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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

A Universidade e os saberes

As universidades são instituições antigas, com vários séculos de história ao longo dos quais se registaram consideráveis alterações nos objectivos perseguidos e modos de os atingir. Durante muito tempo, elas ensinavam com mais elevada sofisticação argumentativa os credos religiosos dominantes nas respectivas sociedades, e algumas ainda hoje o fazem. Mas, a par disso e da discussão especulativa das leis que deviam reger a conduta os Homens, também se empenharam em estudar e explicar os fenómenos naturais observáveis na natureza envolvente. Assim, desde logo se cavaram diferenciações profundas entre meia dúzia de ramos do saber, cada um deles capaz de elaborar e justificar as suas próprias metodologias de pensar: a teologia, consolidando o património legado pelos “doutores da Igreja” (Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino) mas bastante imbricada com a base filosófica legada pelo antigos Gregos; a literatura (poética, teatro, epopeia); as leis e a retórica, muito ao serviço dos poderes político-sociais dominantes (e criando uma incrível densidade de regras formais que marcaram a época medieval); a matemática, ligada à astronomia e à representação da Terra por um lado, e à física e às edificações por outro; a cartografia geográfica e a navegação; a medicina; e as ciências naturais (em particular a zoologia e a botânica).
Com a revolução cultural renascentista (a que não foi alheio o estilhaçamento da unicidade do cristianismo de Roma), a universidade começou a projectar os seus braços, formando Colégios especializados em novos ramos da ciência, a saber: a biologia, explorando os mecanismos mais íntimos e não visíveis da vida, com efeitos na medicina e no aprofundamento do conhecimento do mundo animal e vegetal; a geologia e a história da terra (com ligação aos antecedentes); a física (mecânica, óptica, magnetismo, termodinâmica, etc., conhecimentos que tornaram possível a “revolução industrial”); a química (com desenvolvimento um pouco posterior mas irresistível, permitindo penetrar onde a física já não chegava e com aplicações directas na indústria); a história (puxada da lenda e da crónica para a esfera do saber investigativo); e a economia (despegando-se da filosofia e do direito, e explorando os métodos de cálculo matemático). Em contrapartida, a literatura saiu a pouco e pouco da alçada académica para o espaço civil da criação artística, autonomizando-se com o romance, a novela, o jornalismo e o panfletarismo. E as “artes da guerra” mantiveram-se sempre à margem destas instituições, constituindo a sua própria escola de pensamento e de formação dos seus quadros, um pouco como os conventos e seminários haviam congelado a disciplina, os saberes e os rituais do cristianismo.
No século XVIII, as “luzes” do racionalismo abriram novas portas ao conhecimento, crença em que acreditavam firmemente os enciclopedistas. A educação e a pedagogia erigiram-se então em matérias importantes leccionadas em instituições especializadas, que deveriam orientar os futuros profissionais da escola pública, complementando e substituindo em boa medida o papel das famílias e das comunidades de base de residência ou pertença. Preparava-se o processo da “reforma social” da Modernidade e, sob este enfoque, a metamorfose do Estado-nação.   
Por outro lado, paralelamente às Universidades, as Academias contribuíram poderosamente para a sistematização dos saberes: o método passou a dominar e organizar os resultados da investigação, da experimentação, da reflexão e da própria criação. Academias das Ciências, das Belas-Artes e das Belas-Letras, da História, de Música, etc., surgiram em vários cantos da Europa, relegando doravante para um passado tornado imóvel os saberes recitados da escola corânica ou dos santuários budistas. Obviamente, estas Academias beneficiavam dos favores dos poderes régios, mas estes acarinhavam sobretudo os arquitectos e os músicos, que lhes asseguravam a glorificação, e também os “físicos” (que lhes tratavam da saúde) e os confessores da Igreja, a bem de um eterno descanso. Mas o “método científico”, baseado na possibilidade de repetição da prova, entrou na sua idade adulta. E a Indústria – e já não o empório comercial ou os complexos e dificilmente transmissíveis saberes agrários – veio para, progressivamente, reorganizar toda a vida económica dos povos, alterar a estrutura social e as próprias sociabilidades e entendimentos colectivos. Não trouxe consigo apenas o Progresso e alguma forma de Liberdade; trouxe também uma enorme multiplicação da potência destruidora (ou constrangedora) das Armas, alterando a configuração da batalha e das guerras, mexendo com a diplomacia, redefinindo Nações e Impérios. Num plano mais conceptual, nascia também a geopolítica, caída em desgraça no século seguinte (Yves Lacoste: “la géographie sert avant tout à faire la guerre”). Porém, além das matérias-primas e dos novos mercados, a “segunda globalização” (colonial, oitocentista) atacou a espiritualidade animista ou panteísta de negros africanos e nativos americanos, atribuindo-se a humanitária missão de trazer esses povos para a nossa civilização e para a Modernidade – o que, parecendo impossível, afinal foi feito ao cabo de quatro ou cinco gerações, embora produzindo contradições e dilaceramentos internos que hoje se nos mostram mais visíveis.
