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segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Pensamento de Esquerda, pensamento “assassino”? E quanto às Direitas?

É bem sabido que os termos “esquerda” e “direita” fazem parte do léxico político corrente e terão tido origem na forma como se sentavam no hemiciclo parlamentar os grupos políticos em oposição, logo a partir da Revolução Francesa. Mas os termos ganharam conteúdo ideológico e é disso que aqui tratamos.
O pensamento de Esquerda, num sentido de pensamento político moderno (dominante no Ocidente), assume-se e é apresentado pelas pessoas que com ele simpatizam como defensor e promotor de ideias marcadas pela generosidade (a justiça, a igualdade, a solidariedade), pela liberdade (tudo o que não é proibido, é permitido) e pelo progresso (aumento da riqueza e do bem-estar, desenvolvimento cultural). As reacções críticas das Direitas modernas a estas ideias estribavam-se principalmente no que nelas haveria de desrespeito pelas tradições e os patrimónios históricos (sobretudo simbólicos, como a religião ou o rei), na descrença no igualitarismo artificial que elas propunham, e ainda pela convicção de que a desregulação social e a desordem mais cedo ou mais tarde acabariam por imperar. A imagem de caos com que os conservadores ou reaccionários apostrofavam os seus adversários foi entre nós traduzida na linguagem corrente pelo termo “república” (“Isto é uma república!!!” para significar desordem), antes da mesma imagem se ter transferido para a palavra “anarquia” (que os adeptos desta doutrina pretendiam significasse o benefício da ausência de um poder centralizado). 
Obviamente, estamos aqui a considerar Esquerda e Direita num sentido amplo, pois que cada um destes campos abriga uma certa variedade de expressões políticas, que vão, à esquerda, desde um republicanismo radical até ao anarquismo, passando pela social-democracia, os comunistas ou os ecologistas políticos; e que incluem, à direita, correntes tão distintas como os conservadores, os nacionalistas, os liberais, os populares ou os democratas-cristãos, para já não falar dos fascistas, corporativistas, nacional-socialistas e falangistas – tudo movimentos partidários originados no “cadinho de ideias” europeu, mas alguns dos quais lograram expandir-se para outras regiões do mundo.  

Juntamente com o desenvolvimento da ciência e da técnica, bem como da economia que soube explorar as suas aplicações, a progressiva imposição prática das ideias de esquerda, em condições históricas determinadas, mudou profundamente a vida da humanidade nos últimos dois séculos, dando origem a transformações sociais, políticas, jurídicas e culturais de uma amplitude e com um ritmo absolutamente desconhecidos até então. Mas, ao encontrarem também enormes resistências materiais e psicológicas, produziram resultados por vezes bem diferentes do que aqueles que haviam sido desejados ou entrevistos. Assim, é indispensável distinguir sempre entre as ideias e doutrinas, por um lado, e os seus resultados históricos, por outro, sendo que estes devem ser necessariamente convocados para avaliar a bondade (ou a verdade) daquelas. 

No plano das ideias políticas, é possível considerar o pensamento de esquerda como aquele que, desde logo, conduziu a acção de crítica e desgaste contra o Ancien Régime e o Estado Absoluto Monárquico na Europa; que em seguida se virou contra os regimes de poder pessoal ou teocrático pré-modernos e os restos de escravatura e servidão ainda instalados no século XIX em diversas partes do mundo; que desde meados daquele século combateu os efeitos sociais do sistema de economia livre capitalista; que se opôs e acabou por desmantelar o modelo colonial moderno; e, até aos nossos dias, se tem batido contra a sobrevivência de formas de subordinação social e simbólica das mulheres, tanto na vida colectiva como privada. Neste sentido, como no caso português bem viu Joel Serrão (e como acusavam doutrinários conservadores como António Sardinha), o liberalismo nascente, o republicanismo, o socialismo, o marxismo e a actual defesa de “causas fracturantes” são doutrinas produzidas pelo pensamento de esquerda. E o Constitucionalismo Liberal do “vintismo”, a República de 1910 e a Democracia de 1974 foram marcos decisivos na modernização da sociedade portuguesa.

Pode afirmar-se que o sufrágio universal e o governo democrático, a emergência do sindicalismo operário, a revolução socialista na Rússia, as guerras anti-coloniais ou os movimentos de emancipação das mulheres devem ser considerados, fundamentalmente, como decorrências bem-sucedidas do pensamento de esquerda, que as pode legitimamente considerar como seu património ideológico.

