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quinta-feira, 31 de julho de 2014

Para onde vão as relações internacionais?

Os últimos episódios de violência e acção militar divulgados têm vindo a desencadear-se em zonas próximas da Europa e estão com esta relacionadas, pelo menos em parte. O teatro geoestratégico do Extremo-Oriente encontra-se numa evolução surda, que pode vir a romper-se em conflitos graves, mas só daqui a uns anos. O da África “negra” somente de forma esporádica se dilacera em violência, quase sempre localizada ou apenas com impacto regional. E o da América latina parece relativamente estabilizado. Juntamente com o subcontinente hindustânico e o sueste asiático, todas estas regiões estão agora integradas na mesma ordem internacional, quer em termos económicos, quer em termos de relações políticas entre estados. Com fronteiras minimamente consensuais (salvo excepções, derivadas da história) e governos legitimados – uns pelos princípios democráticos oficialmente vigentes, outros pela real politics; uns reconhecidos pelas suas populações, outros nem tanto –, a sua grande preocupação reside agora, efectivamente, na aceleração de um desenvolvimento económico que tire da tradicional pobreza e das misérias modernamente geradas os muitos milhões de seres humanos que ainda padecem dessas situações. Até porque temem a sua revolta – a qual, nada resolvendo, derrubaria contudo o pedestal em que se sentam as suas classes dirigentes.
Este desenvolvimento projectado à escala mundial tem-se revelado uma tarefa ciclópica, cremos que por quatro factores principais: em primeiro lugar, por razões internas ao próprio sistema económico dominante, com todas as suas virtudes e defeitos (dinamismo do mercado, relações entre produção-circulação-consumo-investimento, desigualdades, desajustamentos entre a parte financeira e a economia real, etc.); segundo, devido à fragmentação dos poderes políticos nacionais (cerca de 200) e à inexistência de verdadeiros impérios ou de um mirífico “governo mundial”; em terceiro lugar, temos em grande número de países uma “obstrução” exercida pela classe dirigente (política e económica, às vezes também cultural), a qual se apropria de uma fatia desproporcionada da riqueza disponível, marcando os limites da “classe média” e condenando à indigência ou à miséria uma fracção significativa da população, se não mesmo a sua maioria; finalmente, existe o interesse próprio da elite económico-financeira que no último meio-século tomou o controlo das decisões das grandes empresas e das oportunidades de ganhos especulativos proporcionadas pela “globalização”, reforçando as tendências para uma distribuição de rendimentos muito inigualitária.
Neste quadro global, dois fenómenos surgem com algum potencial de ameaça para a Europa e para o Ocidente: o revigoramento do orgulho nacional russo; e os conflitos que agitam o mundo árabe-muçulmano no Médio-Oriente, mas que realmente se vão estendendo desde a África tropical até às fronteiras da Índia, bordejando toda a bacia mediterrânica. De alguma maneira, é a paz internacional que também está em jogo.   
Ora, nada parece estar a ser feito – nem ser fácil de imaginar – para conseguir travar tais fenómenos. A reforma da ONU e do seu Conselho de Segurança está parada há vários anos e a organização mostra-se impotente para resolver efectivamente os conflitos e problemas que põem em causa a paz, a segurança, o entendimento e a prosperidade internacionais, limitando-se a pagar para minimizar os seus efeitos (refugiados, infância, alimentação, etc.), aliás muitas vezes com escassa eficácia. As grandes organizações inter-estaduais continentais (OEA, UA, UE, etc.), tal como as “especializadas” do universo ONU (OIT, FAO, UNESCO, OMS, OMC, etc.) e outras mais restritas (a Commonwealth britânica, a ASEAN, o Mercosul ou até a CPLP, agora tão rebaixada com a adesão de um país não-lusófono de péssima reputação e um acordo ortográfico que não agrada a ninguém), são úteis enquanto espaços de encontro, negociação e lobbying, e por vezes também como reguladores e impulsionadores de políticas conjuntas, que questões como as da protecção do meio ambiente cada vez mais exigem. Contudo, o modo de tomada de decisões e o peso dos interesses das principais potências e coligações levam geralmente a que estes se sobreponham ao “interesse geral” da comunidade mundial, de resto tantas vezes difícil de discernir face à complexidade dos problemas e à divisão de opiniões patente entre cientistas e especialistas.
A imagem blasé e displicente que o presidente Obama transmite hoje quando se pronuncia sobre os casos agudos que vão surgindo na cena mundial é bem ilustrativa da incapacidade em que se encontram os Estados Unidos para pesar decisivamente sobre estes acontecimentos, a despeito de continuarem a ser a mais forte economia do planeta e a dispor de um potencial bélico incomparável, porém quase inútil nestas circunstâncias. Aí está mais um exemplo concreto de que a popularidade, a inteligência e o fascínio pessoal de um number one desta envergadura não chegam minimamente para marcar o destino de uma estrutura social, alterando-a ainda que só em modesta parcela, quer falemos do sistema internacional – em que a sua administração só será lembrada pela retirada militar do Iraque e do Afeganistão e pela “quase não-intervenção” nas mudanças ocorridas no espaço árabe-mediterrânico –, quer falemos em termos domésticos, onde a sua interessante vontade de alargar a protecção social aos mais carenciados acabou por provocar uma radicalização política à direita, que vem perturbando o funcionamento do sistema político e lhe inviabilizou até um melhor controlo da proliferação de armas entre a população, com a desejada redução da criminalidade mais chocante.