Nesse século XIX – que viu também a economia e o direito começarem a organizar a vida internacional em bases mais racionais, com as convenções, as patentes e a estandardização –, a Universidade vai tomando as formas que ainda hoje lhe reconhecemos: faculdades e institutos donos de “disciplinas científicas” consolidadas; formalização de procedimentos (cátedras e cadeiras, exames, concursos, bibliotecas, laboratórios, rotinas administrativas, rituais académicos, fontes de financiamento); cada vez maior subdivisão dos saberes, organizados em especialidades; e nascimento das “ciências humanas” (com a antropologia, a sociologia, a demografia, a psicologia, mais tarde a psicanálise); penetração quase geral do uso de técnicas de medição estatística, tendendo a dar àqueles últimas um aspecto mais objectivo – tudo isto favorecido e legitimado por uma visão filosófica positivista, que congelava definitivamente os “estados teológico e metafísico” do pensamento humano. Mas, é por estas épocas que a articulação entre a ciência e as técnicas se torna mais evidente, directa e impactante sobre a sociedade e o meio natural. A química e a física (sobretudo com o domínio dos materiais metálicos, os maquinismos e, depois, com a electricidade) tornam-se factores quase imediatamente produtivos; são eles que permitem (ou exigem) o desabrochamento das engenharias como disciplinas e saberes de intermediação entre a investigação fundamental e as aplicações úteis, com valor económico.
No dealbar do século XX, a física alarga o seu espectro com a descoberta da composição íntima da matéria, o estudo das radiações, enfim, a física atómica. A electricidade, o magnetismo e as radiações suportam o desenvolvimento da electrónica, com a exploração do espectro radioeléctrico e a multiplicação e especialização de equipamentos. Aqui, o décalage temporal entre descobertas científicas e artefactos fabricados com base nelas reduz-se talvez a 30 ou 40 anos (a telegrafia sem fios, a radiologia, o incrível poder destruidor da “bomba atómica”, etc.). E a instituição universitária – agora no Ocidente já totalmente liberta das peias religiosas – acantona-se durante algum tempo numa estruturação interna implícita em torno de duas grandes áreas: as “ciências” (exactas, experimentais e comprováveis, incluindo as físico-químicas, as engenharias, a medicina e a farmácia, ou ainda as chamadas ciências naturais), por um lado; e por outro as “humanidades”, onde cabiam a história, a filosofia, o estudo das línguas, das literaturas e das culturas, a sociologia e (um pouco forçadamente, mas por razões diferentes) a geografia e o direito. A escola primária continuava a ter como missão o ensinar a ler, escrever e contar. Mas as matérias elementares do ensino secundário que abriam os caminhos para aquelas duas fileiras eram, no primeiro caso, as matemáticas e as ciências físico-químicas; e, no segundo, geralmente o latim, a filosofia e a história. Não por acaso, os prestigiados prémios criado por Alfred Nobel incidiram sobre a Física, a Química e a Medicina e Biologia, sendo o da Literatura e o da Paz correspondentes a outras motivações daquela época.
A indústria, os meios de transporte e comunicação, os laboratórios dos cientistas e os gabinetes governamentais criaram então as condições de crescimento de uma economia capitalista que se tornou imparável, até aos nossos dias. Esta, por sua vez, modificou profundamente as estruturas internas das sociedades e afectou as relações internacionais com efeitos nunca antes imaginados (guerras, tratados, organizações inter-estatais). E esta economia, as indústrias pesadas e extractivas, e os progressos constantes da ocupação urbana ajudaram a configurar um novo desafio: o de fazer face aos nefastos efeitos ambientais, com a emergência de algum novo cepticismo quanto aos benefícios do Progresso em franjas minoritárias mais sensíveis das opiniões públicas. 
Depois do processo de descolonização, do alarme causado pelo “risco nuclear” e na vigência de um quadro de áspera competição entre duas “super-potências” (americana e russo-“soviética”), a ciência e as instituições universitárias tornaram-se verdadeiramente matéria de interesse estatal: assegurando-lhes financiamento e encomendas, sugerindo-lhes orientações de pesquisa, estimulando a aproximação universidade-empresas, enquadrando a “vontade de saber” de populações de jovens cada vez mais vastas e preparando as futuras classes dirigentes – sempre com um olho na competição internacional, agora escrutinada com indicadores, rankings e estatísticas muito elaboradas. Neste contexto, a área dos estudos económicos desenvolveu-se notavelmente (acabando também por suscitar um outro Prémio Nobel) e sobretudo originou um novo filão de formação e carreiras profissionais que, de alguma maneira, são típicas do século XX e se prolongam na actualidade: referimo-nos aos gestores, uma qualificação aprendida com o contributo de várias matérias (economia, estatística, direito, psicologia e outras mais específicas) cujos titulares tendem a ocupar os lugares profissionais intermédios das médias/grandes organizações produtivas (fabricantes, prestadoras de serviços, vendedoras, etc.) e de entre os quais se recrutarão as próximas elites dirigentes.
