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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Saudemos os levantamentos populares nos países árabes, para uma saída democrática

Depois da Tunísia, levantam-se consideráveis massas populares urbanas do Egipto, procurando derrubar Mubarak e o seu regime. Como sempre nestas circunstâncias, há gente ousada, vítimas, provocadores, depredações, respostas sangrentas das forças de segurança, mortos e feridos. É bom que não sejam em vão.
Por agora, tudo parece depender da atitude do exército, um dos mais poderosos da região, que tem força bastante para esmagar a revolta, mas não para convencer os egípcios a voltarem a aceitar o regime personificado por Mubarak e a sua clique.
A partir da interrogação do desfecho desta crise, também não sabemos como poderão evoluir as situações políticas internas nos países vizinhos que, após o derrube de Ben Ali na Tunísia, dão sinais de forte agitação nas ruas e de medidas cautelares nos palácios.
É certo que grandes dúvidas se colocam quanto às forças finalmente vitoriosas destas revoluções, tantas vezes iguais ou piores que os regimes que derrubaram.
Mas deve haver esperança quando sistemas solidamente instalados, na base do despotismo político, da repressão, da corrupção e das gritantes desigualdades sócio-económicas entre a elite do poder e a maioria do povo, começam a abanar e vêem fraquejar os seus apoios, internos e externos. Esperança sobretudo alicerçada na natureza, motivações e objectivos das populações revoltadas, quando há a hipótese de que destas crises saiam finalmente regimes razoavelmente democráticos, que respeitem as liberdades essenciais e procurem realizar mais justiça e equidade para toda a população.
É neste sentido que as actuais revoltas no arco árabe-mediterrânico podem vir a ser importantes e nos fazem lembrar as vagas revolucionárias de 1848 e de 1989 na Europa que, em efeito de dominó, viram sucessivamente ruir, uns após outros, regimes tardo-absolutistas (no primeiro caso) ou comunistas (no segundo) para darem origem a situações mais respeitadoras dos direitos humanos e de cidadania moderna. Mesmo quando se sabe que estes novos regimes democráticos vêm a frustrar grande parte das promessas e das aspirações inicialmente formuladas.
Com efeito, seria um grande passo em frente para toda a região do Magrebe e Médio-Oriente se às monarquias islâmicas mais fundamentalistas ou aos nacionalismos árabes protagonizados por militares (Boumediène, Assad, Sadam, Kadafi ou os egípcios Naguib, Nasser, Sadat e Mubarak) sucedessem regimes laicos pluralistas, respeitadores das religiões mas abertos à modernização social e melhores distribuidores da riqueza nacional.
Ora, é sobretudo o envolvimento de profissionais das classes médias, de jovens escolarizados (e muitas vezes sem emprego) e de forças políticas laicas ocidentalizadas nessa contestação, juntamente com a prova do uso dos modernos instrumentos de comunicação (telemóveis, Internet, etc.), que nos faz acreditar nessa possibilidade de uma saída democrática, viável e ajustada a cada situação local, com a devida contenção dos extremistas do radicalismo islâmico e sem a “bengala” artificial do anti-sionismo militante ou do anti-americanismo de princípio.
JF / 31.Jan.2011

sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

Lanza del Vasto e Mahatma Gandhi

Lanza del Vasto nasceu em Itália, em 1901 e faleceu em 1981. Estudou Filosofia em Pisa, onde se doutorou, mas desde cedo sentiu dificuldades em antecipar para si qualquer lugar numa sociedade dilacerada pela violência e pela procura do lucro e da dominação. No início da década de trinta, depois de vagabundear pela Europa central, dedicando-se a trabalhos artesanais, teve notícia das campanhas de desobediência civil que por então cobriam a Índia. Atraído pelas ideias de Gandhi, em que viu um sinal novo, único evento capaz de magnetizar um homem ansioso de viver com verdade, decidiu atravessar os mares e desembarcar na Índia para se dedicar por inteiro à revolução que então lavrava no vasto continente, sob inspiração do pequeno discípulo hindu de Tolstói.
O resultado imediato desse itinerário foi a escrita dum livro, Pèlerinage aux Sources, cuja publicação original, em língua francesa, aconteceu em 1943. Mais do que um livro de viagens, estabelecendo um marco novo nas relações entre o Ocidente e o Oriente, que também é, trata-se antes dum manual de iniciação à prática gandhiana – até naquilo que tem de metamorfose e questionamento pessoal – observada e experimentada em plena campanha de libertação da Índia.
O livro tem assim um duplo aspecto de reportagem, retratando ao vivo a forma como o núcleo mais íntimo de Gandhi vivia nas províncias centrais, entre Wharda e Sevagram, duas aldeias tradicionais de choças de adobe, e de teorização didáctica, registando porventura a mais esclarecida e informada síntese sobre a revolução não-violenta, tal como Gandhi a encarava e parte da Índia por então a vivia.
É este importante livro de Lanza del Vasto, com vasta fortuna editorial nos anos que se seguiram à publicação, que apareceu agora em língua portuguesa, com tradução de Helena Santos Langrouva e Glossário e Índice Remissivo final de José Carlos Costa Marques (Porto, Edições Sempre-em-Pé, 2010, pp.312).
Lanza del Vasto – que partiu para a Índia em meados do ano de 1936 e dela regressou dois anos depois – projectou no início da sua viagem não mais retornar à terra de origem, decidido que estava a passar o resto dos dias entre o estado-maior de Gandhi. Depois, à medida que o tempo passou, percebeu dentro dele a necessidade de voltar à Europa, não porque estivesse desiludido com o processo de libertação em que participava como observador privilegiado, ou sentisse a nostalgia do modo de vida ocidental, mas porque ouviu dentro de si o apelo de iniciar no Ocidente uma revolução comparável àquela que presenciava na Índia.
O resultado foi a fundação em 1948, em França, duma comunidade laboriosa, denominada “A Arca”, alicerçada nas duas traves-mestras da revolução gandhiana: ahimsa (conceito hindu de respeito por tudo o que vive) e svadeshi (independência económica, autarcia administrativa, governo dum por si próprio). A comunidade tem hoje mais de meio século de vida e corresponde por inteiro ao desejo inicial do seu fundador: um embrião da não-violência gandhiana no Ocidente.
Muitas das acções directas não-violentas que Lanza del Vasto e a comunidade por si fundada lançaram conseguiram vastos apoios e inesperados resultados, como a obtenção em 1963 do estatuto francês de objector de consciência – campanha esta em colaboração estreita com o anarquista Louis Lecoin (1888-1971) – e o fim da extensão do campo militar do Larzac, no Sul de França, depois duma luta cívica que cobriu uma década, de 1972 a 1981. Ainda hoje a compacta mobilização em França contra os transgénicos, o nuclear civil e a globalização financeira deve muito ao empenho dos seguidores de Lanza del Vasto.
Passam hoje sessenta e dois anos sobre o desaparecimento de Gandhi, assassinado às mãos dum fanático hindu. Não cremos que o interesse das suas ideias seja apenas histórico; pensamos que as linhas de acção que deram sentido à sua vida, delineadas numa época em que o Ocidente se preparava para construir a bomba atómica, iniciando a corrida ao armamento nuclear, continuam no essencial actuais, mostrando-se vitalmente necessárias a uma civilização que rompeu perigosamente o equilíbrio entre cultura e natureza.
António Cândido Franco / 30 de Janeiro de 2011

