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sábado, 30 de agosto de 2014

Para uma produção conceptual de artefactos sociáveis


(Para que uma ideia não fique definitivamente sepultada nas cinzas da nossa papelada, divulgo este breve ensaio produzido já há alguns anos.)


A vida quotidiana nas nossas sociedades contemporâneas mais amadurecidas é alimentada por dinâmicas económicas imparáveis que a acção política (sobretudo a prosseguida pelos governos nacionais) tenta, com melhor ou pior sucesso, controlar ou corrigir em função das suas orientações próprias. Porém, aquele dinamismo económico, fundado na plasticidade dos mercados e na iniciativa de múltiplos agentes, e potenciado nas últimas décadas pelos novos meios de comunicação e informação, que ajudaram a abater as barreiras ainda subsistentes (o bloco dos países socialistas, as fronteiras de pobreza do “terceiro mundo” ou as diversas culturas locais), tem vindo a ser contido (ao mesmo tempo de desenvolvido) em determinadas plataformas tecnológicas consistentes, que sucessivamente são superadas por outras com maiores potencialidades, que umas vezes inviabilizam as antecedentes, e outras vezes as preservam, acomodando-as apenas num papel algo diferente e um pouco menos importante do que até aí.
Se pensarmos no último meio-século, estamos agora a sofrer, em pleno, os efeitos dos automatismos de base electrónica, dos materiais “artificiais”, da tele-informática, da bio-genética e das tecnologias aero-espaciais. Mais de longe vêm as aplicações generalizadas da electricidade e do motor-de-explosão, que se têm mantido estáveis desde há praticamente um século. A física nuclear aplicada estagnou um tanto, por força de reacções sociais temerosas dos riscos que comporta. Enquanto, por outro lado, a máquina-a-vapor e o uso do carvão como combustível quase foram erradicados pelas vantagens económicas e produtivas de sistemas alternativos.
Neste contexto, a reprodução de modelos de relações e de representações sociais tem sido fortíssima e cada vez mais alargada, estruturando-se em contextos urbanos e massificados, em torno da função económica do consumo e na exibição do self em espaço público, no uso de uma língua-veículo cada mais vez mais universal (o “americano”) e em padrões culturais “ocidentalizados”, como a música ou a moda de vestir/parecer, ainda que inspirando-se em sonoridades ou adereços exóticos.
Num tal quadro, as formas tradicionais de controlo social, como a educação familiar, as crenças religiosas, a moralidade pública ou a repressão policial, revelam cada vez mais claramente a sua incapacidade e desajustamento perante tão grandes cenários de mudança, e as tentativas para criar novas formas de controlo social, como a prolongada escolarização geral da população juvenil ou os ensaios para uma cidadania mais activa e responsável, não produziram os resultados esperados, ou ainda não tiveram tempo de capitalizar de maneira durável um modelo de socialização de comportamentos e atitudes sociais de novo tipo.
Face a este défice, continua a imperar a incessante promoção da publicidade para a posse e dissipação de bens materiais e para a difusão de certos mitos estético-simbólicos – o automóvel e a star saída do anonimato são receitas de êxito garantido –, ao mesmo tempo que, nos últimos anos, se tem assistido a um irresistível avanço do apelo à diferenciação (a notícia-choque, a criatividade, as minorias, os gestos radicais, o “individualismo”) e a tentativa continuada para a legitimação das subjectividades e afectos (as “orientações” sexuais, “o directo” de-microfone-aberto à reacção do indivíduo indiferenciado, as oportunidades “para nos exprimirmos e cruzarmos experiências”, a ascensão do ficcionismo literário e a correlativa perda do discurso lógico e racional, etc.), onde antes se discutiam e confrontavam conceitos e ideologias.
Que estas saídas não são satisfatórias para o conjunto do sistema social e para muitas das pessoas que o compõem, parecem sugeri-lo vários tipos de indicadores ao nosso alcance: a opinião discordante de fracções significativas das populações, quando perguntadas a tal respeito em inquirições técnica e cientificamente controladas; a infelicidade existencial de muitos indivíduos, cujos casos mais agudos se manifestam por patologias de que os médicos especialistas muitas vezes dão conta; o “efeito perverso” da dissensão comportamental simples (que pode ir desde a fuga-aos-impostos até à violação discreta de várias normas prosaicas de conduta social, como o código da estrada, por exemplo); as práticas de vandalismo e de “violência urbana”; e, enfim, as vertigens do aniquilamento, pessoais ou grupais, auto-infligidas ou dirigidas a terceiros, naquilo que elas constituam de resposta específica a estes condicionamentos e angústias, e não como mera manifestação de criminalidade ou de desvio social, em geral.