Mas vejamos alguns dos problemas implícitos nos processos de violência político-militar mais recentes, com o escasso detalhe que aqui nos é permitido: a Rússia, em primeiro lugar.
Sob a liderança forte de Putin, que dirige o país desde 1999 por via de manobras formalmente democráticas, a Federação Russa tem vindo a sair da fase psicológica depressiva que se seguiu ao colapso da URSS para assumir hoje um papel em muitos aspectos determinante do que se passa no mundo. A desestatização da economia fez-se, pelo que toca aos sectores fundamentais, sem perda dos benefícios da concentração e da escala, com a constituição de uma nova classe de grandes capitalistas que não eram outros se não os anteriores apparatchik soviéticos; e apenas as migalhas foram deixadas ao desleixo e à concorrência selvagem entre os “pequenos”. Apesar de muito descontrolo, cortes e descaminhos, o aparelho militar “pesado” e de alcance inter-continental manteve-se unido e serve como argumento político nos confrontos político-económicos entre grandes potências. Por outro lado, a dependência energética europeia do gás russo, criada a partir da Ost-politk e do “desanuviamento” dos anos 70, colocou nas mãos do Kremlin um trunfo importante para ser jogado em termos de retaliação ou de pressão para a obtenção de determinados objectivos no espaço euro-asiático. Ao que se veio juntar o entrecruzamento de interesses económico-financeiros neste mesmo espaço, que tanto podem favorecer ou prejudicar qualquer das duas partes, consoante as circunstâncias.
A Rússia de hoje sente-se bastante segura no Extremo-Oriente, onde pode dialogar com a China, as duas Coreias, o Japão, os Estados Unidos (além da Mongólia, no flanco siberiano) para assegurar os seus interesses na região, que passarão essencialmente pela saída marítima para o Pacífico e pelo controlo da “passagem de nordeste”, quase sempre gelada mas onde quer reservar “todos os seus direitos” à exploração energética e mineral dos fundos árticos. Num parêntesis, ocorreria perguntar como se posicionam realmente hoje os que continuam agarrados ao credo marxista-leninista, dada a abstenção a que se atêm face a qualquer comentário sobre as políticas vigentes na Rússia e na China.
Quanto ao “arco islâmico” e à região caucasiana – importantes pelos recursos energéticos e pela sensibilidade das populações –, o Kremlin tem seguido uma política cautelosa, intervindo militarmente quando julga necessário (Tchechenia, Geórgia) mas sem nunca se meter em aventuras, parecendo ter guardado memória da desastrosa campanha do Afeganistão nos anos 80. Do mesmo modo se pode interpretar o relacionamento mantido com o regime teocrático islâmico de Teherão e com a Turquia (de Estado laico mas população muçulmana), duas potências regionais da sua vizinhança que lhe exigem certamente grande tacto diplomático. 
Finalmente, num mundo que já não é bi-polar nem tri-polar (do tempo de um “Sul” a assistir às disputas das super-potências), a Rússia soube juntar-se aos grandes países “emergentes” que são o Brasil, a Índia e a África do Sul (os “BRICS”, juntamente com a China) para contrariar a potência económica do Ocidente (isto é: de americanos, europeus e mais alguns “aliados naturais”) e lograr uma partilha da riqueza económica mais vantajosa para os seus respectivos “blocos regionais”, que cada um deles, de certa maneira, lidera. É positiva esta ascensão económica de países até agora periféricos e o Ocidente deve acomodar-se a essa realidade e facilitar um maior equilíbrio mundial, mas não num clima de confronto ou de vindicta por “culpas” históricas já reconhecidas. Ora, não será porque a recente “cimeira” dos “BRICS” no Brasil caiu em má altura que esta coligação internacional irá enfraquecer, apesar da ausência de qualquer afinidade de ordem ideológica ou sócio-cultural entre estes países, justamente porque ela é baseada em exclusivo na conjugação de interesses próprios (na forma como são interpretados pelos seus dirigentes), que é hoje o universo mental dominante nas relações oficiais, internas e externas, dos estados nacionais.    
Neste quadro, com o desarmamento relativo dos países da União Europeia e sobretudo o esbatimento de qualquer vontade de sacrifício combatente por parte das suas populações, apenas alguns países do Leste europeu (Polónia e outros), que experimentaram a expensas próprias os resultados práticos das concepções do poder dos comunistas russos, se têm mostrado interessados em opor uma “barreira de segurança” eficaz contra qualquer retorno do domínio de Moscovo, atitude esta que, naturalmente, foi explorada por aquele tipo de “falcões” (da escola Bush Jr.) que ainda pesam nos aparelhos governamentais do Ocidente.
Acreditamos que, em grande medida, terão sido estas razões de fundo que estão por trás e explicam, em última análise, os acontecimentos nos últimos tempos na Ucrânia, com o derrube “pela rua” do governo legal que agradava a Moscovo, ao que se seguiu a “desanexação” da Crimeia e a dissensão das regiões russófilas do leste do país, com estes episódios de violência militar não-oficial e de baixa intensidade (mas implicando a completa suspensão de uma vida civil e democrática normais), a que o incidente do derrube de um avião cheio de passageiros ocidentais veio trazer uma dramatização inesperada e incómoda para muitos.
