Contribuidores

terça-feira, 30 de agosto de 2011

Escrever como falamos?

Bem sei que o novo acordo ortográfico ainda não vai tão longe. Mas é essa a tendência que se desenha.
Que cada um escreva com a ortografia de que mais gosta, até pode ser uma liberdade literária ou um direito da pessoa. Mas a forma como se publica num jornal ou como se redige o Diário da República já não é só isto, é também um modo colectivo de lidar com uma língua milenar, que sofreu a sua própria evolução ao longo dos tempos mas cuja antiguidade e património literário impõem certas responsabilidades culturais.
Mais importante ainda será talvez a questão de como ensinar as crianças e os jovens a apreenderem e interiorizarem uma língua-mãe (neste caso, o português). É claro que as crianças começam por adquirir uma linguagem oral e só pelo esforço da aprendizagem escolar ascendem à leitura e à escrita, melhorando então também consideravelmente a sua expressão oral.
A tendência actual para levar a ortografia para a forma orializada empregue na linguagem corrente apresenta decerto benefícios de rapidez e facilidade de ensino. Mas julgo que empobrece a bagagem cultural dos sujeitos que, ao aprenderem a origem etimológica das palavras, pelo mesmo processo alargam consideravelmente os seus conhecimentos histórico-culturais e a sua visão do mundo.
Como ‘comunicação’, o novo acordo ortográfico e a tendência linguística em que se inscreve têm certamente vantagens para populações pouco instruídas e será “atrativa” para os países africanos de expressão portuguesa ou mesmo para o Brasil. Porém, como ‘saber’, as futuras gerações ficarão provavelmente todas mais pobres de linguagem e de entendimento.
Mas este é talvez um “teisto reacsionário”, escrito por um idoso que já tem dificuldade em acompanhar os novos tempos... E fica feita a declaração do autor de que, não só irá continuar a escrever no português pré-acordo ortográfico, como deseja continuar a pensar fundamentalmente na mesma língua.
JF / 30.Ago.2011

sábado, 27 de agosto de 2011

Polícias reclamantes e médicos pusilânimes

Aqui há tempos, foi no Algarve. Mais recentemente, deu-se em Lisboa. Começa a parecer “normal” que os agentes da PSP de um determinado sector se metam todos simultaneamente de baixa médica, como forma de protesto, por isto ou por aquilo.
É um acto gravíssimo de que os próprios se não darão conta, a que a sociedade não liga, que a comunicação social meramente veiculou e que as chefias próprias parecem também incapazes de reprimir.
É que se trata de agentes públicos armados, cuja posse exige especiais responsabilidades, no sentido de que as mesmas sejam exclusivamente utilizadas para o serviço da segurança pública. Já bastam os incidentes e as faltas estatisticamente inevitáveis, quanto mais a conquista e legitimação de hábitos que minam a ética e a disciplina hierárquica de um corpo que detém um exclusivo do emprego da violência, em nome do combate ao crime e da confiança (de podermos ser livres) de cada um de nós!
Por estas razões, o direito que lhes foi concedido de constituírem associações sindicais não incluiu o exercício da greve, mas deveria prevenir também estas formas substitutas de acção que os activistas nunca se cansarão de procurar inventar. Têm geralmente os favores da comunicação social. Ajudados por advogados, estão a aprender a explorar em seu proveito os meandros das vias judiciais. E agora aparecem a aproveitar a fraqueza ou a pusilanimidade dos médicos!
Em relação a estes últimos, dir-se-á que um clínico nunca pode recusar dar a “baixa” a alguém que afirma sentir-se enfermo; que não tem meios para, em definitivo, dizer a um queixoso que ele não está doente. Mas quando há justificações em catadupa para faltas de alunos às provas escolares, as inspecções da Segurança Social registam perto de 30% de doenças injustificadas ou quando são secções inteiras de polícias que “entram de baixa”, é inaceitável que a Ordem dos Médicos, os Comandos da PSP ou mesmo a Procuradoria-Geral da República, conforme os casos, não se mobilizem imediatamente para investigar as causas de semelhantes comportamentos e castigar as faltas profissionais incorridas!
Finalmente, voltando aos polícias, esta última acção colectiva que teve lugar em Lisboa foi desencadeada para protestar contra a condenação judicial de uns agentes, por violência praticada numa esquadra sobre um cidadão. Se os factos foram verdadeiros, têm obviamente de ser condenados: os polícias devem ser temíveis para os criminosos; mas a grande maioria dos cidadãos tem de ter confiança neles, e não temê-los. (Às vezes pergunto-me se o look americano e motorizado que eles agora exibem é mais securizante do que o velho “polícia de giro” e se, ao ser interpelado, devo perguntar se estou perante com um agente verdadeiro ou um impostor, um sindicalista ou um “caçador de multas”.)
E outro facto que não pode ficar impune é este da reacção corporativa face a uma sentença de tribunal. Os polícias podem até ter razão quando se queixam da brandura de certos juízes (e das nossas leis), que os coloca como os “maus da fita” e por pouco dinheiro. Mas não podem reagir colectivamente contra eles e contra elas. Isto já não é o “far-west”!
JF / 27.Ago.2011