Esta breve e arriscada síntese, pareceu-nos necessária para situar o nosso objecto de reflexão e proposta de trabalho. Mas podemos, já a seguir, avançar certas tomadas-de-posição por ela suscitadas, com consequências práticas imediatas.
Uma primeira dessas assunções é de natureza ética e exprime-se pela não-aceitação da negatividade, da dor e da destruição. Deploramo-las e desejaríamos preveni-las e evitá-las; no mínimo, procuraremos reduzi-las. 
Outra postura que assumimos é a da centragem sobre o concreto, a micro-escala e “as pessoas” (comportamento, entendimento e sentidos simbólicos), naturalmente sem ignorar a insignificância de tal fixação face às “tendências pesadas” e às grandes mudanças (políticas, em particular) que modelam a evolução das sociedades. Tal opção estriba-se, porém, no desinteresse pelas intervenções ditadas a partir das posições de poder, bem como pela recusa do encerramento em quadros teóricos de médio e longo alcance.
Em sentido semelhante, também prescindimos do contributo do estudo histórico que, cerceando decerto a compreensão dos fenómenos, pouco acrescentaria aos out puts previstos, que propomos deverem ser essencialmente de carácter prático, pontual ou mesmo elementar, embora difundível, reprodutível e perfectível pela análise do uso público e da experiência.
Nestas condições, esclarecemos que os referidos resultados deveriam desejavelmente configurar um modelo conceptual susceptível de registo legal como patente ou modelo, e não a natureza de uma norma jurídica que viesse a ser tornada obrigatória por imposição de um poder político legítimo.
E em quinto lugar, estabelecemos como indispensável a metodologia do trabalho-em-grupo pluridisciplinar, envolvendo nomeadamente arquitectos (ou designers), engenheiros (ou tecnólogos), economistas (ou gestores), psicólogos e sociólogos (e talvez outros ainda, mas de forma mais pontual), assim como adoptamos o princípio metodológico da acção-participada-com-os-actores, em especial com os agentes económicos (responsáveis de empresas) e dirigentes públicos (autarcas, etc.), sem excluir o contributo pontual dos “utilizadores” e futuros beneficiários dos out puts deste trabalho colectivo.
Posto isto, definimos, de forma fundadora e prescritiva, que a nossa problemática de estudo, projecto e intervenção deverá ser a da qualidade dos espaços públicos de uso quotidiano.   
Algumas precisões, sobre cada um dos termos incluídos nesta definição.
A qualidade constitui uma procura social do nosso tempo. Não nos encerraremos na perspectiva normativista que marca algumas das preocupações dos poderes públicos contemporâneos, bem como da comunidade internacional, mas assumimos a melhoria da qualidade existente dos equipamentos, dos dispositivos e dos processos como a possibilidade e a conveniência de responder a uma expectativa civilizacional aceitável e positiva.
Consideramos espaços públicos todos aqueles que são franqueados ao acesso livre das pessoas, incluindo, portanto, os espaços comerciais, de prestação-de-serviços e de lazeres pagos, para além dos espaços de uso comum de toda a população (as ruas, as praças e jardins, os parques, etc.) e dos edifícios e equipamentos de serviço público (como as escolas, os centros de saúde, as repartições de finanças e municipais, as “lojas do cidadão”, as cabinas telefónicas, etc.).
Finalmente, o uso quotidiano, quase implícito no conceito anterior, justifica-se sobretudo como uma indicação de prioridade e também de universalidade e polivalência do equipamento, face a outros “objectos” de uso mais raro (por exemplo, os hospitais ou os cemitérios) ou mais especializado (como as salas-de-visita das prisões ou as áreas sujeitas a servidão militar ou especial protecção ambiental). Neste sentido, os cafés e restaurantes, embora de propriedade empresarial privada, representam espaços e equipamentos de bastante relevância para este projecto, talvez equiparáveis à via pública pedonal ou aos veículos de transportes urbanos de passageiros. Correspondem aos chafarizes, aos mercados e aos lavadouros de outros tempos.
