterem-se nas ruas para uma maior aproximação a este espaço de liberdade e bem-estar, repudiando uma tutela russa de que têm amarga memória. Será – com toda uma outra experiência história – também o caso da Turquia, aqui entre o cansaço de uma tutela militar autoritária (que todavia impôs o laicismo) e o espectro de um retorno a uma cultura islâmica vista como retrógrada. Além da reconsideração da sustentabilidade económica do seu “modelo social”, face ao mundo actual (que poderá obrigar em breve a uma dificílima revisão dos tratados), esta questão da abertura da União Europeia ao que resta do Leste pós-comunista e ao ex-império otomano (com reflexos inevitáveis em toda a Ásia Menor) é provavelmente a decisão política mais crucial que ela terá que tomar, como sempre com enormes riscos de fracassos e efeitos perversos mas também com oportunidades para tentar um novo reequilíbrio das tensões mundiais e dar ao mundo um exemplo de superação dos velhos antagonismos nacionais.
Neste Outono, os suíços recusaram em referendo (por 65 contra 35% dos votos expressos) uma proposta de lei para limitar os vencimentos mais elevados a 12 vezes o mais baixo salário praticado na mesma empresa. Sabemos que é discutível a legitimidade e o efeito deste plafonamento das remunerações de trabalho numa economia que vive essencialmente da sua expansão ou crescimento (e havendo, como há, sistemas fiscais de base progressiva que procuram obter uma mais justa redistribuição dos rendimentos no plano nacional). Mas também há quem sustente que uma das causas das dificuldades actuais da economia mundial está no excesso dos ganhos que os níveis superiores da classe dos gestores das grandes empresas (multinacionais) conseguiram impor aos próprios accionistas, mediante o uso de diversos mecanismos muito sofisticados e a manipulação da informação privilegiada a que só eles têm acesso (fenómeno que Galbraith antecipou desde os anos 60 com a noção de “tecnoestrutura”). Nestas condições, uma imposição de limites deste tipo poderia ter resultados interessantes, com reforço da solidariedade interna por virtude de uma maior visibilidade das contas e uma distribuição mais equitativa dos frutos do trabalho colectivo da empresa. Por tais razões (e sendo nós aqui sobretudo interrogativos), suscita-nos as maiores dúvidas a argumentação usada por J. C. Espada (“Referendo na Suíça: uma nobre lição democrática”, Público, 2.Dez.2013) quando escreve: «[O combate à pobreza] não reside fundamentalmente na distribuição igualitária da riqueza já existente, nem na captura de mais impostos, mas crucialmente depende da criação de mais riqueza. A riqueza não é um stock fixo que deve ser distribuído igualmente. É um fluxo – que pode aumentar, ou ficar estacionário, ou pode diminuir. A chave para melhorar a condição de todos, a começar pelos mais pobres, é que o fluxo possa crescer. E para que o fluxo possa crescer, é necessário que as pessoas que querem ir mais longe acreditem que poderão obter frutos do seu esforço criador. Neste sentido, a criação centralizada de tectos salariais é um incentivo contrário à criação de mais riqueza.». De facto, a riqueza deve ser vista como um fluxo, mas isso nada nos diz quanto ao modo da sua distribuição, que tanto pode concentrar-se privilegiadamente em determinados patamares desleixando os sectores mais atrasados (como terá acontecido durante o último século entre as nações industriais e o mundo “sub-desenvolvido”) como pode ser assegurada de maneira mais equilibrada mediante diversas formas de intervenção humana – sem que tenha de se pôr em causa o incentivo ao progresso e o premiar do esforço (mas também a poupança e a contenção no consumo), em vez da deseducativa gratuitidade e da estimulação do parasitismo. Além de que não se tratava de uma «fixação centralizada» (tecto quantitativo estabelecido pelo governo?), mas antes fosse até mais provável que resultasse um incremento da concorrência entre empresas e da mobilidade internacional dos altos cargos, em contexto de economia de livre concorrência.
Y a-t-il un parti intelectual en France?, pergunta o politólogo Daniel Lindenberg na capa do seu último livro, acabado de publicar. O texto desenvolve-se quase todo através da paisagem histórica e da filosofia política francesa da modernidade, mas poderia transpor-se para os tempos conturbados hoje vividos pela “esquerda” partidária deste país, que tanto influenciou o nosso num passado ainda pouco distante. O “partido intelectual” de que nos fala o autor é o suposto poder de influência que uns poucos, privilegiados de intelecto e de relações sociais mas sem mandato electivo ou cargo institucional, teriam sido capazes de impor ao governo da França, em diversas conjunturas. Conluios judaicos, círculos maçónicos e anti-patriotas, jornalistas e académicos, escritores ou artistas – todos foram, mais ou menos, acusados desse pecado, sobretudo por parte de uma certa “imprensa de opinião” e por alguns dos mais auto-afirmados conservadores e reaccionários pensadores do país. Numa esquerda onde desapareceu o partido comunista (mas não a sua organização-de-massas CGT), onde minguou o esquerdismo sem que o ecologismo descolasse, e onde o anarquismo só reaparece no espaço público pelas más razões (quando há confrontos violentos em certas manifestações de rua), foi o PS de Mitterrand e sucessores que, nos últimos trinta anos, experimentou todas as subtilezas, cambiantes e contradições das políticas-de-grande-Estado, no continente sócio-cultural em que também os portugueses estão inseridos. Que José Sócrates tenha produzido uma tese de mestrado em Sciences Po. acerca do tema “A Confiança no Mundo: Sobre a tortura em democracia” tendo como alvo os Estados Unidos de Bush-filho, foi acontecimento absolutamente irrelevante; que Mário Soares tenha ido lançar um livro a Paris denunciando as malfeitorias da direita e do capitalismo, significa apenas que o seu nome é ainda reconhecido internacionalmente. Mas que Marine Le Pen e a sua Frente Nacional ameacem de novo nas sondagens alterar o panorama eleitoral francês, contando cada vez mais com a adesão de gente do mundo do trabalho que antes votava à esquerda ou mesmo comunista, eis o que constitui a mais severa e inquietante crítica para os partidos de esquerda, à qual os seus intelectuais deveriam bem prestar atenção e tentar perceber porquê.
O governo PSD-CDS tem vindo a desempenhar o papel sacrificial (para alguns, patriótico) que a conjuntura impunha, mas comporta-se mais como se fosse uma coligação de direita PPD-PP. Analisando o país como tendo essencialmente um problema de défice orçamental crónico (que faz engrossar a dívida quase a cada mês que passa), tem aplicado com rigor as medidas impostas pelos órgãos prestamistas internacionais (a “troika”): se é uma questão de desequilíbrio por excesso de despesa, corta-se nesta onde for possível e for mais fácil; e não bastando, face às urgências, aumentam-se ainda mais os impostos – como provavelmente reconheceria César das Neves (Aliás, há medidas destas que tanto poderiam ser contabilizadas do lado da despesa como da receita.). É justo dizer que todos estes cortes e aumentos têm sido temperados gradativamente segundo os níveis de rendimento da população: vislumbra-se aqui a costela “social-cristã” do partido de Paulo Portas e o que neste governo ainda existirá da componente social-democrata do partido maioritário. Mas sendo certo que metade (ou mais) do país não paga impostos directos (por insuficiência de rendimentos) e os “grandes” (empresas e particulares) têm fartos recursos para se eximirem das mais gravosas medidas fiscais que se lhes apliquem, cai então sobre três categorias o peso brutal da redução do poder de compra: a “classe-média”, sobretudo a mais abonada (nos seus rendimentos de trabalho e pensões de aposentação); a quase-totalidade da população (por via dos impostos sobre o consumo, iguais para todos); e os “assistidos do Estado social” (os mais pobres, devido às reduções dos diversos subsídios que os sustentam).
Porém, para além da discussão do balanceamento entre grau-de-austeridade e medidas-de-apoio-ao-crescimento (largamente teórica, ou então relevando da mera luta partidária), onde este governo tem cometido os maiores erros é na maneira com conduz politicamente todo este processo, possivelmente também na frente externa mas, sobretudo, no modo como escolhe os seus objectivos de governação, como escolhe os seus colaboradores mais directos, como toma as suas decisões, como as explica à sociedade e como reage às manifestações populares de natural descontentamento. Nestes aspectos, tem-se assemelhado por vezes ao mais patético da errática e mal-fadada experimentação governativa de Santana Lopes. Falar de «reforma do Estado» sem encarar de frente a blindagem constitucional e legal existente e a força das grandes corporações associadas às funções soberanas do Estado (partidos, justiça, defesa e segurança, impostos), na administração regional e local, na saúde e mesmo na educação é ignorar a realidade e querer atirar poeira para os olhos da população. E para brandir a perspectiva de um «Estado regulador» seria preciso enfrentar o problema dos conluios de interesses que se têm criado entre decisores políticos e empresários, em diversos escalões de importância.