Vários comentadores fizeram logo a associação destes factos com o assassinato de Sarajevo precisamente há um século, que desencadeou o horror da 1ª Guerra Mundial. É um alerta e um facto histórico que deve ser recordado. Mas não cremos estar, de todo, à beira de uma nova guerra. Porém, existem múltiplos ingredientes que, a partir daqui, podem fazer agravar as relações internacionais, polarizando as ambições da Rússia (e, em alguma medida, dos restantes “BRICS”) face aos interesses instalados no Ocidente. Os conflitos violentos localizados nesta região de fronteira que vai do Báltico aos Balcãs e daqui até ao Cáspio, podem multiplicar-se. E se interferirem com o outro tema de conflitualidade estrutural que hoje opõe o Ocidente ao mundo islâmico, aí as coisas podem tornar-se num cenário já altamente perigoso e imprevisível. Em todo o caso, o regresso de tempos de tensão estrutural entre blocos prejudicará fortemente a cooperação internacional e o crescimento económico mundial. Todos perderão com isso.
Passemos agora ao que parece estar a desenrolar-se nos países muçulmanos do Norte de África, do Próximo e Médio-Oriente.
Pese embora as críticas a que tem sido sujeita a análise de Samuel Huntington (O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, ed. orig. 1996), julgamos existir, de facto, uma oposição “sistémica” do mundo árabe-muçulmano contra o Ocidente, fundada em ressentimentos vários ligados a memórias históricas antigas, à exploração das suas riquezas minerais pelos ocidentais, ao domínio político destes no último século-e-meio, e às profundas diferenças dos modos-de-vida e mundivisões. Essa oposição manteve-se de maneira latente durante a segunda metade do século XX, enquanto durou a “guerra fria”, embora os nacionalismos árabes, a causa anti-israelita, a crise do petróleo dos anos 70 com a emergência da OPEP, bem como os actos de terrorismo perpetrados aqui e ali por militantes radicais islâmicos fossem sinais anunciadores do que estava a germinar. Entretanto, o poder económico dos países árabes produtores de petróleo fortaleceu-se enormemente e começou a pesar na economia mundial, também servindo para financiar alguns estados árabes ou movimentos jihadistas, para edificar cidades espectaculares à beira do Golfo, ter voz nos mass media mundiais (com a Al-Jazeera e mais meios) e para promover grandes eventos internacionais, desportivos ou outros. Mas, depois da queda do socialismo de Leste, passou-se dos “sinais” para as acções e as ameaças mais fortes, como as representadas pela tentativa de dinamitagem do World Trade Center de Nova Iorque em 1993 e a consumação da sua destruição em 2001, a imposição da sharia no Sudão e o domínio do Afeganistão pelos Taliban entre 1996 e 2001, o arrasamento bombista da embaixada americana em Nairobi em 1998, o ataque a um navio de guerra yanquee no Iémen em 2000 e os mortíferos atentados urbanos de Bali (2002), Madrid (2004) e Londres (2005) – justificados com um discurso político virulentamente anti-ocidental, que não poupava os governos dos países muçulmanos que aceitavam colaborar com os Estados Unidos, como a Arábia Saudita, o Paquistão, o Egipto ou a Turquia.
Porém, parece hoje patente que uma segunda clivagem forte atravessa toda esta região de cultura islâmica que vai, à mesma latitude, desde o Magrebe até aos Himalaias: uma conflitualidade política fundada em diferenças religiosas ou por elas justificadas – de sunitas contra xiitas –, que porém parece instável aos olhos do observador externo, pois que a mesma se desdobra por vezes em sub-antagonismos entre extremistas e realistas, entre fundamentalistas e moderados, integristas ou traidores (vendidos ao Ocidente), sendo que a traição e as reviravoltas súbitas parecem fazer parte do habitual das lutas pelo poder nessas sociedades. Ao que há que juntar as rivalidades entre estados nacionais; melhor dito, entre as suas elites dirigentes (militares, burocratas, etc.), que entretanto consolidaram interesses particulares, muito menos presentes nas grandes massas populares (comerciantes, trabalhadores e gente pobre ou desvalida) que, com facilidade, emigram ou aceitam mudar de bandeira.
A propósito disto, faz-se frequentemente referência histórica às guerras religiosas entre cristãos que nos séculos XVI e XVII assolaram e contrapuseram os reinos da Europa. O historiador Ernst Nolte interpretou a primeira metade do século XX como tendo sido uma prolongada guerra civil europeia. De certa maneira, é talvez a isso que também estamos agora a assistir – sem compreender muito bem os seus contornos e alcance – no referido teatro geoestratégico que, tal como o da fronteira leste com a Rússia, diz muito directamente respeito à Europa. Os Estados Unidos serão o “grande Satã”, mas estão geograficamente mais longe e defendidos por dois mares imensos. A Europa será sempre mais vulnerável perante estas ameaças, não apenas pela geografia, mas igualmente pela história, pela demografia contemporânea e pela composição social das suas nações, para já não referir as suas divisões internas e a relativa fragilidade dos seus mecanismos políticos. O que fez a sua força moral e civilizacional – e levou o mundo mais para diante – faz também a sua fraqueza perante poderes e interesses que se regem por valores radicalmente diferentes. E os “podres” que igualmente constam do seu currículo histórico – da “industrialização” da escravatura à imposição do seu modelo de sociedade e à desregulação dos equilíbrios naturais – são-lhes lançados à cara pelos descendentes dos humilhados-e-ofendidos desses tempos, mas que aproveitam agora dos benefícios também recebidos.
