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sexta-feira, 30 de março de 2012

Pensadores anarquistas

Como filosofia política, o anarquismo foi sempre uma doutrina controversa. Alguns dos seus activistas enveredaram por caminhos violentos condenados ao insucesso (embora isso também se explique pelos contextos da época), mas a grande maioria foi gente abnegada e sinceramente devotada à realização de um mundo melhor. Em todo o caso, na linguagem corrente a “anarquia” tomou então o lugar que antes era ocupado pela “república” como situação onde “todos gritam e ninguém se entende”.
Apesar do tempo transcorrido, é ainda hoje instrutivo conhecer-se o fundamental do que escreveram os seus principais pensadores, a partir do início do século XIX.
O inglês Godwin arquitectou mentalmente uma sociedade reformada a partir de uma educação de base científica, em vez da religiosa-tradicional da sua época. O francês Proudhon foi um autodidacta imaginativo e contundente nas suas afirmações, criticando o regime de propriedade vigente e opondo um princípio federativo à organização centralizada do governo e do estado nacional. O alemão Stirner foi um descendente da filosofia hegeliana que evidenciou a singularidade genuína do “eu”, onde seguidamente se apoiaram os individualistas. O russo Bákunine foi apenas um discípulo sofrível da mesma escola mas, sobretudo, revelou-se um revolucionário de indomável energia que disputou com Marx a orientação ideológica do nascente movimento operário, escrevendo páginas veementes de crítica aos apóstolos de “Deus e o Estado”. Temperamentalmente bem diferente, o seu compatriota Kropótkine, de sangue real, foi pagem e jovem oficial do Czar, realizou importantes trabalhos de geografia mas, revoltando-se contra a situação, coube-lhe a prisão, a deportação e o exílio, onde de novo foi condenado pelos seus belos escritos sobre uma visão comunitarista do futuro e pela sua infatigável acção de apoio e incentivo às lutas populares. O também russo Tolstoi configurou nos seus romances e na sua própria vida apaixonada a ideia de um anarquismo místico, cristão, de feição não-violenta. O italiano Malatesta foi a última grande figura do anarquismo militante vinda do século XIX, que se opôs à carnificina da guerra europeia e veio a morrer sofrendo já as agruras do regime autoritário e populista do duce. Benjamin Tucker defendeu a propriedade privada para todos (em vez da sua abolição), bem como os tribunais com jurados, constituindo-se como o mais all-yankee dos libertários de além-Atlântico. E a russa-americana Emma Goldmann teve a enorme virtude de introduzir no pensamento anarquista a questão da emancipação da mulher.
Já bem dentro do século XX, devem ainda referir-se mais uma dúzia de nomes.
A brasileira Maria Lacerda de Moura associou aqueles apelos pacifista e feminista à vontade neo-malthusiana de uma procriação desejada e consciente. Na sequência da reivindicação do amor livre por Armand, o também francês Daniel Guérin escreveu algumas obras históricas mas talvez sobretudo tenha ajudado a retirar a homossexualidade do “gheto social e pecaminoso” a que era votada. Oriundo do marxismo, Castoriadis desenvolveu a sua análise sobre a burocracia dos países de socialismo-de-estado e deu outros contributos para uma focagem libertária da actualidade, de base psicanalítica, tal como também o fez Michel Foucault. O americano Paul Goodmann e o inglês Colin Ward rejuvenesceram esta corrente de pensamento nas condições das actuais sociedades urbanas e tecnológicas, com as suas múltiplas novas minorias. Murray Bookchin, americano, não sendo um cientista, foi sobretudo um ideólogo do pensamento ecologista, que tanta relevância atingiu nas últimas décadas. No plano da epistemologia, o americano Paul Fayerabend inovou ao tentar sustentar uma metodologia “anarquista” do conhecimento científico. O igualmente americano Robert Nozick é o autor do conceito de “Estado mínimo”, por isso rotulado de “anarco-capitalista”. E, finalmente, mais do que o filósofo francês Michel Onfray, há quem considere o linguista americano Noam Chomsky como o maior pensador anarquista ainda vivo, o que é bastante discutível, pois tal epíteto nada parece ter a ver com o seu importante contributo para a estrutura do pensamento humano articulado com a linguagem, mas antes com o seu persistente posicionamento político anti-americano.
Em suma, pode dizer-se que estes pensadores estiveram no século XIX essencialmente preocupados com a afirmação de uma cidadania política, e no século XX com a emergência de uma cidadania social.
JF / 30.Mar.2012