Contemporaneamente, que forças e razões se opuseram a estas causas?
Antes de tudo, opunham-se-lhes os habitus sociais e as culturas dominantes, com a determinante influência das religiões, secundadas pelos medos que incutiam os aparelhos de repressão e de justiça existentes, além das memórias de outras violências, guerras, fomes e epidemias. João Pereira Coutinho publicou recentemente um ensaio sobre o Conservadorismo e João Carlos Espada desde há muito enfatiza a excelência do equilíbrio excepcional que ditou a história política moderna do país dos britânicos. Sem menosprezar o contributo trazido pelos seus autores de referência, parece-me antes que, no seu posto, o pensamento conservador – a direita da época – foi defendendo como podia, de trincheira em trincheira, as instituições (do pariato à indissolubilidade do casamento religioso) contra o constitucionalismo (que tudo queria regular através de um sistema de leis), a autoridade contra a demagogia, a força militar contra os movimentos populares, a família contra os direitos individuais, mais tarde a nação contra o classismo internacionalista.

Mas devemos considerar num plano próprio e distinto a difusão que, a partir do século XVIII, foi tendo lugar nos países ocidentais a filosofia utilitarista e o pensamento económico britânico, o qual encontrou no aumento da produção provocado pela indústria, manufactureira e mecânica, um terreno propício à sua concretização. Recebida inicialmente com relutância ou oposição pelos poderes sociais instalados (nobreza, proprietários fundiários, juristas, corporações de ofício, etc.), a ideologia do mercado livre fez o seu caminho por si própria, relativamente aos pensamentos de esquerda e de direita. Mas o slogan “free minds and free markets”, inventado muito mais tarde, revelou-se apropriado para significar a convergência objectiva que se gerou com as ditas ideias de esquerda face às resistências opostas pelo velho mundo aristocrático que começava a desabar. 
Porém, o regime liberal que procurou combinar a subsistência das monarquias e das religiões oficiais com o dinamismo da economia capitalista e com os direitos de cidadania do novo Estado-nação foi de curta duração, não mais do que o século XIX, grosso modo. Entretanto, o pensamento de esquerda encontrara na “questão social” a sua nova grande causa mobilizadora e passou a assestar baterias contra o patronato industrial e financeiro, sem deixar de reivindicar a destruição dos monopólios da propriedade rústica e do poder político onde eles ainda existiam, abrindo assim uma perspectiva de posse da terra ao campesinato pobre que a trabalhava, e de efectivo acesso à igualdade cidadã, ao voto e à sedução de um governo plenamente democrático a largas massas da população, até então deixadas à margem da vida política. O primeiro processo, onde foi conseguido, moderou a emigração forçada pela fome ou pela ambição de uma vida melhor. O segundo processo levou à constituição de uma “classe política”, mediadora de interesses e expectativas entre eleitores e decisores políticos, ao mesmo tempo que, através de legislações protectoras mas sobretudo pela escola e a assistência pública, logrou melhorar o padrão de vida de amplos sectores das classes pobres. 
O tempo do liberalismo desmoronou-se com a 1ª Guerra Mundial. Desta terrível carnificina resultaram uma revolução socialista (de esquerda) e regimes autoritários nacionalistas-populistas de direita, de sentido contrário nos seus pontos de afirmação ideológica mas coincidentes no endeusamento do Estado e do líder, no uso puramente instrumental da força e da violência, e no emprego de técnicas novas de propaganda e mobilização das “massas”.
De certa maneira, desta “guerra civil europeia” (apud Nolte), salvou-se o regime meio-conservador, meio-“de esquerda”, liberal-capitalista mas respeitador dos direitos codificados, que hoje domina no Ocidente e mesmo mais além. Não apenas pela superioridade moral de que deu mostras face aos totalitarismos, mas também pela força militar a que não hesitou em recorrer para defesa destes interesses e valores.
Mas é preciso não esquecer a forma como, muitas vezes, as forças e o pensamento de direita legitimaram, apoiaram e se agregaram em torno de soluções políticas detestáveis, que foram responsáveis por arbitrariedades e crimes hoje historicamente documentados: fascismo, nazismo, salazarismo, franquismo, “petanismo”, “getulismo”, peronismo e outros. E, dentro destes, deve-se singularizar-se o caso do Holocausto dos judeus sob o poder do regime hitleriano, pelo inapagável crime contra a humanidade que então foi cometido e que levou mesmo uma boa parte das direitas a combater tal regime. Abstraindo porém estas experiências e, em pleno, desde a 2ª guerra mundial, pode dizer-se que o pensamento político de direita esteve sempre em boa harmonia com a economia de mercado capitalista, inclusive com o chamado neo-liberalismo (que aliás também fez alguma “mossa” no património ideológico da esquerda).