Poderíamos exemplificar, com vários casos passíveis de se constituírem como objectos de estudo, projecto e intervenção, não fôra o risco de poderem limitar a nossa imaginação e o campo de brain storming futuro. Apesar disso, podemos evocar “coisas” como: a organização e compatibilização de espaços para fumadores e não-fumadores; a desincentivação/inibição de zonas físicas a certo tipo de pessoas; os procedimentos e dispositivos (telefónicos e presenciais) de atendimento de utentes e indivíduos em busca de informações; a preservação do “efeito-marca” de certas instituições contra o “novo-riquismo” das siglas e dos “projectos”; a segurança, higiene, luta contra o vandalismo e incentivação à cidadania em espaços públicos anónimos; a dissuasão de comportamentos automobilísticos “assassinos”; a adopção de linguagens mais “amigáveis” para a operação de máquinas de serve yourself (distribuidoras de bilhetes e outras); etc.     
Mas não desejaríamos fazer este apelo sem avançar alguma coisa de concreto e palpável. Assim, começaríamos pelo alvitre de quatro projectos-piloto, que talvez pudessem servir de teste e experimentação pedagógica para esta forma de conceber, trabalhar e intervir no espaço público quotidiano, envolvendo diferentes actores sociais, interesses e tempos de aplicação. Ei-los, bem simples, ou mesmo elementares:
- o balcão de café;
- a paragem de autocarro;
- o banco de jardim;
- e ainda talvez sobre a suficiência de um só passeio pedonal (em certos casos, paralelo a uma pista “ciclável”) em vias de circulação semi-urbana, com os locais de atravessamento aconselháveis.
São todos artefactos ou dispositivos modestos. Et pourtant…

JF / 31.Ago.2014

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Divagações sobre fala, escrita e imagens, saber e comunicar

As técnicas de fixação e reprodução de imagens e som (fotografia, gravação sonora, cinema, televisão, etc.) conduziram a mudanças culturais muito fortes, sobretudo ao longo do Século XX. Hoje, que estamos a viver uma nova revolução tecnológica e cultural neste domínio, com a difusão de máquinas ligeiras e pessoais de integração destas técnicas com muito maior capacidade e versatilidade do que no passado (com o computador, a webcam, a câmara fotográfica digital, os tablets, os smartphones, etc.), pode ser interessante fazer o exercício de recuar no tempo e recordar o efeito avassalador do progresso das imagens sobre o uso do texto escrito, em apenas pouco mais de meio-século.
Na minha infância de classe média lisboeta, a fotografia fazia já parte do quotidiano urbano. Os jornais ilustravam frequentemente a sua “página um” com uma foto de actualidade feita por repórter da casa ou cedida por agência noticiosa, em vez da zincogravura artística que, não raro, ornamentava as folhas de imprensa do tempo dos meus avós. E todos podíamos ver o presidente Eisenhower a descer do avião em visita a Paris ou a imagem de destruição provocada na véspera pelo terramoto de Agadir.
Desde a juventude de meu pai que os burgueses tinham acesso a belas revistas ilustradas, estrangeiras e nacionais, muitas vezes em papel couché, onde desfilavam fotografias da Grande Guerra ou dos novos heróis urbanos do sport, alguma pose das reais famílias da Europa coroada, galerias onde se alinhavam risonhas faces femininas do estrelato da época ou instantâneos dos acontecimento recentes da vida política e social. Joshua Benoliel fez o seu nome de reputado fotógrafo nacional nas páginas semanais da Ilustração Portuguesa e foi através delas que pessoas como eu forjaram muitas das suas percepções sobre essa época, completando o que se lia naquela e em outras fontes escritas e com as transmissões orais que recebíamos da família e de outros “mais velhos”.
