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sábado, 30 de junho de 2012

A profissão de jornalista

Informar, relatar, comentar, são funções básicas do jornalismo, hoje baptizado de “comunicação social”, apesar de também se empregarem termos como “jornal falado” ou a Internet nos convidar a todos para participarmos nessa comunicação, tornando-a mais horizontal e menos concentrada.
Há anos, alguém (na profissão) se escandalizava por eu estender a noção de ‘quarto poder’ aos próprios jornalistas, não a restringindo apenas aos donos e responsáveis dos jornais. É certo que, hoje ainda mais do que no passado – devido às insídias da comunicação não-escrita, explorando emoções, imagens, etc. –, os donos do poder mediático constituem um sector muito relevante, tanto no aspecto social (pela influência que conseguem ter sobre as percepções e comportamentos de enormes massas populacionais) como económico (tendo já há muito sido feita a sua articulação com o antecedente através da publicidade comercial).
Porém, falando do grupo profissional dos jornalistas, estes também participam largamente do uso, e do abuso, desse poder, embora de forma muito desigualmente distribuída entre os seus membros, como é normal nas profissões modernas (e antigamente nos ofícios manuais), segundo a antiguidade e o currículo construído ao longo de uma carreira.
Um dos bastiões do poder profissional dos jornalistas centra-se no facto de serem eles próprios a controlar o processo de formação e aprendizagem dos seus futuros colegas. A “sala de redacção” e as escolas de jornalismo são os espaços sociais onde estes se formam, e os seus mestres são os profissionais mais antigos e qualificados – não os magnatas dos “grupos de comunicação social”.
Deste modo, é à classe dos jornalistas que deve ser assacada a responsabilidade de terem deixado abrandar (ia a escrever, abandalhar) a vigilância da ética profissional ancorada sobre o rigor e objectividade da notícia – contrastando com a liberdade pessoal do comentário – em favor do “furo jornalístico” em-cima-da-hora, da acuidade psicológica na entrevista ou das revelações surpreendentes do “jornalismo de investigação”.
Os próprios jornalistas gostam de se vitimizar com a evocação da lenda da morte do mensageiro das más notícias. E tendem a esquecer que, desde o século XIX, a imprensa, usada como meio de propaganda, sempre serviu também para o combate político e para excitar os debates de sociedade. Mas, adeptos confessos da auto-regulação (veja-se o Conselho de Imprensa, a Comissão da Carteira Profissional, a Alta Autoridade para a Comunicação Social ou a actual ERC), tiveram contudo o “reflexo anti-fascista” de recusarem há anos, em referendo promovido pelo sindicato, a constituição de uma Ordem dos Jornalistas.
Creio que fizeram bem, se com isso anteciparam que a dita Ordem iria sobretudo ser um instrumento defensivo, de fechamento e auto-referenciação do grupo profissional. Mas terão feito mal se, como lhes competia e eles gostam de o proclamar, tal associação pública servisse antes de mais para assegurar o direito à boa informação (plural e variada, mas não excessiva) de toda a população, mediante as mais sérias exigências de rigor profissional dos jornalistas, que têm de ser livres no exercício da sua actividade, mas também não podem aproveitar-se do sigilo profissional para acoitar serviços ilegítimos pagos a dinheiro, em reconhecimento partidário ou em vantagens pessoais de diferente natureza.
Outra pecha de que serão responsáveis as actuais escolas de jornalismo é a de incutirem nos jovens candidatos à profissão a ideia de que o jornalista deve ser também um criador literário. É claro que é decisivo que o jornalista escreva bem (para o que precisa de possuir uma cultura muito abrangente) e houve sempre magníficos exemplos dessa qualidade de escrita, viva, mesmo em gente sem títulos académicos. Mas é pungente ver até que ponto hoje se sacrifica a concisão e o rigor da reportagem ou da notícia à exibição de supostos talentos literários, talvez imaginando-se novos Saramagos.
JF / 30.Jun.2012

sexta-feira, 22 de junho de 2012

Estratégias nacionais

Loureiro dos Santos é um homem muito inteligente e conhecedor, em matérias que ultrapassam largamente o âmbito da sua estrita formação militar. Tem, nesse sentido, os requisitos que se esperavam dos antigos generais: visão geral e estratégica, intuição, capacidade de leitura e de decisão.

Sendo também um opinion maker, há tempos que se dedica a construir um cenário de futuro, que outros comentadores também suscitam de modo diferente. Refiro-me à ideia de que a Alemanha estaria, desde há anos, a conduzir a sua acção política externa de modo a conseguir a supremacia na Europa que tentou no século XX em duas guerras sucessivas de tremendas consequências e nas quais sempre acabou vencida: agora por via da sua superior competitividade económica e do seu rigor financeiro, e já não por força dos canhões Krupp ou das panzer division empregues em blitzkrieg.