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Caiu o regime tirânico de Kadafi mas o futuro é muito incerto

Com uma aceleração inesperada, os rebeldes líbios armados entraram em Tripoli, tomando de assalto o bunker e despedaçando a “tenda” do louco e sanguinário Kadafi, o que só pode merecer uma celebração. Mas tudo o resto são dúvidas e receios. Em primeiro lugar, sobre se a luta armada não vai prosseguir, agora sob a forma de resistência ou guerrilha, contra a qual a intervenção da NATO – crucial para o avanço dos homens de Bengazi – pouco serviria. Depois, porque os actuais vencedores são tudo menos um exército minimamente disciplinado e comandando, mais parecendo as milícias da guerra de Espanha ou os combatentes afegãos que correram com os tabilan do poder, e ao mais pequeno incidente podem começar a guerrear-se uns aos outros ou a fazer justiça pelas próprias mãos. E, terceiro, porque, se conseguir estabilizar a segurança física no país, resta saber com que composição de forças e programa político o actual CNT será capaz de gerar uma alternativa credível à “revolução verde” do coronel, interna e externamente, embora aqui o apoio recebido do “ocidente” possa vir a ser uma condicionante de peso.
Eis mais uma revolução da “rua árabe” nestes meses de 2011, muito diferente das suas predecessoras e certamente distinta das que se lhe podem seguir, a começar pela Síria, dramaticamente urgente.
JF / 24.Ago.2011

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Crise e conflitos

Os sociólogos deram sempre grande importância à análise dos conflitos sociais – às vezes até talvez excessiva – para melhor compreenderem a natureza dos processos de estabilidade e de mudança que atravessam as sociedades modernas.
Mas não se peça a estes analistas que comentem os “acampados” de Espanha, os corajosos manifestantes da Síria, os protestos em Israel ou os tumultos de Inglaterra de maneira muito diferente de como o fazem jornalistas ou responsáveis da segurança nos mass media. Os sociólogos podem diagnosticar situações de tensão e de conflito latente, mas não prever quando elas se transformam em violência aberta; ou então, explicar retrospectivamente estas irrupções – mas não conseguem analisá-las cientificamente “em directo”.
Todos agora realçam a função das redes organizativas espontâneas e informais que as ligações horizontais inter-individuais do Facebook ou das mensagens SMS proporcionam e o papel dos jovens como protagonistas destas acções de rua que realmente não são comandadas nem controladas por ninguém. Ou ainda o efeito de “amplificação” que os poderosos meios de comunicação áudio-visuais produzem destes acontecimentos espectaculares. E quando neles não se vislumbram objectivos políticos de desgaste ou derrube do governo em exercício, tende-se a vê-los como consequências sociais das crises económico-financeiras que nos últimos anos têm abalado o mundo ocidental.
Em relação a este acontecimento que durante três dias encheu os ecrãs de televisão, convém saber que o fogo urbano e o motim foram sempre, desde a Idade Média, meios de exteriorização habituais das revoltas que, de longe em longe, sacudiam sectores das populações britânicas. É, por assim dizer, um traço cultural deste povo, tal como noutros se cortavam cabeças ou se enchia o espírito com os vapores do alcool ingerido. Mas, de facto, deverão existir razões sociais mais próximas que justifiquem o estado de ânimo, não apenas dos jovens incendiários e destruidores (onde evidentemente também alinharam malfeitores e cadastrados), mas igualmente de gente da “baixa-classe-média” que assistiu complacentemente aos distúrbios, ou mesmo se aproveitou deles para se apropriar de alguns bens úteis. As entrevistas feitas nos dias seguintes a alguns jovens de-cara-tapada (onde se misturavam o ressentimento e a avidez consumista) foram tão eloquentes quanto as atitudes de comunidades étnicas de origem asiática, africana, etc. que ajudaram a restabelecer a ordem nas ruas e a reparar os estragos produzidos.
A Inglaterra tem uma longa história de comportamentos racistas e sobranceria nacional mas também foi capaz de transmitir a outros povos elementos interessantes de uma cultura de refinamento e bom-gosto, dos rituais de corte à prática dos sports, da literatura ou da música à independência judicial. No entanto, o que se poderá esperar de uma juventude a quem constantemente se acena com novos bens de consumo para usar e deitar fora ainda em bom estado, a quem os pais deixaram de saber dizer “não!” e por isso julga que tudo lhe é permitido, que absorve maciçamente filmes, música e literatura que só lhe falam de prazer e violência, e que, por outro lado, se procura confinar em clans futebolísticos e bairros étnicos sempre mais degradados do que “os outros”, se obriga a permanecer na escola como se fosse castigo e, à falta de trabalho, se “ocupa” em “actividades” ou a quem se dão subsídios sociais, bem caros para a comunidade que os suporta mas sempre insuficientes (ou até “humilhantes”) para quem os recebe?
E, mutatis mutandis, é este o panorama geral do mundo desenvolvido actual.
Por isso, não é de estranhar que, quando os níveis de vida estagnam, o crédito se restringe, o desemprego alastra, a pobreza aumenta, os cortes nas depesas sociais atingem os mais necessitados, certas desigualdades económicas são vistas como escandalosas e as expectativas sobre o futuro se tornam mais sombrias, possam surgir fenómenos violentos deste tipo, ao lado de comportamentos depressivos, fugas para o álcool, etc. Não por acaso, Durkheim, um dos fundadores da sociologia, procurou investigar as relações entre o suicídio e as crises económicas.
É provável que alguns exultem com estes episódios explosivos – “eles bem o mereciam!” ou, mais cinicamente, “desde que não se chegue a mim…” – mas aqui já não é questão de sociologia ou sequer de política. É uma questão de sensibilidade e sobretudo de ética. Da mesma que está ausente na educação de cada vez mais crianças e que, com o declínio das religiões, as sociedades modernas não souberam ainda compensar com uma moral laica de cidadania e universalismo.
Por isso, é bem possível que o antigo bispo de Setúbal Manuel Martins tenha razão quando nos alerta para a gravidade da conjuntura actual (Expresso, 13.Ago.2011) e confessa: “Temo que deixemos de ser boa gente.”
JF / 20.Ago.2011