É tendo em conta este fenómeno de dupla luta política protagonizada pelos intérpretes mais aguerridos do Islão – contra o Ocidente (e ocasionalmente, por intolerância religiosa, contra minorias cristãs); e contra os islâmicos mansos e pacíficos, que constituem a sua maioria – que devemos equacionar as acções de luta, propaganda e guerra que frequentemente enchem os noticiários e as páginas dos nossos jornais.
Começando pelo extremo ocidental deste teatro geoestratégico, registe-se que o sul do deserto do Saara tem sido nos últimos anos palco de acções de guerrilheiros islâmicos possivelmente associados à Al-Qaeda, tendo sido reportadas diversas violências no norte do Mali, no sul da Argélia e nas zonas meridionais da Nigéria, pelo menos. Mas parece que o Senegal, a Mauritânia e o Saara Ocidental (reivindicado pela Frente Polisário) têm sido poupados, sendo um pouco estranho que tal aconteça, apesar do papel dominante de Marrocos na zona, cujo reino tem agido sempre com mão-de-ferro mas também tem feito esforços para desenvolver economicamente o país, com bem maior sucesso do que a sua vizinha Argélia, igualmente governado com dureza, aqui herdada do nacionalismo anti-colonial. Não será de estranhar que laços possam existir ou estejam a ser tecidos entre aqueles jihadistas e os bandos armados que por vezes actuam no Níger e no Chade, sobretudo depois que muitos seguidores de Kadafi passaram a fronteira da Líbia para sul, mas também não são de excluir conexões com o regime islâmico do Sudão-Norte, que parece comportar-se como foco irradiador do seu fundamentalismo social e político para sul, ao longo da costa oriental de África, tendo como principal campo de manobras a Somália mas actuando também com actos terroristas no Quénia ou na Tanzânia.     
Na orla mediterrânica, a Tunísia – país onde se iniciou a “Primavera árabe” que tanto entusiasmou os ocidentais – tem-se conseguido manter minimamente estabilizada na sua experiência de emancipação das tutelas paternalistas-autoritárias dos seus anteriores presidentes. Mas a Líbia continua a constituir um problema, pelas intensas lutas entre clãs e facções religiosas ou políticas que se digladiam entre si com recurso às armas, mas não perdendo qualquer oportunidade que se lhes depare para fustigar símbolos ou interesses ocidentais. 
O Egipto parece finalmente ter encontrado um pouco de ordem nas ruas, mas isso só aconteceu mediante um regresso em força do exército ao exercício do poder político, como acontecera nos longos consulados de Nasser, Sadat e Mubarak. A economia do país e o turismo internacional agradecem; o mesmo dirão as classes médias urbanas e talvez a maioria do povo – mas o rancor deverá estar a revoltar o espírito de muitos milhares de seguidores da Irmandade Muçulmana, cujos militantes foram brutalmente esmagados pela repressão militar e sancionados duramente por tribunais sem credibilidade, como se têm queixado a Amnistia Internacional ou a Human Rights Watch, perante o embaraço dos governos europeus e americano. Com efeito, depois da “compreensão” por eles manifestada em 1992 para com o golpe-de-Estado que impediu a chegada ao poder na Argélia da Frente Islâmica de Salvação através de uma vitória eleitoral (empurrando-os mais para as acções violentas), é agora o derrube de um outro islamista radical eleito para presidente que lhes suscita um inconfessável suspiro de alívio por essa solução, apesar dos meios atrabiliários usados. É que, os princípios (neste caso de convicção democrática) são apenas princípios, isto é, linhas de orientação abstractas, que às vazes se tornam impossíveis de cumprir, sob pena de males maiores. Necessário é que isso possa ser considerado apenas rara e excepcionalmente; caso contrário, desacreditam-se, não apenas os seus autores, mas o próprio valor moral do princípio afirmado.
E assim o Egipto parece ter retornado ao seu papel de aliado supostamente fiel (mas bem pago) do Ocidente, constituindo um tampão aos radicalismos vindo do sul (do Sudão e alhures) e podendo colaborar minimamente com Israel na “digestão” do problema de Gaza, nas mãos dos palestinianos radicais do Hamas. Mas a isto voltaremos já adiante.
Tomemos agora o caminho do mesmo Mediterrâneo oriental, mas no sentido leste-oeste, a partir da região do Médio-Oriente onde se situam o Paquistão e o Afeganistão. É certo que a “cintura islâmica”, como religião e como cultura, se estende muito mais além, nomeadamente para o Bangladesh, a Indonésia e as Filipinas. Mas, em termos geopolíticos, a Índia e o hinduísmo, protegidos pela cordilheira himalaia e pelo mar, constituem uma barreira formidável à expansão islâmica, a qual historicamente terá ultrapassado esse obstáculo sobretudo por via das migrações e do comércio marítimo, ainda antes dos portugueses lá terem chegado.   
No Paquistão e no Afeganistão, registaram os orgulhosos britânicos algumas das suas maiores derrotas militares-coloniais no século XIX. O terreno montanhoso e a experiência antiga de salteadores vivendo do saque das caravanas provenientes da China forjaram nestes territórios, sobretudo entre os afegãos, uma cultura popular de resistência e de ataque, inteligente e mortífero, ao estrangeiro. Parece que Alexandre o Grande também foi por aqui que teve de fazer meia-volta. Ainda com Bill Clinton no poder, em 1998, a aviação americana fez operações de bombardeamento no Afeganistão, então nas mãos dos fundamentalistas Taliban, para responder aos atentados da Al-Qaeda às suas embaixadas em Nairobi e Dar-es-Salam. E na sequência do ataque às torres gémeas de 11 de Setembro de 2001, Bush-filho envolveu a NATO numa campanha militar prolongada naquele país, de que não saiu vencedora e que abre as mais sérias preocupações sobre o seu futuro logo que as tropas ocidentais abandonem o terreno.