No artigo de opinião “Portugal, fronteira da Alemanha” publicado no jornal 'Público' de 19 de Junho passado, o general Loureiro dos Santos vai talvez mais longe do que nunca ao alertar-nos para o desígnio germânico de hegemonizar todo o espaço europeu para, como grande potência continental, ter chances de se bater no futuro com a potência marítima norte-americana ou quiçá do próprio Brasil, eventualmente até por meios bélicos.

Esquemas geo-políticos como este são certamente interessantes, não apenas como exercício especulativo e para uma melhor compreensão da história, mas também para serem tidos em conta, como hipótese teórica de trabalho, nas orientações e decisões de fundo que afectam a vida e o destino de grandes massas de populações, obviamente ignorantes de tais problemas. Porém, quando saem dos redutos de reflexão de especialistas para a praça pública, podemos estar também a assistir a exercícios de acção mediática destinados a influenciar a opinião pública em determinado sentido.

Aqui joga-se talvez a cartada da consistência do património histórico e cultural da nação portuguesa (eventualmente ameaçado por essa hegemonia germânica), o que, sendo uma realidade incontestável, não é em si mesmo um valor humano superior ao dos interesses colectivos do povo alemão: na sua pior versão, é um nacionalismo (que já foi grande e imperial, embora com aspectos “simpáticos”) contra outro nacionalismo (mais recente mas que marcou a história da pior maneira).

Num mundo em período de profundas mudanças – onde simultaneamente se observam os efeitos da mais recente globalização económica e comunicativa (e necessariamente cultural), as fricções de reajustamento entre potências consolidadas/decadentes e potências ascendentes, os sinais de alarme de crise na regulação económico-financeira mundial (podendo ameaçar a legitimação dos sistemas políticos democráticos que temos conhecido) e a sempre mais ampla consciência dos impactos humanos sobre a bioesfera –, tal posição defensiva da comunidade nacional é porventura uma atitude de prudência face às incertezas do futuro próximo. Porém, talvez não seja a posição mais acertada para ajudar a uma melhor compreensão do mundo que as rodeia, no que respeita às novas gerações de portugueses que hoje aprendem nas escolas (e na Internet) alguns elementos-base constitutivos de uma identidade cidadã que, não deixando de ser nacional, é já também sobretudo mundial.

O general Loureiro dos Santos é decerto um homem independente e probo, mas tal não impede que tenha vinculada a si uma mais aguda percepção dos interesses e da ideosincrasia do corpo profissional a que pertence (como se percebe, por exemplo, pela forma como frequentemente parece menosprezar a componente naval e marítima da nossa defesa nacional) e uma noção de patriotismo derivada da subordinação hierárquica da manu militari ao poder governativo da nação. A função de opinador público implica também uma consciência crítica destas condições em que todos nós (mas uns mais do que outros) nos encontramos. Isto porque me aparece cada vez com maior nitidez que, quando falamos do mundo e dos seus objectos concretos, nos estamos a revelar nós-mesmos, o que não deixa de ser epistemologicamente significativo.

