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quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Fecha o Verão, reabrem-se as rotinas


Está a encerrar mais uma temporada de Verão, que igualmente significa do tormento dos incêndios florestais. Desta vez com o mais pesado balanço de que há memória recente, com os 64 mortos registados em Pedrógão Grande ainda antes do início oficial da temporada e a maior área florestal alguma vez ardida em Portugal num só ano (mais de 230 mil hectares).
Como se compreende, aquele incêndio de Junho impressionou o país e gerou uma interessante onda de solidariedade mas, como era inevitável, a seguir veio a exigência do apuramento de responsabilidades e a querela política, apesar do quadro eleitoral autárquico não ser o mais propício para tal. Por esta razão e pela própria complexidade do fenómeno, o debate público rapidamente resvalou para as subtilezas das razões técnicas e jurídicas já fora do alcance da compreensão das pessoas comuns, que continuaram  a elocubrar em termos como: “isso é o interesse dos madeireiros”, “são os corporativismos em choque uns com os outros”, “eles não vão parar com os eucaliptos”, “os políticos são todos iguais”, etc. – percepções que não andam longe da verdade mas que são claramente insuficientes para um esforço de análise dos problemas e a definição de pistas para a sua resolução, sobretudo para o futuro a médio prazo. Neste sentido, entre tantos outros, realço o artigo do economista universitário Raul Lopes saído no jornal Público de 18.Jul.2017 ou a opinião  expressa no mesmo jornal a 7 de Agosto pelo não-especialista António Neto, cidadão atento e bem informado.
Já em Setembro do ano passado aqui tínhamos colocado um texto reclamando uma revisão profunda da política florestal e do regime de plantação existente – que imporia limitações ao direito de propriedade – e no Outono manifestámos algumas expectativas favoráveis ao pacote legislativo então apresentado pelo ministro Capoulas Santos. Agora, tudo foi de novo posto em discussão: não apenas aquelas questões, mas também a eficácia do Serviço Nacional de Protecção Civil, o SIRESP – “sistema-de-informação” de emergência que deveria integrar todos os dispositivos de segurança existentes no país (e note-se que aquela expressão significa um “complexo informático” só produzido por grandes empresas do ramo, neste caso bem conhecidas por boas e más razões) –, a competência e o grau de especialização dos bombeiros, a utilização dos meios aéreos, o desempenho da GNR e do “115”, a melhor adequação das espécies arbóreas às actuais condições climáticas e às características do nosso espaço rural, o papel dos meios de comunicação social, etc. Esperamos (quiçá ingenuamente) que, para além das diatribes partidárias e parlamentares, um razoável consenso possa ser alcançado quanto à orientação dos poderes públicos nos próximos anos, sem que cada governo se empenhe sobretudo em destruir o que o antecessor realizou, mas procure apenas melhorá-lo. Houve, porém, duas matérias que aparentemente ficaram fora da discussão: o problema do povoamento disperso em grande parte dos nossos espaços rurais e o significado (para nós, portugueses) da eficaz intervenção de grupos especializados de bombeiros espanhóis que acorreram com viaturas da Galiza, Estremadura, Madrid e Andaluzia para combater os incêndios de Pedrógão, Figueiró e Góis. Sobre isto me quero também manifestar.
Como fenómeno que é, em parte, global (devido ao aquecimento atmosférico) e internacional-regional (pelas semelhantes condições e continuidades da floresta mediterrânica), é normal e salutar que haja cooperação de vários países em meios de ataque a incêndios quando estes atingem proporções catastróficas, como foi o caso. Mas se o empréstimo de aviões-cisterna pesados já é habitual, não o é tanto a deslocação de viaturas e bombeiros-sapadores especializados (militares?) espanhóis que, pelo que se viu, tiveram uma intervenção decisiva para reduzir e finalmente extinguir as chamas que persistentemente lavravam no concelho de Góis, sobretudo. Fizeram-no discretamente, sem “espectáculo” e com grande eficácia, fugindo à “mediatização” como sempre deveria ser; e foram-se embora sem “honras” nem fanfarras, que o sul da Andaluzia estava prestes a requerer também os seus serviços. Sem qualquer laivo de “patrioteirismo”, não poucos se terão sentido envergonhados com esta prestação solidária, perante as manifestações de impotência e desespero que pudemos observar em tantos nacionais. Gracias, a nuestros hermanos! (que os seus dirigentes não deixarão de recordar aos nossos na primeira oportunidade que se lhes deparar, para daí tirar vantagem.)
Recordaria agora que, nesse anterior escrito, se afirmava que «o direito de propriedade destes solos deve ceder a prioridade à segurança contra o fogo, seja em termos do regime de florestação […] seja em termos de limpeza e manutenção […]. Todos os terrenos abandonados devem reverter sem demora para o património público e aos proprietários dos não-cuidados (por prazo de cada temporada) deveria ser automaticamente retirada a sua gestão […] deixada a empresas privadas de dimensão adequada especializadas nesta actividade, em regime de concessão que respeitasse o direito dos proprietários a receber a sua quota-parte do resultado financeiro daquela exploração e as melhores regras de segurança anti-fogos e de preservação ambiental».
É possível também que a anunciada “bolsa de terras” possa vir a integrar a cedência graciosa, pelos proprietários, de matos e mesmo do direito de replantação de “árvores bombeiras” nas suas terras abandonadas por essas mesmas empresas concessionárias (talvez por prazo de 20 a 30 anos), que disso tirariam rendimento, no quadro de planos de ocupação arbo-agro-pastorial dos solos gizados por equipas de técnicos competentes.