sábado, 24 de março de 2012

Comentadores, ainda

Estranharam alguns leitores deste blogue não ter sido incluído o nome de Marcelo Rebelo de Sousa (MRS) entre os comentadores aqui referenciados há algum tempo atrás.
Não foi esquecimento. Foi omissão deliberada. O homem (como ele gosta de dizer) não pertence a este mundo. É, de certo modo, um extra-terrestre, que tudo sabe e que sobre tudo tem uma opinião fundamentada e definitiva. Por isso não podia ser puxado para o plano dos simples mortais…
Com esta omissão, é óbvio que também revelo a minha escassa admiração pela personagem. Mas, sobretudo, quis significar que se trata de um indivíduo à-parte, por boas e piores razões.
Não está em causa a sua superior inteligência (e até a capacidade física para assumir a carga de trabalho intelectual que se diz ser capaz de suportar). Também não interessa muito que a exibição semanal de conhecimentos que pratica só possa ser conseguida pelo labor de uma equipa por si bem coordenada (a não ser que leia os livros que apresenta só pela lombada). É ainda de admirar a prudência e o desapego que manifesta publicamente quanto à posse de bens materiais (casa arrendada, ajuda solidária ao Cais, etc.) e a sua frequência assídua de espectáculos culturais e desportivos de qualidade.
Simplesmente, o “professor Marcelo” é muito mais do que um comentador: é um verdadeiro actor individual da cena política portuguesa.
É certo que muitos aspiram a sê-lo e que, entre os habituais comentadores com lugar próprio nos media, há vários que desenvolvem nesse campo o essencial da sua actividade político-partidária: veja-se, por exemplo, as figuras de segunda grandeza que agora preenchem as habituais colunas do Público ou o lugar que vem sendo talhado por alguma gente de esquerda para que o sindicalista-doutor Carvalho da Silva desempenhe um papel semelhante (para não perderem o laço ao PC).
Mas, uma coisa são as escaramuças travadas na imprensa ou nas estações de rádio e televisão – que, contudo, por vezes, chegam a perturbar o jogo político, havendo ou não interesses materiais em disputa –, outra coisa (vide MRS) é a possibilidade de, neste ou naquele momento, uma só individualidade poder influir directamente o curso dos acontecimentos, por uma simples apreciação escutada por milhões de pessoas ou pela criação dos tão famosos “casos políticos”.
Evidentemente, nem uma personalidade desta grandeza consegue só por si determinar a agenda de um país. Se o PSD se tornou pequeno para ele, é também porque, tendo sido capaz de encurralar Guterres em vários momentos da governação deste, não pôde instrumentalizar o partido de Paulo Portas à sua conveniência. E o tempo vai-lhe faltando para uma eventual assinatura em Belém. Que ele, aliás, já terá ultrapassado mentalmente com o deleite que lhe deve proporcionar esta função de opinador incontornável da República.
JF/ 24.Mar.2012

sábado, 17 de março de 2012

Linguagem, ideias e comunicação

Por uma vez, concordei sem reservas com as apreciações feitas no mesmo dia por dois interventores de quadrantes diferentes acerca da confrangedora qualidade do debate político actual. Pacheco Pereira, no programa televisivo Quadratura do Círculo (SIC-Notícias, 9.Fev.2012), enfatizou de novo as tricas partidárias em que se arremessam meras palavras soltas em vez de se discutirem e confrontarem ideias e projectos. (Não foi também isso que desqualificou o parlamentarismo da nossa 1ª República?) E no jornal Público dessa mesma manhã, Francisco Assis, a propósito da “reiterada pobreza semântica” do primeiro-ministro, lançava o aviso: “Só que Passos Coelho não está só. O discurso das ‘alavancagens’, das ‘mais-valias’, das ‘sinergias’, das ‘resiliências’, das ‘janelas de oportunidade’, dos ‘novos paradigmas’ conduz inevitavelmente à produção de afirmações caracterizadas pela indigência retórica e a confusão doutrinária.”
Nem mais! Coelho não está só, na sua formação partidária… nem na maior parte dos actores políticos com visibilidade, em qualquer das bancadas!
Vale, porém, a pena lembrar o papel que a comunicação social, sobretudo a dos meios áudio-visuais, tem na progressão de tal fenómeno, explorando até à exaustão o gesto, a frase ou a gaffe de qualquer personalidade conhecida, em vez de nos ajudar a perceber melhor as questões em causa, mesmo nos programas de debate político. Por exemplo: a Alemanha esteve há tempos na sua mira, com os “casos” da conversa Schauble-Gaspar e das declarações de Angela Merkel e do senhor Schulz sobre Portugal, porém sem a mínima referência à pertença partidária deste último, facto certamente relevante para se entender o sentido das suas palavras no momento em que a chanceler tentava convencer os chineses a comprarem dívida dos estados europeus. Tudo se focou na suposta sobranceria germânica e na subserviência lusa.
Neste aspecto, o nosso “serviço público” de TV é tão mau ou pior que os seus concorrentes. E mesmo o programa Prós e Contras – que, além de um felicíssimo “filme-anúncio”, proporciona por vezes discussões alargadas e ilustrativas sobre temas de interesse geral – não terá sido capaz de se furtar a uma operação publicitária favorável ao regime angolano. O que mostra que a liberdade de expressão de opiniões exige uma vigilância permanente para que não seja iludida, por uns e por outros. E que o pluralismo não fica garantido por figurar apenas na letra da lei: tem de se praticar no dia-a-dia.
Parecerá estranho, mas, perante certas operações de manipulação informativa, até se pode lamentar o desaparecimento das “notas oficiosas” para que os governantes exponham directamente à população os seus pontos de vista. Embora seja também verdade que, hoje, é o receio da comunicação social (em concorrência entre si) e do impacto de certas notícias sobre a opinião pública que obriga alguns dirigentes do Estado a comportarem-se com um mínimo de contenção, tal o insaciável apetite de poder de que dão mostras no próprio exercício das suas funções.
JF / 17.Mar.1012

