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quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Quatro formas sucessivas de arrogância

Nos comportamentos humanos, há de tudo, já se sabe, incluindo a arrogância com que alguns se assumem na casualidade que os beneficiou e que os leva a votar um desprezo profundo por todos os outros que não compartilham dessa ventura.
Lembremos o caso, muito antigo, dos profetas e daqueles a quem Deus faz revelações. Como Deus não tem laringe, são eles o seu porta-voz, através de quem se prescrevem normas impositivas para todos os Homens, se define a Justiça e se sacralizam alguns, deitando outros às chamas do inferno. Haja ou não doença esquizofrénica, o certo é que o seu poder é apenas limitado pelo Além, o que lhes confere uma ascensão inaudita entre os seres humanos. Contudo, a arrogância que se poderia prever é aqui travada, logo à partida, por outras fortes exigências, geralmente ligadas ao amor e à natureza divina da bondade.
Muito mais próximo de nós, a arrogância aristocrática data apenas do último milénio e já pode ser encarada e compreendida pela história, seja no teatro europeu-mediterrânico, seja no panorama asiático, ou mesmo em África, embora de forma mais rústica. A aristocracia perdeu definitivamente o poder político no tempo dos nossos avós (ou bisavós), pelo que já não pode mandar banir ou decepar os seus adversários, nem ser misericordiosa para com os arrependidos. Vive hoje muitas vezes a crédito, tendo tido que se converter aos incómodos do trabalho e dos negócios, ou às “reservas” onde os paparazzi os cercam, o que – convenhamos – é um bem triste fim.
Os ricos da burguesia histórica ou produzidos pela mobilidade social e o capitalismo são, frequentemente, portadores daquele tipo de arrogância que as artes e a liberdade crítica desde há muito se treinaram em desmascarar ou ridicularizar. Já não é a arrogância do gesto pausado da varanda de Buckingham Palace, mas a arrogância do “quanto custa?” e do “I buy it”. Dá para muito, mas não para reconquistar a subtileza da corte ou a força das genealogias.
Finalmente, temos hoje uma última forma de arrogância (e correspondente desprezo pelos excluídos, a maioria) que está presente nos detentores do saber científico. Aqui, não contam as posses nem o nome da família, mas sim as capacidades próprias e as redes relacionais. Fascinados com a necessidade que o poder político (e quem o disputa), ou a própria sociedade, têm dos resultados da sua investigação, muitos cientistas tendem a esquecer como é pequenino o seu contributo no processo de acumulação do conhecimento e face à vastidão do que ainda não sabemos (para já não falar das descobertas que desembocam em lugar nenhum). E, assim, agregam à arrogância teórica, a vaidade e a inveja que já Camões glosava nos do seu tempo.
JF / 29.Set.2010

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Guerra informática

A imprensa internacional de hoje relata um suposto ataque informático que já afectaria 30.000 computadores no Irão, que não seria obra de piratas mas o resultado de uma acção premeditada de entidades estatais, que várias vozes apontam como sendo os Estados Unidos ou Israel.
O “vírus” Stuxnet teria a particularidade de atacar prioritariamente os programas informáticos de gestão das indústrias. Seriam seus alvos predilectos as grandes instalações de tratamento de águas, de abastecimento de energia eléctrica, de regulação de tráfegos, oleodutos, centrais nucleares, etc.
É claro que as autoridades persas já afirmaram que se trata de “uma parte da cirber-guerra do Ocidente contra o Irão”, mas isso entra no campo da intoxicação informativa.
Como quer que seja, o certo é que os sistemas informáticos tomaram uma posição absolutamente nevrálgica em todos os países do mundo e, havendo conflitos abertos entre estados, é lógico que constituam (simultaneamente) mais um alvo e um instrumento, que pode ser usado com intuitos destrutivos, de forma discreta, com ou sem aspecto de pirataria.
A sofisticação tecnológica tem destas consequências. Pode produzir efeitos devastadores sobre a vida quotidiana de milhões de pessoas sem se dar a conhecer e sem a brutalidade da violência e do sangue. Mas não deixa de ser guerra.
JF/28.Set.2010

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Cuba despede 500 mil funcionários públicos

Notícia que se transcreve integralmente do jornal Público, de hoje (pág. 20). São desnecessários quaisquer comentários. Que cada um julgue:
“O Governo de Cuba vai avançar com o despedimento de “pelo menos” 500 mil funcionários dos quadros estatais durante os próximos seis meses e permitir que esses trabalhadores se dediquem a outras actividades no sector privado, anunciou ontem a Central de Trabalhadores de Cuba (CTC), a federação oficial de sindicatos do país.
A medida foi apresentada como “uma oportunidade para o exercício do empreendedorismo e da iniciativa própria” e não como uma resposta à difícil situação financeira da ilha. “O nosso estado não pode nem deve continuar a manter meios de produção e companhias da área dos serviços com quadros inflacionados e prejuízos na sua actividade”, referiu a central sindical, acrescentando que estão asseguradas alternativas para os trabalhadores despedidos, quer com o “alargamento das possibilidades de emprego não-estatal” como o aluguer de terrenos agrícolas ou a participação [em] cooperativas, quer com a emissão de 250 mil novas licenças para o “auto-emprego” até ao final de 2011. O Presidente Raúl Castro antecipara, no mês passado, a dispensa de um milhão de funcionários públicos mas garantira que o plano seria executado em cinco anos.”
14.Set.2010