É admissível que alguns dos piores e mais dramáticos resultados desta evolução e desta luta de sistemas de pensamento possam ser explicados – para além dos interesses envolvidos – por dinâmicas incontroláveis que nenhuma das partes conseguiu, a partir de certo momento, deter ou desviar, e que se concluíram em catástrofes sociais e individuais de efeitos múltiplos e profundos, sempre marcados pelo sofrimento humano: é o caso das guerras e da maior parte das revoluções. Para citar alguns exemplos destes “descarrilamentos”, evocamos desde logo o processo da Revolução Francesa e do bonapartismo, a guerra civil americana, a guerra franco-prussiana, a revolução mexicana, a 1ª guerra mundial, a revolução russa, a guerra civil na China, o imperialismo japonês, a guerra civil de Espanha, o nazismo e a 2ª guerra mundial, as independências da Índia, da Indochina e da Argélia, o próprio processo de descolonização português, o desmantelar do Apartheid na África do Sul, etc.
Outras práticas de domínio e exercício de poderes estatais – práticas violentas ou despóticas – foram desenvolvidas sem correspondência visível, quer com o pensamento conservador, quer com o pensamento de esquerda, mas sobretudo ditadas pelas necessidades de conquista e, sobretudo, de manutenção do poder. No primeiro caso, o recurso à argumentação das “necessidades revolucionárias” (isto é, de usar meios eventualmente “imorais”, justificados pelos fins “morais” que se pretendem atingir ou pelo objectivo de fazer cessar situações também elas consideradas “imorais”) é geralmente utilizado. No segundo, a defesa do existente e das suas bases de legitimação (a começar pela “lei e ordem”) e a evocação dos interesses, das expectativas e dos direitos constituídos, são geralmente os argumentos mais fortes usados para justificar o recurso a meios mais contestáveis de exercício do poder. Foi Saint Just quem afirmou, para justificar a política do terror durante a Revolução Francesa: “Pas de liberté pour les ennemis de la liberté!”. Faz aqui sentido referir a reflexão de Jaime Nogueira Pinto em Ideologia e Razão de Estado: Uma história do Poder (2013), um autor cuja trajectória pessoal se inicia na extrema-direita nacionalista portuguesa mas que, progressivamente, veio a mostrar de uma apreciável capacidade de análise, extensa e profunda, sobre os fenómenos políticos e, neste caso, sobre a “razão de Estado”.
Se, como propunha Landauer, o domínio (político) é a diferença existente entre a mera administração pública e o exercício do poder tal como o conhecemos, podem evocar-se vários exemplos concretos destes casos clamorosos de “excesso de poder”, mesmo por parte de alguns que ainda são meros aspirantes à governação: o uso de espionagem e de polícias políticas; a existência de detenções, torturas e condições carcerais arbitrárias; a execução ou assassínio de adversários políticos; as falsidades usadas para efeitos de propaganda; o suborno político; a utilização de provocadores ou “infiltrados” nas hostes adversárias; o recurso ao “imposto revolucionário” por forças insurgentes; o uso das técnicas de guerrilha num contexto de “guerra subversiva”; as acções violentas “terroristas”; etc.
Há porém casos em que certos meios excepcionais são usados pelos governos sob o argumento do mal menor. O pacto germano-soviético de 1939, as bombas atómicas lançadas sobre o Japão, o apoio norte-americano a regimes ditatoriais durante a “guerra fria” ou a atitude dos governos de França face à tortura empregue pelos seus militares na Argélia ou, quatro décadas depois, aceitando a ilegalização da vitória eleitoral dos radicais da FIS argelina em 1992, têm também a ver com um problema (real) de prevenção de males maiores. Estes não podem justificar tudo mas deve reconhecer-se existir aí uma questão moral de aguda premência que não pode ser iludida. É, contudo, conveniente observar que, se o pensamento de esquerda se assume geralmente como virtuoso, em relação ao pensamento de direita (embora também haja um discurso cínico de esquerda, de muito menor expressão), resulta então mais incoerente e chocante encontrar nele complacência e “dupla medida” moral – como quase sempre acontece – para qualificar e julgar os actos desta natureza que lhe são também imputados.
Há ainda outros processos, igualmente dramáticos e sangrentos, em que o património da esquerda não sai facilmente indemne de críticas fundamentadas. Foi, historicamente, o já evocado caso do “terror revolucionário” na Revolução Francesa ou do bolchevismo e do estalinismo na União Soviética e, depois, em algumas das suas variantes locais longínquas como a China de Mao ou o Cambodja de Pol Pot. Nestes processos foram cometidos atropelos e atrocidades que se equiparam completamente às piores repressões cometidas por governos de direita e regimes autoritários, de Hitler e Mussolini a Pinochet, Videla e companhia, ou ao ugandês Idi Amin.