Com envolvimento dos municípios, competiria sobretudo ao Estado o cadastro dos solos, a definição legal das condições de plantação e exploração e das normas de segurança para as habitações rurais, o concurso para as empresas concessionárias (não em PPP, mas sim em concorrência entre si no âmbito de áreas geográficas alargadas), a vigilância e coordenação do ataque aos incêndios (com meios próprios e do voluntariado) e a fiscalização do cumprimento de todos estes preceitos.
Dantes, as tropas apeadas ou montadas (por “vocação”) e os oficiais de estado-maior (por necessidade) conheciam muito bem o território nacional, sobretudo o mais acidentado, por ser menor a intensidade tecnológica do seu armamento e o terreno constituir, nesse caso, um elemento fundamental de sucesso ou de derrota. Hoje, são os autarcas quem melhor o domina, porém com a abissal diferença da sua fragmentação (quase sempre de costas voltadas para os concelhos vizinhos). A visão integrada do nosso espaço rural, com a acentuada diversidade que contém, exige agora que uma nova lógica de interesse público presida às grandes orientações estratégicas (actividade económica, propriedade fundiária, povoamento, meios de comunicação, preservação ambiental, segurança pública, protecção civil, etc.) e, seguidamente, à (re)construção de estruturas e processos organizacionais e à selecção do respectivo pessoal especializado (sobretudo ao nível dos principais decisores), bem como a uma adequada informação às populações. 
Obviamente, a questão do povoamento  está estreitamente articulada com o regime de propriedade de minifúndio que domina o centro e norte do país (mais o Algarve) e, além disso, com ainda outras variáveis como sejam o valor económico das plantações, a eficácia das redes viárias e de telecomunicações electrónicas,  a responsabilidade camarária pelo licenciamento de novas construções de habitação (e reabilitação das mais antigas), as características demográficas da população ainda aí residente e o seu apego a manifestações simbólicas ou culturais muito compreensíveis (ermidas, lavadouros, festas, cafés, etc.), por serem estruturantes da sua identidade social.
Porém, se naquela região do “pinhal interior” ainda subsistem algumas aldeias ou lugares com uma dimensão, população e identidade mínimas – que precisam de ser protegidas contra estes riscos com melhores acessibilidades, comunicações e proximidade de apoios de todo o tipo (bombeiros, segurança policial, emergência médica, correio, etc.) – basta andar cinquenta quilómetros mais para o litoral para que a paisagem humana se modifique inteiramente, com casas e casais isolados e dispersos pela natureza, que sempre se tornará impossível proteger em termos equivalentes, tal como, de resto, certas povoações de montanha onde sobrevivem miseravelmente alguns poucos milhares de rurais idosos. São três tipos de povoamentos distintos, a que a sociedade e o Estado terão de responder com soluções diferenciadas, a saber:
a) nas aldeias viáveis, assegurar as referidas condições de segurança e plena interligação com o tecido social mais próximo, sem contudo desperdiçar qualquer oportunidade para uma concentração populacional mais eficiente nas vilas e cidades vizinhas, que apresentam outras e melhores condições de vida, de dinamização económica e enriquecimento cultural;
b) no povoamento individual-familiar disperso, de pessoas com razoáveis ou bons meios de subsistência (incluindo as numerosas habitações secundárias), consciencializá-las da obrigação que têm de (custear e) cuidar da sua própria segurança ao quererem preservar esse seu isolamento e individualidade, recusando-se também os municípios a licenciar a construção de novas habitações em semelhantes condições; c) finalmente, no terceiro caso, é indeclinável dever da sociedade arcar com a responsabilidade e os custos dessas situações de isolamento de pessoas sem recursos próprios, incentivando a sua deslocação para a vila mais próxima e tratando-as, em todas as circunstâncias, como “casos sociais” que realmente são (geralmente vivendo da horta, da capoeira e de um subsídio público), fornecendo-lhes, no mínimo, meios de alerta e socorro de emergência, de simplicidade e eficácia comprovadas.
Da mesma forma que a floresta, a agricultura e a pecuária precisam de ser empresarializadas, já não sendo sustentáveis por mais do que uma geração as micro-explorações familiares tradicionais de parcelas pequenas e dispersas, trabalhadas com equipamento rudimentar. Empresarializado já o está, em parte, o sector vinícola e o olival (este, sobretudo no Alentejo, graças ao impulso espanhol), a pecuária intensiva (muitas vezes em degradantes condições de acondicionamento dos animais) e a produção industrial de rações. A isto se pode juntar a fruticultura do Oeste (cooperativizada) e o pequeno nicho associado na AgroBio. Aqui se têm registado os mais acentuados progressos na última década-e-meia. Mas a maior parte da área agricultável e de pastorícia terá de sofrer restrições e estímulos especiais para que não persistam as terras incultas e para que os pequenos-e-médios proprietários sejam melhor formados, devidamente equipados e descubram as vantagens do associativismo cooperativo na especialização das produções, no uso da maquinaria agrícola apropriada, nas colheitas e aprovisionamento dos mercados, na contratação de frescos com as “grande superfícies” comerciais, nos processamentos industriais e na exportação. As “denominações de origem” de vários produtos oriundos da pequena empresa familiar são tão um bom instrumento de progresso, certificação da sua qualidade e sustentação a mais longo prazo.
Há cinquenta anos, a “reforma agrária” foi um projecto nacional falhado, pela sua instrumentalização partidária e desadequação histórica – como ainda há pouco relembrou na televisão António Barreto. Mas o país continua à espera de uma reestruturação fundiária que viabilize a agricultura moderna de que se carece sem contudo, desajeitadamente, destruir os últimos traços de cultura camponesa que ainda dão sentido à ocupação que fazemos deste território.