Depois, vem o séquito de colaboradores próximos do governo onde, apesar do assinalável trabalho de uma CRESAP, se continuará a escolher mais por cálculo pessoal e fidelidade partidária do que por competência profissional, ao mesmo tempo que parecem multiplicar-se os assessores “pequenos génios” saídos da universidade (via juventudes partidárias e redes de conhecimentos familiares) e, sobretudo, a subcontratação a gabinetes de advogados de negócios e de outros peritos privados dos estudos que vão sustentar as decisões políticas finais, em substituição dos antigos gabinetes técnicos dos ministérios. Pelo menos, é este o retrato que se oferece ao simples cidadão.
Quanto ao modo de apresentar e gerir os diferentes dossiês políticos, aí entramos quase sempre na inépcia e por vezes no desastre. Não é apenas um erro de “casting” ou uma deficiente “política de comunicação”. São hesitações, que parecem o lançamento de “balões de ensaio”! (ou vice-versa?) São anúncios, logo retractados perante sinais de alguma oposição popular, enquanto outras medidas são prosseguidas inflexivelmente, deixando-nos desorientados sobre intenções, decisões e efeitos! Basta ver a diferença entre o que se tem passado na saúde (onde os cortes e economias têm sido contrabalançados com uma acção interessante sobre os preços dos medicamentos e negociação inteligente com as corporações) e na educação (onde o sorriso do ministro parece ser apenas o recurso psicológico para a ausência de quaisquer políticas socialmente convincentes), embora saibamos que tudo isto é pré-determinado por uma “ditadura das finanças” que, com Gaspar ou Albuquerque, se assemelha àquela com que o doutor Salazar se impôs inicialmente na vida política do país.
Na economia, desde Álvaro Santos Pereira que alguma coisa de significativo se tem tentado recuperar. Mas, em quê, se justifica a privatização dos CTT, que só abate uma parcela mínima à dívida pública? É a solução apontada para os estaleiros navais de Viana do Castelo a mais adequada quando se pretende ter uma crucial “estratégia nacional para o mar”? Foram os resultados das negociações com a banca, nos combustíveis fósseis, na electricidade, nas telecomunicações ou nas auto-estradas os que mais convinham ao interesse geral do país ou mais uma cedência aos grandes interesses privados (quiçá também para alimentar as boas relações externas com os governos do Brasil, de Angola ou da China)? São dúvidas e perguntas legítimas de quem não confia (e concedam que há razões para isso) nos discursos habituais dos nossos responsáveis políticos. 
O Tribunal Constitucional cumpre o seu dever; e nem sequer se pode acusar os juízes de cederem às suas simpatias partidárias. Mas, pergunta o leigo mais uma vez: para onde nos levará esta dinâmica de chumbar leis ordinárias com base em “princípios”, mais do que pela violação de alguma norma concreta da Constituição? Então um artigo de lei é constitucional se o legislador apresentar uma boa justificação, e não o é se esta for deficiente? Além disto abrir a porta a uma intensa “politização” do TC – não dos juízes, mas pelas oportunidades oferecidas aos agentes políticos com capacidade para lhes suscitar o exame –, cada sentença destas (mais as declarações de voto que lhes ficam agregadas) passará a constituir jurisprudência para as próximas pendências; o que significa que esta indispensável função de verificação da constitucionalidade das leis ficará cada vez mais entregue e fechada dentro do esotérico saber especializado dos juristas… e mais longe dos cidadãos.  
Em termos de resultados recentes e de luta política, pode dizer-se que: Troika 0 – Portugal 0; Tribunal Constitucional 1 – Governo 0; e Oposições 1 – Crato 0.
E perante tanta argúcia jurídico-político-económica, alguns perguntam-se já: é este país governável?
Quanto às oposições partidárias ao actual governo, além das críticas internas nas quais Pacheco Pereira se tem mostrado como o mais implacável adversário político (e que tenderão a agudizar-se quando se aproximar o final desta experiência governativa), a direcção do Partido Socialista lá acabou por engolir a palavra-de-ordem de “eleições já!”, trocando-a por um afastamento em toda a linha de qualquer convergência com Passos Coelho, preparando-se para durar nesta postura até à queda (prevista ou antecipada) do seu governo e para gerir como for possível o quadro político que resultar do processo eleitoral e das condições de dependência financeira externa que se verificarem nesse momento: com uma aliança com o CDS (mas sem Portas); em bloco central apadrinhado por um Presidente já quase de saída (e com outra liderança do PSD, quiçá Rui Rio); ou, mais dificilmente, governando sozinho. A pressão para “governar à esquerda” é grande e irá sempre em crescendo, com o alento que Mário Soares tem emprestado a todo o fogo-de-barragem contra as políticas governamentais e das instituições internacionais aqui relevantes. Mas basta ler o artigo absolutamente arrasador que o insuspeito Correia de Campos escreveu na imprensa (“Alternativas”, Público, 2.Dez.2013) para se perceber que uma forte corrente no campo socialista se oporá sempre a tal projecto (de “união das esquerdas”, ainda que só com apoio parlamentar, como poderia talvez António Costa ser chamado a negociar) e mais facilmente se entenderá com os “partidos neo-liberais” para um governo de “salvação nacional” que evite a saída do Euro e o afastamento da Europa.
Uma palavra tem ainda que ser dita sobre o novo partido – o «Livre - Liberdade, Esquerda, Europa e Ecologia» – cujo lançamento foi anunciado já perto do final do ano. É-nos grato reconhecer uma admiração pessoal por Rui Tavares, um ainda jovem inconformista que se bate pelas melhores ideias que encontra no seu campo ideológico, pratica em prejuízo próprio os valores de entreajuda pessoal (vulgo “solidariedade”) com indivíduos que não conhece e é capaz de bater com a porta quanto os “camaradinhas” o tentam convencer a “engolir sapos”. As palavras-chave escolhidas para legenda são apelativas mas nada nos dizem sobre o que poderá vir a ser a prática política de um tal partido – e o risco de invasão por oportunistas e trânsfugas com longa experiência da cultura partidária dos últimos vinte anos é real. Já a colocação “ao meio da esquerda” é compreensível, por procura deliberada de equidistância (como já aqui uma vez tentámos afirmar). “A esquerda” é que é capaz de não achar graça à intromissão.
As resistências sociais opostas às medidas de austeridade são, de todo, compreensíveis, normais e até saudáveis. Mas a cadência e a morfologia com que têm surgido os protestos no espaço público são reveladores da consciência dos vários sectores da população perante esta nefasta conjuntura. As grandes massas de população, como as que desceram à rua em Março 2011 e Setembro de 2012, revelam o bom-senso de não repetir o gesto automaticamente cada vez que são convidadas para tal pelos diversos “organizadores”, reservando-se para castigar os políticos-de-turno ou exprimir o seu silêncio eleitoral quando a oportunidade surge. Entretanto, cada qual vai agindo segundo o caminho que melhor lhe parece convir (eventualmente emigrando, explorando alguma brecha do Estado social ou combinando-se com próximos para uma acção comum útil) e mantendo intacta a sua liberdade de mal-dizer e mal-pensar tão habitual entre os portugueses.
Pelo contrário, os grupos e colectivos sociais organizados no local de trabalho, na vizinhança, no espaço político, na Net ou em actividades livres têm agora maior campo de actuação e melhores facilidades de recrutamento. Estas oposições são unânimes na sua rejeição às políticas governamentais, quaisquer que sejam as diferenças existentes (e são muitas) entre os protestantes. E os meios de comunicação social amplificam e massificam estes sentimentos. O que mostra o sentido quase-unívoco da opinião pública e da opinião da rua nesta conjuntura.
Mas é preciso não esquecer que também existem minorias-de-risco e minorias em risco. As primeiras são as que, tomadas pela revolta, estão dispostas ao uso de várias formas de ruptura, de infracção da ordem legal e da violência, simbólica ou mesmo física. As segundas são as que, silenciosamente ou menos, viram contra si próprias o desespero a que sua situação económica as conduziu ou espalham à sua volta essa mesma infelicidade.
Um último ponto (com votos risonhos de um melhor 2014). Entre aquilo que anima a sociedade, depois do fado, a dieta mediterrânica ascendeu a património cultural imaterial da humanidade. É um óptimo incentivo para a cultura da batata e do azeite, e para o robustecimento da nossa restauração. Mas se não há ainda Nobel para premiar o melhor “chefe” cá do burgo e enquanto as televisões se (nos) entretêm com cada vez maiores doses de futebol, talvez o nosso herói Cristiano (que levou às costas a selecção ao mundial do Brasil) venha ainda a pôr o país em lágrimas de alegria. É, sem dúvida, o nosso melhor artigo de exportação.
JF / 28.Dez.2013