E há as críticas, igualmente fundadas, que podem ser feitas à esquerda, de incoerência, de “duplo critério” ou de não querer obstinadamente reconhecer os efeitos perversos a que conduziu a sua acção ou a razão que assistia aos seus adversários num momento passado, quando ela criticava coisas que hoje defende, ou o inverso. É o caso, bem visível, das posições sobre a propriedade individual, ou a igualdade económica. Foi o caso, por exemplo, das concepções unitaristas de governo face às concepções mais federais e descentralizadas, ou dos “governos de ditadura revolucionária” face aos “governos de maioria”.
Mas este é um “pecado” em que igualmente incorrerem os ideólogos de direita: ao procurarem afastar-se do acomodamento que tiveram sob regimes políticos opressores, após a sua queda; ou, por eleitoralismo, silenciarem os seus valores conservadores chegando hoje ao ponto de se apresentarem como “forças de mudança”. Actualmente, só algumas das “causas fracturantes” oriundas do pensamento de esquerda – como a questão do aborto, o casamento e adopção de crianças por homossexuais ou a defesa da liberdade de ensino confessional face à escola pública laica – parecem ser capazes de mobilizar politica e socialmente as atitudes dos sectores próximos do pensamento de direita.
E há matérias em que a dicotomia esquerda/direita não explica certas opções tomadas na prática política, como, por exemplo, foi e ainda é o caso do respeito das realidades e soberanias locais (princípio do realismo) face aos direitos fundamentais e universais (princípio dos direitos e valores).
O nacionalismo, mais frequentemente associado à direita e ao seu património ideológico, tem sido, de facto, um legado histórico que deveria ser partilhado por ambas as escolas de pensamento. Não me ocorre qual o historiador lido nos tempos de estudante (em “Sciences Po”) que chamava a atenção para estas cambiantes, mas ele salientava que o nacionalismo – sob a designação de patriotismo, como gosta de acentuar Mário Soares – no período da Revolução Francesa estava do lado dos revolucionários, contra o a-nacionalismo da aristocracia francesa (e europeia); que só com o “internacionalismo proletário”, levantado pelo Manifesto Comunista e pela Iª Internacional, as classes dominantes nacionais passaram a ser nacionalistas, perante o risco que então pressentiram; e que só após a revisão feita por Moscovo à orientação internacionalista do movimento operário é que os partidos comunistas e os sindicatos por eles dirigidos passaram a aceitar que a “defesa nacional” e as instituições políticas dos estados existentes pudessem ser reconhecidas como legítimas pelas classes trabalhadoras. Já no nosso tempo, esta evolução culminou, sob os efeitos da “teoria do imperialismo”, com a ideia de que a “libertação nacional” – desde que feita contra os interesses do Ocidente – era, finalmente, uma “causa progressista” que devia ser apoiada.  
Os direitos humanos e o ecologismo emergiram no contexto de um relativo compromisso histórico entre esquerda e direita, mas geralmente impulsionados (pelo menos no início) por cidadãos-do-mundo que não se reconheciam inteiramente em nenhum desses campos. Também por isso, aquelas causas têm sido nas últimas décadas bastante instrumentalizadas pelas políticas tanto de esquerda como de direita, sem deixarem de ter algum efeito, ainda que menos do que o desejado, sobre as realidades que pretendiam melhorar.
O pensamento de esquerda deu também abrigo à irrupção moderna de pequenas ou fugazes escolas de ruptura, explorando os limites do pensável: por exemplo, o anarquismo, em filosofia política; ou o surrealismo, em várias expressões artísticas; ou ainda o existencialismo, em registo filosófico, ou tido como tal na época. E a criação cultural, que explodiu com espantoso vigor e diversidade no século XX, esteve sempre mais próxima do pensamento e das atitudes de esquerda, com muitas e mútuas influências. Algo de parecido aconteceu com o cosmopolitismo – apesar de tudo mais indiferente a qualquer forma de pensamento ou ideologia –, o qual hoje marca fundamentalmente as elites e as classes médias urbanas do globo inteiro.
Resumamos em tópicos limiares muito do que foi dito ou entrevisto até aqui.
- As grandes revisões dilacerantes ideológicas da esquerda ao longo da sua trajectória:
1-a recondução ao respeito pelo “facto nacional”, ao realismo dos Estados-nação, diluindo-se o seu primitivo internacionalismo;
2-sendo caso disso, a aceitação (por razões históricas) da “instituição monárquica” na chefia do Estado;
3-a aceitação do princípio democrático da maioria eleitoral, abandonando as veleidades revolucionárias;