Como acontecera desde tempos imemoriais, a oralidade transportava então a palavra indiscutível do pai, do padre, do mestre ou do chefe (este, já um pouco menos…), mas também e vivacidade e o contraditório da discussão entre iguais, com mentiras e estratégias de afirmação pessoal, afirmações erróneas ou argumentações falaciosas, além de algumas velhas convicções sociais sedimentadas através de sucessivas gerações: os “saberes populares” e os preconceitos fundamente enraizados (acerca da origem e do destino humanos, das “raças”, da pátria, etc.). Porém, havia a rádio, meio comunicativo de massas e unidireccional, ao serviço dos poderes políticos (Hitler e os outros) e de alguns poucos profissionais desta técnica, que nos fascinava também pelo encantamento do teatro falado (as vozes ímpares de Álvaro Benamor e Manuel Lereno, entre outros), pelos relatos de pugnas desportivas “em directo” ou pela popularização gratuita das canções da moda (“uma torneira… a deitar música”, diria o António Silva), ao mesmo tempo que unia e uniformizava comportamentos e gostos estéticos, numa escala e com uma rapidez até então desconhecidas.
No campo das imagens fixas, fotográficas, desde a geração dos nossos pais que nas grandes praças urbanas ou nas praias de veraneio vagueavam fotógrafos à la minute em busca de quem lhes comprasse uma “chapa” e as famílias da classe média não apenas guardavam retratos dos seus maiores, mas produziam, elas mesmas, as suas fotos em quantidade, armazenadas em álbuns, em envelopes próprios das casas que as “revelavam” ou em caixas-de-sapatos. “Eles” tinham as Kodak e sonhavam com as Leica ou as Roleyflex; “nós” já manejávamos as Yachika e as projecções em slide. Em todo o caso, eram imagens que só podiam fixar um instante da “realidade”, parecida com a forma como o olho do fotógrafo as vira no momento. Mas a sua “verdade” era indiscutível, igual àquela que o repórter fotográfico colhia para ilustrar ou completar o artigo do jornal ou do magazine com um “boneco”. Sob o controlo – absolutamente decisivo – do editor da publicação, texto e imagem combinavam-se perfeitamente tornando ainda mais convincente o conteúdo da mensagem que ele queria transmitir.  
A contrario, a ausência de imagens constituía em muitos casos uma limitação à compreensão do texto mas também abria outros voos à imaginação de cada um, às vezes com saídas curiosas. Por exemplo, por alguma razão que não sou capaz de explicar, durante anos eu imaginava o escritor e crítico João Gaspar Simões como um senhor gordo e eventualmente calvo. Quando um dia vi a sua fotografia, ela era a de um homem magro, de bigode, bem longe da figura congeminada. Mas que importava este “realismo”, se eram as ideias e os argumentos aquilo que verdadeiramente interessava discutir? É certo que as “histórias aos quadradinhos” eram, frequentemente, um encanto para crianças e adolescentes. Mas, passada essa idade menor, todos apreciavam profundamente passar à leitura de textos longos, de novelas e romances, onde justamente a nossa imaginação podia prolongar e projectar mais além o fio de cada narrativa. 
Se passarmos às imagens em movimento, a geração dos anos 20 e 30 descobriu o cinema, o sonoro e a cor, sobrando para o segundo pós-guerra o scope, as “grandes produções” e a massificação do star system americano, cujo mais alto símbolo terá sido a loura Maryleen. Mas, no plano dos conteúdos, assiste-se a algumas mudanças fundamentais a partir da década de 60. Até então, a “moral da história” de praticamente todas as obras de ficção cinematográfica era límpida e positiva, mesmo no género da comédia: o bem devia finalmente vencer o mal; e os heróis eram os cow-boys, os soldados “aliados”, as figuras históricas consagradas ou os humilhados-e-ofendidos da Terra (que um dia chegariam ao seu prometido “Céu”). Porém, depois de algumas explorações de vanguardismo estético (alemão, por exemplo), começa a afirmar-se na Europa, sobretudo em França, um cinema de ruptura, crítico e mesmo niilista, onde os vilões passam a heróis, o crime compensa ou o no sens substitui o happy end. Por exemplo, nos anos 70/80 o filme-de-guerra que domina, mesmo no cinema americano, já não é o do soldado-herói; é o do soldado drogado e suicida de O Caçador ou outras películas semelhantes. Em geral, passou-se do elogio da guerra justa à crítica de todo o fenómeno bélico. Este novo género artístico rapidamente conquistou o favor das elites culturais da época e Hollywood encarregou-se de lhe dar projecção mundial. Mas, poucas décadas depois, chegaram os filmes mais infantilizados que exploram a violência espectacular (Rambo e companhias), bem como o intimismo sádico e perverso, em “séries” e filmes de grande sucesso. Não é de estranhar que as novas gerações lidem com à-vontade com tais cenas e fenómenos, tal como as anteriores achavam natural (e desejavam) o beijo cinéfilo que prometia uma felicidade definitiva. Ou que as crianças de agora julguem que os robocop ressuscitam, enquanto nós chorávamos com as aflições do bambi perdido de sua mãe.