JF / 22.Jun.2012

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Sociólogos distinguidos

A sociologia é uma ciência relativamente nova e que, também por isso, ainda vê pouco reconhecida a sua utilidade social. Além de que o seu discurso soa por vezes hermético e abstracto, qualquer um se permite ‘dizer coisas’ sobre o funcionamento das sociedades com ar definitivo e, ainda, os próprios sociólogos dêem por vezes péssimos exemplos públicos ao misturarem as suas próprias crenças pessoais com os resultados de uma investigação e teorização científicas que têm procedimentos e modos de pensar próprios e elaborados. Por virtude de tais confusões (e pela natureza do regime político anterior), a sociologia só pôde instituir-se em Portugal depois de 1974. Desde então um punhado de nomes têm marcado o desenvolvimento da disciplina, que regista alguns aspectos notáveis como sejam o número e a qualidade de jovens profissionais e investigadores já formados nas universidades portuguesas, que em nada são inferiores aos seus colegas estrangeiros. Vários desses nomes têm sido alvo de distinções honoríficas merecidas. É o caso de Boaventura de Sousa Santos, o mais conhecido de todos, também com boa projecção internacional, que criou em Coimbra um forte conjunto de praticantes da chamada sociologia crítica (também com algum empenhamento político), que foi o primeiro a ser galardoado pelo Presidente da República com a Ordem Militar de Santiago da Espada (apesar do nome, destinada a premiar obras científicas, literárias e artísticas). O mesmo ocorreu com João Ferreira de Almeida, durante vários anos a figura de proa dos sociólogos do ISCTE (hoje Instituto Universitário de Lisboa). Manuel Villaverde Cabral impôs-se sozinho no seio de um competitivo Instituto de Ciências Sociais (criado por Adérito Sedas Nunes, o verdadeiro introdutor da sociologia no país), inovando em muitos domínios e, por isso mesmo, abandonando a tentação de criar “escola”, mas sendo-lhe reconhecido o mérito de cidadão através da concessão da Ordem da Liberdade. Manuel Braga da Cruz sacrificou muito da sua carreira de investigador ao dirigir por longo tempo a Universidade Católica Portuguesa, o que também constitui uma forma evidente de reconhecimento das suas competências académicas. António Barreto tem sido outro “mestre sem alunos” que, não obstante, assinou algumas importantes iniciativas de difusão e divulgação de informação sociológica relevante, seja na área dos dados quantitativos, seja em séries televisivas de grande impacto, tendo visto o seu empenho de cidadão reconhecido de diversos modos pelos órgãos políticos nacionais. Hermínio Martins é completamente desconhecido do grande público, o que se justifica por se tratar de um típico “estrangeirado”, cuja vida académica foi passada em Inglaterra na sua maior parte, mas que também já viu os seus méritos galardoados entre nós com a atribuição de uma mercê honorífica. José Madureira Pinto é ainda um outsider mas, para muitos, o mais profundo, rigoroso e modesto desta plêiade, ainda assim não esquecido por Belém, que o condecorou com a Ordem do Infante D. Henrique. Ainda mais discreto é o seu conterrâneo António Teixeira Fernandes, pessoalmente ligado à Igreja Católica mas, sobretudo, conhecido como o criador da escola de sociologia da Universidade do Porto, cujo reconhecimento público ainda não lhe foi dado dessa forma. Finalmente, evocamos o nome de Alfredo Margarido, uma personalidade eclética há pouco desaparecida, avesso às formalidades académicas – e portanto também às suas distinções honoríficas – e que a Biblioteca Nacional acaba de homenagear com uma exposição, apodando-o de “pensador livre e crítico”. JF / 15.Jun.2012

sexta-feira, 8 de junho de 2012

A Síria é outra coisa

Como na Líbia, mas diferentemente da Tunísia ou do Egipto, o regime ditatorial da Síria não implode perante a contestação nas ruas: resiste e contra-ataca com brutalidade. O presidente, responsável em última instância, herdou o poder do chefe do partido laico Baas que governou autoritariamente o país durante décadas, de modo semelhante ao de Sadam no Iraque, embora sem petróleo e com um suporte social diferente: na Síria predominam os islâmicos alauitas sobre múltiplas minorias étnico-religiosas e neles se apoiou o clã político-militar do Baas, com a indispensável referência ao inimigo judaico (ainda ocupante dos seus montes Golan) e a tutela exercida sobre o estado libanês vizinho, desde os finais do mandato francês da primeira metade do século XX. Mas a época não está boa para tais heranças e o actual Al-Assad, não tendo tempo para construir o seu próprio carisma e não querendo exilar-se algures com a sua linda mulher, respondeu à contestação com a matança indiscriminada de opositores, seguro de que a Rússia não deixará de o apoiar até onde for possível, que ao Irão não desconvém a sua presença no terreno e que a China se oporá no Conselho de Segurança da ONU a qualquer acção de força internacional contra a sua soberania. Se houve recontros e mortos em todos os cenários da “Primavera árabe” de 2011 e se a obstinação de Kadafi levou a uma verdadeira guerra civil (que não se resolveria sem a intervenção dos ocidentais), mais de um ano de levantamento popular em Deraa, Homs, Houla e outras cidades sírias, reprimido pelas forças policiais e militares do regime, produziu já um total superior a doze mil mortos, segundo dados controlados pela ONU. À coragem do mesmo tipo de minorias urbanas de Túnis e do Cairo, juntaram-se porém desertores e dissidentes das forças de Assad, e outros grupos organizados e armados de identificação mais problemática. Diz a Amnistia Internacional que tem havido graves violações de direitos humanos de ambos os lados. O aristocrático africano Kofi Annan, antigo secretário-geral da ONU, tem procurado um cessar-fogo, que se está a revelar de difícil concretização, apesar do isolamento do regime no próprio seio da Liga Árabe. O “apodrecimento” da situação pode porém reverter a favor do governo de Assad, sendo irrelevantes as proclamações condenatórias americanas ou europeias. À falta de um novo milagre na estrada de Damasco, só talvez a Turquia, no quadro regional em que cada vez mais se afirma autonomamente, poderá dar um contributo efectivo para uma mudança no país, conduzindo a uma “paz justa” (com todo o relativismo que esta expressão pode ali significar, mas que abrangerá a recente condenação a prisão perpétua do egípcio Mubarak, que frustrou os mais sedentos de vingança), desde que se não descontrole a situação no vizinho Líbano e que tal não constitua uma nova ameaça para a segurança de Israel. JF / 8.Jun.2012