Enquanto isto, o vizinho Paquistão – que exibe ainda algumas boas marcas deixadas pela colonização inglesa – tem continuado a ser terreno propício para a difusão de ideias e recrutamento de combatentes extremistas, ao mesmo tempo que cenário frequente de devastadores atentados bombistas, uns talvez derivados de intolerâncias religiosas, outros mais suspeitos de manobras de provocação ou puro terrorismo, que só revelam a extrema complexidade sócio-política que afecta esta população. O seu nacionalismo tem sobretudo como suporte a animosidade contra a União Indiana e a sempre adiada questão da Caxemira, e como “válvula de retenção” o armamento nuclear que ambos os países possuem. Mas este espaço geopolítico tem estreita ligação e interdependência com o que se passa no Golfo Pérsico com os riquíssimos pequenos países produtores de petróleo, com a não menos rica, conservadora e influente Arábia Saudita (sunita), com o “barril de pólvora” que tem sido sempre o Iémen e com a poderosa potência regional que é o Irão, vivendo em regime fundamentalista islâmico (xiita) desde há mais de trinta anos.
A mal-sucedida campanha militar ocidental no Iraque, que depôs Sadam Hussein, não trouxe um mínimo de segurança, estabilidade e coerência a este país, também produtor de petróleo mas cujas fronteiras haviam sido traçadas a-régua-e-esquadro pelos ingleses no final da 1ª Guerra Mundial, ou seja: com um fraco suporte de sentimento nacional. Ainda por cima, é um país dividido fundamentalmente por duas tendências religiosas de desigual dimensão (xiitas a sul, sunitas no centro) e uma identidade nacional-comunitária, a curda (a norte), que nunca conseguiu constituir-se como estado independente. Ao predomínio dos minoritários sunitas mas melhor inseridos nas estruturas do partido laico Baas (intérprete de um suposto “socialismo árabe”, mas fundamentalmente nacionalista), o qual desapareceu com Sadam, sucedeu em Bagdad um governo formalmente tripartido mas na realidade liderado por xiitas que, contudo, nunca foi capaz de baixar o nível de violência política, com frequentes atentados bombistas que destroem toda a confiança e capacidade de vida colectiva urbana. O Ocidente e os Estados Unidos pagaram caro esta solução. E agora, no meio do caos em que se transformou a Síria nos últimos dois anos de insurreição e guerra civil de todos contra Bashar-el-Assad (sunita halauita), mas também de forma surda entre várias facções e tendências destes oposicionistas, eis que surge um anunciado Estado Islâmico do Iraque e do Levante, arquitectando um novo Califado pela acção de milícias armadas essencialmente sunitas e próximas dos jihadistas da Al-Qaeda, que já conseguem actualmente controlar uma boa parte dos territórios do norte do Iraque e do leste da Síria, chegando mesmo até à cidade curda de Kirkuk e quase às portas de Bagdad.
Como por encanto, quase deixou de se falar dos enfrentamentos armados na Síria, que continuam, bloqueados externamente pelo “não-intervencionismo” da Rússia e da China e pelos receios do envolvimento ocidental. E tem sido até agora evitado o risco de contágio da violência para o Líbano, um país de frágeis equilíbrios sociais e religiosos que a Síria já tutelou e onde o radicalismo islâmico do Hezbollah (xiita próximo dos iranianos) já mostrou várias vezes a sua agressividade, como os israelitas bem conhecem. O que sobra é a destruição de zonas urbanas de Damasco, Aleppo, Deraa, Homs, Dar-Raqqah, etc., com muitos milhares de mortos e feridos, talvez o fim da pequena tolerância religiosa que existia no país, e a enorme torrente de refugiados que têm saído para os países vizinhos, sobretudo a Turquia, e daí (os que podem) para destinos europeus.
Iremos ver estes estados – Síria, Iraque, quem sabe se amanhã a pequena Jordânia (sunita hachemita), até agora poupada mas terra de refúgio de muitos expatriados e com a memória de um “Setembro negro” na sua história recente –, estes estados, dizíamos, “modernos” mas em grande medida artificiais, desintegrarem-se para dar lugar a novos poderes assentes nas armas e fronteiras definidas segundo clivagens político-confessionais?  
O que vemos por agora é os americanos a dar ajudas ao governo iraquiano, receosos do que possa vir, tal como também o estará fazendo o Irão, por solidariedade xiita para com esses seus vizinhos. Será que ainda veremos mais uma surpreendente reviravolta em que o xiismo fundamentalista do Irão se aproxime do Ocidente, ao mesmo tempo que dele se afaste o sunismo waabita da Arábia (fundamentalista de outro modo) ou de algum dos estados do Golfo?
A estas evoluções também não poderá ficar indiferente a República da Turquia – com o Egipto, a outra grande potência desta região –, atenta no plano externo e decerto preocupada com o eventual ressurgimento do nacionalismo curdo, mas também com processos de mudança interna de que é ainda difícil entender os sentidos e prever os seus desfechos a médio-prazo. Uma coisa parece certa: o laicismo musculado e unitarista de quase um século de “kemalismo” já não existirá e o regime estremece entre as exigências de modernização e adesão à Europa de parte das classes médias urbanas, os corporativismos de juízes e militares (de costas apoiadas na NATO e senhores de um potencial bélico assinalável) e o confessionalismo islâmico que, pouco a pouco, tem vindo a penetrar a sociedade e a ocupar importantes centros de poder.   