Quanto às reportagens filmadas, no cinema mas sobretudo já na televisão, a sua força probatória foi esmagadora sobre populações culturalmente desarmadas para receber criticamente esta nova “verdade” – a dos acontecimentos “vistos por nós próprios” –, sem se aperceberem dos truques da montagem, onde só um descuido profissional ou um “directo que derrapa” deixam passar para o espectador alguma coisa que a realização não deseje.  
E não esqueçamos também que, há meio-século atrás, as palavras na boca de certos actores de cinema tinham uma força própria, que muitos decoravam, e que hoje perderam completamente; tal como a letra de algumas canções, sobretudo francesas – quando agora temos uma música mais marcada pelo ritmo do que pela melodia, mais “africanizada” e que amiúde nos transporta para as nossas raízes mais profundas. Não será por acaso que o último filme de Jean-Luc Godard tem por título Adieu au Langage.
Encaremos agora uma outra questão, com estas relacionadas mas passível de consideração autónoma: a recordação e o conhecimento.
A experiência directa (sensorial, psicológica e inteligível) dos humanos é uma fonte fundamental da sua relação com o mundo, com os outros, bem como da sua própria reflexividade e condição de um pensamento elaborado. No entanto, só por si, está longe de ser conhecimento, no sentido que a aventura humana lhe atribuiu há muito: primeiro, como conhecimento revelado (por uma fonte transcendental e omnisciente, de natureza não-humana); muito mais tarde, de há uns dois séculos para cá, através do conhecimento científico, experimental e investigativo, que aproveitou o que de melhor lhe havia legado a filosofia, através de uma secular corrente de grandes pensadores especulativos. Na ausência de uma acumulação sedimentada e ordenada de informação acerca de factos e de ideias, e de algum tipo de “metodologia do pensar”, a experiência pessoal, mesmo reflectida com detença pelo sujeito, desemboca quase necessariamente na confusão e no subjectivismo. É o que acontece, por exemplo, com as pessoas à-beira-da-patologia-mental. E é também por isso que a escolarização – mesmo elementar e às vezes canhestra –, o ensino sistematizado e a universidade são tão importantes, para nos transmitirem, em condensado, uma súmula útil do saber humano e nos impedir de tombar no caos do imediatismo.
Hoje, com a ênfase cultural posta no “império dos sentidos” e alguma crise de credibilidade da ciência – cujos agentes “se põem a jeito” com frequência –, assiste-se a um certo recuo nestas convicções, mercê dos efeitos de torvelinho do relativismo ontológico, que vai de par com o relativismo ético e a perda da referência de alguns fortes valores estruturantes dos comportamentos sociais.
Na verdade, o simbólico tem mais importância do que de ordinário se lhe reconhece. Nas sociedades contemporâneas vigora o primado do objecto material (quase sempre tomado como “a realidade”) e do valor mercantil (decorrente da troca, ou da fixação unilateral de um preço, mas sempre regidos a distância por uma situação de mercado mais ampla), a ponto de quase nos esquecermos que talvez nunca como hoje se dê azo à exibição das subjectividades individuais, dos gostos e dos afectos que, por definição, se inscrevem fora da órbita da economia e mais vizinhos do mundo dos símbolos. 
No entanto, continuam a esperar-se da ciência enormes progressos – sobretudo por efeito das aplicações tecnológicas úteis, menos pelo aprofundamento do conhecimento –, o que não tem sentido nem é possível no seio de populações culturalmente anãs. Por isso, mantém-se decisiva a chave da ruptura epistemológica existente entre experiência (pessoal, de cada sujeito) e conhecimento (organizado por sucessivas gerações de pensadores, múltiplas divisões de especialização, acumulação de resultados de pesquisa, discussão intracomunitária universalizante, saltos paradigmáticos e geniais visões inovadoras – e transmitido depois aos profanos através do ensino e de diversos meios de divulgação).