JF / 21.Set.2017 

Leituras

Como tantos outros, venho aproveitando o tempo livre para me deleitar com obras literárias, modernas ou clássicas, mas sobretudo estas últimas, algumas das que sempre haviam sido postergadas para melhor ocasião, ou apenas lera pela rama.
Shakspeare deu-me algum gozo, sobretudo pela conjugação da linguagem tardo-medieval do seu tempo (o da rainha Isabel I, de Inglaterra, em finais do século XVI) com a agilidade mental de uma oralidade (e teatralidade) onde o inesperado e o a-propósito garantem a sua perene vigência ou actualidade. Estão em causa os mais fortes e poderosos sentimentos humanos, como a ira, a volúpia, a traição, a vingança ou a ambição. Mas também as congeminações inteligentes que exploram cacafonias, lapsos de linguagem ou segundos-sentidos surpreendentemente modernos, com a surpresa adicional do emprego inusitado de palavras ou expressões como a fórmula latina ergo (lembram-se do cogito, ergo sum cartesiano?), ou o termo portulano (os mapas geográficos medievais pré-científicos). Talvez que a tradução francesa (clássica e riquíssima) o tivesse aqui favorecido, mas fiquei estarrecido com a rigorosa utilização de diversos substantivos e gestos do duelo esgrimístico na cena final de Hamlet, comparando-os com o vocabulário hoje empregue nessa actividade lúdico-desportiva: “fleuret”; “En garde!”; “Touché”; “Arbitre?”; “Touché, je l’avoue”; etc.
Também Calderón de la Barca, ou Cervantes, deixaram escritos que os aproximam do grande épico lusitano, não fosse a versatilidade literária deste e a sua vida errante de poeta, guerreiro e transgressor lhe assegurarem um lugar muito especial no nosso imaginário colectivo, não só lusitano, mas igualmente de toda a época Renascentista que fez renascer as civilizações Clássicas e, de alguma maneira, as mitificou.
Stendhal ressurgiu-me como um exímio contador de enredos e explorador de fios narrativos, onde a ironia está muitas vezes presente. E também com a acutilância de observação do gaulês perante a adorável frivolidade dos transalpinos.  Em La chartreuse de Parme, por exemplo, o jovem encantador Fabrice é-nos apresentado como o ingénuo e inocente adorador de Napoleão a quem a “boa vivandeira” salva de um precoce desastre nos subúrbios (da batalha) de Waterloo e, depois, como o amante já mais amadurecido da duquesa sua tia (viúva, com apenas mais 17 anos do que ele) que desperta mal-contidos ciúmes no conde de Mosca, sagaz primeiro-ministro do principado de Parma mas finalmente de bom coração, o qual urde teias e armadilhas que levam o jovem à tonsura eclesiástica, às rocambolescas aventuras amorosas com a actriz  Marieta, a Fausta cantora lírica e a Clélia filha do general, bem como a duelos, crimes, emboscadas e outras cenas do mais descabelado romantismo. Tudo isto, a par da implacável descrição dos actos e intenções dos detentores do poder despótico de então, bem como daqueles “vermes” que à sua sombra se davam largas a todo o género de patifarias.
Céline ou Joyce tiveram continuadores realistas à altura como Steinbeck, Heminguay ou Henry Miller, todos necessariamente vindos no Novo Mundo. Mas Gide, por exemplo, daquela mesma época, furou alguns tabus ao investir nos redutos da intimidade. Em O Imoralista, ele expõe-nos num francês belíssimo que já só raramente se fala (veja-se o constante uso do tempo verbal do participe passé) as atribulações de um ser – talvez nós próprios – a contas com a doença, a perspectiva de uma morte precoce e a exploração das relações da mente, dos impulsos e das ideias com o próprio corpo e os seus avatares. A interacção conjugal entre duas pessoas de tão diferente temperamento, as constantes viagens, o sortilégio dos ambientes magrebinos e as rotinas da vida camponesa numa França intermédia são também estruturantes neste curto relato de vida, ainda e sempre marcado pela ameaça e o flagelo do que era então a tuberculose.
Há um século, porém, começou a dar-se na literatura uma verdadeira revolução, como aliás em outras artes. Para além do génio multímodo de Pessoa, o fio narrativo das novelas e romances sofreu fortes ímpetos transgressivos em autores como Jack London (ver a sua vivência animal em O Apelo da Selva) ou Joseph Conrad (em O Coração das Trevas) que, ultrapassando o universo da literatura de viagens e do desconhecido, anunciam o que virão a fazer sistematicamente escritores contemporâneos como Saramago ou Umberto Eco, que tornearam os escolhos perigosos das literaturas pós-guerra de Camus ou dos malditos da beat generation. Eco, por exemplo, em O Cemitério de Praga baralha-nos a leitura com saltos na temporalidade e na linearidade do relato, na identidade das personagens (e do próprio narrador) e diálogos formalizados ou apenas pensados (passados à escrita de diversas formas), como o fazem também actualmente autores como Gonçalo M. Tavares na sua perturbante Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai.
É compreensível que num mundo tão desnorteado como o deste início do século XXI a literatura não se possa eximir deste ambiente cultural. Não é por acaso que os comentadores estejam a afirmar que no festival de cinema de Veneza deste ano dominaram as realizações descrentes sobre o futuro da Humanidade, algumas anunciando mesmo uma tragédia final. 
Aquelas são leituras que vale a pena fazer, tanto quanto as dos consagrados lusitanos Vieira, Garrett ou Camilo. Com a diferença que, tirando o Eça, o Pessoa e o Saramago, os nossos apenas foram conhecidos por aqui e um pouco no Brasil, enquanto aqueles se tornaram autores universais, graças à maior projecção da sua língua materna, à boleia de outros desígnios mais declaradamente imperiais.
Porém, outra coisa é tentarmos nós próprios aventurar-nos na ambição de escrever, hoje, qualquer coisa de original, que não seja uma paupérrima cópia do muito que os nossos olhos haviam já percorrido. Primeiro, a ideia, o enredo, a matriz de uma historieta que se possa contar e ser lida; neste caso, a “deformação profissional” do analista dos processos sociais mais a sua racionalidade terão tué dans l’oeuf a imaginação necessária à escrita ficcional. Depois, a arte (que se tem ou não, embora pelo esforço possa ser aperfeiçoada) do relato, da descrição dos ambientes, dos diálogos, dos pensamentos e sentimentos das personagens: a história pode não valer grande coisa, mas a escrita torná-la sublime (como fazem os génios literários – apesar de muitos vezes estarem longe de ser “boas pessoas”). Finalmente, há ainda o ritmo próprio com que as frases vão passando da cabeça do escrevinhador para o papel, quantas vezes traindo a sua intenção inicial e como que “escrevendo-se sozinhas”, embora e sempre retocadas pelas exigências externas e posteriores da gramática e da ortografia. Enfim, numa palavra, obras (tentadas) de fraca qualidade por quem não foi fadado para tal e que só a amizade ou o amor podem valorizar de outro modo. Assim seja.