Ao lado disto tudo, Israel embrenhou-se nas últimas semanas numa nova “guerra limitada” na faixa de Gaza, que é dominada pelos militantes palestinianos do Hamas (sunita radical, com ligações à Irmandade Muçulmana), que foi vencedor eleitoral em 2006 da Fatah (dos presidentes Arafat e Mahmoud Abbas) mas afastado e expulso da Cisjordânia no ano seguinte, ficando apenas Gaza sob o seu controlo absoluto. Mais uma vez, em espaços urbanos densamente povoados, as principais vítimas dos bombardeamentos estão a ser as populações civis que, ainda por cima, não têm fronteiras por onde possam fugir para o exterior, já que o Egipto, agora controlado pelos militares, não lhes franqueará essa passagem.
Como habitualmente, a comunicação, a propaganda e as simpatias escondidas distorcem grande parte do que se passa no terreno. Mesmo na nossa imprensa e espaços de informação audiovisual, especialistas defendem com clareza as posições das duas partes em conflito, de maneira mais inteligente nuns casos, ou apenas repetindo os argumentos de sempre. De facto, Israel tem razão em querer garantir a segurança do seu território e das suas populações (contra os rockets, incursões armadas, infiltrações subterrâneas, “intifadas”, etc., mandados pelo Hamas e outros radicais islâmicos), tal como os palestinianos de Gaza (principalmente) têm razões de queixa pelo isolamento e boicote fronteiriço de que têm vindo a ser alvo desde há anos.
Mas, se os dirigentes da Autoridade Palestiniana em Ramallah têm tido a moderação suficiente para, discretamente, manterem algumas pontes negociais com Israel em direcção à solução dos “dois Estados, em condições de segurança”, a sua anunciada reconciliação política com o Hamas veio dificultar de novo um “caminho para a paz” em que ninguém já acredita e que encoraja os extremistas de ambos os lados; um Hamas com quem em 2007 teve confrontos armados, que recebe auxílios financeiros de países árabes mal identificados mas domina uma população e um território que, nem por nada, o Egipto quereria receber de volta.
Além disto, o Hamas usa procedimentos inqualificáveis de exposição de civis aos tiros israelitas, para depois bradar que se trata de crimes de guerra. Porém, os dirigentes de Israel persistem na sua política de instalação de novos colonatos que, tal como os “muros de separação”, ofende os palestinianos (quando têm o deserto do Neguev, que bem poderiam fazer frutificar) e, sobretudo, praticam pela enésima vez este tipo de acção de punição militar – dez adversários mortos, por cada um dos nossos que cai – que só faz enraizar nas populações árabes sentimentos de ódio para mais umas décadas. Assim como o Holocausto e a construção política de Israel forjou a consciência aguda da sua nação, também o último meio-século de luta e sacrifícios acabou por dar aos palestinianos uma identidade nacional.    
São, por tudo isto, sombrias, as perspectivas internacionais em aberto no Próximo-Oriente. E se isto é verdade em relação às forças e conflitos políticos, também podemos constatar como, nos planos social e cultural, a União Europeia continua a mostrar-se incapaz de dar uma resposta convincente aos fluxos de emigrantes que afluem em condições dramáticas à sua fronteira sul, e de integrar adequadamente os milhões que já nela residem. 
JF /31.Jul.2014
(Desculpas ao meu amigo André Bandeira por aqui só me referir à aparência superficial da política mundial.)

domingo, 13 de julho de 2014

Uma ideia exagerada da política

O teórico italiano Giampetro Berti, apaixonado pela história política, definiu um dia apropriadamente o anarquismo como sendo “uma ideia exagerada de liberdade”. Eu aproveito o mote para me referir à situação por que está passando o Partido Socialista português.
O PS – de modo bem diferente do PPD/PSD mas, como ele, um partido aberto e sociologicamente muito representativo da sociedade e da cultura portuguesas – tem vivido de tempos a tempos crises internas mais ou menos tempestuosas, desde o congresso do confronto com Manuel Serra, às saídas dos “reformadores” e da UEDS, das desavenças Soares-(Eanes)-Zenha às tricas pós-soaristas entre Constâncio, Sampaio e Guterres, às sonoras e grandiloquentes ameaças de Alegre, e dos constrangimentos provocados pela liderança “determinada” de José Sócrates até à chegada de António José Seguro que foi encarado por toda a gente como um líder-de-transição. Mas raramente se terá visto um espectáculo de “rivalidade democrática” tão mediatizado e rico de “faits divers” como o que actualmente decorre.  