domingo, 23 de janeiro de 2011

Quem ganhou e quem perdeu

Ganhou o presidente Cavaco Silva (quando apareceu era o “professor Cavaco e Silva”) porque nele votaram: as pessoas de bom senso que acreditam na honestidade do homem e não queriam acrescentar à crise económica mais um rol de embaraços políticos; o “bom povo português” que gosta de ver um dos seus alçado à proeminência de Belém; os facciosos do “cavaquismo” e do “populismo PPD/PSD”. E também porque houve 4,2% de votos brancos e não foram votar 53,4% dos eleitores que não acreditavam nos candidatos nem se revêem nos partidos que os apoiam, porque já detestam “a política” ou porque simplesmente estão hoje sobretudo preocupados com o imediato das suas vidas.
Perdeu Manuel Alegre e “a esquerda”, porque os seus 19,8% de votantes só incluíram os “bloquistas”, muito menos dos eleitores PS das últimas legislativas (então 36,5%), o esquerdismo mítico saudoso do 25 de Abril (ou os restos simbólicos do republicanismo anti-fascista) e aqueles que são sempre “contra as direitas”.
Francisco Lopes e o PCP conseguiram um “empate” porque, mostrando a velha habilidade táctica do estalinismo, deixaram Alegre e a esquerda afundar-se sozinhos e mantiveram aproximadamente o seu bastião de 400 mil votos (7,1% contra 7,8% nas legislativas de 2009).
Fernando Nobre sai confortado desta aventura (que uns tantos lhe terão acenado) porque, sendo um homem bom e solidário, não se confundiu com os “políticos”; e sendo um homem livre, disse coisas – contra os interesses e os poderes estabelecidos – que só um homem livre pode dizer, nisso correspondendo ao verdadeiro espírito de cidadania felizmente presente em não pouca gente: os 14,1% que obteve são prova disso, embora sejam um potencial porventura inepto para o exercício do poder, nas actuais condições de funcionamento da vida política.
José Manuel Coelho, sem quaisquer meios, ainda recolheu muitos votos de protesto mas, com Defensor Moura, foi o “folclore local” que, com coragem e presunção, cumpriram desta vez o papel de compère habitualmente desempenhado por Garcia Pereira para dar credibilidade democrática ao processo eleitoral, mostrando que “mesmo os pequenos podem lá chegar”.
Agora, the show is over e é preciso pagar as contas.
JF / 23.Jan.2011

domingo, 16 de janeiro de 2011

Quoi de neuf na Tunísia?

Depois de 23 anos de poder presidencial instalado na Tunísia, na senda do “pai” Bourguiba, o povo urbano revoltou-se, apertado pelas condições económicas, e ao fim de alguns dias de motins e confrontos conseguiu derrubar e pôr em fuga o presidente Ben Ali (eleito, à maneira destes regimes de poder pessoal).
Saudemos os que se rebelaram contra um sistema cujos principais pontos de apoio são “o palácio” (que vem do tempo dos Bey e se manteve sob os colonizadores franceses), os aldeamentos turísticos, as mesquitas, os aquartelamentos militares e policiais, uma classe média letrada já com os pés assentes na universidade e nas empresas, e os numerosíssimos bairros pobres dos subúrbios! Lamentemos os familiares das vítimas desta sublevação! Mas o caminho que se abre agora está cheio de indeterminações.
Haverá mesmo eleições dentro de 60 dias e serão elas, processualmente, livres e justas?
Tal como se pode ver em canais televisivos, os ‘Irmãos Muçulmanos’ (e outros militantes islamistas radicais) terão estado certamente nas primeiras filas dos confrontos e tudo farão para controlar as dinâmicas que aí vêm. Quanto valerão eles eleitoralmente? Tentarão outras formas de luta, pela violência?
Externamente, que influência isto terá no Egipto, em Marrocos, na Argélia ou mesmo na Jordânia? Perante estas mudanças, como agirão os intratáveis líderes da Líbia e do Sudão?
Irá o “retorno do pêndulo” produzir uma nova ditadura ou conseguirá a Tunísia estabilizar-se numa situação respeitadora das liberdades e com maior justiça e equidade social?
São os dilemas que deixam sempre os regimes autoritários e de poder pessoal (de que o nosso Alberto João Jardim é uma pequena amostra).
JF / 16.Jan.2010

sábado, 15 de janeiro de 2011

Afinal, os gestores pesam!