Entretanto, acossadas por uma onda de credibilização que só a auréola de cientificidade parecia poder dar, as “humanidades” não descansaram enquanto não se sujeitaram a critérios de validação semelhantes aos das suas primas “nomotéticas”, assumindo-se no areópago académico como “ciências sociais e humanas”, também vulgarmente tratadas por “ciências moles” para se distinguirem daquelas, ditas “duras”. E, mais recentemente, até as disciplinas artísticas – da música ao teatro ou às belas-artes –, e mesmo as ciências-e-artes da guerra, não resistiram ao apelo de se abrigarem sob a tenda da universidade e de os seus estudantes se representarem com o “manto diáfano” das capas negras – sendo esse também o grande desígnio que alimenta as aspirações das escolas técnicas de nível superior.
Mas, assim como a geografia proporcionou que tal objecto de estudo permitisse abordagens multi-disciplinares (geografia física e geografia humana, para começar), também o desenvolvimento do conhecimento científico tem evidenciado numerosos conflitos quanto à jurisdição de que se arrogam certas disciplinas (ou áreas de conhecimento), decerto com teorias explicativas e métodos de análise originais, mas cada qual pretendendo possuir potencialidades heurísticas superiores… quando muitas vezes tais argumentos cobrem apenas interesses particulares dos seus praticantes (disputa de melhores recursos materiais ou humanos, dos favores dos financiadores, de prestígio próprio e outras compreensíveis fraquezas humanas). Mas noutros casos é o desenvolvimento interno de certos paradigmas teóricos ou metodologias de análise que introduzem factores de crise ou definhamento da capacidade explicativa de uns ramos destas ciências, em favor de outros. Por exemplo, depois de uma fase de florescimento e indesmentível atractividade, a sociologia contemporânea parece-me estar a sofrer dos avanços de disciplinas parcialmente concorrentes como a psicologia social, a antropologia das sociedades complexas, o ordenamento territorial, a história oral, a ciência política ou as relações internacionais. E há ainda os efeitos das percepções sociais dos mais jovens sobre as oportunidades futuras, que podem justificar a redução do interesse pela história, os efeitos de moda das actividades artísticas/criativas ou as fundadas expectativas em toda a fileira das “TIC”.
O desenvolvimento dos diversos saberes científicos tem-se operado nas últimas décadas sem qualquer cimento de ligação entre eles. A filosofia deixou de preencher esse papel, resumindo-se agora talvez a uma “história da evolução do pensamento humano”. Nenhuma meta-teoria, nenhuma epistemologia consistente subjaz às derivas próprias de cada ramo do conhecimento, alguns dos quais cavalgam alegremente as fantásticas tecnologias já disponíveis (ou deixam-se conduzir por elas). Talvez por isso, as religiões parecem sobreviver e relançar-se, após dois séculos de exibição triunfante das nossas racionalidades.
Novas problemáticas e núcleos de saberes se formam – por exemplo, agora nas ciências da computação, na bioquímica ou na astrofísica – com maior rapidez do que se esbatem ou superam as referidas disputas interdisciplinares. Mas, acrescentando-se à missão permanente dos institutos universitários de ciência – pesquisa, codificação e difusão dos saberes –, nunca talvez como agora se esperou tanto dos seus resultados para responder a questões colocadas pelo próprio desenvolvimento da sociedade.
Na actualidade, para dirigir estas grandes organizações que são geralmente as universidades, já não são necessários (nem talvez convenientes) reitores cientistas ou humanistas como foi, por exemplo, Unamuno – que corajosamente enfrentou em 1936 o nacionalismo espanhol mais estúpido e brutal. Bastam bons administradores ou gestores, naturalmente provindo do meio docente universitário mas que, em vez de prosseguirem o seu mister de investigar, ensinar e publicar, disponham antes de competências próprias para bem gerirem recursos diversos em ambientes complexos.
Além disso, hoje, num país como o nosso, as universidades (e os politécnicos) constituem uma espécie de “serviço cívico” para os jovens que almejam alçar-se a patamares de actividade profissional com alguma respeitabilidade social, autonomia de decisão e rendimento económico mais confortável. Eis uma expectativa porventura excessiva para uma instituição que, aspirando à universalidade e ao máximo possível de liberdade para investigar e criar/propor novos esquemas explicativos que dêem conta das complexidades crescentes do mundo onde estamos inseridos, se vê ainda e sempre limitada pelos recursos dos seus patrocinadores principais: os estados nacionais em que se situam.