sexta-feira, 9 de março de 2012

Os gregos

Os gregos são um povo estimável, como todos os outros. Têm o calor humano mediterrânico, mas também as suas inconstâncias e arrebatamentos. Suscitam-nos sempre um carinho especial, pela história da sua antiguidade (da filosofia às artes, da democracia aos jogos olímpicos), mas isso são contas do passado profundo, que geralmente olvidam a existência da escravatura, a brutalidade de Esparta, a impiedade das guerras e as querelas entre cidades. A Grécia medieval, moderna e contemporânea é, não por acaso, um objecto de colonizações romanas e turcas, e de precárias soberanias próprias quase sempre economicamente dependentes do estrangeiro.
Actualmente, aos olhos de muita opinião pública, tornaram-se parecidos connosco, portugueses (mas para pior!), no desleixo das despesas estatais, no desperdiçar das oportunidades tidas pela participação no “clube dos ricos” europeus e no sectarismo das divisões políticas tantas vezes exibidas. Mas já vinham partilhando com outros povos da região – em particular, com os seus vizinhos e odiados turcos – uma reputação de escassa seriedade e confiança nos compromissos firmados. Há povos (como nós também) que parecem oscilar entre a submissão e a rebeldia.
É claro que tudo isto tem muito de preconceito e imagem-cliché. Mas as opiniões colectivas fazem-se precisamente dessa maneira, não sobre o rigor da ciência.
E para comprovar esta tendência, aí estão agora a correr nos facebooks e blogs mais irreverentes todas as chispas e apóstrofes contra “os alemães”, que ainda não pagaram dívidas de guerra à Grécia, os incitaram a todos os gastos, lhes venderam submarinos inúteis (como a nós) e mais toda uma vasta gama de culpas “nacionais”, a que não chegam a faltar alusões aos crimes de guerra dos seus avós e aos desígnios imperiais da sua próxima geração.
À parte algumas “tiradas” com graça, estas polarizações nacionalistas são desajustadas e inúteis, e podem até ser perigosas. Ninguém acredita nisso, mas não foi por acaso que o sr. Kohl lembrou há dias que neste continente “há ainda uma questão de paz” e que a União Europeia deve ter isso em conta.
A Europa debate-se numa crise interna de natureza económico-financeira mas que também corresponde ao enfraquecimento da sua força produtiva no mundo global. Isto está a pôr em causa o sistema político aqui levantado nas últimas décadas: quer, de modo imediato, as instituições supra-nacionais arquitectadas; quer as velhas soberanias nacionais, tal como têm sido praticadas de há dois séculos para cá; quer ainda os modos de participação popular nas decisões (via eleições) e de legitimação dos diferentes órgãos de poder democrático.
Muitos acreditam que só este estado de necessidade pode empurrar o processo para um novo salto de integração política europeia – necessariamente uma Europa federal. Mas não há dúvida que tal intento redundará num perigoso fracasso se não assegurar estas duas condições fundamentais: -que os espaços nacionais mantenham a sua própria identidade histórica e cultural, e alguma capacidade de auto-governo e de auto-determinação; -e que seja possível construir um modo de participação política directa dos cidadãos europeus que não os aliene perante gigantescas máquinas partidárias transnacionais ou líderes puramente mediáticos, o que agravaria exponencialmente a já visível crise de legitimidade e de capacidade de representação que vem afectando os agentes políticos actuais.
Se, porém, a crise grega se transformar em falência descontrolada, é todo um outro cenário que se abrirá para a Europa, quiçá para o mundo. Oxalá tal não aconteça.
JF / 9.Mar.2012
(PS – A este propósito, vale a pena ler o ponderado texto de opinião de Paulo Trigo Pereira “A Grécia e Portugal” saído no jornal 'Público' de 4 de Março último)