4-a perda de referência de “classe” (operária, trabalhadora), a favor do “povo”, propondo um governo orientado para a satisfação das classes médias, com “preocupações sociais” (os mais pobres, desprotegidos, etc.) e tentando reduzir ou seduzir o poder dos “ricos”;
5-a rendição à propriedade individual e à economia de mercado, esta corrigida pela acção do Estado;
6-abandono do programa de “nacionalização” das empresas e de regulação da economia por meio de uma “planificação” (mais ou menos indicativa ou constrangedora);
7-convencimento das razões da segurança pública – um dos tópicos de mais difícil digestão –, com a aceitação de algumas limitações às liberdades tradicionais, de práticas outrora detestadas (como os hetero-controlos) e de instituições que culturalmente lhe eram estranhas (as polícias e os militares, os investigadores judiciais e os agentes secretos).
- E as correspondentes revisões da direita:
1-abandono do reaccionarismo e do revanchismo (o desejo de “voltar atrás” ou de vingança) dos regimes autoritários anti-liberais e, até certo ponto, do conservadorismo (manter “o que está”);
2-conversão ao princípio democrático da maioria eleitoral;
3-adopção da “ideologia das mudanças”;
4-abandono da defesa da presença da religião na esfera estatal, com aceitação da laicidade e da liberdade religiosa.
- Novidades ocorridas na esquerda:
1-compreensão e apoio aos nacionalismos anti-coloniais ou “anti-imperialistas”;
2-adopção de “causas fracturantes” e de defesa de minorias;
3-empenhamento no combate à globalização económica, ao “neo-liberalismo” e ao “imperialismo” (ou, pelo menos, à supremacia) dos Estados Unidos.
- E no campo da direita:
1-a reclamação da vitória sobre o “império soviético”;
2-re-encontro com o “neo-liberalismo”.
- Em ambas as escolas de pensamento:
1-referência aos Direitos Humanos codificados;
2-defesa das causas ecológicas;
3-aceitação (de forma mais entusiástica ou resignada) das “novas famílias”, do individualismo e do consumismo;
4-as “parcerias público-privadas” e outras formas de cooperação económica entre o Estado e as empresas.
- Comportamentos de retranchement (entrincheiramentos identitários em valores antigos), à esquerda:
1-a crença no uso da potência pública, na intervenção do Estado, agora sob a forma de “políticas sociais”;
2-a necessidade de ter sempre um “inimigo”, e de lhe dar “luta”;
3-permissividade, abertura, recuperação e inclusão em matérias educativa, migratória e penal.
- Paralelas atitudes à direita:
1-as referências morais tradicionais: a família estável, a condenação do aborto, o respeito pelas grandes instituições (como as forças armadas), a pátria nacional e, até certo ponto, a religião;
2-a reclamação do uso da liberdade de culto religioso, quando ela lhe parece cerceada;
3-defesa da “iniciativa privada” e do mercado, com menor intervenção do Estado;
4-uma justiça penal mais gravosa e sancionatória, para dissuasão da criminalidade;
5-mais firmeza e rigor na manutenção da disciplina e da ordem pública, e na contenção da delinquência;
6-maiores controlos de fronteira, sobretudo contra as imigrações dos países pobres ou culturalmente distantes.
Regressemos agora à nossa provocatória pergunta do início sobre o “pensamento assassino” da esquerda, entendido, claro está, num sentido metafórico e não literal.
Resumindo, podemos defender que o pensamento de esquerda, nas circunstâncias históricas em que foi posto à prova, deu origem a duas esquerdas: uma esquerda de valores, onde primam a solidariedade e a mudança; e uma esquerda jacobina, autoritária e “assassina”. Embora mais difícil de discernir, uma tal divisão é tão ou mais profunda do que aquela, meramente política, que dividiu a social-democracia do comunismo, ou o socialismo democrático da extrema-esquerda.
E digamos ainda que, nesta visão clássica, o pensamento de direita seria essencialmente caracterizado pelas referências à manutenção do existente, à ordem e à legitimidade e funcionalidade das hierarquias sociais.
No plano discursivo corrente suportado pelo pensamento de esquerda, eis dois exemplos, em que a “esquerda jacobina” abafa completamente a “esquerda de valores”. A frase que diz que “aquele que afirma não ser de direita nem de esquerda é necessariamente de direita” (ou “a tese que afirma que as distinções entre direita e esquerda estão a esbater-se só pode ser de direita”) é o exemplo acabado da posição de hegemonia que a esquerda pretende impor sobre a sociedade: é uma “frase assassina” típica do terror e da barbárie que uma certa esquerda logrou efectivar na sua prática política. A frase que diz que “quem afirma ter dúvidas sobre se o aborto é sempre um mal menor para a mulher que o decide praticar só pode provir de um homem”, é outro exemplo de uma posição autoritária e intransigente – neste caso, feminista – que liquida e “assassina” toda a possibilidade de reflexão e de discussão sobre este assunto.