JF / 28.Dez.2016  

sábado, 17 de dezembro de 2016

Mentira e morte, em política

Estamos de novo a viver um período difícil, na vida política internacional e igualmente em muitos países.
Até ao século XIX, com regimes monárquicos hereditários e sem escrutínios públicos, o recurso à eliminação física de adversários ou rivais ocorria com alguma frequência, incluindo entre pessoas com laços familiares entre si. Além das guerras, a morte era aceita para a investigação da verdade e nos veredictos da justiça. Só a consciência individual ou o receito da violação de leis divinas constituíam travões a tais práticas.

Por outro lado, esses mesmos poderes absolutos da realeza não precisavam de se preocupar minimamente em falar verdade: os seus discursos eram apenas ditados pela sua vontade ou seguindo o conselho dos seus ministros. Apenas em raros momentos de audição pública colectiva – as Cortes ou órgãos equivalentes –, perante embaixadores ou os próprios reis estrangeiros, ou entidades detentoras de outros poderes (senhores feudais, municípios e corporações, condestáveis, bispos, judeus prestamistas, etc.) os monarcas de então eram constrangidos usar justificações e argumentos com alguma verosimilhança e racionalidade. Normalmente, para eles, a verdade ou a mentira eram meramente discricionárias ou apenas instrumentais para a obtenção de certos fins ou interesses inconfessáveis. 

Evidentemente que houve sempre reis e senhores que se guiaram pela bondade e amor dos seus súbditos, e procuraram falar verdade. Em geral, foram os mais apreciados pelos povos que dirigiam, quando estes tiveram a possibilidade e a oportunidade de forjar uma opinião própria.

Esta dependência do carácter pessoal do monarca acabou com a instauração dos regimes constitucionais e, mais consolidadamente, com a generalização das repúblicas. Porque estas se fundaram e foram duradouramente alimentadas por uma ideologia de “direitos e deveres iguais” de todos os cidadãos; porque as instituições judiciais e policiais e a própria guerra passaram a estar sob a alçada de leis que traduziam aqueles princípios; porque, nessas condições, uma imprensa livre passou a vigiar eficazmente o exercício dos poderes públicos e se foi assim construindo uma opinião pública mais vigilante e capaz de se indignar e manifestar-se nas ruas ou nos parlamentos perante desmandos dos governantes – as populações destas sociedades ocidentais puderam beneficiar e habituar-se a acreditar razoavelmente nas proclamações e comunicados oficiais.

O século XX viu, contudo, graves violações e inversões destes princípios. Depois da Primeira Guerra Mundial, foi na própria Europa que líderes populistas como Mussolini, primeiro, e Hitler, depois, instauraram práticas da mentira descarada como expressão normal da clique governante (com a rádio a ajudar à sua amplificação). Nisto, foram acompanhados pelo poder “soviético” instalado na sequência da revolução de 1917 que havia derrubado o czarismo. Nisto e na facilidade e indiferença com que mandaram assassinar adversários políticos e, por fim, comunidades inteiras (como milhões de judeus ou “agentes ocidentais”) que pereceram nos fornos crematórios ou nos gulags siberianos.