JF / 16.Set.2017

sábado, 9 de setembro de 2017

Mercados e poder

Em análise meta-teórica, podem encontrar-se diversos pontos de aproximação entre alguns fenómenos do funcionamento da economia moderna e o “mercado eleitoral” que organiza o acesso ao poder político nos estados democráticos.
Qualquer que seja a fórmula adoptada – movimento, associação, frente, união, etc. – os partidos políticos (“partidos” porque são sempre e apenas parte de uma totalidade inexpressável) são indispensáveis em qualquer regime político democrático: porque isso implica pluralismo; e porque a agregação funcional de interesses e ideias ou projectos comuns se realiza através de formas mais ou menos estáveis, institucionalizadas, mas com plena auto-determinação. De facto, essas formações partidárias podem criar-se, transformar-se ou dissolver-se, regulamentar internamente o seu funcionamento e definir os seus objectivos e meios de actuação apenas pela vontade dos seus membros, sendo, neste sentido, mais uma plena emanação da sociedade civil, tal como a Modernidade a formulou nos últimos dois ou três séculos. A Lei tem aqui um papel perfeitamente secundário, de incentivo ou travão, que apenas regulariza detalhes.
Temos então, desde já, uma primeira homologia entre estes sistemas políticos democráticos e o funcionamento dos mercados nas economias abertas e expansivas que conhecemos. Isto, num duplo sentido. Por um lado, pode dizer-se que, perante o estímulo que constituirá a possibilidade de governar impondo uma específica orientação a toda a sociedade (incluída no âmbito da soberania estatal), apresenta-se uma panóplia de diversos arranjos instrumentais aptos a serem testados para poderem vir a deter em exclusivo essa prerrogativa. “Partidos de caciques”, “partidos de eleitores”, “partidos de massas”, “caudilhismo” – eis algumas das modalidades que as sociedades modernas têm experimentado para lograr o mesmo objectivo, além da eventual coexistência com um chefe-de-Estado vitalício e hereditário, com acontece em certos países europeus, devido aos ditames da história. Consoante as épocas, as culturas nacionais e a sua experiência e memória colectivas, uma ou outra fórmula tem demonstrado melhores aptidões para o fim em vista. Hoje, cansados de alguma exaustão das práticas partidárias geralmente existentes, está-se talvez a assistir aos ensaios de um novo veículo de acesso ao poder, através de uma espécie de “populismo electrónico” que age sobretudo por imagens, slogans e ideias simples, as quais percutem os cérebros de indivíduos muito hábeis a usar as “TIC’s” mas de memória e conhecimento histórico extremamente rudimentares (e frequentemente falsos). 
Mas, com maior evidência, o “mercado eleitoral” surge aos nossos olhos nas pugnas políticas contemporâneas sobretudo devido ao facto da publicidade (designada “propaganda” na primeira metade do século XX, sem receio nem sombra de vergonha) ter – como na economia – um papel crucial no convencimento dos anónimos destinatários, especialmente durante as campanhas que antecedem as eleições, o que não acontecia anteriormente, pelo menos em grau sequer aproximado. Vejamos em separado cada um destes dois tópicos.
De facto, já vimos como nas diversas modalidades de processos eleitorais temos de um lado os “vendedores do produto” (os partidos ou personalidades em concorrência) e do outro os “compradores ou consumidores” (os cidadãos inscritos e aptos para votar). Os programas políticos, as mensagens explícitas ou subliminares, a personalidade visível dos candidatos, as imagens de apoio mobilizadas (em cartazes, encenações, etc.) correspondem à exibição das mercadorias em locais de venda, à divulgação de serviços prestáveis aos clientes ou às diversas formas da sua “promoção”. Nenhum comprador/votante é coagido física ou juridicamente a escolher tal ou tal “produto”, sendo formalmente livre a sua escolha, e mesmo a opção de recusar a compra de qualquer deles. Só que, na realidade, o leque de opções do cidadão é limitado à oferta que lhe é proposta, tal como o consumidor perante as mercadorias exibidas numa feira medieval, nas prateiras do supermercado ou nos produtos que consegue alcançar via Internet. Eis então uma primeira máxima a reter, nos tempos actuais: o comprador está sempre dependente da oferta (seja no tocante a orientações político-sociais ou perante produtos de primeira ou segunda necessidade). E sabemos que, só no longo prazo (por vezes, no longuíssimo prazo), a oferta é capaz de se adaptar ou corresponder àquilo que percebe serem os interesses ou necessidades da procura.   
É verdade que, tal como ensinam os manuais básicos de economia, a concorrência na oferta funciona a benefício teórico (e efectivo) do comprador, mas existem as distorções que prejudicam essa mesma concorrência, nomeadamente com os efeitos de concentração (empresarial/sectorial) que se vão aproximando das situações de monopólio. 