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Desporto, negócio e política

Foi recentemente anunciado que em 2015 se realizarão no Azerbaijão, em Baku, os primeiros Jogos Europeus, réplica dos Jogos Olímpicos mas restritos aos atletas do “velho Continente”. Dado o gigantismo atingido pelas comemorações olímpicas, desde há várias décadas que vinha sendo sugerida por alguns uma certa descentralização destas competições desportivas, seja pela via de encontros de base geográfica continental, seja (mais raramente) por uma repartição por vários países, no mesmo ano olímpico, dos desportos da neve (que já se fazem desde a década de 1930, embora agora em anos intervalares), dos desportos de equipa (basquetebol, voleibol e outros) e dos desportos de água (natação, remo, vela, etc.), reservando para encerramento da olimpíada as provas atléticas mais convencionais (o atletismo, a ginástica, o halterofilismo, as “artes marciais”, o ténis, etc.).
Os jogos regionais (continentais) surgiram já há mais de cinquenta anos, realizando-se regularmente os Jogos Pan-Americanos, os Jogos Asiáticos e mais recentemente os Jogos Africanos, a que finalmente se irão juntar os Jogos Europeus. Mas outras competições multi-desportos se foram criando: Jogos Mundiais Universitários (Universíada), os Jogos do Mediterrâneo (que talvez agora desapareçam) e os Jogos da Comunidade Britânica são talvez dos mais conhecidos mas houve outros, tendo até chegado a existir uns Jogos da FISEC (do desporto escolar católico) e uns Jogos Desportivos Luso-Brasileiros (agora modestamente substituídos por uns Jogos da CPLP) – sempre sobre um modelo organizativo e simbólico copiado do movimento olímpico moderno.
É certo que muito mudou desde que o sonho universalista, pacifista e atlético (isto é, físico-estético-mental) do barão Pierre de Coubertin se começou a tornar realidade, numa época de nacionalismos exacerbados mas também de crenças fortes na proximidade de um “mundo novo”, inspirado pelos melhores exemplos históricos da democracia ateniense, das aspirações modernas das “luzes” e da romantizada ética cavaleiresca.
Não por acaso, o desporto moderno nasceu na segunda metade do século XIX por iniciativa de elementos das decadentes aristocracias europeias que lograram interessar, como espectadores e depois como praticantes, massas crescentes de jovens urbanos pertencentes às classes sociais mais pobres e numerosas. Não se originou nas práticas recreativas tradicionais da vida camponesa (com os jogos da malha, do varapau, etc.) nem nas competições lúdicas da antiga nobreza (as liças, a caça). Compreensivelmente, integrou num espírito de emulação cortês actividades físicas ainda utilizadas na preparação militar (como a equitação, a esgrima ou o tiro de pontaria com armas de fogo portáteis) ou lazeres aventurosos das classes ricas (como as regatas vélicas) mas associou-as rapidamente a formas populares de confronto inter-individual (como a luta ou o pugilismo) e, sobretudo, à regulamentação de amigáveis pugnas inter-grupais experimentadas entre colegiais que era necessário entreter nos recreios das escolas públicas ou nos campus das universidades: os jogos de bola saltitante (o futebol e depois outros), o rugby, o jogo-da-corda, o remo, etc. Finalmente, já dentro de um processo racional protagonizado por “educadores físicos”, foram formalizados os torneios competitivos destinados a medir as capacidades atléticas individuais mais básicas (correr rápido ou longas distâncias, saltar, lançar, nadar) ou aquelas (forças ou destrezas) proporcionadas pelos novos inventos das “artes mecânicas”, tais como a bicicleta, a motocicleta, o automóvel ou a moto-náutica.      
No pensamento destes ideólogos da educação física prevaleceu sempre um conjunto de objectivos e valores morais de pendor reformador e fraternal, adaptados às nascentes sociedades de massas: disciplinar a agressividade natural; competir com regras e respeito pelos outros concorrentes; premiar o mérito e o esforço (“Glória para os vencedores! Honra para os vencidos!”); igualizar à partida as classes sociais e as nações, respeitando a diversidade étnica e religiosa; incluir as mulheres neste verdadeiro processo de regeneração social.
Tais referências foram sempre simbolicamente enfatizadas nas grandes festas desportivas em que se tornaram os campeonatos europeus ou mundiais de várias modalidades que se iam sucedendo ou, a fortiori, os Jogos Olímpicos.
Como seria inevitável, tais princípios de convivência social foram subvertidos por atletas, treinadores ou dirigentes dispostos à trapaça, pela ânsia do efémero momento de glória ou popularidade proporcionado pelo facto de se ter sido “o primeiro” ou “o vencedor”. Mas esses constituíram casos de excepção, sendo que largamente prevaleceu – entre os praticantes e na convicção dos espectadores – a ideia da disputa leal. A este crédito somou-se o princípio moderno e democrático que enformou o movimento desportivo desde o seu início, consistente no clube (com adesão livre e dirigentes eleitos) e na associação federativa e voluntária de tais entidades de base para constituírem agregações de âmbito local/regional, nacional e mesmo internacional, autónomas e fora da esfera do Estado, das igrejas ou dos partidos políticos. 
Contudo, o sucesso das competições desportivas no quadro das sociedades contemporâneas – progressivamente sempre mais urbanas, individualistas, competitivas e espectaculares – suscitou bem cedo o interesse de negociantes que se propuseram organizá-las com entradas pagas para um público indiferenciado, bem como dos meios de comunicação social que aí descobriram um importante filão de expansão das suas actividades. Em três momentos diferenciados, a imprensa, a rádio e a televisão multiplicaram decisivamente o impacto do fenómeno desportivo, contribuindo para a promoção da imagem dos “deuses do estádio” (geralmente saídos da pobreza e decerto do anonimato, à semelhança das “stars” do cinema ou da canção) e para a geração de identidades clubísticas que vieram dar um sentido de pertença às multidões de assalariados e outras classes populares, substituindo as antigas identidades comunitárias religiosas, camponesas ou dos ofícios artesanais. As claques de “fans” (abreviatura de fanáticos, em inglês) são sobretudo uma expressão exagerada e desregrada disso mesmo.
Este clubismo, emocional e exclusivo do outro, combinou-se por vezes com o nacionalismo e a xenofobia modernos. Em ambos os casos, a afirmação do eu colectivo é feita sobretudo por oposição ao que é diferente (ou mesmo pela sua negação), corporizado pelo estrangeiro (abstracto ou concretizado num povo determinado) e pelos adeptos rivais, que assim se tornam adversários/inimigos (veja-se o comportamento e o imaginário de muitas das actuais claques de futebol). Esta aproximação foi sobretudo explorada pelas ideologias extremistas do fascismo e do nazismo nas décadas em que se assenhorearam do poder político em vários países da Europa. Mas foi também tolerada ou convenientemente aproveitada em outros regimes políticos, em especial no plano das suas relações com as outras nações. Vibrar com o içar das bandeiras e a execução dos hinos dos vencedores e, sobretudo, contabilizar os títulos e as medalhas e estabelecer rankings de sucesso desportivo tornou-se uma forma adicional de estimular a competição entre países e angariar prestígio para os regimes ou os governos em funções. Por outro lado, a construção de infraestruturas e equipamentos para tal fim específico, bem como a organização de grandes competições internacionais, levou os poderes públicos a assumirem um papel importante neste domínio, ao mesmo tempo que iam pondo de pé uma “política para a juventude e o desporto”, até então inexistente. Entraram neste campo a criação ou o apoio oficial a organizações de massas para os jovens: Komsomol, Balilas, Hitlerjugend, Flechas y Pelaios, Mocidade Portuguesa ou, noutra versão, escuteiros, Maisons de la Jeunesse, associações de estudantes, IPJ, etc. – além de formas variadas de afastar os jovens da cena política ou da tentação da delinquência, aliás com resultados bastante discutíveis.
Tal como no sistema político, o modo democrático de resolver a questão da luta pelo poder não impediu que emergissem ocasionalmente dirigentes desportivos populistas ou corruptos que estimularam aquelas tendências negativas dos movimentos sociais ou facilitaram a mercantilização do ideal desportivo. A questão do amadorismo e da profissionalização dos atletas foi um bom teste para o confronto entre estas duas lógicas em que, ao cabo de algumas décadas, o próprio movimento olímpico, o principal paladino do desporto-pelo-prazer-de-o-praticar e das recompensas simbólicas, acabou por soçobrar. Não quer isto dizer que competições entre profissionais não possam ser tão, ou mais, leais e interessantes de contemplar do que entre atletas amadores. Mas a ideologia desportiva do “desprendimento” tenderá provavelmente a ceder o passo ao “cálculo” e à obsessão do resultado. Não por acaso, foi nos países socialistas do Leste que inicialmente proliferou a política dos “atletas do Estado” e se fizeram alguns ensaios de “manipulação químico-hormonal” muito contestados. 
Tal como nos circos romanos ou nas jutas medievais, a adesão da populaça a tais eventos forneceu uma fantástica base social de apoio ao desporto-espectáculo do século XX, ao mesmo tempo que o dinheiro dos bilhetes e das quotizações, em grande escala, permitiam uma “caixa” atractiva para gerir. Porém, foi a televisão, já num âmbito cada vez mais mundializado, que permitiu um novo salto-em-frente, tanto na popularização do fenómeno como no volume do negócio financeiro proporcionado.
Hoje, o desporto-espectáculo constitui um sector significativo da economia, uma componente do processo sócio-cultural da chamada globalização e, ironicamente, um factor de estímulo e arrastamento para a prática de actividades físicas de enormes massas populacionais das classes médias e populares, já sobretudo orientadas para a promoção da saúde, o prazer, a auto-superação ou o convívio (sem esquecer a interiorização de determinados estereótipos sociais).
Por tudo isto, aguardaremos com interesse os tais Jogos Europeus de Baku, precisamente num país do Cáucaso de religião predominante muçulmana. E afirmámos aqui, há pouco tempo, que foi uma pena a não atribuição a Istambul da organização dos Jogos Olímpicos de 2020, pois seria talvez uma oportunidade interessante para aproximar os povos do Ocidente e do Islão – decerto numa base de interesse material (como demonstra o campeonato do mundo de futebol que irá ter lugar em 2022 no Qatar!), mas ainda assim evocando alguns valores de referência do melhor que pode existir na prática desportiva: sobretudo, a convivência pacífica e a ética da gratuitidade.