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

E por onde anda a Islândia?

São menos de 400 mil os habitantes da Islândia, uma “terra de gelo” e vulcões onde os vikings terão chegado em 800 e tantos DC, e se criou um parlamento logo no séc. X mas que, tendo estado quase sempre integrada nos reinos nórdicos, só conheceu a sua independência em 1944, com um regime político republicano democrático. Os islandeses falam uma língua germânica próxima do norueguês antigo e são predominantemente cristãos luteranos.
Também muito integrada, escolarizada, participativa e liberal nos costumes, a sociedade islandesa é vista por alguns, a par da Suíça (e mesmo da monárquica Noruega!), como o melhor exemplo concreto de “social-libertarismo” actualmente existente (ver www.anarchy.no). E o país prescindiu praticamente das despesas com a defesa nacional, diplomaticamente assegurada por um sistema de alianças externas (Estados Unidos e NATO) que vem dos tempos da segunda guerra mundial.
A crise financeira americana de 2008 atingiu em cheio a população deste pequeno país que exibia índices de riqueza e bem-estar dos mais elevados do mundo: os níveis de consumo, a protecção social semelhante à proporcionada pela social-democracia nórdica e o endividamento privado tinham crescido mais do que deviam. A economia produtiva, tradicionalmente quase só limitada às pescas, alargara-se para alguma indústria moderna, turismo e novos serviços terciários e financeiros, muito abertos às trocas externas.
De repente, os títulos bancários passaram a nada valer e grande parte dos aforradores viu evaporarem-se as suas poupanças ou investimentos bolsistas, ao mesmo tempo que as falências bancárias arrastaram grave recessão da actividade económica, desemprego e punham em causa as contas públicas. A Islândia teve então de recorrer a um empréstimo do FMI.
A revolta popular foi pacífica mas expressiva e transmitiu-se imediatamente ao sistema político, levando à demissão do governo em Janeiro de 2009. Das eleições de Abril seguinte saiu um governo de coligação Social-Democrata/Verdes liderado pela senhora Johanna Siguroardóttir com ideias de integrar a Islândia na zona Euro e/ou a própria UE.
Mas aquilo que mais tem chamado a atenção de alguns observadores é o grau de consciência e participação cívica das pessoas comuns, procurando elas próprias intervir organizadamente nas grandes decisões que afectam toda a colectividade e controlando de perto as acções dos seus mandatários eleitorais, bem longe da ideia do “cheque em branco” passado aos políticos. Assim como pressionaram o parlamento a pôr o antigo primeiro-ministro em tribunal por negligência, também já rejeitaram por duas vezes em referendo que o tesouro islandês pague as indemnizações reclamadas por investidores estrangeiros (ingleses e holandeses) nos bancos que faliram, o que, se pode constituir um risco para a necessária confiança financeira internacional, também responde frontalmente àqueles que só buscam ganhos especulativos e gostam de apostar em “operações perigosas”, ignorando as eventuais consequências desses “jogos” sobre a vida de terceiros.
Além disto, os islandeses elegeram também uma comissão de 25 cidadãos sem filiação partidária para proporem os termos de uma revisão da actual Constituição.
Nesta altura, talvez a Islândia já não pense em ligar-se mais estreitamente à Europa ou esteja algo desorientada, à espera de que o ambiente financeiro mundial se clarifique. Mas a atitude activa e participativa de bom número dos seus cidadãos é um garante de que, como povo, serão capazes de superar novas dificuldades, porventura ainda maiores do que aquelas que já conheceram nos últimos anos.
Nestes tempos de motins urbanos na civilizada Inglaterra, de preocupação com as crises da “dívida soberana” de vários países (incluindo os Estados Unidos) e de temor de nova recessão, é bom saber do exemplo de povos que se não deixam facilmente abater.
JF / 13.Ago.2011

