Contribuidores

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Voltar à luta anti-capitalista?

O Prof. Doutor João Caraça abriu o ano de 2014 com um artigo jornalístico intitulado «Em busca de uma Europa perdida» onde, relembrando alguns dos mais importantes momentos da vida política do continente no século XX, as reconfigurações da economia capitalista ao longo deste período, o esgotamento do Estado-providência criado pela esquerda, a implosão do bloco soviético e a crise europeia actual, termina afirmando: «Como se devia ter feito há 80 anos, é preciso hoje inescapavelmente mergulhar nos problemas, chamar as coisas pelos seus nomes, identificar o adversário real, transformar a crise em conflito, procurar as alianças onde existem as solidariedades que vão cimentar o mundo novo» (Público, 2.Jan.2014).
É facto notório que nos últimos vinte anos se tem assistido no Ocidente a sucessivos apelos a um retorno ou renovação de uma conflitualidade sistémica e geral de intenção anti-capitalista. Numa primeira fase, sob a forma de oposição à hegemonia mundial do “império” americano e à suposta ideologia do triunfo definitivo dos seus valores (democrático-individualistas-competitivos) e do “fim da história”; e numa segunda fase, a partir de 2008, com o renascimento de uma velha tese com algum curso dentro das teorizações marxistas acerca da “crise geral do capitalismo”, o qual acabaria por sucumbir pelo descontrolo das suas contradições internas.
Este discurso tem sido veiculado não apenas por agentes políticos, mas também por inúmeros expoentes do mundo académico, ensaístas, criadores, cientistas políticos ou economistas. Mas não temos ideia de ter visto até agora expresso de forma tão clara o propósito enunciado por João Caraça de “transformar a crise em conflito”, para o que seria necessário “identificar o adversário real”.
Ora, aqui começa o problema.
Deixando de lado as referências conotativas dos termos utilizados, podemos com alguma facilidade reconhecer todos os malefícios que os críticos atribuem à economia actualmente dominante no mundo, com acumulação de riqueza (e de poder) em alguns círculos e a dependência económica (e no que se segue) do maior número, com processos de valorização contabilística que têm sido destrutivos de valores culturais e patrimónios naturais que seria mister preservar, e, por fim, com a sua fácil acomodação a realidades tão enraizadas na história como sejam os regimes de tirania, as guerras ou as religiões, procurando daí sempre tirar algum proveito material. Tudo isto é verdade e deveria permitir uma base de sereno consenso entre opiniões filosóficas e políticas bem diferenciadas.
Mas, até um passado recente, os responsáveis e os beneficiários essenciais dessa economia capitalista podiam ser identificados de forma relativamente fácil: eram os proprietários de terras úteis, os senhorios urbanos, os grandes comerciantes, os patrões das fábricas e os banqueiros, que transmitiam a riqueza amealhada aos seus descendentes; e eram, também decerto, os governos hereditários (ou já eleitos por colégios eleitorais relativamente restritos e controlados por caciques locais) que iam produzindo legislação que consagrava e beneficiava aquelas categorias privilegiadas da população, com o propósito da conservação da desigualdade social então reinante. Quando no século XIX a aristocracia cedeu a maior parte do seu poder social e político, pôde então dizer-se que o grande adversário da emancipação da maioria do povo (operários, camponeses, pequenos empregados e outros proletários) era a classe social da “burguesia”, desde então apontada como o inimigo-a-abater pela “luta de classes”.
O século XX, com as grandes guerras, a ONU, o fim dos impérios coloniais e o conflito Leste-Oeste alterou uma boa parte deste quadro. A luta anti-capitalista manteve-se latente como motivação política nos países mais desenvolvidos, mas contida pelo “pacto social” implícito nos Estados-de-direito-e-de-bem-estar, através do qual massas crescentes das classes trabalhadoras foram passando ao estatuto de “classes médias” com padrões de consumo e qualidade de vida nunca antes experimentados, aceleração da mobilidade social (via escolarização) e uma fruição cultural (televisão, espectáculos, turismo) funcional à legitimação de todo o sistema. É logo desde os anos 50/60 que estas modificações estruturais da morfologia e das dinâmicas sociais começam a ser apreendidas por observadores como Bell ou Goldthorpe: a figura dos “patrões”, dos “proprietários” ou dos “capitalistas” tornou-se desde então cada vez mais difusa e politicamente incerta ou ineficaz. 