sexta-feira, 2 de março de 2012

Secretismos

Guardar segredos, na intimidade e relações inter-pessoais, é quase indispensável para a assunção da nossa individualidade. Mas os segredos-de-Estado são outra coisa, totalmente diferente. Admitamos que sejam uma componente inevitável do exercício do poder, tal como o conhecemos actualmente. Porém, como em outras matérias, é conveniente que, nesse caso, tais esferas sejam tão circunscritas e excepcionais quanto possível. Até porque elas se situam a contra-corrente dos princípios de liberdade e escrutínio público que estão na base dos regimes democráticos. Lembremo-nos das provas que os serviços secretos americanos diziam ter das armas de destruição maciça do Iraque: foi o general Colin Powel vítima de “intoxicação” pela CIA, ou foi esta obrigada a arranjar as evidências queridas pelos amigos do presidente Bush Júnior? Nunca saberemos isto, precisamente por causa do segredo-de-Estado.

Na vida social moderna, o segredo é mais controverso, e não devia ser confundido com a discrição ou a privacidade – que estão hoje muito abaladas, quer pela ousadia dos profissionais dos mass media, quer pelo exibicionismo e mesmo promiscuidade que as pessoas comuns parecem adorar, no seu modo de usar o cosmopolitismo actualmente possível. Mas, ainda aqui, o valor prevalecente é o da publicidade, a que a própria lei continuamente obriga para que a confiança pública possa existir no que toca ao funcionamento dos organismos estatais, das associações ou das próprias empresas.

Nos últimos tempos, a nossa opinião pública andou agitada com histórias de espiões, maçonarias e negócios. Acredito que entre os “irmãos” da opa ou do avental existam pessoas da mais alta moralidade e propósitos altruístas. Mas quando as elites se fecham entre si – em situações onde, no mundo em que se situam, a regra é a da liberdade e transparência – é legítimo suspeitar que também tratem (ou sobretudo tratem) dos seus interesses próprios ou de meras lutas pelo poder. Quanto aos rituais de que estas confrarias se rodeiam, eles são elementos com o seu lugar próprio em determinadas lógicas de micro-funcionamento social – porventura interessantes como objecto de estudo científico.

Pelo que me diz respeito, tive na minha juventude a dose bastante de ritualismo religioso, castrense e patriótico; e posso declarar que nunca firmei compromissos desse tipo, nem sequer alguma vez os vislumbrei nos meios anarquistas, mesmo quando ainda estavam frescas as memórias dos anos 30 e da Resistência e quando a luta contra os regimes ditatoriais de Franco ou do socialismo de Leste os obrigava a precauções e segredos de circunstância. Pelo contrário, o que aí sempre vi prevalecer foi a reivindicação pessoal de liberdade, muitas vezes até excessivamente afirmada e que tornava difícil uma coordenação mais sustentável da acção conjunta.

Por todas estas razões, e mesmo admitindo a necessidade de “serviços de informações” – para mais na época da Sociedade da Informação –, seria de exigir que os ditos serviços se limitassem efectivamente à colheita e análise de informações (incluindo as mais sigilosas que possam ser indispensáveis para a defesa colectiva de um povo ou sociedade), e não transbordassem a sua actividade, nem para “negócios escuros”, nem para acções violentas ou de provocação, que nunca confessarão por “razão de Estado”. Por exemplo: que moral pode ter Israel para acusar o Irão pelos atentados perpetrados contra cidadãos seus no estrangeiro se a morte de cientistas nucleares ocorridas naquele país nos últimos meses tiver tido a assinatura da Mossad? Mas não foi também com a cobertura de Miterrand que os serviços secretos franceses dinamitaram o navio Rainbow Warrior dos ecologistas radicais, causando a morte de um fotógrafo (por acaso, português)?

A luta contra o banditismo e o terrorismo internacional ou a “segurança do Estado” não podem ser uma capa debaixo da qual tudo se deixa fazer. É da responsabilidade do poder político cuidar que assim seja, devendo os seus opositores inibir-se de fazer daí combate partidário. Mas é da responsabilidade da opinião pública vigiar os governantes para que estes não se sintam impunes e capazes de ordenar ou cobrir práticas inaceitáveis.

JF / 2.Mar.2012

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