Segundo tópico: o da liberdade de escolha do consumidor/eleitor. Ela existe no plano formal ou jurídico. Mas, ficando apenas por aí, estaremos a ignorar os processos sociopsicológicos que condicionam os comportamentos de todo e qualquer indivíduo. Ora, é justamente sobre estes processos que incide a “propaganda” ou, actualmente, o marketing (embora estas técnicas também se dotem do louvável propósito de “informar o consumidor” e definam “linhas vermelhas” de deontologia própria). Esta área académica e profissional cresceu enormemente nas últimas décadas, quer no âmbito da actividade económica, quer no que toca ao “marketing político”. Os “conselheiros de imagem” e os “adidos de imprensa” (ou de comunicação) trabalham junto dos actores políticos de feição homóloga à dos “criativos” e psicólogos dos departamentos comerciais das grandes empresas. O objectivo é sempre o mesmo: induzir o comportamento do sujeito a optar pela alternativa pretendida. Mas estes especialistas têm como alvo não somente os diversos segmentos de público a quem se dirigem (com argumentos e “efeitos” particulares) mas igualmente, em modo triangular, a forma como os seus concorrentes estão desenvolvendo as suas respectivas campanhas, tentando aí evidenciar as diferenças valorativas do seu “produto” e não hesitando em atacar qualquer ponto fraco do(s) adversário(s). Embora no plano comercial (e até jurídico) existam regras éticas a cumprir que deveriam travar tais dinâmicas, bem sabemos pela publicidade televisiva, radiofónica, “painelística”, etc., como ela é frequentemente contornada. E no terreno da competição política nem isso existe, com a legislação eleitoral a referir-se apenas ao uso das imagens-símbolos dos concorrentes ou à igualdade dos tempos de antena, à fiscalização do escrutínio e pouco mais.
Ora, neste tópico, de novo a oferta se agiganta brutalmente relativamente à procura – tanto em termos comerciais como na competição política. No primeiro caso, as pessoas ainda dispõem de algumas associações de consumidores de razoável credibilidade, que informam o público, realizam testes comparativos, influenciam e fazem pressão sobre as autoridades ou as forças económicas (embora só muito raramente apelem ao boicote, que equivaleria à greves nas disputas capital-trabalho). No domínio do sistema político, nada existe de comparável. Os cidadãos encontram-se desarmados, face ao sistema instalado de organização do poder democrático; e ainda em pior situação psicológica quando não têm qualquer convicção e estão fechados por breves instantes no “isoloir” onde devem marcar a sua cruzinha no boletim de voto.
Não há qualquer dúvida de que – estando finalmente em jogo o destino de toda a comunidade – o voto secreto individual é imensamente preferível a qualquer tipo de designação por “braço no ar” ou “aclamação”, com acontece em alguns regimes populistas. O voto secreto individual é o que mais se aproxima da escolha de um sujeito comprador quando vai ao mercado: se não está convencido, nada compra. E, ao menos, proporcionam-se as condições para um voto livre e em consciência. Mas isto não deve ser transformado num dogma sagrado e indiscutível. Deve apenas ser considerado por aquilo que é: um instrumento prático e simples – largamente compreensível por multidões mesmo pouco instruídas (sensibilizou-me muito o referendo que consagrou a independência política da Namíbia, com o dedo molhado em tinta a substituir os cadernos eleitorais) – mas que também tem defeitos e limitações.
Lembremo-nos que, diversamente, quando se trata de tomar decisões de grande responsabilidade e impacto por um pequeno órgão de poder colectivo – um governo, um conselho de administração, uma direcção partidária ou de instituição científica, social, etc. – outras regras específicas devem ser previamente estabelecidas, que responsabilizem individualmente cada um dos membros mas simultaneamente moderem os efeitos “miméticos” e “estratégicos” entre os participantes, e entre cada um deles e as suas eventuais “clientelas” exteriores. As teorias de decisão conhecem muito bem estes diversos “esquemas” e propõem diferentes maneiras de minimizar os seus efeitos mais perversos.         