JF / 20.Dez.2013

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Mandela

As unanimidades à volta de uma grande personalidade pública são raras e às vezes suspeitas. Mas neste caso, compreendem-se.
De facto, Mandela travou ímpetos, garantiu continuidades, forçou a pacificação de uma sociedade segmentada e ulcerada, o que foi também resultado da corajosa acção de De Klerc, com quem partilhou o Prémio Nobel. Mas havia sido condenado à prisão nos anos 60 pelo seu patrocínio à luta armada do ANC, e isso é muitas vezes silenciado pelos que gostam de endeusar os grandes líderes, tal como o bom acolhimento que fez ao regime de Kadafi quando este preferiu juntar-se aos países da África negra, em vez do pan-arabismo.
Admite-se que, para um africano, cristianização, livre comércio, direitos humanos e outras referências propostas (e quase sempre impostas) ao mundo pelos Ocidentais sejam, culturalmente, “coisas de brancos”, sempre relativizadas pelo peso histórico da escravização industrializada a que eles submeteram os povos de África. Mas um homem com a superior inteligência de “Madiba” podia talvez ter sido mais cauteloso com a escolha dos seus “amigos” como foi respeitador da identidade dos seus “inimigos” – disposição de espírito que, ajuizada e sabiamente, o levou a lutar mais contra as injustiças da história do que por ódio a alguns dos seus protagonistas.
É possível que tal opção pela luta violenta – em vez da acção política tradicional que aquele seu partido prosseguia desde há décadas, ou mesmo da acção directa não-violenta que Gandhi ali semeara no princípio do século – tivesse uma boa justificação, perante a intensificação da política de apartheid imposta pelo Partido Nacional e os sectores brancos mais radicais desde o rompimento do vínculo que ligara o país ao Reino Unido.
Mas é também quase inevitável que, ao seguirem essa via da violência, os irredentistas criem uma tal dinâmica de “olho por olho” que, quando atingem o cume da vitória, esta já não possa ser festejada apenas em ambiente de fraternização. A violência empregue na luta prolonga-se muitas vezes em actos de vingança individuais ou colectivos, em novos regimes opressivos (de sinal contrário) ou em conflitos abertos entre os vários grupos da coligação vencedora. Quase sempre, os destemidos guerrilheiros de ontem passam a polícias ou militares ao serviço do novo poder, quantas vezes abusando das populações pelo simples facto de serem homens-em-armas. Outras vezes, são esses antigos combatentes que exigem benesses e recompensas, criando problemas e desencadeando conflitos armados como os que têm ocorrido na Guiné-Bissau, no Zimbabué ou em Timor-Leste.
Nelson Mandela deve ser sobretudo recordado como um homem que, depois de ter obtido a vitória com que toda a vida sonhara para o seu povo, soube servir-se do poder que lhe caiu nas mãos para travar aqueles ímpetos vingativos, agónicos e opressores, teve a coragem de se afastar da sua própria mulher Willie e do grupo de facínoras que a rodeava, e foi capaz de conter as tendências mais duras e racistas do seu movimento. Propôs – e em grande medida conseguiu – um autêntico processo de reconciliação nacional, também com a inestimável ajuda do arcebispo anglicano Tutu. Conseguiu evitar a saída de brancos para o estrangeiro, bem como a fuga dos capitais, preservando a eficiência da economia agrária, industrial e terciária do país. E terá aceite destruir e não reclamar para si a capacidade nuclear bélica que o regime anterior deteria – o que foi de um valor inestimável para todo o sub-continente africano, e não é geralmente destacado pelo analistas.
Mandela só não logrou evitar o aumento da delinquência urbana e da violência nas ruas, fruto de armas a mais nas mãos de quaisquer uns e de quantidades imensas de gente sem trabalho e que se julgam com direito aos bens que vêem tão mal distribuídos entre as diversas camadas sociais. Mas ao afastar-se voluntariamente do poder da forma como o fez, deu ainda uma enorme lição a todas as lideranças políticas da região e até do mundo.
Embora de forma não-confessada, Mandela foi talvez um extraordinário exemplo de feliz combinação do pragmatismo e da resiliência herdadas do colonizador britânico com a magnanimidade própria de uma aristocracia africana.

JF / 5.Dez.2013

sábado, 30 de novembro de 2013

Técnica, economia e sociedade


Há anos atrás, discutia-se muito na comunidade internacional dos sociólogos a importância do factor tecnológico (do progresso técnico, dizia-se então) na evolução das sociedades. Estava-se então na época da difusão acelerada dos dispositivos automáticos de produção industrial (a “automação”, a “robótica”), bem antes de surgir a vaga avassaladora da informática, dos computadores e das telecomunicações dos tempos actuais. Aqueles cientistas tendiam geralmente a criticar a ênfase dada por outros a tais factores e mais facilmente contrapunham a esta perspectiva a “construção social das técnicas”, identificando aliás um filão de pesquisa e de apreensão dos fenómenos sociais que se estendeu para outros domínios, como a própria produção da ciência ou a germinação das culturas juvenis, por exemplo.

Esta negação do primado da técnica na evolução da vida social tem toda a justificação se a atitude a criticar é o que poderemos designar por “tecnicismo”, isto é: a convicção interiorizada no pensamento dos sujeitos de que a tecnologia – as máquinas, os dispositivos e os respectivos saberes operativos – é sempre capaz de resolver problemas e dar respostas a questões ou necessidades sociais que parecem insolúveis ou impossíveis; se não hoje, certamente um pouco mais tarde. Uma tal disposição de espírito decerto que menospreza as condições económicas em que cada inovação técnica pode, ou não, difundir-se e provavelmente ignora o papel específico desempenhado pelas dinâmicas sócio-culturais, quer na travagem, quer na aceitação ou aceleração da difusão de tais mudanças, como têm vindo a mostrar as diversas ciências sociais, desconhecendo também as relações mais fundamentais postas a descoberto pelas análises contemporâneas sobre a evolução histórica.

Vejamos alguns exemplos de manifestações concretas daquilo que estamos a afirmar – sendo certo que tais exemplos não constituem qualquer prova, mas apenas facilitam a comunicação e a apreensão do que se sustenta por parte de um leque mais alargado de pessoas. Falando do caso do Portugal que temos sob os nossos olhos, é inegável que o país se modernizou tecnicamente nos últimos trinta anos se pensarmos na rápida difusão dos sistemas tele-informáticos, na profusão de “electro-domésticos” que hoje existem nos lares portugueses ou na superação dos atrasos existentes em infraestruturas e equipamentos no âmbito das comunicações rodoviárias, da saúde pública, do ensino e da cultura, aproximando-nos dos países europeus da nossa vizinhança. Simplesmente, por não terem uma base de sustentação económica suficiente e terem sido edificados em condições de endividamento pouco acauteladas, tais bens estão hoje largamente sub-aproveitados ou carentes das necessárias despesas de manutenção. Ou seja: por voluntarismo político ou encandeamento pelas facilidades de crédito oferecidas, muitos investimentos de modernização técnica foram feitos sem que a economia realmente os reclamasse e sobretudo os pudesse sustentar. Este é o drama colectivo do nosso presente, mas vários dos que conhecem aprofundadamente a história do Portugal oitocentista afirmam que idêntico tipo de desajustamento também então aconteceu com a nossa inicial industrialização e as políticas de modernização infraestrutural do Fontismo (estradas, ferrovias, telégrafo, portos).