Tudo o que na política há de menos nobre e interessante – duelos orais em que só se procura o efeito, vantagens prometidas, manobras legais, insinuações torpes, lavagens-de-mãos como Pilatos, arregimentação de apoiantes, empurrões e apupos, parece até que agressões – tem tido ali as suas representações, em concentrado e pouco tempo, com a ampliação feita pelos media, sobretudo depois que o nacional-futebolismo esgotou precocemente o seu filão. Porém, todos os tenores juram que só querem debater “o que interessa para o país”, sejam os “aspectos concretos” (e lá sai a última listagem de críticas e de propostas alternativas, dos tribunais que já não fecham à inevitável “política do mar” ou o apoio às PME), seja “uma estratégia nacional para sair da crise” ou para “em definitivo” garantir a permanência do Estado social. Dizem uma coisa ao mesmo tempo que a negam na prática, o que é quase inevitável nos períodos e no tipo de campanha eleitoral a que fomos habituados. É de sublinhar a opinião emitida há dias por um respeitado historiador: «considero inadmissível que o partido que sem dúvida vai ocupar o poder em próximas eleições se afirme desta forma pouco demonstrativa da política como cidadania e sim como forma de conquista do poder, aquela que afinal se tem identificado com o que há de negativo na vida dos partidos» (Luís Reis Torgal, “As duas políticas”, Público, 8.Jul.2014). Se queriam ganhar balanço para uma corrida em passo acelerado em direcção ao próximo governo, os socialistas enganaram-se na receita e arriscam-se a perder a embalagem que traziam, que era exclusivamente devida à natural reacção das pessoas pelo pioramento do seu nível de vida!
Entendamo-nos! Eu não sou socialista mas também não sou anti-socialista. A maior parte dos meus amigos situa-se nessa área, votando ou aí actuando organizadamente. Em 1974, alguns velhos anarco-sindicalistas entraram mesmo para o PS para tentarem nele constituir uma “corrente libertária e federalista”. E se a maioria desses sobreviventes da antiga CGT o não fizeram, quase todos não deixaram de ir às urnas e aí apor a sua cruz “na mãozinha”, por muito que não acreditassem na bondade intrínseca dessa forma de exercer a cidadania. O PS (e o realismo de Mário Soares, antes de mais) constituiu então a barreira fundamental que travou a eventualidade de uma aventura esquerdista/terceiro-mundista que só poderia acabar mal. Mas, desde então, o partido instalou-se e partilhou alternadamente com o PSD (com pequenos contributos do CDS) o essencial da governação do país. Muito se progrediu e mudou ao longo destes 40 anos. Mas as dificuldades por que os portugueses estão agora a passar também lhes são principalmente imputáveis.
É verdade que o eleitorado tem sido de uma enorme fidelidade aos partidos que emergiram com o restabelecimento da democracia, o que, se é uma virtude que bloqueou qualquer eventual ameaça de constituição de uma direita revanchista e radical, também é um prémio ao anacrónico “tribunismo” do PCP e ao rotativista dos dois principais alternantes no poder, com espaço e tempo suficientes para forjarem e manterem os seus laços de interesses económicos e clientelares, e se refazerem nos períodos de pousio da má imagem que deixaram da última passagem pelo governo. Com a fraca experiência do PRD patrocinado por Eanes, do (apresar de tudo, interessante) PSN e do radicalismo inconsequente do Bloco de Esquerda (agora parece que em vias de desagregação), mais o aferrolhamento do actual sistema político por interesse directo dos que lá estão, só tem restado a uma boa parte do povo português, desgostoso e crítico deste estado-de-coisas, a fuga para a abstenção e a descrença no actual modelo de representação e governação.
Desta vez, porém, a crise do PS pode levar a consequências novas. Com aquilo a que já se assistiu publicamente e o que pode vir ainda a suceder até Outubro, é quase certo que muitos dos que poderiam votar PS nas próximas legislativas para castigar o actual governo deixem de o fazer, desencorajados com o espectáculo. Com António José Seguro a candidato, a vitória será sempre “curtinha” (e até dará esperanças à actual maioria); mas se António Costa partiu para esta aventura com ideias de chegar aos 116 deputados, já deve ter percebido que tal não irá acontecer, restando-lhe o trunfo de uma eventual aliança à esquerda, de um pacto de médio-prazo com o PSD ou de mais uma coligação com o CDS, uma vez removidas as actuais lideranças destes partidos. Não é provável que alguém queira e possa governar em minoria no parlamento.
Com tais perspectivas, como vão os socialistas agora alinhados com Seguro “reentrar na fila” para os cargos e as prebendas de um próximo governo chefiado por Costa? E quem acredita que, se forem vencidos, os apoiantes deste último fiquem de mãos-nos-bolsos com uma nova composição parlamentar e uma solução governamental indecisas? O risco de uma cisão não se põe ainda, enquanto Mário Soares puder intervir e o PCP não mostrar uma nova disposição, para a qual, aliás, já dispõe de uma geração de quadros políticos formados no “pós-fascismo”. Mas ela vai provavelmente passar a estar presente, como espada de Dâmocles, nos debates internos do PS (e dos outros partidos, eventualmente beneficiários ou prejudicados pela operação), sobretudo segmentados segundo linhas de fractura sobre como resolver o défice orçamental e o peso da dívida (pública e externa) a médio/longo prazo, e quanto à nossa posição marginal no concerto europeu, perante o contínuo definhamento dos padrões de vida nacionais. Pode ser até que daqui se precipite finalmente uma fragmentação e recomposição da nossa tradicional representação partidária: o que ninguém saberá é em que sentido ela se dará.
Tudo isto é curioso de observar e interessante de estudar mas, realmente, é sobretudo da vida e dos interesses dos políticos aquilo de que se trata, sobre as costas dos cidadãos. Também aqui há “excesso de política”. E défice de cidadania.