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Comprar o corpo, vender a alma

A questão da legalização da prostituição é velha de bem mais de um século. Mas esteja, ou não, no centro do debate público – o que só episodicamente acontece –, é um problema que sempre há-de dividir muito as opiniões. É consabido que a necessidade económica (nalguns casos, também a ambição) está na base da decisão da mulher em prostituir-se. Quando existe indução ou coação a tal prática, por terceiros, o caso torna-se mais grave e tem geralmente uma tipificação jurídica diferente. Mas tudo se complica quando esta pressão se suaviza por força da existência de um laço afectivo intenso entre a prostituta e o proxeneta. Ela jurará que o faz “por amor” (do seu querido). E aqui pode atingir-se a situação-limite em que a prostituta aluga o seu corpo ou se presta a dar prazer ao cliente, mantendo-se virgem, fiel e apaixonada na sua relação emocional profunda com alguém. Parece, contudo, indispensável que a sociedade permaneça atenta a estes casos e possa impedir e penalizar o aproveitador e beneficiário de tal situação, ajudando a mulher a superar essa dependência. Com a habituação e a experiência, a prostituta pode tornar-se verdadeiramente “actriz” da sua actividade, simulando o que não sente e repetindo profissionalmente gestos e poses supostos capazes de provocar excitação sexual num “cliente médio”. O diferencial entre este standard e a realidade de cada beneficiário constitui a medida exacta da frustração ou da exaltação recebida em cada uma dessas experiências. Mas o perfil da “oferta” é hoje talvez mais amplo do que no passado. Numa situação económica menos carente, não pode excluir-se a prostituição por gosto do risco ou desafio do abismo, como várias obras literárias e cinematográficas têm procurado ilustrar. Ou ainda, com a liberalização das normas de moral social, que certas mulheres se entreguem a tal prática apenas limitada ou esporadicamente, com o objectivo puramente instrumental de obter um rendimento suplementar ao seu modo de vida habitual. De facto, os constrangimentos ou abrandamentos da moral aceite na sociedade – e mais ou menos plasmada nas suas leis estatais – têm enorme importância nestes comportamentos humanos. Houve uma época, recente, em que tudo se aceitava, desde que fosse feito na sombra (da casa particular ou do bordel) e sem “escândalo público” – situação que era fustigada pelos seus jovens críticos com a acusação de “hipocrisia”. Hoje, com a importante ajuda dos “produtores culturais” e dos empresários do espectáculo, quase tudo se aceita e a quase tudo se pode aceder no espaço público, de modo presencial ou “mediático”: strip-tease, todas as modalidades de sexo, erotismo e pornografia, boxe ou wrestling, música alucinante, cenas de violência ou sadismo (só as touradas concitam o rigor abolicionista de alguns). E aquilo que era, desde há milénios, uma prática de mulheres, tornou-se também o destino de alguns homens ou de pessoas sexualmente indeterminadas. É claro que estas coisas têm também de ser vistas do lado da “procura”. O cliente da prostituição é sempre o frustrado ou um incapaz de seduzir? Já não se fala nos antigos exércitos que isolavam prolongadamente milhares de homens e para cujas necessidades fisiológicas, emocionais e afectivas pareciam preferíveis os bandos de vivandeiras (ou os bares de retaguarda) do que a violação das mulheres do inimigo após a excitação do “cheiro da morte” no combate. Mas até nos confinamentos prisionais hoje se procura atender a estas necessidades! Mais genericamente, é questionável que, mesmo numa relação afectiva estável e compensadora existente no seio do casal familiar, não sobrevenham fases ou momentos de insatisfação sexual em algum dos parceiros. O recurso à prostituição, como cliente, é então certamente o modo mais rápido e prático de resposta (desde que exista oferta adequada). E é o que leva muitos a pensar que a prostituição, de uma ou outra forma, nunca cessará por falta de procura, seja nas sórdidas vielas escondidas de Charles Dickens, seja actualmente em casas de “massagens” ou no turismo sexual de certos países do oriente. Em todo o caso, se para o cliente se trata se comprar um momento de prazer, o vendedor estará sempre a alienar uma fracção da sua intimidade: é, no fundo, um trade-off compreensivelmente humano, mas pouco edificante. JF / 1.Jun.2012

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