A mecanização e a organização em grande série da produção industrial permitiram, indubitavelmente, alcançar dois resultados positivos e de grande alcance para as sociedades onde tal ocorreu. Por um lado, embarateceram o custo de produtos de uso corrente, pondo-os ao alcance da bolsa de um número muito mais alargado de consumidores. Isto foi um efeito económico, de alargamento do mercado (que, pelo seu sucesso, decerto deu lucros avantajados aos seus promotores), mas com claros reflexos positivos e imediatos na população. Um segundo efeito positivo deveu-se à possibilidade de dar trabalho a um maior volume de trabalhadores, homens e mulheres, que não dispunham de especiais qualificações para o desempenho de tarefas na indústria e a quem agora se pedia apenas para executar gestos simples, embora repetitivos e por isso mesmo cansativos: geralmente, tal oportunidade foi aproveitada por antigos camponeses (alguns provindo da imigração de territórios longínquos) e também por mulheres até então confinadas à esfera doméstica. Porém, este progresso técnico e económico teve também um custo social assinalável. Ele retirou, pouco a pouco, o espaço aos operários qualificados de ofício, que dispunham de algumas vantagens no mercado de trabalho face ao poder económico do patronato. As novas máquinas e as tarefas produtivas agora desagregadas em gestos elementares que qualquer um podia realizar eliminaram em algumas décadas o processo social das carreiras operárias que se iniciava com alguns anos de aprendizato, no próprio local de trabalho, a que se seguia uma ascensão lenta mas segura e irreversível de desempenhos profissionais num certo domínio de especialização (com designações como aspirante, oficial de 2ª, oficial de 1ª, etc.) de que podem ser exemplos os torneiros-mecânicos, os caldeireiros, os pedreiros, os marceneiros e tantos outros; e que atingia o tope com as posições de contramestres, mestres e mestres-gerais, que eram pessoas que, embora tivessem tido escolaridades elementares, se haviam guindado por mérito profissional próprio ao domínio de todos os “segredos da sua arte” e se consagravam agora a tarefas de coordenação, gestão e controlo do processo produtivo e de todo o pessoal da sua especialidade. Não que estes ofícios manuais (ou do uso competente de máquinas e ferramentas) tivessem sido banidos definitivamente; mas foram contudo reduzidos a pequenos núcleos adstritos a funções de manutenção ou reparação de equipamentos, e já não responsáveis pela produção de bens, de que resultou também uma depreciação do valor económico do seu trabalho, dos seus salários. É certo que, mesmo antes disto acontecer, já existiam sectores da indústria que empregavam largos volumes de mão-de-obra pouco ou nada qualificada, como as operárias da fiação mecânica, os serventes da construção civil ou os estivadores portuários – para já não falar nas crianças que também foram então lançadas para as oficinas. Para todos estes foi indiferente a intensificação da mecanização, salvo quando esta também se pôs a economizar empregos. Mas aquela outra “elite” ou “aristocracia” operária, orgulhosa do seu saber profissional e da sua utilidade social constituía, de facto, um valor e um património que o industrialismo do século XX destruiu e sacrificou.

Um terceiro exemplo de enorme magnitude que nos está ainda a afectar em pleno é o dos impactos brutais da industrialização sobre o meio ambiente natural, intensificada de maneira mais dispersa por todo o planeta no decorrer do último século. As alterações climáticas, a rarefacção da camada de ozono, a elevação da temperatura dos oceanos ou a degradação da qualidade das suas águas podem não ter ainda comprovação científica clara de que sejam um resultado do modelo económico dominante, com as suas poluições industriais, a energia assente na queima dos combustíveis fósseis, a super-concentração urbana e um consumo de massas baseado no “usar e deitar fora”. Mas as percepções de uma parte mais informada das populações do globo, com reflexos sobre algumas das decisões das elites políticas, já incorporaram nos seus raciocínios essa relação de causa-efeito, encarando de maneira crítica ou com desconfiança o “modelo de desenvolvimento” vigente. 

Finalmente, atente-se na enorme pressão que as atitudes sociais dos países ocidentais mais ricos têm vindo a exercer nas últimas décadas sobre as ciências e tecnologias da saúde e bio-genéticas, no sentido de que estas descubram maneiras de combater mais eficazmente as doenças e prolonguem a vida o mais possível, bem como façam recuar as fronteiras da natureza, nomeadamente quando às possibilidades da procriação humana, aliás com riscos visíveis de natureza ética. 

Nestes vários exemplos, temos casos em que o dinamismo prioritário e dominante parece situar-se nos domínios da técnica, sendo que a economia e “o social” podem, ou não, acompanhar esses progressos. Temos outros em que uma frutuosa combinação da técnica e da economia levou a grandes mudanças nas sociedades, porém, ambivalentes: umas positivas e outras negativas. O terceiro exemplo mostra-nos a tomada de consciência de uma parte ainda restrita de humanidade sobre efeitos nefastos a longo prazo da economia e da técnica actualmente dominantes, a contra-corrente de interesses poderosos e ao lado da desatenção e ignorância da maioria, só capaz de enxergar os benefícios do curto prazo. E temos por último um caso de efeito dinâmico e de liderança por parte de já amplos sectores das sociedades contemporâneas que, aqui sim, provocam um efeito de arrastamento na produção científica.

Este último caso corporiza da melhor maneira uma subordinação da técnica à procura social. Mas nem todos os exemplos revestem a aparente benignidade deste processo. Lembremos que a investigação sobre a energia atómica foi muitíssimo acelerada pela busca de uma arma decisiva para vencer a II Guerra Mundial, como já tantas vezes acontecera na história mas talvez nunca com um “galgar de patamar” tão significativo como ocorreu dessa vez. É certo que foi uma decisão de um restritíssimo grupo de homens, mas o que estava em jogo era a sociedade no seu conjunto. E foi esta que justificou e provocou mais este salto nos avanços científico-tecnológicos.

Não há que menosprezar o papel da tecnologia na evolução humana. Em primeiro lugar, porque que todos os passos notáveis de inovação técnica resultam de um esforço prolongado e sistemático de investigação científica. Já não estamos no tempo das descobertas geniais de uma mente privilegiada (modelo Leonardo da Vinci), ou sequer dessa feira das consolações do Portugal de há meio-século que eram as medalhas-de-ouro e as menções-honrosas do salão dos inventores de Genebra. Os recursos hoje consagrados à qualificação das populações e à sustentação dos sistemas de investigação científica são considerados investimentos, a despeito de serem custos que muitos ajudam a suportar. Em segundo lugar, também porque, diferentemente das conquistas sociais e dos progressos da economia, os avanços científico-tecnológicos, uma vez adquiridos, tornam-se irreversíveis (para o melhor e para o pior). A técnica é pois, também ela, um produto do saber humano, que pode ter utilizações com intenções e efeitos muito diferenciados de um ponto de vista moral ou político.

Igualmente, a economia deve ser encarada sem preconceitos ideológicos. O pensamento político de esquerda habituou-se desde há mais de século e meio a encarar negativamente os sistemas económicos modernos, rebaixando-os sob os epítetos de “capitalista”, de “exploração do homem-pelo-homem”, “imperialista”, “de mercado”, “neo-liberal”, etc. Se, em certa medida, os poderes políticos democráticos conseguiram corrigir alguns dos aspectos mais detestáveis desta economia (abuso do patrão sobre o assalariado, concentração desmedida da riqueza, etc.), orientando-a no sentido de contemplar melhor objectivos benéficos para a maioria (na distribuição do rendimento, na saúde, educação ou previdência social), os ensaios para criar um regime económico alternativo, de base racional e administrativa, organizado pelo Estado, conduziram até hoje a patentes fracassos. E as experiências de “economia social” (cooperativismo, mutualismo popular, entreajuda solidária local, etc.), sendo humanamente muito ricas e pedagogicamente interessantes, nunca conseguiram mais do que constituir “ilhas” de refúgio para valores democráticos e comunitários, mas sem capacidade para se imporem no quadro mais amplo das sociedades urbanas contemporâneas. No contexto actual de globalização, a economia também pode ser vista como um tecido de relações sociais que, pela primeira vez, unificou o mundo, ultrapassando as fronteiras nacionais, as línguas, as crenças religiosas e outros particularismos culturais, traduzida por dados estatísticos e por uma contabilidade monetária imediatamente compreensível e significativa em qualquer ponto do planeta. É uma aquisição que não deve ser menosprezada. E talvez aqui a economia esteja “em avanço” sobre outros mecanismos de controlo social, nomeadamente por não existir um poder político mundial representativo capaz de estabelecer regras de regulação mais eficazes em certos domínios, como sejam as transacções financeiras, o comércio internacional ou os standards mínimos para um trabalho digno e gratificante.

Voltemos ao ponto de partida. Haverá alguma razão fundamentada para atribuir uma prioridade aos factores técnicos na marcha da sociedade? Há autores que falam de uma 1ª revolução industrial (a do carvão e da máquina a vapor, que transformou a fábrica, a navegação e criou o caminho-de-ferro), de uma 2ª revolução industrial (a proporcionada pela electricidade e o motor de explosão, na origem do automóvel e do avião) e de uma 3ª revolução industrial (inaugurada pelo aproveitamento da energia nuclear). Mas esta é uma periodização essencialmente útil para sistematizar a evolução das tecnologias de produção (como igualmente poderíamos fazer para as armas, os utensílios domésticos, etc.). É muito discutível que sirva para o fim que aqui temos em vista.

Por outro lado, é verdade que componentes genuinamente próprias da vida social podem impor travagens ao progresso técnico ou estimular o seu contínuo borbulhar, como podem ignorar ou combinar-se com modelos económicos de modo muito diverso. Atentemos no fenómeno das religiões, que parece quase imune às condições técnicas e económicas conhecidas pela história dos últimos dois milénios, pelo menos, e que só recentemente tem registado algumas alterações significativas por força de mudanças internas à vida social, como sejam o surgimento da filosofia das luzes, o desenvolvimento da ciência e o alargamento da educação. Também se sabe que os modos de vida tradicionais das culturas camponesas – fosse da exploração agrícola familiar de modelo europeu, fosse dos pastores itinerantes das estepes asiáticas, das savanas africanas ou das pradarias americanas – opuseram sempre fortes resistências a deixarem-se transformar em assalariados com rendimento assegurado e que só o fizeram, com ou sem emigração, quando os reduziram à fome mediante cortarem-lhes as bases da sua sustentação económica. 