Juntemos ainda uma terceira reflexão: a oferta pode ser mais ou menos abundante ou variada. Mas também pode ser excessiva, como acontece nos grands magasins onde o cliente fica atordoado perante a profusão de artigos, com os seus preços, qualidades e aspectos variegados (apenas no pormenor), acabando muitas vezes por comprar “ao calhas” ou por sair confundido, chateado e de mãos a abanar ou finalmente com uma aquisição que em parte lhe desagrada. Um número excessivo de candidaturas políticas (arrisquemos uma cifra: talvez superior à dezena), já ultrapassa a pluralidade de opções que racionalmente deverão existir e tal pletora tem apenas por justificação as “tricas” internas ao sistema partidário e como consequência principal confundir o cidadão-eleitor. Mas, naturalmente, em sentido contrário, a escassez de bens na prateleira ou a redução das candidaturas eleitorais a um mínimo inexpressivo iludindo o verdadeiro exercício da escolha (ou com candidatos-fantoches, etc.), podem cumprir os requisitos formais do mercado e da democracia eleitoral ao mesmo tempo que subvertem substancialmente os seus principais fundamentos. Em teoria económica, a penúria e o açambarcamento de bens são estudados como perversões do mercado (e às vezes punidos por lei); mas as equivalentes deturpações em matéria democrática ficam, em geral, apenas sujeitas às opiniões dos comentadores, mais ou menos isentos (até que chegue a hora dos historiadores), e às denúncias dos perdedores, sobre as quais há que ter também a maior das cautelas por, obviamente, serem parte interessada.
A possibilidade de um conjunto alargado de peritos e representações internacionais poderem finalmente qualificar umas quaisquer eleições concretas de “livres e justas” é o selo de garantia mínima que equivale à situação de um mercado económico em estado de funcionamento regular, sem distorções forçadas ou acidentais entre vendedores e compradores. Individualmente, uns ganharão, outros perderão; uns mais, outros menos; outros ainda abandonarão a partida por falta de meios ou desinteresse. Mas o “ajustamento espontâneo” de diferentes interesses terá sido conseguido, sem extorsões, ameaças, coacções ou derramamento de sangue. Tal com nas feiras e mercados é prudente que existam fiscais ou polícias para lembrar o respeito à ordem vigente e instâncias de recurso para controlar os pesos e medidas ou decidir de pequenos litígios porventura acontecidos, também nos processos eleitorais se exigem meios de segurança preventiva, mecanismos de fiscalização e controlo, e instâncias jurisdicionais de apelação.
Como se percebe, em todas estas homologias está também presente um idêntico risco: na distorção da oferta económica, o monopólio; e na asfixia democrática, uma real tirania – ainda que de forma disfarçada e não explícita.
Para além da sua própria auto-regulação, o mercado é constantemente corrigido pela intervenção estatal, que fixa condições legais de produção e venda, exigências de qualidade dos produtos, etc. Pelo contrário, nada nem ninguém, do exterior, controla ou coage o funcionamento do sistema político, que funciona, fiscaliza-se, etc., segundo as suas próprias regras, isto é: as ditadas pela elite (em parte internamente conflituante, em parte comungante) que ocupa os seus postos dirigentes. Se nas últimas décadas o comércio internacional “disparou” (com efeitos maciços da escala, práticas de dumping, proteccionismos encapotados, etc.) e, em especial, os mercados financeiros entraram em “roda livre”, foi justamente porque, tendo ascendido a um nível supra-nacional, se conseguiram furtar a uma parte da capacidade de intervenção dos governos ou jogaram com as rivalidades existentes entre estes.
E subsiste um pecado menos visível mas nem por isso menos destruidor, sob a forma de gangrena que progride e atinge mais e mais partes e órgãos do “corpo social”: o conluio, a corrupção, o “arranjo particular” entre agentes destas duas esferas distintas da acção humana. Dito de outra forma: sob a protecção do “segredo de Estado” ou do “segredo dos negócios”, combinarem-se operações vantajosas e exclusivas entre titulares de cargos oficiais e detentores, promotores ou representantes de grandes (ou mais modestos) interesses privados, para a obtenção de ilegítimas vantagens, imediatas ou a mais longo prazo. Os casos concretos que vão sendo noticiados dão-nos uma ideia (seja pálida ou carregada) do fenómeno. Esta é outra “doença” que está afectando com gravidade crescente a credibilidade moral das nossas instituições públicas.