Pacheco Pereira, que tem averbado no seu currículo alguns bons combates – como contra o mainstream jornalístico, a liberdade de criticar o seu próprio campo político e agora contra a “partidocracia” que se exibe esplendorosamente no país –, enfrenta hoje o fantasma do cansaço-de-si-próprio e da sua “institucionalização”. Daí a dificuldade crescente de, no meio de uma argumentação oral, terminar frases esboçadas ou de explicitar para um público amplo e diverso o que já mil vezes lhe passou pelo cérebro e que os seus interlocutores também antecipam. (Um comunicador público tem obrigação de rever criticamente as gravações daquilo que vai destilando para o éter.) Daí também a “manipulação” com que, noutros registos, trata dados, imagens e ideias e se refere a assuntos que não conhece e abomina (a economia, o desporto, o direito ou mesmo a sociologia empírica), tudo canalizando para o domínio da política onde, de facto, tem uma enorme capacidade de análise (sobretudo dos factores subjectivos) mas onde também, não tendo sucesso como actor (honra lhe seja, nos termos em que aquela se faz), ele se compraz no seu refúgio aristocrático de comentador ou analista requestado e certamente bem-pago. Pacheco Pereira, que neste aspecto faz também “uma ideia exagerada da política”, tem-se perdido um pouco ao não resistir aos apelos interiores do opinion maker e de – legitimamente, como cidadão inteligente e empenhado – por essa via procurar “levar a água ao seu moinho”, seja no apoio à gestão autárquica de Rui Rio, na defesa da liderança partidária de Manuela Ferreira Leite ou no frentismo-de-esquerda contra o governo de Passos Coelho-Portas. Porém, tem toda a razão ao descortinar que, na actual crise do PS, é também o conjunto do sistema partidário português que, de modo mais exposto, mostra a situação comatosa a que chegou. 

Há muitas e justificadas razões de queixa contra o mandarinato que Alberto João Jardim e os seus apaniguados têm exercido na Madeira ao longo de todo este período democrático. Reconhecendo obviamente o esforço feito para o desenvolvimento económico da região, nenhuma simpatia ou condescendência nos merece a personagem e o seu modo de governação populista. Dito isto, até o Diabo tem razão em certos momentos, como aconteceu agora com a iniciativa de deputados do PSD ilhéu em avançarem com uma proposta de alteração constitucional que reduzisse o papel político de quem exerce a fiscalização da constitucionalidade das leis, neste caso o Tribunal Constitucional. É claro que este passo se insere, como mais uma “jogada”, na tensão política que se tem gerado entre esta alta-corte-de-justiça e o actual governo. Mas o mesmo se diga de todas as forças (políticas e sociais) que a este se opõem quando constantemente incensam os juízes do palácio Ratton como a “ultima trincheira de defesa dos cidadãos contra um governo fora-da-lei”. No meio de tudo isto, aqueles juízes são ainda os que “menos política têm feito”, embora sobre eles possam recair pesadas críticas, porém de outra natureza, quanto ao entendimento que têm vindo a fazer da sua função fiscalizadora e jurisdicional. 
A tremideira a que agora se assiste do grupo financeiro Espírito Santo, visível no espaço público, é bem reveladora de tudo o que a generalidade dos cidadãos ignora acerca destes negócios. O assunto é já, em si mesmo, complexo e inextricável para a maioria das pessoas, mas essa complexidade deveria ser rodeada por um “cordão sanitário” de credibilidade a-toda-a-prova, até para cortar cerce a fácil especulação que a tal propósito se pode fazer. A confiança é um dado volátil mas fundamental nestas questões. Porém, além da inevitável mobilidade de capitais que a globalização proporcionou, multiplicando-a, é aqui sobretudo perceptível o tipo de relações promíscuas que estes grandes interesses financeiros mantêm com titulares do poder político, com benefícios para ambas as partes, e frequentemente também com personalidades bem colocadas na comunicação social e na justiça, duas esferas que podem encobrir ou ajudar a descobrir jogos menos lícitos ou mesmo ilegais, como pode ter sido o caso do ex-presidente francês Sarkozy, que agora se encontra sob acusação judicial. Banqueiros, grandes empresários, governantes, juízes e jornalistas deveriam estar constrangidos por normas mais rigorosas que delimitassem os seus respectivos campos de actuação. E idênticas medidas cautelares deveriam ser tomadas contra países cujos dirigentes e formas de governo autocrático os tem tornado justificadamente suspeitos de “negócios escuros”. Há qui excesso de política, mas também abuso de poder económico privado.
Até que enfim! André Freire, um colega e especialista com amplo acesso a várias plataformas da comunicação social, usou há dias essa posição para denunciar com veemência o exagero disparatado com que as televisões – incluindo a RTP1 – nos têm vindo a servir o espectáculo futebolístico (Público, 2.Jul.2014). Tirando algumas adjectivações mais próprias do combate político do que da análise sociológica (“totalitalismo”, “alienação”, etc.), é de saudar esta pedrada-no-charco contra o mainstream dominante. Parece até que o Papa Francisco teve de prometer à presidente brasileira Dilma (em campanha) que se manteria neutro perante as disputas do “mundial”! (o qual, diga-se de passagem, foi fértil em bons jogos, surpresas e frustrações colectivas).   
Já agora, não esqueçamos no dia de hoje o lema republicano divulgado pela Revolução Francesa: Liberdade – Igualdade – Fraternidade. E parabéns pela canção recente “Não me façam pagar / Por aquilo que eu não fiz…” do cantor Tiago Bettencourt, que parece ser um autêntico hino de cidadania.    

JF / 14.Jul.2014

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