Hoje teremos talvez um “capitalismo sem rosto” em que os movimentos (especulativos ou racionais, conforme o ponto de vista) dos “mercados” respondem a interesses financeiros onde provavelmente se misturam: - os apetites de “investidores”-sem-escrúpulos; - as estratégias de aplicação de fundos de grandes grupos económicos; - as decisões calculadas de profissionais que procuram sobretudo melhores remunerações para os capitais de milhões de aforradores que lhes confiaram as suas poupanças; - os representantes das finanças públicas nacionais que respondem antes de mais aos seus objectivos de conservação do poder e às expectativas dos seus eleitores; - e, talvez ainda, alguns agentes mais obscuros que realizam “jogos estratégicos” situados na cena internacional. Como identificar aqui, politicamente, um “adversário”, sem cair em noções vagas e perigosas como a de “plutocracia financeira”, impossível de usar depois da criminosa aventura anti-semita dos nazis alemães?
É certo que, nas suas intuições filosóficas, Marx concebeu o desenvolvimento da economia capitalista como podendo conduzir a um “capitalismo sem capitalistas”, em que uma fabulosa máquina de reprodução do capital funcionaria inteiramente subjugada às suas próprias leis, negadoras de qualquer laivo de sobrevivente humanidade. Estaremos nós hoje à beira de uma tal realização? E como passar da abstracção filosófica ao plano do conhecimento sociológico, antes mesmo de o querer passar ao da acção política?
Não é crível que assim seja. E parece-nos mais plausível que a actual “narrativa” da história dos Homens – nunca como hoje tão interdependentes e unidos por laços comunicacionais, económicos e mesmo comportamentais e culturais – seja dificilmente compreensível à luz de teorias e paradigmas teóricos forjados nos séculos XVIII e XIX. As questões económicas, demográficas, sócio-étnico-culturais, científico-tecnológicas, ambientais, comunicacionais e geo-estratégicas, cada qual com a sua razão própria, são agora inteiramente diferentes.
Cremos que João Caraça tem razão quando refere que uma das primeiras percepções que resultam de um projecto de pesquisa internacional em que está envolvido foi a de que «a democracia representativa entrou no vórtice da crise». Com efeito, não é de espantar que mecanismos jurídico-políticos imaginados há mais de duzentos anos em tão diferentes condições civilizacionais das que experimentamos nos dias de hoje se revelem agora incapazes de dar respostas satisfatórias aos problemas que enfrentamos.
Algo de semelhante se poderá dizer da cada vez mais insuficiente base de legitimação das identidades colectivas em termos nacionais. Apesar da irrecusável herança cultural que esse sentimento de pertença continua a ter num grande número de Estados – embora ainda não em todos –, vivemos actualmente uma realidade onde o découpage fronteiriço histórico deixou, em boa medida, de fazer sentido para um número crescente de pessoas. No entanto, o Estado é ainda, praticamente, a única entidade reconhecida na ordem jurídica internacional e há matérias (de segurança, memória histórica ou particularidade identitária) em que o auto-governo da nação deve ser respeitado. Mas vamos, por isso, recuar para o “soberanismo” (como desejam os nacionalistas de extrema-direita e alguma esquerda) quando tantos problemas são hoje já eminentemente supra-nacionais e só nessa escala podem ser resolvidos? Ou devemos antes forçar os nossos governantes a uma maior cooperação internacional e ajudarmos a inventar formas de participação popular mais alargadas?
A par da necessidade de controlo social sobre os processos de desenvolvimento económico e de uma regulação mais eficaz dos sistemas financeiros e do comércio mundial, qualquer configuração ideológica que possa ser construída em resposta à presente “consciência de crise” (que afecta essencialmente a Europa mas pode ter repercussões em todo o mundo) terá de incluir perspectivas políticas de consideração daqueles problemas – de uma maneira acessível para todos e operativa para os representantes e responsáveis.  

JF / 26.Fev.2014

Arquivo do blogue