Hoje, nas sociedades ocidentalizadas (ao modelo americano), as pessoas são tendencialmente adeptas das inovações técnicas (veja-se a paixão de tantos pelas viaturas mecânicas ou os gadgets da comunicação interpessoal) e amigas da economia do consumo ilimitado de bens materiais, só parecendo emergirem reacções de crítica, recusa ou desconfiança perante efeitos perversos potencialmente catastróficos como sejam os “engarrafamentos urbanos”, a espionagem electrónica ou as crises de desregulação económico-financeira. Eis, pois, mais alguns exemplos de relações específicas entre (e intra) estas realidades com estruturação própria mas que, simultaneamente, interferem muito entre si, de maneira complexa.

Se considerarmos, por simplificação, as três variáveis – técnica, economia e sociedade – como as que fundamentalmente condicionam, no médio/longo prazo, o futuro de cada um de nós, a nossa “tese” é então a de que não devemos privilegiar a importância de qualquer uma delas sobre as restantes, mas que as três se condicionam mutuamente e de maneira equilibrada entras elas, sem qualquer “pré-determinação” de uma sobre as outras (como pretendia a filosofia marxista relativamente à economia). No detalhe de cada época e de cada campo de investigação científica e tecnológica ou de cada circuito económico particular (de investimento-produção-circulação-consumo) se jogarão então as combinações virtuosas que permitem mudanças universais significativas – se de sentido civilizacional positivo, negativo ou controverso, é uma outra questão que não se coloca no mesmo plano – ou, pelo contrário, os bloqueios que as impedem. Embora decerto rudimentar, será esta uma visão aceitável do processo histórico da nossa modernidade?

 