Sabe-se que as teorias psicológicas (ou, talvez melhor, bio-psíquicas) contemporâneas tendem a enfatizar a “comunicabilidade” entre as esferas cognitiva, emocional e afectiva do ser humano; e que outras neuro-ciências realçam os efeitos da genética e dos processos bioquímicos no funcionamento cerebral, do pensamento e do comportamento humanos.
Tendo em conta o essencial destas aquisições recentes, vale talvez a pena equacionar o efeito do tempo vivido da experiência humana para melhor procurar entender a particular compreensão que cada sujeito elabora acerca da sua própria “memória histórica”, conceito hoje muito em voga em alguns domínios das ciências sociais e já com aplicações no campo político (políticas do simbólico, museologia, preservação de marcas patrimoniais, edição, etc.).
Tomemos o tempo de vida médio de um Humano moderno. Com uma esperança-de-vida demográfica de 70 e poucos anos, cada indivíduo passa por um primeiro período de perto de 20 anos ao longo do qual sofre o seu processo de desenvolvimento em direcção à autonomia e, em média, gera os seus filhos cerca dos 33 anos de idade, o que significa que, ainda em média global, será avô por volta dos 66 anos. Temos, portanto, que cada pessoa tem oportunidade de conviver prolongada e intensamente com duas gerações posteriores à sua e com outras duas gerações que lhe são anteriores. Como estamos a tratar de memória e de impressão do passado na experiência da cada sujeito, são as duas gerações anteriores aquelas que nos interessam. 
Ora, até há poucas décadas atrás, a socialização e educação infantil faziam-se essencialmente no quadro da família nuclear, e mesmo a aprendizagem escolar era seguida de perto pela presença vigilante e obedecida da mãe e do pai da criança; apenas o grupo etário de convívio próximo (primos, vizinhança, bairro, colégio interno ou gang marginal) escapavam a este controlo. E por detrás dos pais funcionava também geralmente o respeito e a obediência devida aos avós, aliás muitas vezes moderada por uma maior tolerância e compreensão destes perante as irrequietudes juvenis. De uns e de outros, recebiam os jovens doses maciças de informação, narrativas ilustrativas do passado (recente), fronteiras sobre o lícito e o ilícito, motivações (positivas ou negativas) para a sua vida futura. 
Actualmente, nos países ocidentais e mais desenvolvidos do planeta, a instituição escolar tem vindo a substituir cada vez mais esta inserção familiar, com vantagens nuns aspectos e inconvenientes em outros. A transmissão dos conhecimentos objectivos e filtrados pela ciência (aqui servidos da forma mais ou menos adequada à idade dos alunos) tornou-se mais rigorosa, precoce, alargada e socialmente integradora de um maior número de crianças e jovens pertencentes à mesma coorte etária. Mas a transmissão dos valores e normas de comportamento social foi brutalmente afectada. Deixou de ser dominantemente conservadora (com as inerentes resistências, revoltas e desvios de indivíduos e grupos minoritários) para ficar desarticulada e à mercê de movimentos, interesses e forças contingentes que se exprimem na sociedade dos adultos: tendências educacionais, modas comerciais, expressionismos culturais e comunicacionais, lóbis de influência, novas religiosidades e ritualismos, etc.   
Voltemos então ao tema que vínhamos explorando. A (minha) geração dos urbanos de classe média nascida na década de 40 terá sido socializada através de uma composição aproximadamente equilibrada entre várias “fontes-de-saber”: a leitura (desde os livros escolares até à literatura romanesca, dos jornais às obras de história); a observação de imagens fotográficas e do fascinante cinema (onde, antes de cada “filme” – muitos de carácter histórico, antiga ou recente – passava sempre um “documentário de actualidades”); e a velha conversação interpessoal onde esclarecíamos ideias e conhecimentos, confrontávamos diferenças de apreciação e aprendíamos com quem sabia mais do que nós (e eram muitos, talvez quase todos). É certo que também assistimos ao surgimento da televisão, mas essa é uma outra história, que iria começar ali mas já pertence aos tempos culturais de hoje. Por meados do século XX, o meio tecnológico de informação mais “maciço” e avançado era indubitavelmente a rádio. Até porque, ao lado da ligeireza da publicidade comercial e do entretenimento, os serviços de “noticiário” se revestiam de alguma solenidade, com a voz cava e o tom oficioso dos locutores, bebidos talvez no profissionalismo da BBC, mesclado com os receios da censura do regime do doutor Salazar.