Com efeito, as atitudes exibidas pela esquerda contêm uma suposta superioridade moral sobre a direita, que lhe deu, certamente, uma legitimação suplementar ao longo destes dois séculos, mas que também lhe traz responsabilidades acrescidas (que ela geralmente enjeita quando chega o momento de lhe serem apontadas acusações idênticas àquelas que ele verbera nos actos políticos imputáveis à direita). Nesse sentido, o seu incumprimento, fraqueza ou traição, não podem deixar de suscitar juízos, críticas e ressentimentos mais rigorosos, profundos e sinceros. Compreende-se que a direita faça certas coisas; as quais, porém, se tornam inaceitáveis quando praticadas pela esquerda – não por uma questão de “duplo critério”, mas por causa da sua apregoada superioridade moral.
É também constatável que uma enorme arrogância se impregnou no pensamento de esquerda graças a uma suposta caução da Ciência – e nisto o pensamento de Marx foi determinante, prolongado por toda a sorte de “marxólogos” académicos e de meros epígonos –, bem como pela convicção de que a História estava do seu lado, que só a esquerda seria capaz de interpretar e acelerar. À antiga arrogância da riqueza e do luxo seguiu-se a arrogância do saber.
É que, na verdade, nas condições históricas da modernidade, o pensamento de direita – que se refere sempre a valores de conservação do existente – é visto como se não existisse, enquanto o pensamento de esquerda é legitimado pelo próprio movimento da modernidade, no que isso implica de mudança e de progresso, de racionalidade, de possibilidade de conhecimento científico, de “desencantamento” da vida social (correlato da secularização). Não há, pois, paralelismo ou simetria entre estas duas formas de pensamento. Seria necessário que o pensamento de esquerda fosse capaz de fazer o esforço voluntarista de, tanto quanto possível, anular essa sua vantagem sobre o pensamento de direita, para poderem competir em melhores condições de igualdade na disputa ideológica que mantêm perante a sociedade e os cidadãos, e nas combinações e decorrências práticas das suas actuações políticas.
Embora tal já tenha sido contestado por alguém com crédito nos media, julgamos que as ideias de direita se mantêm hoje bem vigorosas na economia e no mundo empresarial, enquanto os reflexos do pensamento de esquerda predominam geralmente na universidade e na comunicação social. Naturalmente, nesta última existem também posições de direita (tal como, inversamente, no tempo do salazarismo as redacções estavam cheias de oposicionistas mas os jornais forneciam uma informação compatível com o regime e funcional para ele), mas entrevemos na lógica comunicativa actual maiores afinidades e simpatia para com as mudanças (à esquerda) do que para com a conservação do existente (idiossincrasia da direita). E nessa “fábrica do saber” que é a instituição universitária, apesar do marxismo ter desaparecido dos programas de filosofia, sociologia, história ou economia, o pensamento de esquerda não desarma nessa espécie de “luta ideológica”, renovando-se à luz das novas temáticas, como transparece nesta frase de Eduardo Prado Coelho: “[…] existe hoje um certo número de critérios que permitem falar numa “esquerda moderna”: Fundamentalmente trata-se de afirmar que não existe apenas uma racionalidade económica, mas também uma racionalidade social, cultural e ambiental […]” (Público, 3.Dez.2006). Quanto às políticas públicas, assiste-se a uma luta surda entre esquerda e direita para a utilização dos seus mecanismos impositivos: com vista a manter ou reforçar as instituições e as práticas de uma presença estatal alargada, quando a esquerda acede ao governo; e para privatizar serviços públicos e introduzir maior concorrência, sempre que a direita assume a governação.
E encerramos por aqui estas deambulações com a evocação de uma frase do discurso corrente que, não sendo “assassina”, é contudo reveladora do desejo “justicialista” e redentor que geralmente anima os porta-vozes da esquerda: “De uma vez por todas…” – eis como frequentemente se afirma querer acabar com as iniquidades e desigualdades que se perpetuam e se metamorfoseiam nas sociedades actuais (além de muitos outros motivos de denúncia). Como se fosse possível, definitivamente, garantir um mundo sem tais patologias!... E desprezando, por exemplo, as considerações do psico-sociólogo francês Eugène Enriquez, que explica claramente como é ilusória a generosa ideia de querer instaurar uma “sociedade justa” – utópica e perigosa, afirma também Darhendorf –, pois que as novas gerações nunca se satisfariam com ela, e será sempre necessário recomeçar processos de desalienação face ao statu quo existente, por muito interessante que ele seja.
JF / 25.Out.2014