Obviamente, fora deste espaço ocidental onde os Direitos do Homem tinham alguma aplicação, não eram poucos os países onde se matava com ligeireza e impunidade, por obra de regimes ditatoriais de diversos matizes. Mas também existiram casos de espécie: o Japão foi uma potência imperialista e militarista que causou indesculpáveis estragos e massacres em povos vizinhos, mas a mentira não fazia parte do seu discurso político. Diversamente, a URSS criou um estilo de argumentação estereotipada (“língua-de-pau”), rapidamente copiado pelos partidos-irmãos, em que, como escreveu George Orwell, a verdade passa a ser mentira e a mentira circula como verdade. E desde há muito que as opiniões públicas ocidentais se habituaram a não acreditar grandemente nas declarações e promessas dos estadistas árabes, genericamente considerados como pouco fiáveis. É certamente um preconceito, mas por alguma razão ganhou raízes em diversos sectores de opinião.

O espírito crítico e não fanático ou sectário foi geralmente capaz de “dar desconto” e se precaver, nos regimes democráticos, contra as omissões, inverdades ou “pequenas mentiras” a que mesmo os governantes mais honestos estão sujeitos, às vezes por “razões de Estado”, algumas das quais atendíveis, outras vezes por mero eleitoralismo, ou excesso de empenho na luta inter-partidária.      

O que agora nos aflige é que grandes potências tenham actualmente lideranças que nos estão a habituar a, sistematicamente, afirmar uma verdade entre cada duas mentiras, sempre com a mesma impassibilidade de expressão facial. A Coreia do Norte, as Filipinas, o Irão, a Rússia do senhor Putin, a Turquia de Erdogan ou a Síria de Assad (além da China, claro) estão talvez à frente dos regimes que praticam este tipo de discurso. E têm o deplorável hábito de eliminar (ou, pelo menos, tentam fazê-lo) aqueles que se lhes opõem ou os podem desmascarar. A tanto não chegam a Venezuela ou o próprio Brasil, mas, como vários outros, são estados onde a mentira baila alegremente na boca dos seus dirigentes. Nestes casos, a corrupção e o negocismo aparecem-lhes muitas vezes associados.

Finalmente, o espaço da mentira quase-institucional acabou de ganhar um importante alargamento com o surgimento do senhor Donald Trump, catapultado para a cabeça da mais poderosa nação do mundo, em grande parte devido ao seu discurso super-demagógico, primário e mentiroso. E a combinação vergonhosa da mentira com a violência e a morte tem vindo a campear nas terras da Síria e do Iraque setentrionais, primeiro pelos bárbaros do “Estado Islâmico”, e depois, sobretudo nos últimos tempos, com o castigo que tem estado a ser infligido à cidade-mártir de Alepo, onde nunca sabemos quem são os rebeldes e os resistentes, mas conhecemos sempre donde vêm os aviões e as granadas e os mísseis que arrasam a cidade e dizimam a sua população civil.


JF / 16.Dez.2016

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Sinais preocupantes de exasperação política

Lembram-se de quando “Tó Zé” Seguro era o líder do partido socialista e em 2013 recusou qualquer entendimento com o governo, não cessando de exigir eleições antecipadas? E de António Costa, antes como depois das eleições, ter recusado acertar qualquer política de médio ou longo prazo com Passos Coelho, mesmo sobre matérias tão estruturantes (e, à partida, pouco eleitoralistas) como a sustentabilidade da segurança social? E, inversamente, como o governo PSD-CDS terá provavelmente confiado sempre mais nas receitas dos seus boys e conselheiros externos do que em tentar algum tipo de acordos com “o maior partido da oposição”?

De facto, já só quase o Presidente (que tem a sua agenda própria) aparece ainda a sugerir “pactos de regime” entre os vários partidos, sobretudo os de maior representatividade nacional, relativamente à educação, saúde, sustentabilidade da segurança social, saneamento das contas públicas ou reforma do sistema político. Parece que, quanto mais se fecha o leque das alternativas de orientação política e os partidos mais se parecem uns com os outros, mais difícil se torna qualquer entendimento entre eles, mesmo sobre assuntos menores da governação. Isto, praticamente quando ninguém põe hoje em causa o sistema democrático de governo, a propriedade privada, a economia de mercado, as grandes organizações internacionais ou o papel da concorrência (até no âmbito da educação escolar!). Embora “engolindo sapos”, comunistas e esquerdistas também participam nessa mesma liturgia. Contudo, é vê-los à bulha sobre minudências jurídicas, no rateio das verbas do orçamento ou na dose de cortes que é preciso aplicar na despesa pública, procedimento que uns apelidam de “austeridade” e outros de “rigor”.