sábado, 6 de agosto de 2011

A importância do liberalismo

No blog www.socialismocultura.blogspot.com foi publicado um artigo sobre liberalismo, reprodução parcial do blog cousas liberais. Creio que o liberalismo foi a ideologia do século 18 e parte do 19. O socialismo dominou o século 19 e grande parte do 20. Em meados do século 20, surge o neoliberalismo que domina atualmente o panorama intelectual. A chamada terceira via foi a primeira tentativa do socialismo voltar a impor-se como ideologia, infelizmente débil e ainda pior interpretada pela classe política. Creio que o neo-socialismo está a nascer e será uma síntese de todas as anteriores ideologias e, em certa medida, das religiões que, não obstante, guardarão, para si, um espaço espiritual renovado. Ainda durante algum tempo prevalecerá o estatismo socialista e uns laivos de luta de classes, contraposto por um facciocismo neo-liberal (já não verdadeiro neo-liberalismo), na prática muito longe do ideal liberal e defendendo a ditadura financista do grande capital financeiro internacional, sustentada pela atual ditadura dos mídia. Parece um exagero falar de ditadura financista mas temos de lembrar que perante um setor financeiro globalizado os Estados democráticos são fracos demais, pois um governo democrático mundial está completamente fora dos horizontes. É esta fraqueza da democracia que legitima falar de ditadura financista. Juntemos a isto a ditadura dos mídia (já explicada no blog socialismocultura) e, mais legitimamente, se pode falar em ditadura.
No referido blog temos expresso algumas ideias que acreditamos fazerem parte deste novo socialismo que, aliás, talvez nem se venha a chamar assim.
Creio ser dever intelectual dos socialistas e dos liberais conhecerem as teorias mútuas e todos os grandes contributos culturais e trabalharem para uma nova síntese. Claro que as contradições de classe não desaparecerão mas serão dialogadas a um nível intelectual e humano muito mais elevado.
O inimigo da civilização não é o capitalismo mas sim a ignorância e qualquer grande desequilíbrio de poder que, hoje em dia, se expressa numa nova forma de ditadura – a ditadura financista e mediática que, na orla do império, recorre à força armada onde a ditadura mediática ainda não se impôs. Embora este império ditatorial tenha centro nos USA, não deve ser confundido com este país nem sequer com o seu governo. Está, aliás,este império, já a encontrar um novo centro na Ásia.
Foi sempre contra o grande desequilíbrio de poder que liberais e socialistas lutaram. Não quero esquecer os anarquistas que creio serão parte absolutamente indispensável da nova síntese, justamente porque, mais claramente que outras teorias, colocam a questão das assimetrias de qualquer poder. Espero que todos o compreendam e cooperem, na nova luta de libertação contra a ditadura financista e mediática.
Um abraço
zé nuno lacerda fonseca