Resta, por fim, a diferença abissal de, ao contrário da multiplicidade de bens e produtos que caracterizam a troca económica e a fixação dos respectivos preços, a competição eleitoral com o objectivo da conquista do poder político se concretizar, em geral, pela ocupação absoluta e sem partilha da mais alta instância do Estado e das prerrogativas que lhe estão associadas (prerrogativas, note-se, que deveriam apenas defender os seus titulares do assédio dos poderosos e não como benesses discricionárias à sua ordem). Ao longo da História, quase sempre foi assim. E um tal desiderato justificou ódios, envenenamentos, negócios matrimoniais, traições, tratados, guerras, genocídios e outras atrocidades próprias da espécie humana. Neste aspecto, a história do municipalismo – não sendo exemplar, longe disso – é bem mais reconfortante e incentivadora para o futuro.
Quase sempre foi assim, mas não tem que continuar a sê-lo. A cultura e a ciência dos dois últimos séculos, juntamente com a economia, revolucionaram a face da Terra. Mais do que apelar à razão ou à moral, ou esperar pelos resultados da crença liberal do “free minds and free markets”, uma leitura reflectida das oposições internas (e externas) existentes em obras como Ideologia e Razão de Estado (Jaime Nogueira Pinto, 2013) e O Processo Civilizacional (Norbert Elias, orig.1939), passe o ideário próprio do primeiro autor e apesar do descomunal tamanho de cada uma delas, deveria constituir programa obrigatório para qualquer indivíduo consciente que quisesse, de facto, interessar-se pela regeneração das nossas sociedades.           

JF / 9.Set.2017

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Desmontemos um pouco os jogos democráticos e as suas razões económicas

O regime democrático é provavelmente aquele que até hoje melhor serviu os interesses-a-prazo dos povos mas não está isento de defeitos e críticas.

A sua ideia-chave é a de que o governo é constituído com base na vontade popular expressa em eleições livres e “justas” (fair), quer dizer, sem coacções físicas exercidas sobre as pessoas nem artimanhas grosseiras para favorecer ou prejudicar certas candidaturas, falsificar os seus resultados, etc.

Mas as eleições livres e justas (hoje sob vigilância de observadores internacionais, autorizados, quando está em dúvida a autenticidade do processo) têm alguns pressupostos que, com o tempo, foram sendo aperfeiçoados e adquiriram o estatuto de condições sine qua non para a sua aceitável validação. Entram nesta categoria: uma lei eleitoral que atribua a capacidade de voto de forma tão abrangente quanto possível (com exclusão dos menores e dos inimputáveis, mas tendo o “sufrágio universal” levado tempo a vingar e só então acabando as exclusões das mulheres, dos pobres, iletrados ou condenados); a existência de cadernos eleitorais credíveis; a diversidade de candidaturas (pessoas ou partidos); condições de aproximada equidade no período da “campanha eleitoral”, para a informação pública dos programas dos candidatos; boletins de voto e acto do seu preenchimento assegurando o sigilo da escolha individual; escrutínio e publicação dos resultados com a presença de delegados das candidaturas, com instância de recurso imediato para reclamações, nas mesmas condições; e duração dos mandatos electivos por períodos determinados (variando geralmente entre 3 e 7 anos), com previstas possibilidades da sua antecipação. Fora deste conjunto de condições, falar de democracia é geralmente um exercício especulativo ou de mera propaganda ideológica.

Não obstante isto, existem variadas maneiras de influenciar os resultados de um processo eleitoral. A mais importante e evidente é a desigualdade de recursos financeiros entre as várias candidaturas, que pode permitir uma “massacrante” propaganda das propostas de uma candidatura e da pessoa que as corporiza, por via dos mass media. Outra é a utilização do aparelho administrativo do Estado, por parte da força política que está exercendo o poder, coagindo subtilmente os seus funcionários, utilizando os seus recursos materiais, etc. E outra ainda é a daqueles que são capazes de mobilizar organizações não-políticas (sindicatos, confissões religiosas, associações sociais ou culturais, lobbies de diversa natureza) em favor de tal ou tal candidatura. Finalmente, há ainda a possibilidade de, aproveitando estados emocionais agudos de certas categorias de população, pôr na rua manifestações imponentes de protesto ou de apoio nas vésperas de eleições, impressionando os votantes num ou noutro sentido. (E já nem falamos no clima de violência que, por vezes, certas organizações minoritárias criam – com agressões, assassinatos, etc. – com idêntico fim em vista.)

Compreensivelmente, a teoria política e os instrumentos jurídicos por ela suscitados desenvolveram modos variados de operacionalizar politicamente os resultados de um processo eleitoral, podendo grosseiramente distinguir-se cinco modalidades de regimes democráticos mais ou menos experimentados nos tempos modernos. No âmbito da chamada democracia representativa (porque elege sempre representantes do povo que corporizam a vontade colectiva do Estado-nação), referem-se geralmente os regimes parlamentares (porque o governo é formado a partir da representação parlamentar) e os presidencialistas (onde há uma clara separação entre um Presidente eleito directamente e que forma o governo da sua confiança, e o parlamento de onde depende a aprovação do orçamento e das leis principais). Os regimes semi-presidenciais (invenção francesa, por nós parcialmente copiada) mantêm o centro de poder no parlamento (donde sai o governo) mas, porque têm um Presidente eleito por sufrágio universal e que pode dissolver aquele, constituem um “parlamentarismo mais mitigado ou moderado”.