domingo, 5 de outubro de 2014

Património cultural

(Para que certas ideias não fiquem definitivamente sepultadas, retoco e divulgo estes dois documentos produzidos há alguns anos atrás, o primeiro dos quais não mereceu a atenção do jornal de grande circulação a que foi enviado, e o segundo teve praticamente o mesmo destino por parte das entidades publicas responsáveis.)



Especialistas do património histórico: dentro das “funções de soberania”


Estão em curso importantes reformas da organização do Estado e dos serviços de interesse público, da administração financeira e fiscal, e dos regimes laborais do funcionalismo público.
Pelo que se vai sabendo deste último processo, tem sido intenção firme dos governos restringir drasticamente o estatuto privilegiado de emprego (garantido) dos agentes do Estado, reservando-o apenas para um conjunto de carreiras e categorias adstritas a funções de soberania, passando os restantes progressivamente para o regime “de contrato de trabalho”, com condições que se aproximarão cada vez mais das dos assalariados do “sector privado”. 
Nas tais funções de soberania caberiam os profissionais das magistraturas, da diplomacia, das forças armadas, das forças de segurança, dos serviços de informações da República, das inspecções-gerais dos vários ministérios e talvez ainda dos impostos ou das finanças públicas.
Na nossa opinião, justificar-se-ia acrescentar a esta lista os especialistas da preservação do património histórico, incluindo nesta noção, nomeadamente: a biblioteca, os arquivos e museus nacionais; a academia das ciências e o instituto da língua portuguesa; a entidade responsável pelos monumentos nacionais; e alguma outra instituição de natureza equivalente. Falei apropriadamente de “especialistas” e não da totalidade dos actuais efectivos destes departamentos, muitos dos quais, embora funcionalmente indispensáveis, serão apenas coadjuvantes cujo estatuto laboral não justificaria nenhuma especial protecção.
Outro tanto não sucede, porém, com os referidos especialistas, todos superiormente qualificados do ponto de vista académico, e devidamente especializados no conhecimento científico, técnico e profissional dos respectivos domínios. Nestes casos, a relevância das tarefas e missões desempenhadas justifica a existência de um estatuto aparentado ao dos outros diversos “funcionários de soberania”, com regime de nomeação, proporcionando-lhes maiores reconhecimento, prestígio e segurança de emprego, e exigindo-lhes, em contrapartida, elevados padrões de dedicação, isenção e capacidade de ajuizamento histórico-cultural.
Ao contrário de domínios de soberania do Estado marcados pela urgência, iminência, segurança ou autoridade, não se trata aqui, geralmente, de nenhuma de tais características. Mas trata-se, sim, da responsabilidade de contribuir para a continuidade histórica da comunidade nacional, através da salvaguarda e vivificação de algumas das suas principais manifestações, vestígios e símbolos, que são elementos essenciais a uma identidade colectiva, como povo.
Talvez ainda não seja tarde para que os responsáveis por estas reformas considerem o que aqui foi evocado e lhe dêem a atenção e a concretização prática e operativa que julgamos merecerem.