JF / 30.Nov. 2013

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Um tórrido fim de Verão

Em Portugal, a relativa pausa estival da política foi compensada com as aflitivas notícias dos incêndios florestais, desta vez com vários mortos e feridos nas forças da protecção civil e parecendo sempre acantonados nas Beiras superiores e além-Douto. Haverá uma razão lógica que explique esta concentração? Não consta que alguma mão oculta colectiva persiga tal propósito. Pirómanos e incendiários, deve havê-los estatisticamente dispersos por todo o território. A auto-justificação da existência dos corpos de bombeiros e da sua reclamação de mais e melhores meios de acção, conquanto decerto exista inconfessada, não explicará nada, porque são eles que, na primeira linha, arriscam a própria vida nestas ocasiões. Sobra então a conjugação fatal entre condições climatéricas (para o conhecimento das quais a ciência deve dar o seu contributo mas que nos tinha anunciado para este ano um Verão pouco quente…), política de florestação dos poderes públicos (que vem de há décadas, sem medidas de alteração muito significativas) e estrutura da propriedade fundiária rústica (onde se acumulam grandes desleixos, envelhecimento e rarefacção populacional, empresarialização ainda incipiente, falta de gestão ambiental, interesses ocultos, etc.). É sobre estes dois últimos tópicos que é urgente fazer uma grande reforma que reajuste (é o termo na moda) a nossa floresta às condições geográficas, económicas e sociais que realmente existem no país neste primeiro quartel do século XXI.
Uma Fazenda em África é o título de um romance de João Pedro Marques, historiador com vários livros publicados sobre a colonização portuguesa em África no século XIX, em especial sobre o processo de abolição da escravatura. Mas esta sua obra literária entusiasmou-me verdadeiramente, mais pela beleza e criatividade da escrita do que propriamente pelo enredo, talvez demasiadamente próximo de E Tudo o Vento Levou ou de Out of Africa. A figura central do romance é uma mulher, e essa circunstância e condição tornam-se decisivas para a qualidade do texto, que se diria sair da experiência e da sensibilidade de uma alma feminina. É certo que o quadro histórico em que a acção se desenrola me é conhecido, e quase diria familiar o meio social retratado, sobretudo nas relações entre os nativos angolanos e os colonos portugueses, bem como entre estes uns-com-os-outros e com os funcionários da administração colonial, o que igualmente acontece com o interessante O Pecado Maior de Abel, de Inácio Rebelo de Andrade. É também verdade que muitas vezes me enfastia a leitura de autores na moda, prodigiosos de imaginação mas cujos temas e formas de expressão me são cada vez mais estranhos. Aqui, pelo contrário, temos a escrita escorreita, linear e elegante, e um encadeamento de factos e sentimentos que um leitor como eu pode partilhar, e que só anseia prosseguir para enfrentar a próxima surpresa de uma vida aventurosa. 
Futebol, negócios e política – eis um tríptico que parece permanecer imune aos apertos e revisões da crise económica que lavra na Europa e, de maneira larvar, no espaço capitalista ocidental. Ao nível dos governos nacionais, interessam os eventos universais como os Jogos Olímpicos ou os campeonatos do mundo de diversas modalidades (o Brasil que se cuide, olhe o que aconteceu à Grécia…) e é pena que Istambul tenha sido preterida por Tóquio para encerrar a olimpíada de 2016-2020: era talvez uma boa oportunidade para apaziguar as relações entre o Ocidente e o Islão. Mas ao nível local predomina a figura do empresário-presidente de câmara-amigo da bola. O desporto-espectáculo e em particular o futebol continuam a seduzir as massas até nas mais recônditas regiões; os praticantes e candidatos à momentânea glória desportiva provêm de reservatórios humanos inesgotáveis; os estados levam a sério estes palcos de pacífico confronto inter-nações investindo aí somas consideráveis; a televisão que transmite esses eventos em directo não pára de obter receitas com a cobertura universal que consegue para a publicidade comercial de certos produtos; e os novos-ricos conhecidos ou ignorados do mundo não faltam com os seus capitais (obtidos sabe-se lá como) para comprar jogadores, clubes ou apostar em outras oportunidades de negócio. Há ainda quem se indigne com as quantias fabulosas pagas a alguns craques da bola ou assimile os contratos, “passes” e “transferências” de atletas a novas formas de escravatura. É um equívoco e um abuso de linguagem. O que estes negócios ilustram à saciedade, tipicamente nas épocas de defeso, é a predominância de um direito comercial ultra-sofisticado (cláusulas de rescisão, seguros, justas-causas de rompimento, indemnizações, etc.) e dos interesses lucrativos (quase sempre escondidos ou reservados) dos titulares desses direitos, mais dos intermediários que à sombra deles prosperam. E, chegados a este ponto, temos de chamar à colação uma vez mais, no caso português, o complexo jurídico e o sistema judicial instalados há muito mais tempo do que o tempo de vida do regime democrático trazido pelo 25 de Abril de 1974: de facto, o “país de bacharéis” zurzido por Eça não só se tem mantido de excelente saúde como ultimamente se abalançou com maior descaramento a abraçar o mundo dos grandes empresários e dos grandes negócios, públicos e privados. E é aqui que também entroncam os interesses (privados) dos detentores dos poderes públicos, sobretudo ao nível local ou regional, os quais, mercê da proeminência dos seus cargos, podem estabelecer alianças preferenciais com empresários ou entidades promotoras do desporto-espectáculo, garantindo com isso a simpatia de largas massas de eleitores adeptos de tal ou tal equipa, modalidade ou ídolo desportivo. À demagogia eleitoral, junta-se o “rápa-pé” clubista!
A campanha eleitoral é um dos aspectos mais delicados e potencialmente perversos do processo político democrático. Por um lado, é certo que não há verdadeira escolha senão entre candidaturas diferentes ou opostas, que devem poder explicar aos eleitores o programa que pretendem executar em caso de vitória. Para isso prevê-se um certo número de condições e garantias, dentro de um princípio de igualdade de tratamento entre candidatos. Mas faz sentido que a lei estabeleça um período de campanha eleitoral de quinze dias ou três semanas e, na prática, os partidos e (potenciais) candidatos, bem como a comunicação social, “entrarem em campanha” quase sempre largos meses antes de começar o prazo legal? Onde está a causa de tal antecipação e de tal agitacionismo (geralmente estéril), sabendo-se que esta dinâmica só é propícia aos dislates e às promessas incumpríveis? É certo que, como para vender comercialmente qualquer outro produto, os especialistas de marketing sabem que é preciso um tempo relativamente dilatado para difundir socialmente “a imagem”, pretendida e fabricada, de um candidato político. Mas só quem tem interesse genuíno nisso – os candidatos ávidos de protagonismo e de poder; os partidos que deste modo se realizam; e os jornalistas, comentadores e especialistas que assim vêem justificada a sua existência – e recursos para poder empenhar em tais processos (geralmente muito desiguais entre si, condicionando a livre escolha popular) vai alimentando esta cadeia independentemente do eco que encontram na opinião pública, hoje claramente descontente e mesmo crítica do oligopólio partidário existente e das práticas políticas que se foram instalando ao longo das últimas décadas. Remédios? No caso das autarquias, não nos cansamos de insistir na ideia da dessincronização do momento de realização destas eleições e da decisão local da duração dos respectivos mandatos (dentro de limites definidos por lei). Sabemos, porém, que as normas legais podem ajudar mas são completamente insuficientes. Só uma verdadeira inovação – trazida por novas formações políticas ou por outro pessoal que se “chegasse à frente” nas estruturas partidárias tradicionais – poderia alterar este curso das coisas, mediante a ousada experimentação de uma nova postura (colectiva e individual) e o estabelecimento de um pacto inter-partidário de “boas normas de comportamento”, “dedicação à causa pública” e “não-agressão”, pelo menos entre algumas formações representativas de um amplo leque de opiniões junto do eleitorado. Neste ponto, Manuela Ferreira Leite (a despeito de outros pecadilhos) foi um bom exemplo quando era líder do seu partido, ao recusar-se a entrar no estilo demagógico e publicitário dos directores-de-campanha e conselheiros-de-imagem e distanciando-se bem de colegas populistas do mesmo partido como Jardim, Valentim, Isaltino ou Menezes. Mas já Rui Rio, que tem no seu currículo interessantes posições contra a partidarite dominante, não resistiu há dias a “borrar a pintura” ao afirmar que estava na hora de ir ganhar dinheiro para o privado… Como Jorge Coelho. Como tantos outros.  
Por falar em eleições, há que registar os resultados verificados na consulta popular na Alemanha que, como tem sido dito, valem tanto ou mais do que as eleições europeias da próxima Primavera. Como se previa, ganhou o partido da senhora Merkel mas foi o eleitorado alemão que, mais claramente, ditou a orientação da política económica e financeira que deseja para a Europa ao confirmá-la como chanceler, ao castigar os liberais e quase meter no parlamento o “partido não-europeu”, ao mesmo tempo que no outro extremo renascia uma esquerda tradicional e os Verdes parecem enquistados no seu estatuto de pequeno partido eventualmente indispensável a uma coligação de governo. Alguém pensa que os 26% que votaram SPD apostariam em algo de muito diferente da política externa da CDU-CSU? Daqui está em vias de resultar uma reedição da coligação entre estes dois blocos, que pode trazer alguns melhores equilíbrios para a Europa. Resta ver como vai correr a evolução das economias nos próximos tempos, sobretudo em países instáveis como a Itália ou financeiramente sustentados do exterior, como Portugal. E qual vai ser a atitude do presidente Hollande, cujo socialismo se ficou pelas medidas eleitoralistas com que insensatamente se comprometeu e se arrisca agora a ter de ser mais impopular do que o irrequieto Sarkozy? (Uma chamada de atenção que alguns socialistas portugueses não deixarão de fazer ao seu actual líder António Seguro.)
E por falar em política, na grande política do Próximo-Oriente onde se entrecruzam dimensões regionais, culturais e planetárias, ficámos desta vez suspensos entre o cenário de mais uma cacafonia do sistema internacional e do soit-disant  imperialismo norte-americano – com o presidente francês, que tão empenhadamente se envolveu a combater os rebeldes islamistas no Chade, a dispor-se (indirectamente) a encorajá-los no vespeiro do seu ex-protectorado da Síria – e uma esperança, ainda que ténue, de apaziguamento das tensões no Médio-Oriente entre o bloco ocidental e a fracção do mundo islâmico capitaneada por Teherão. Perante o agravamento da situação síria, a Rússia quase assomou ao seu antigo estatuto, o Irão credibilizou-se e os dirigentes anglo-americanos ficaram bloqueados pelas respectivas opiniões públicas. Nada parece ter sido resolvido acerca daquele mortífero conflito, apesar da condução do caso “com pinças” internas, diplomáticas e de ameaça militar por um Obama entalado nas suas contradições de político-da-paz e, ao mesmo tempo, líder de uma grande potência que, todavia, já não tem os meios necessários para impor a sua ordem onde desejaria, e também porque a situação mundial já não lho consente. De resto, não nos admiraria que esse fosse um quadro com repetições cada vez mais frequentes, numa situação política interna que apresenta sinais novos de bloqueamento e difíceis compatibilizações: uns USA senhores de um potencial bélico indiscutível (e ainda efectivo para manter o statu quo de segurança global) mas inútil para aquelas circunstâncias, e caríssimo, afogando cada vez mais o país numa dívida externa insolúvel. E não se ousa imaginar as consequências políticas que poderão advir para o mundo inteiro de um eventual rebentar desta “bolha”.
Quanto à política pequena do Estado português, as restrições impostas pelo tribunal constitucional, a visita de inspecção dos credores oficiais (desta vez em cerrado black out), o nível dos juros da dívida pública nos mercados e a elaboração do orçamento para 2014 constituíram os quebra-cabeças mais bicudos para a governação­ nos últimos tempos. O Verão de 2014 adivinha-se problemático. Talvez de novo sem dinheiro para honrar os seus compromissos, como descalçará o Presidente da República essa bota danada de encerrar a legislatura cumprindo os prazos legais e assistir ao fim da actual coligação, ao mesmo tempo que veremos porventura um PS a querer ser governo mas a não querer herdar uma situação económica desesperada no curto prazo? (Por imprevidência dos humanos, é sempre a urgência que acaba por ditar as soluções que ninguém deseja!). Quanto aos resultados das últimas eleições, nada mais há para dizer: durante muitos anos, publiquei os resultados comparando os votos dos partidos com o volume das abstenções, brancos e nulos, pondo assim em evidência o progressivo enfraquecimento da legitimidade do poder conquistado nas urnas. Desta vez, perante a magnitude do fenómeno, muitos o fizeram; não vale a pena repeti-lo. E para celebrar o 5 de Outubro sem feriado e com a bandeira hasteada no modo devido (e não como o António Costa no ano passado induziu o erro do Presidente), lá tivemos um pequeno coro de protesto popular junto à porta do Município. Por isso, ninguém me tira da ideia que o novo Museu dos Coches continuará fechado porque os governantes não se sentem com coragem para marcar a data da cerimónia-de-estadão que deveria assinalar a sua inauguração. Imagina-se como vão ser os apupos…   
As “questões fracturantes” já não fracturam, impõem-se. Encerrou-se a época tauromáquica e, sem alarmes nem controvérsias, tem-se a sensação de que desapareceram as transmissões das corridas de touros pela televisão. Os cavaleiros, forcados, empresários e ganadeiros lá foram “fazendo pela sua vidinha”, crê-se. Mas, parece que, seguindo o exemplo dos nacionalistas da Catalunha, a tauromaquia deixou de contar em Portugal com o patrocínio dos poderes públicos e, já agora, dos meios de comunicação social. Finou-se há pouco João Cristóvão Moreira, oficial de marinha e antigo cronista que, sob o pseudónimo de “Solilóquio”, assinou muitas inesquecíveis e espirituosas páginas de imprensa sobre as corridas de touros. Será que a sua morte anuncia também simbolicamente o fim dessa “beleza louca” do cite, do sesgo ou do derechazo?   
Por seu lado, na católica Irlanda (com ou sem influência das posições expressas pelo Papa Francisco) a lei foi abrandada na sua condenação da interrupção voluntária da gravidez, o que marca uma primeira concessão à pressão social que, no mundo ocidental, se tornou quase avassaladora.
Mas a Rússia, a “santa Rússia” de outrora e antiga União Soviética (que tinha muito pouco de soviética – isto é, de órgãos colectivos de deputados designados pelo povo trabalhador – porque tudo estava nas mãos “do Partido”), agitou-se ultimamente com a proibição legal da “propaganda homossexual”. O governo do senhor Putin não é decerto o melhor exemplo de democracia e neste país as liberdades dos cidadãos são muitas vezes postas em causa pelos antigos costumes de mão-de-ferro herdados e prosseguidos desde os tempos dos Czares. Mas não consta que a legislação russa – aliás pioneira no que toca ao aborto e com práticas permissivas em matéria sexual – persiga actualmente os comportamentos homossexuais. Porém, o movimento (social, internacional e ocidental) dos “gays and lesbians” é que não se satisfaz com isso e exige para a sua causa meios de difusão mais amplos como a rua, a imprensa ou a televisão – e é a essa “oficialização” que o governo agora atalhou com impedimentos legais, não sendo de excluir a existência de um reflexo de contestação a mais este “vício do Ocidente decadente” que a apaixonada e varonil “alma russa” teria agora dificuldade em encaixar. Na Europa e Américas, não faltaram, é claro, inúmeras vozes de personalidades públicas de sucesso (artistas, intelectuais, políticos, etc.) a verberar este acto da governação russa, a ponto de invocarem normas de direito internacional e a “óbvia discriminação e limitação da liberdade” que ele suporia – como se, na cabeça destes prosélitos, o direito a assumir uma determinada “orientação sexual”, que foi uma conquista humana do Ocidente ocorrida nas últimas décadas, se sobrepusesse já, sem limites nem discussões, a todas as outras considerações de ordem moral e civilizacional que a questão contém.

25.Out.2013

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Um Conselho da República?