O acaso deste equilíbrio de fontes informativas (sempre muito relativo, claro) parece-me agora interessante, quer quanto ao que pode estar ausente na actual formação dos jovens, quer do ponto de vista do caldeamento entre diversos recursos do saber. Não obviamente para repetir as mesmas receitas do passado, mas para procurar uma paleta informativa bastante diversificada que deixe ao sujeito individual a última palavra sobre as representações que se podem ter acerca da realidade que nos cerca.  
Hoje, as imagens – quer as fixas, quer as móveis (sobretudo na televisão e outros suportes vídeo) – são sobretudo usadas na comunicação social como um “material” apto a ser manipulado, combinado criativamente e rearranjado ad infinitum com vista à produção de determinados efeitos sensoriais, emocionais e mentais no indivíduo receptor. A imagem publicitária foi talvez o “ferro-de-lança” experimental deste novo espaço de expansão do imaginário humano. Mas o computador multimédia, a Internet e as “redes sociais” estão a permitir pôr ao alcance de cada um, por relativamente pouco dinheiro, este “universo de fantasia”.
Em tudo isto, o texto inteligível e racional, organizado segundo regras próprias de sintaxe e apoiado em significados lexicais relativamente precisos, tem vindo a perder terreno. É ver como a telenovela substituiu o livro de ficção enquanto entretenimento cultural de muita gente! E dado que, depois da poesia bem formalizada, a escrita romanesca sofreu nas últimas décadas um processo de anarquização, entregando-se cada vez mais ao seu próprio jogo e à subjectividade de autores e leitores; restam os espaços da escrita ensaística e técnico-científica como últimos redutos do “escrever bem, claro e preciso”, já que no texto jornalístico ou do cronista o autor se permite cada vez maiores liberdades literárias (geralmente em prejuízo da comunicação), os escritos comerciais e oficiais mantêm o formalismo de sempre e na correspondência interpessoal as doçuras e agruras das cartas passionais são cada vez menos frequentes, em proveito da mensagem abreviada, sincopada e meramente alusiva que circula entre telemóveis.
Na realidade, no mundo de hoje escreve-se menos do que no passado (no sentido de uma escrita pensada e discursiva, poética ainda menos e só rarissimamente cartas de amor), embora haja felizmente muito mais pessoas a escrever do que há meio-século atrás. Mas, sobretudo, escreve-se de forma cada vez mais próxima da verbalização ouvida no quotidiano. É certo que em todas as épocas a oralidade veiculou estribilhos e expressões que depois se reproduziam mimeticamente. Por exemplo: “Fulano é um destravado” (ou Beltrana é uma “desaustinada”) apareciam frequentemente na fala de nossos pais para caracterizar alguém menos bem comportado; além do “pá” (que ninguém já reconhecia ser uma abreviatura de “rapaz”, como o “gar” francês o era de “garçon” – não é verdade, dr. Jorge Sampaio?), os da nossa geração tinham sempre pronta a sair a interjeição “a nível de…”; e com os revolucionarismos de 74 chegou o uso errado e a destempo do “despoletou…”; para quando os mesmos se tornaram democratas bem-alinhados passarem a comentar que “não é despiciendo…” isto ou aquilo.
De facto, todos os meios sociais e épocas geracionais reorganizam uma forma própria de usar a sua língua materna, alterando-o temporária ou mais estruturalmente, tal como o fazem e acrescentam os diversos linguajares técnicos e profissionais. Os homens do mar têm uma linguagem muito rica e conservadora de termos antigos mas simultaneamente bastante internacionalizada. Porém, não tanto quanto a dos engenheiros, tecnólogos ou aviadores, todos mais tributários das modernas ciências mecânicas que só existem de há dois séculos para cá. Entre os militares, além do respectivo jargão, há mesmo uma colocação de voz que lhes é típica, devido à habituação das transmissões de ordens orais, que devem ser seguidas de execução imediata e sincrónica por grande número de seguidores. Chega mesmo a ser cómico observar como um oficial em férias, em convívio com paisanos, vai progressivamente perdendo esse tom gutural de voz-de-comando, que tem rapidamente de readquirir logo que regressa ao quartel…Mas a expressão oral hoje mais corrente deve ser a do “economês” (que, apesar de tudo, nos tornou muito mais conhecedores de uma dimensão importante da realidade social do que alguma vez o fomos) e a antipática mas inevitável profusão de siglas pelas quais designamos e reconhecemos de modo imediato centenas ou milhares de instituições.