domingo, 12 de setembro de 2010

Liberdade e sinais particulares

Há umas décadas atrás os Bilhetes de Identidade incluíam uma rubrica designada Sinais Particulares onde as autoridades inscreviam, quando era o caso, observações como: “estrábico”, “coxo da perna esquerda”, “sinal protuberante na testa”, “falta do dedo indicador da mão direita”, “tatuagem no ante-braço esquerdo com inscrição amor de mãe”, etc. Eram marcas corporais indisfarçáveis, às vezes marcas penalizantes da natureza, mas que sempre podiam servir para a identificação (e a acusação) de um suspeito de qualquer crime ou delito.
Porque todos procuramos fugir à estigmatização social, era sempre com alívio quando víamos que o burocrata de serviço tinha aposto em tal rubrica do nosso BI um “Nada” ou um mero rabisco a tinta vermelha. E considerávamos geralmente uma parvoíce ou estupidez aquelas figuras bizarras de marítimos ou de blobe-trotters que faziam gala em tatuar um pedaço da sua pele.
Hoje, milhares de jovens (e de menos jovens) bricam visualmente com a superfície do seu corpo como se fosse papel-cenário, que se pinta e deita fora. Nem lhes passa pela cabeça que se estejam a desrespeitar a si próprios! É apenas giro, nice. A mim, ocorrem-me as gravações de identificação que os nazis faziam nos braços dos seus detidos em campos de concentração, e sinto náuseas. Oferecer voluntariamente marcas corporais que nos identificam irrecusável e definitivamente perante uma qualquer polícia impiedosa, um ‘big brother’? Sem nos dar sequer a oportunidade de explicarmos que se trata de um equívoco, de uma troca de nomes? Só de loucos! É, contudo, a prova de que, para o melhor e para o pior, vivemos hoje num verdadeiro “reino da liberdade”, onde as pessoas já não temem ser identificadas nem se sentem estigmatizadas por alguma conspícua marca corporal.
Mas, se calhar, perante a avalancha do fenómeno, já nem hoje as polícias (criminais ou políticas) olham muito para os Sinais Particulares dos suspeitos. (A propósito, será que os comandos da PSP aceitam que os seus agentes se tatuem?)
JF / 12.Set.2010

domingo, 5 de setembro de 2010

Três temas diferentes

É absolutamente dramática a situação que vivem os trinta e tal mineiros no Chile, encurralados a 700 metros de profundidade e que terão ainda de esperar longas semanas até um possível salvamento.
Como em outros trabalhos de elevadíssimo risco físico, tudo deve ser feito para reduzir ao mínimo a possibilidade de ocorrência de acidentes destes. É essa uma preocupação maior dos dirigentes e responsáveis de tais empreendimentos? Será essa uma orientação decisiva que guia as autoridades oficiais que licenciam e fiscalizam estas actividades? E não haverá maneira de substituir estas acções humanas por robôs mecânicos tele-comandados?

Durante dois dias Maputo foi de novo palco de uma “revolta da fome”, que também se estendeu à cidade da Beira. As autoridades governamentais de Moçambique terão dito às suas forças de segurança para “repor a ordem” e estas actuaram da única maneira como provavelmente o sabem fazer: varrendo as multidões das ruas com balas e deixando uma dezena de mortos e muitos mais feridos no terreno, pelo menos.
Pode ser que haja também maquinações políticas, agitação de antigos militares com os bolsos vazios dos meticais que lhes teriam prometido ou formas modernas de mobilização através de telemóveis e das redes de contacto horizontais que estas possibilitam.
Mas o que é certo é que estas populações proletarizadas dos subúrbios vivem em condições económicas de grande escassez ao mesmo tempo que, a dois passos delas, se exibem os “grandes da terra”, nacionais e estrangeiros, dourando ao sol nas praias do Xai-Xai ou do Bilene ou bebendo wisky na esplanado do Polana. E a um passo, ao alcance do botão da televisão, elas “vêem” a riqueza e a ostentação das nossas sociedades ocidentais. Não é isto, por vezes, insuportável?

Finalmente, em Lisboa, um tribunal criminal de 1ª instância condenou seis dos acusados no caso de pedofilia da Casa Pia, entre os quais os senhores Cruz, Ritto, Dinis, Abrantes e Silvino, este o mais desgraçado de toda esta história, porque vítima dos mesmos abusos desde criança na instituição, incluindo por parte de um padre-capelão.
Fala-se nos jornais de outros nomes (sobretudo de Pedroso), cuja inserção no mundo da política lhes teria valido o facto de se não sentarem também no banco dos réus.
Nunca se saberá ao certo o que de facto se passou. A Justiça portuguesa – tão abalada no seu prestígio, independência e eficácia – sai um pouco com imagem melhorada deste processo. Seria contudo trágico se se viesse a espalhar a convicção de que estes réus teriam razão quanto aos erros judiciários que reclamam ou que, por meros argumentos processuais, acabassem por ficar impunes dos crimes que terão cometido.
JF / 5.Set.2010

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