Sim, o belo Palácio Ratton poderia prescindir do actual Tribunal Constitucional para nele funcionar um Conselho da República, órgão deliberativo de poder moderador sobre a função legislativa, composto por personalidades de grande reputação e experiência, umas por inerência de cargos desempenhados, outras por designação entre pares de um mesmo corpo social, outras ainda por nomeação discricionária da Presidência da República ou cooptação dos próprios membros. Entre esses poderiam estar, nomeadamente, os seguintes:
- Anteriores Presidentes da República, para um único mandato de dez anos após a cessação do cargo;
- Anteriores presidentes do Supremo Tribunal de Justiça, para um único mandato de cinco anos após a cessação do cargo;
- Anteriores presidentes do Tribunal de Contas, para um único mandato de cinco anos após a cessação do cargo;
- Anteriores Chefes do Estado-Maior General das Forças Armadas, para um único mandato de cinco anos após a cessação do cargo;
- Anteriores Provedores de Justiça, para um único mandato de cinco anos após a cessação do cargo;
- Anteriores presidentes do Conselho Económico e Social, para um único mandato de cinco anos após a cessação do cargo;
- Três juízes conselheiros, eleitos por voto secreto pelos seus pares do Supremo Tribunal de Justiça, para um único mandato de cinco anos;
- Um professor catedrático das universidades públicas, nomeado pelo Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, para um único mandato de cinco anos;
- Um representante nomeado pela Academia das Ciências de Lisboa, para um único mandato de cinco anos;
- Um representante indicado pela Comissão da Liberdade Religiosa, para um único mandato de cinco anos;
- Três a cinco personalidades muito destacadas da sociedade civil, nomeadas pelo Presidente da República em funções, para um único mandato de cinco anos;
- Cinco a oito personalidades muito destacadas da sociedade civil, cooptadas pelos restantes membros do Conselho da República, para um único mandato de cinco anos.
Para fazer o quê?
- Para votar, em segunda leitura, as leis da Assembleia da República (com excepção das leis constitucionais). Em caso de não-aprovação pelo Conselho da República e mediante a devida justificação, o diploma teria de ser reexaminado na mesma Assembleia, requerendo-se agora para a sua aprovação, com ou sem modificações, a maioria absoluta dos deputados em exercício de funções;
- Para votar, em segunda leitura, as leis orgânicas e as que carecem de aprovação por maioria de dois-terços da Assembleia da República. Em caso de não-aprovação pelo Conselho da República e mediante a devida justificação, o diploma teria de ser reexaminado na mesma Assembleia, requerendo-se para a sua aprovação, com ou sem modificações, a maioria qualificada de dois-terços dos deputados em exercício de funções;
- Para apreciar os decretos-leis do governo e os decretos legislativos regionais, podendo sobre eles dirigir recomendações aos respectivos órgãos emitentes;
- Para produzir pareceres fundamentados sobre tratados e convenções internacionais, antes da sua ratificação;
- Para dirigir mensagens à Assembleia da República sobre matérias de relevante interesse nacional. 
Condições administrativas:
- Os membros do Conselho da República já beneficiários de uma pensão de reforma ou aposentação não seriam remunerados pelo exercício destas funções, mas apenas abonados pelas despesas pessoais incorridas, tal como os membros em acumulação com outra actividade. Apenas os membros em idade activa e em exclusividade nestas funções receberiam uma remuneração equivalente ao seu anterior salário, tendo como limite máximo o estipêndio de deputado;
- O Conselho da República determinaria a sua forma de funcionamento interno;
- O Conselho da República seria apoiado por um staff qualificado.
A intervenção do Conselho da República no processo legislativo seria essencialmente política, social, técnica e jurídica e não de natureza jurisdicional.
Ilusório? Perigoso? Complicador?
Ou introdutor de maior prudência, moderação e isenção na governação do país?

JF / 5.Out.2013

sábado, 21 de setembro de 2013

Flores serôdias

Trata-se decerto de uma reacção pessoal, de geração e de classe social, mas é-me sempre pungente enfrentar um “velho hippie”. Aquilo que seduziu em jovens muitos de nós, aparece agora como grotesco e patético na pele enrugada de alguém que se deixou consumir pelas drogas, que se arrastou pelas margens da sociedade ou, parecendo nela integrado, ainda “flutua” quando assiste a um concerto dos Rolling Stones pago com entradas caras. 
A geração (ocidental) que foi a nossa, do segundo pós-guerra, trouxe coisas boas e más, como todas as outras. Porém, fizemo-lo talvez num momento de aceleração da história mais importante do em que outras épocas e isso fez de nós espectadores e actores algo involuntários de mudanças significativas nas sociedades em que estávamos inseridos. Individualmente, cada qual sentiu e viveu esses tempos segundo a sua própria grelha de leitura, os seus impulsos e as suas ambições. Mas todos fomos “empurrados” para essas mudanças de atitudes e comportamentos sociais. Contudo, a maior parte guardou os valores de base que nos haviam sido inculcados pelos nossos pais e educadores escolares, embora bastas vezes nos tenhamos rebelado directamente contra eles.
Muitos foram os que rejeitaram os códigos de convencionalismo e hipocrisia com que se revestiam as relações entre as pessoas, mormente num país beato, fechado e atrasado como Portugal, relativamente a outros países vizinhos. Já havia passado o tempo dos “filhos naturais” dos aristocratas e das amantes com-casa-posta pelos homens da burguesia mas as promessas de casamento-para-a-vida com repressão sexual prévia ou o recurso escondido à prostituição pareciam-nos coisas sem sentido, tal como a procriação não-desejada (conforme “a vontade de Deus”), os abusos feitos às empregadas domésticas ou a feroz estigmatização social que se exercia sobre os suspeitos de homossexualismo.
E qual foi a nossa reacção? Foi a de uma espécie de revolta de filhos-família, em muitos casos breve e benigna, rapidamente reabsorvida na ordem social reinante; noutros, de forma mais definitiva e virulenta, como os “filhos” de Turgueniev ansiosos por se “juntarem ao povo” para transformar radicalmente a sociedade. Em termos de comportamentos sociais, a música (rock, de protesto ou de evasão) foi uma das áreas de mais forte canalização para aquela revolta; o consumo de drogas, a sua consequência mais gravosa; os divórcios e as segundas e terceiras ligações, a manifestação de efeitos mais prolongados, porque alteraram os modos de educação tradicional dos filhos no quadro da família nuclear. Ao nível das classes mais desfavorecidas, estas mudanças incentivaram a mobilidade social ascendente – porque a economia o permitiu –, em direcção à constituição de uma grande classe média, obviamente segmentada em estratos de desigual rendimento económico e herança cultural familiar, mas onde todos puderam passar a conviver, trabalhar em cooperação ou concorrência, e mesmo partilhar destinos pessoais e afectivos. Essa terá sido a conquista civilizacional mais decisiva da nossa época.
Mas por que vias isto aconteceu? Para além da evolução sempre mais lenta do mainstream, três fluxos activaram particularmente estes processos no caso português: por via da emigração ou de um exílio voluntário/forçado no estrangeiro; pela lufada de contestação que soprou repentinamente pelas instituições da igreja católica; e pelo envolvimento de muitos na esfera política, fosse na crítica e no auxílio ao derrube do salazarismo, fosse no apoio aos movimentos independentistas das colónias, fosse ainda na adesão à perspectiva socialista-estatista dos regimes russo ou chinês e no seu ódio implacável aos yankees.
Tudo isto são hoje apenas memórias de um tempo que passou, do qual os jovens são razoavelmente ignorantes ou para o qual “se estão nas tintas”. De facto, a intensificação das mobilidades transfronteiriças, sobretudo no espaço europeu, alterou significativamente o quadro tradicional dos fluxos migratórios, começando a germinar expectativas de cidadanias supra-nacionais, a que a actual União Europeia ainda não conseguiu dar resposta concludente. As crenças e as instituições religiosas defrontam-se com novos problemas, talvez impensáveis há cinquenta anos atrás (individualismo hedonista, concorrência de “novas religiões”, quebra de segredos escandalosos, etc.). O anti-fascismo já só é brandido como último recurso de agitação partidária ou por alguns nostálgicos do PREC. Os novos países lusófonos dos trópicos enfrentam, cada qual, situações das mais diversas, desde o triunfalismo angolano até ao Estado-falhado da Guiné-Bissau, tendo passado a ser apenas nações com as quais os portugueses terão sempre relações especiais. Mas, de todos, os que mais envelheceram terão sido os militantes do “verdadeiro socialismo”, tornados órfãos de um estalinismo que acabou por decompor-se internamente pela acção de massas humanas seduzidas pelos padrões de vida ocidentais, ou confundidos pela reconversão do maoismo a um estilo de capitalismo selvagem que está a fazer a China recuperar o seu “atraso histórico” bem mais rapidamente do que poderia ter sonhado qualquer voluntarismo marxista-leninista.
É verdade que é um sinal claro de que já entrámos na recta final (e oxalá fosse recta) quando nos damos a pensar que “Já pouco me excita! Já nada me indigna!”. Mas, apesar de tudo, o aguçar da sabedoria e da lucidez que a idade pode proporcionar não parece ser incompatível com ter uma “cabeça jovem”, se com isso se quer significar estar aberto às mudanças e a avaliar sem preconceitos – mas sempre com espírito crítico – o que de novo vai surgindo na vida colectiva. Porém, as tentativas para mascarar os sinais biológicos do definhamento são, não só ilusórias, como podem também ser perturbadoras para o próprio e para as relações que mantém com terceiros.
Flores na cabeça? Na nossa idade, as flores são boas, mas é para celebrar o início da “grande viagem”. Não para nos facilitar o caminho para algum purgatório ou para corromper os deuses que nos acolhem, mas antes para embelezar o ambiente daqueles que nos arranjam a trouxa.
JF / 21.Set.2013

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