Que o parlamento (sede principal do poder legislativo) seja constituído por uma ou duas câmaras é já um “pormenor” que aqui podemos negligenciar e que em parte se explica pela evolução histórica – caso das “câmaras altas” –, pela experimentação político-institucional (as “câmaras corporativas” ou os actuais “conselhos económicos e sociais”, apenas consultivos) ou pela organização federal do Estado, em virtude da sua diversidade cultural ou extensão territorial (com senados eleitos) – o que só torna mais complexa a “ginástica parlamentar”, com a qual todo o governo tem de contar, mesmo no “unicamaralismo”, desde que não disponha do voto de uma maioria dos representantes eleitos.
Para o escrutínio dos resultados eleitorais usam-se essencialmente dois métodos de apuramento. No método proporcional distribuem-se os mandatos a prover (num órgão de representação colectiva) de acordo com uma distribuição aproximadamente proporcional dos votos obtidos pelos vários concorrentes: é o que acontece em grande número de parlamentos, ainda que o eleitorado tenha sido fraccionado em “círculos” geográficos, geralmente talhados à medida dos interesses particulares de certos partidos. No método uninominal maioritário ganha o único lugar posto a concurso num determinado círculo eleitoral quem obtiver o maior número de votos, e uma maneira de alargar a legitimidade do vencedor é proceder a uma “2ª volta” a que só acedem os dois melhores: isso garante que o vencedor final seja eleito com mais de 50% dos votos expressos. Mas, obviamente, estes princípios foram muito aprofundados e detalhados em mecanismos por vezes de elevada dificuldade de apreensão (método dos “maiores restos”, “de Hondt”, etc.).

Tendo falado acima em cinco modalidades de regime democrático, falta-nos referir a democracia directa, reivindicada por sectores muito minoritários da opinião política e praticamente nunca praticada de maneira consistente, regularizada, institucional e duradoura. Fundar-se-ia na eleição de representantes para os órgãos de poder (local, nacional, etc.) com um mandato quase-imperativo e facilmente revogável pelos eleitores, para constituírem assembleias legislativas funcionando apenas temporariamente (tal como nos primeiros tempos da democracia americana), as quais designariam os órgãos executivos (locais, nacionais, etc.) que assegurariam a gestão corrente dos negócios públicos. Simultaneamente, os processos referendários (com decisão directa do eleitorado, votando sim ou não a uma lei proposta, ou escolhendo entre várias alternativas) seriam activados com alguma frequência. Apenas na Suíça e no quadro confederal da sua constituição política, se têm praticado com regularidade algumas formas parciais de democracia directa, nomeadamente através de iniciativas legislativas de cidadãos subscritores de determinadas propostas (geralmente à escala cantonal) e de referendos nacionais, os quais vinculam parlamentares e governantes.

Finalmente, pôde falar-se de democracia participativa quando, mais recentemente, se puseram em marcha determinados procedimentos de participação (parcial e limitada) dos cidadãos, no quadro institucional das democracias representativas, constituindo nestas um acrescento de legitimação popular e uma forma de elementar “empoderamento” dos simples cidadãos e (sobretudo) de algumas das suas minorias organizadas. Queremos referir-nos a práticas como o direito de acção popular ou as petições colectivas de cidadãos (forçando o parlamento à sua discussão ou mesmo levando à convocação de uma consulta referendária) ou os “orçamentos participativos” (em que os cidadãos podem determinar o destino de uma pequena parcela dos impostos que pagam). Além disto, o recurso a “eleições primárias” e a escrutínios de tipo maioritário têm vindo a ser desenvolvidos nos últimos anos em vários países, podendo ser vistos segundo a mesma perspectiva “participacionista”, embora se não se eliminem os conhecidos riscos do eleitoralismo e da demagogia. Mas, é legítimo também inferir sobre o significado da participação e da abstenção eleitoral como indicadores da legitimação do sistema político existente (que inclui as instituições do Estado, as formações partidárias e as elites governantes) por parte do eleitorado e da população.  Uma curiosa maneira de operacionalizar e dar expressão a este fenómeno seria a de ficarem “lugares em branco” nos assentos parlamentares correspondentes a esses não-votos, metodologia que já foi proposta por alguns mas que nunca foi levada à prática, já se vê porque nada interessaria aos partidos dominantes.

Uma palavra deve ainda ser deixada sobre os regimes que foram chamados (pelos próprios) de democracia popular, no caso dos comunistas e do bloco de Leste europeu no período 1945-1989, ou de democracia orgânica, na terminologia “corporativista” de Marcelo Caetano e Oliveira Salazar, que a copiaram do fascismo de Mussolini mas também inspiraram l’Etat Français do marechal Pétain. Foram, obviamente, abusos de linguagem dos seus promotores, essencialmente porque em todos os casos se tratava do sistema de partido único (para já não falar nas violências da polícia política e na censura), sem a liberdade de opinião, expressão e organização das diferentes correntes de pensamento que tipificam qualquer democracia e que a partir delas organizam o seu sistema de poder.

Eis, clarinho e simplificado como tem que ser, o fundamental dos mecanismos de organização estatal dos regimes democráticos.

Da próxima, tentaremos ver como eles (e algumas das suas fragilidades e contradições internas) se conjugam com o funcionamento das economias modernas, ao ritmo dos interesses capitalistas e dos demais agentes sociais envolvidos – em posições secundárias, mas não propriamente subordinadas – gerando dinâmicas que muitos tentam controlar ou usar em seu proveito, mas poucos ou nenhuns conseguirão realmente dominar.


JF / 2.Set.2017

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