É claro que a linguagem que os mass media veiculam sobre certos temas também têm muita influência sobre a nossa maneira de pensar, através de estereótipos. Umas vezes são esses profissionais da comunicação que apenas procuram captar a atenção do maior número possível de pessoas, apoiados nas premissas que alguns psicólogos lhes ditam; outras vezes são, pura e simplesmente, preconceitos de que os próprios se não dão conta, de tal forma estão convencidos da sua certeza. São exemplos disto as frequentes referências que ouvimos fazer: aos “lucros fabulosos” da banca (mas que agora também sabemos poderem abrir falências, fraudulentas ou não); à suposta apetência dominadora dos Estados Unidos, seja económica ou militar (quando aquele não é hoje capaz de sustentar com sucesso um envolvimento militar distante e tem a sua própria economia sob ameaça); aos direitos dos indivíduos, dos grupos e dos povos (sem cuidar dos correspondentes deveres e das incompatibilidades entre alguns desses direitos); ao vanguardismo e inovação na arte, na ciência e nos comportamentos (quando geralmente esses avanços têm efeitos ambivalentes); à “naturalidade” de toda a gente querer sempre mais bem-estar; ao desejo irreprimível de “sol e tempo quente”; à “bondade” da Natureza, apenas interrompida por algum evento catastrófico; etc. São ideias-feitas que, depois, cada um de nós acaba por incorporar nos seus hábitos lexicais e reproduzir sem mais reflexão.
Os órgãos de comunicação social também são responsáveis por muita da “fulanização” da vida pública. Não é que as personalidades de indivíduos que ocupam lugares de enorme destaque e responsabilidade não tenham importância. Têm, e muita! E é mesmo por isso se justifica alguma luz sobre o seu passado ou sobre as suas características pessoais. Mas a sistemática substituição da apresentação e discussão das questões (sociais, políticas, económicas, culturais, etc.) pelo vasculhar das vidas e das relações entre “figuras públicas”, não só distrai os telespectadores para minudências afectivas, como lhes oculta uma compreensão mais vasta dos problemas que os afectam. Um exemplo disso passou-se no último congresso da CGTP em que, para as televisões, tudo girou à volta do fim do mandato do secretário-geral Carvalho da Silva e da sua eventual carreira política futura, ou da “afinação de voz” do novo líder sindicalista Arménio Carlos, obscurecendo qualquer significado acerca da eventual evolução da orientação da Intersindical e da sua relação com os partidos e o sistema político.
Pode talvez pensar-se que a forma da oralidade corrente e em moda entre a juventude de hoje (do género “é assim…”, ou “tipo… cena… bué…”) corresponde em grande medida aos efeitos produzidos pelas imagens-discurso mediáticas, sendo, como elas, marcada pelo sincretismo e simplicidade das frases, sua temporalização no presente e redução importante do léxico de significados empregues, conduzindo a uma espécie de “americanização” da linguagem. É claro que a língua inglesa – a de Shakespeare, mas igualmente o cockney “das docas” – também facilita a coisa, pela sua estrutura simples e mais lógica. Também por isso se tem tornado na língua-veículo universal. O Homem culto e literato é hoje um pouco como o homem já próximo do seu fim-de-linha. Não é ainda o enforcado que se esvazia, mas não anda muito longe disso. E não é por acaso que haja já quem defenda que, em dissertações de doutoramento universitárias, certas partes do texto possam ser ocupadas por imagens (e sons?), não como ilustração ou suporte do escrito, mas como seu substituto.
E se é verdade que a linguagem falada constitui o exercício principal de desenvolvimento pessoal (e social) da cognição, do conhecimento e da cultura, não deixa de ser preocupante a eventualidade de que esta “crónica mal-humorada” possa corresponder a um diagnóstico – se não certeiro, pelo menos aproximado – das tendências em curso na vida social deste nosso tempo.
JF / 15.Ago.2014

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