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sábado, 29 de outubro de 2011

Entre o universalismo de esquerda e o assistencialismo de direita

Para além dos modernos sistemas de solidariedade e previdência social (em que todos contribuem para aqueles que são atingidos pelo desemprego, a doença ou o acidente de trabalho e, por outro lado, se garante uma pensão aos idosos e incapazes), boa parte da chamada “acção social do Estado” tem dado origem ao cavar de fosso entre duas perspectivas principais, entre as actuais forças políticas de direita e de esquerda.
As “esquerdas”, geralmente conotadas com a defesa dos interesses e direitos dos mais fracos e numerosos, tenderam a estabelecer direitos universalmente usufruíveis (gratuitos, se possível), pagos pelo orçamento do Estado que, por sua vez, através dos impostos, deveria penalizar fortemente os mais ricos e assim corrigir as desigualdades económicas existentes na sociedade (e que estão longe de ser apenas fruto do capitalismo). Com isto, operaram alguma distribuição de rendimentos mas fizeram crescer enormemente uma burocracia de funcionários públicos, ainda por cima geralmente pouco eficiente, criando também novos lugares de decisão, ao alcance da sua intelligentsia, mais bem preparada intelectualmente. E recordo-me de, no início dos anos 70, um notável sociólogo da Europa do norte ter chamado a atenção para uma provável “revolta dos contribuintes”, tal o nível aí atingido pela fiscalidade para fazer face à despesa pública crescente, ainda antes da aceleração da circulação do dinheiro e do triunfo das engenharias financeiras, com os riscos de “descoberto” que agora se vêem.
As “direitas”, evoluíram mais rápida e notoriamente: vieram do conservadorismo classista que considerava as populações operárias e camponesas como desprezíveis; integraram parte do estatismo e do populismo das ideologias autoritárias europeias da primeira metade do século XX; absorveram o sentido cristão da caridade ou da solidariedade; mantiveram o apego aos valores da propriedade, do mercado e da livre iniciativa; souberam passar do proteccionismo ao livre-cambismo e à concorrência cada vez mais aberta; e, last but not the least, deixaram de se apresentar como guardiões do statu quo e passaram igualmente a defensores da “mudança”.
No plano aqui em discussão, têm porém visões bem diferentes da esquerda sobre o que deve ser o “Estado social”. Por exemplo, defendem geralmente o princípio do “utilizador-pagador” (de uma auto-estrada ou outro equipamento colectivo), em vez da gratuitidade; não só propõem “taxas moderadoras” na saúde (e outros serviços públicos, para evitar o seu uso não justificado) como acham mesmo que, quem mais tem, mais deve pagar no uso que faz daqueles caríssimos recursos; na educação, propõem o “cheque-ensino”, para permitir a livre escolha dos melhores estabelecimentos de ensino e sustentar a oferta privada no sector; avançam com “plafonamentos” dos descontos obrigatórios para a segurança social para aliviar o Estado do ónus da evolução demográfica e interessar os seguros de capitalização; julgam que muitos serviços públicos (transportes, correios, energia, águas ou televisão) podem ser privatizados, com vantagem para os cidadãos, menores custos para o Estado e oportunidades de negócio para a iniciativa privada; etc.
Presa no seu imobilismo ideológico, a esquerda tem cedido, pouco a pouco, em diversos pontos deste programa. Em compensação, inovou no capítulo dos “novos direitos” para responder a reivindicações de minorias (na sexualidade, relações inter-étnicas, fruição cultural, direito civil, etc.).
Entre estas duas visões dominantes, pouco espaço resta para uma alternativa se afirmar. No entanto, ela existe já, e especialmente apta para lidar com “problemas sociais” deste tipo: encontra-se no “3º sector” e é constituída por uma apreciável rede de instituições locais de entreajuda e solidariedade social (mutualidades, misericórdias, associações, ONG’s). Aqui, não existem objectivos lucrativos (como nas empresas), há maior sensibilidade humana e relações de proximidade (ao contrário das instituições públicas), dá-se oportunidade de uma acção socialmente útil a um significativo número de colaboradores voluntários (não remunerados) e ainda se contribui para o emprego de uns largos milhares de trabalhadores, muitos deles de parcas qualificações profissionais. É verdade que, entre nós, a maioria destas instituições é de inspiração católica e serve também os seus intuitos proselitistas, mas esse é um desafio que outras orientações espirituais, éticas ou políticas já deveriam ter resgatado há muito tempo, fazendo igual ou melhor no mesmo campo.
O que falta então? Faltam “empreendedores sociais” mais imaginativos e responsáveis e, em especial, os financiamentos para construir e manter tais equipamentos, uma vez que quase não se pode contar com as contribuições dos beneficiários. O Estado subsidia (e bem) estas actividades, mas aí se criou também uma excessiva dependência, que só pode ter efeitos nefastos. Seria, pois, muito desejável que, na base do altruísmo, se desenvolvessem os mecanismos de “recolha de fundos” no seio da sociedade civil (como acontece em países anglo-saxónicos), logicamente apelando sobretudo aos níveis mais elevados de rendimentos, para que o “3º sector” pudesse ganhar uma outra auto-sustentação.
JF / 28.Nov.2011

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