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

O governo e a reforma administrativa

O primeiro-ministro até parece ser uma pessoa bem-intencionada, cordata e honestamente empenhada em contribuir para enfrentar a crise da maneira que melhor sirva o futuro dos portugueses.
O governo integra algumas pessoas certamente competentes e confiáveis (mas que não devem abusar disso como resposta aos argumentos críticos) e tem um programa de reforma do Estado em sentido liberal que é provavelmente o único possível nas condições, internas e externas, a que o país chegou.
Até a alienação do Banco Português de Negócios (onde a incapacidade da Justiça para castigar os culpados constitui uma vergonha nacional) e que foi um verdadeiro brinde aos angolanos e ao “compadre” Mira Amaral (mais um do grupo cavaquista que dirigiu o país há vinte anos e se passou para os “negócios”, de resto como alguns de esquerda), provavelmente terá sido agora um mal menor para o Estado e os contribuintes.
Mas será que este governo poderá realizar as reformas de fundo que se exigem, em particular no âmbito da administração pública?
Deixemos as questões do funcionalismo, dos serviços públicos e das despesas sociais para outra oportunidade. No que toca às estruturas do Estado – centrais, regionais e locais –, pressionados pelos credores externos para reduzir despesas, esta seria talvez uma oportunidade única para que pudessem ser feitas pacificamente algumas mudanças impopulares mas necessárias, ou pelo menos convenientes.
Para além da redução do número de ministros, a lei orgânica do governo inovou ao colocar vários grandes serviços estatais (por exemplo, o IEFP, o Instituto de Gestão do Fundo Social Europeu ou o Instituto de Informática do Ministério das Finanças) sob a tutela (dupla ou tripla) de mais de um ministro. Veremos se resulta em “trapalhada” ou se, além da redução de gastos, se obtêm ganhos de eficiência e abatimentos de barreiras burocráticas e informáticas (entre ministérios) que tantos embaraços parecem causar.
Os cortes de despesa nos cargos de chefia da administração pública, nos gabinetes ministeriais e nos automóveis do Estado, certamente louváveis e necessários, são porém coisas pequenas, pois o grande sorvedouro do orçamento vai para a saúde, a educação e a segurança social (além das PPP em obras públicas), e aí haverá milhões de cidadãos a serem atingidos naquilo que todos lhes disseram ser os seus direitos.
Quanto à não nomeação dos governadores civis, espera-se que ela seja o primeiro passo para uma rápida extinção dessas estruturas, a qual deveria ser compensada por uma coerente reorganização administrativa ao nível das cinco regiões-plano, com a necessária revisão constitucional. De facto, uma eleição de órgãos regionais de “segundo grau”, feita a partir das instituições municipais, seria muito mais adequada do que a criação de novos poderes com legitimidade eleitoral directa.
A questão da redução do número de concelhos e freguesias vai ser, porém, uma das “pedras de toque” da capacidade reformadora da actual coligação de poder.
Julgamos que o primeiro-ministro encetou mal esta campanha ao não dizer dramaticamente aos autarcas reunidos em congresso da ANM o que deverá ser feito. Ao que parece (pelos jornais), terá sido cauteloso e vago, mas deixou que o conclave servisse para testar a união dos autarcas para se oporem a quaisquer fusões que não tenham o seu acordo (isto é, praticamente nenhumas).
É certo que um processo de consultas top-down deverá ser activado, no âmbito de uma mobilização da opinião pública que mostre a necessidade e as vantagens desta operação de reorganização administrativa territorial (contra o “paroquialismo” e os interesses das “forças vivas” locais). Mas a última palavra terá de ser da capital, sob pena de nada resultar daqui. E há gestos simbólicos ou concretos que o bom-senso deveria impor, tais como a designação resultante de uma fusão de municípios dever conter os nomes das entidades fundidas, os órgãos eleitos cumprirem os seus mandatos ao fim, serem revistas as competências de concelhos e freguesias bem como o modo de organização do governo municipal e a sua lei-de-finanças, acabar-se com a simultaneidade das eleições autárquicas (dentro de limites máximos e mínimos que a lei fixaria) para retirar leitura política nacional a processos que devem ter a sua própria dinâmica, etc.
Finalmente, no que toca à travagem do despesismo nas regiões autónomas, só quando Alberto João Jardim começar a vociferar contra os “colonialistas” de Lisboa é que teremos um sinal de que os sacrifícios chegaram também ao Atlântico…
Eis um processo a seguir com atenção nos próximos tempos.
JF / 6.Ago.201

Arquivo do blogue