***

Projecto de Regulamento para a Preservação da Memória Urbana


  1. A salvaguarda e preservação da memória do espaço urbano compete a toda a sociedade e, legalmente, aos poderes públicos, em particular aos órgãos municipais.
  2. Para além das normas legais existentes ligadas à classificação de edifícios ou conjuntos patrimoniais urbanos, aos monumentos nacionais e às comissões municipais de toponímia, o presente Regulamento cria um novo dispositivo de âmbito municipal exclusivamente dedicado à preservação da memória urbana.
  3. O órgão de direcção e deliberação relativo a este serviço é a Comissão Municipal para a Preservação da Memória Urbana (CMPMU), a inserir convenientemente na estrutura orgânica do município e no respectivo orçamento.
  4. São competências da CMPMU:
a)      Estabelecer as linhas gerais de orientação do serviço;
b)      Discutir e aprovar o plano anual para as actividades do serviço e respectiva proposta orçamental;
c)      Reunir ao menos uma vez por trimestre para discutir e aprovar propostas concretas de actuação do serviço;
d)     Discutir e dar parecer sobre o relatório anual de actividades do serviço e respectiva execução orçamental.
  1. A CMPMU terá a seguinte composição:
a)      O vereador da Câmara Municipal que tiver a tutela deste serviço, ou o funcionário superior municipal em quem aquele delegar tal competência, que presidirá;
b)      Dois funcionários superiores municipais titulares de funções relacionadas com o objecto deste Regulamento, por nomeação daquele vereador;
c)      Representantes do Departamento Ministerial da Cultura e do IGESPAR;
d)     Três professores doutorados de diferentes universidades especialistas em história, indicados por estas instituições;
e)      Dois professores de diferentes universidades especialistas em arquitectura ou urbanismo, indicados por estas instituições;
f)       Dois representantes designados por associações culturais sediados no concelho escolhidas pelo vereador acima referido;
g)      Três cidadãos de reconhecida competência no tema, cooptados pelos restantes membros da Comissão;
h)      O funcionário superior municipal responsável pelo serviço.
  1. A gestão e execução das actividades tuteladas pela CMPMU é confiada a um serviço permanente municipal, com a orgânica e os recursos humanos e materiais que lhe forem atribuídos.
  2. As actividades de Preservação da Memória Urbana serão publicamente divulgadas e disporão de modos de acolhimento facilitado para as sugestões apresentadas por cidadãos e qualquer entidade de natureza pública, económica, social ou cultural, no seu âmbito próprio.
  3. A materialização dos planos de actividades de Preservação da Memória Urbana faz-se através dos seguintes meios:
a)      Os Marcos da Memória Urbana;
b)      Os Nichos da Memória Urbana;
c)      Os meios complementares de informação pública.
  1. Os Marcos da Memória Urbana são uma das duas formas específicas de intervenção do serviço, consistentes em padrões normalizados implantados na via pública, assinalando o local da existência passada de um edifício, conjunto patrimonial urbano ou acontecimento histórico cuja memória deva ser preservada. Cada Marco da Memória Urbana conterá obrigatoriamente:
a)      Uma titulação e um texto descritivo, sintético, com as datações devidas, em língua portuguesa;
b)      Uma tradução do texto anterior, eventualmente abreviada, em língua inglesa;
c)      Uma representação figurativa simples da edificação, conjunto patrimonial ou acontecimento memorizado, de forma adequada mas perdurável.
  1. Os Nichos da Memória Urbana são a outra forma específica de intervenção do serviço, consistentes num espaço normalizado, em enclave, inserido em zona vestibular de qualquer edifício público construído no local da existência passada de um edifício, conjunto patrimonial urbano ou acontecimento histórico cuja memória deva ser preservada. Cada Nicho da Memória Urbana deverá incluir:
a)      Um espaço mínimo de 3 metros quadrados de área, visivelmente identificado e franqueado ao público utilizador desse edifício público nos horários normais do seu funcionamento;
b)      Textos descritivos do local memorizado, com as datações devidas, em língua portuguesa;
c)      Tradução do texto anterior, se necessário abreviada, em língua inglesa, e eventualmente outras;
d)     Representações figurativas da edificação, conjunto patrimonial ou acontecimento memorizado, de forma adequada (desenhos, fotografias, etc.), com referência a personalidades ou artefactos relevantes, com intencionalidade didáctica.
  1. Os meios complementares de informação pública serão utilizados de forma supletiva em relação aos anteriores, nomeadamente:
a)      Em publicações municipais, ou outras, editadas em papel, monográficas ou em série;
b)      Em suportes digitais, no âmbito dos programas e-cidade;
c)      Em outros suportes e meios de comunicação áudio-visual, com intenção informativa e vocação cultural.
  1. A decisão de implantação dos “Marcos” e dos “Nichos” será precedida da instrução de processos individuais que equacionem e sustentem a sua importância para a preservação da memória urbana. A iniciativa de abertura de cada processo pode ter origem na CMPMU, no próprio serviço municipal ou em sugestões recebidas do exterior.
  2. Normas internas aprovadas pela CMPMU definirão a autoria, a responsabilidade e o modo de aprovação dos textos e representações figurativas a fixar nos “Marcos” e nos “Nichos” acima referidos, no respeito pela legislação vigente.


JF / 5.Out.2014

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