Durante muito tempo, entendi que os salários elevados pagos aos gestores de topo das empresas e do Estado eram uma “falsa questão”, não em relação às desigualdades sociais nem à questão moral envolvida, mas como problema económico de apropriação do rendimento disponível. Era certamente uma noção que provinha das grandezas estatísticas objectivamente consideradas, mas também um pouco uma reacção ao “moralismo” contido em certas críticas contra “os ricos” pois, para mim, são “suspeitos de riqueza” todos aqueles que auferem rendimentos acima da média mundial (que serão todos os portugueses, ou quase).
Note-se que tais juízos, supostamente morais, se aparentam aos dos que, nos tempos actuais, bramam contra os “especuladores” financeiros, quando é sabido que – havendo embora especuladores (Soros e muitos outros) e especulação bolsista, monetária e financeira, como há fundiária e comercial – a maior parte dos movimentos de capitais nos mercados internacionais são o resultado de lógicas racionais de ganho a que nenhum investidor (grande ou pequeno) fica alheio; são, essencialmente, o resultado adicionado de decisões tomadas por bancos, companhias de seguros, empresas multinacionais, estados e outras entidades detentoras de grandes activos financeiros, a que acessoriamente se juntam, de facto, os “lavadores de dinheiro sujo” e outros traficantes e especuladores encartados. A lógica é a mesma que preside aos depósitos do pequeno aforrador: põem o dinheiro onde lhes parece que vai render mais.
Porém, hoje acho que devo reconhecer uma parte de erro naquela minha opinião inicial. Toda a informação, comentários e opiniões que têm circulado nos últimos dois anos fizeram-me pensar que, mesmo no plano estritamente económico, os “salários” dos altos quadros e administradores de empresas de média e grande dimensão – tal como as chefias e administrações dos serviços públicos – acabam por constituir já uma categoria quantitativamente relevante que pode ser destacada e confrontada com as remunerações dos restantantes “recursos humanos”. Com duas características adicionais: por um lado, esta gente constituirá uma “classe dirigente” que, além de muito bem paga, toma as principais decisões económicas e políticas no mundo de hoje, e como tal deveria ser responsabilizada (o que não acontece, por falta de visibilidade e consistência conceptual); por outro lado, como “classe dominante”, tende a fechar-se e a reproduzir-se, em benefício próprio, como se vê pelo conúbio público-privado, pela sua “internacionalização” e pelos “percursos de excelência” que possibilitam aos seus filhos, o que justificaria, pelo menos, um tratamento fiscal claramente diferenciado (e mais pesado, claro) daquelas pessoas comuns que pagam IRS pela sua actividade de trabalho.
JF / 15.Jan.2011

domingo, 9 de janeiro de 2011

Os sindicatos e a acção judiciária

Durante a maior parte da sua trajectória histórica, os sindicatos de trabalhadores contaram essencialmente sobre a sua capacidade de luta pacífica (pela greve, abstendo-se de trabalhar, perdendo também o seu salário) para forçar os patrões a ceder às suas reivindicações económicas, e às vezes os governos para que decretassem medidas de apoio social ou de dignificação cívica e cultural. Era a chamada “acção directa” ou de “pressão”, muitas vezes contando com a solidariedade dos de igual condição.
Mais tarde, no apogeu do Welfare State, emergiu e consolidou-se uma elite de sindicalistas especializados na negociação com empregadores e governantes, no quadro das convenções colectivas de trabalho e da concertação social. Foi um passo significativo de racionalização dos processos sociais, poupando sacrifícios e desperdícios, mas também com efeitos na separação psicológica entre trabalhadores sindicalizados e os seus dirigentes, apesar de tudo compensada pela existência ainda abundante de militantes de base, benévolos, e pelos apelos a acções de greve, a que os trabalhadores respondiam de forma variável, mas às vezes maciçamente.
Actualmente, começa a ser corrente entre nós (lembremo-nos das providências cautelares dos professores) que os conflitos de trabalho sejam canalizados para os tribunais, remetendo cada vez mais a sua solução para as mãos de um reduzido número de especialistas (agora juristas, depois de economistas e psicólogos), bem longe daquilo que era antigamente a “luta de massas”.
Mas não é extraordinário que seja a ineficácia e emperramento da nossa máquina judiciária que agora possa servir os propósitos de “combate de retardamento” com que a elite sindical procura travar a acção governativa de conter a despesa pública, numa situação de quase-bancarrota do Estado e de estagnação da nossa economia?
JF / 9.Jan.2010

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