A actual coligação no poder parece de-vento-em-popa e, tirando os tropeções na “Caixa”, quase tudo lhe corre bem. Tem a opinião pública relaxada e a comunicação social atenta mas geralmente a seu favor, tal como o PR. Eu não duvido que as esquerdas possuam melhores quadros técnicos capazes de arranjar soluções mais engenhosas quanto à eficácia das políticas e dos serviços públicos. Mas são quase sempre medidas que aumentam a despesa do Estado e não necessariamente a sua eficiência ou a produtividade do trabalho, seja nos ministérios, nas autarquias e regiões, nas empresas públicas ou mesmo nos organismos autónomos (preços tabelados, despesas com pessoal, etc., e não é certo que assim melhore a motivação deste). Por outro lado, os exemplos que se têm visto nos anos passados dos contratos com os privados (PPP’s, “rendas” asseguradas a sectores ou empresas, etc.) não são de molde a deixar-nos descansados. E, como já sabemos demasiado bem, a despesa pública só se paga com mais impostos ou endividamento.

A eleição de Obama há oito anos para a presidência dos Estados Unidos levou a algumas correcções de tiro na política externa e procurou uma reforma de modestas proporções na assistência sanitária aos mais pobres, além de que a sua própria imagem de negro inteligente, moderado, bem-nascido e bem-parecido augurava um mandato feliz e conciliador da grande maioria dos americanos, e destes com o mundo, após a penosa experiência do Bush júnior. Pois, foi neste quadro que uma parte da América branca conservadora se rebelou, com o movimento do Tea Party a fragmentar o partido republicano, bloqueando várias medidas do presidente no congresso, ganhando aqui a maioria nas eleições intercalares e dando origem à inacreditável emergência do senhor Trump na cena política nacional. A sua vitória final nas urnas não vai pôr fim a este mal-estar, antes vai amplificá-lo: Washington vai retrair-se do envolvimento em grandes desafios mundiais; salvo na tecnologia, na economia e no comércio externo, os EUA vão fechar-se mais sobre si próprios; e, embora revertendo parte das políticas sociais, raciais e ambientais que vinham sendo prosseguidas, a resistência oposta pelos seus destinatários e as próprias dificuldades institucionais e orçamentais para o lograr vão provavelmente continuar a exasperar a “direita profunda” que o elegeu. Por outro lado, a política externa que Trump irá efectivamente pôr em prática é ainda uma enorme interrogação.

Mas há um outro ponto fraco destes regimes democrático-eleitoralistas: é que, com a polarização (e personalização) da escolha do executivo governamental, em cada ciclo de quatro anos há um que fica quase completamente perdido, tanto em termos de política interna como na sua acção no xadrez internacional. Veja-se como, além de outros, Putin (que joga com outras coordenadas) tem aproveitado esta circunstância para se afirmar internamente e impor-se no que considera ser o seu “espaço vital”.

Em França, em breve haverá eleições presidenciais e é mais do que provável que Marine Le Pen passará à segunda volta, devendo ser aí vencida, pois unir-se-á contra ela a “frente republicana”. Nas legislativas seguintes, é inevitável que o número de deputados eleitos pela Frente Nacional volte a ficar muito aquém da expressão dos seus votos genuínos em termos proporcionais. O sistema eleitoral maioritário em duas voltas é hoje a principal barreira que impede esta extrema-direita nacionalista de governar a França. Podemos respirar de alívio com o facto, mas ele só adia o problema, ao mesmo tempo que faz aumentar o natural ressentimento desta já significativa parcela da opinião pública do país.

A tão criticada Srª Merkel tem conseguido manter na Alemanha a sua corajosa (e inteligente) política de acolhimento de um milhão de refugiados das guerras do próximo-oriente apesar da crescente oposição anti-imigrantes que se nota na opinião pública. É certo que com ela estão os sociais-democratas, sem oposição dos verdes, dos comunistas reconvertidos (Die Linke) ou dos liberais. Mas o partido eurocéptico AfD (Alternativa para a Alemanha) arrisca-se a inchar nos próximos resultados eleitorais nacionais para os finais do próximo ano. E na Áustria o candidato do partido de extrema-direita (FPO) à Presidência da República obteve 46% dos votos, o que causa apreensões para próximas legislativas.

E o desconcertante e inclassificável “movimento 5 estrelas” na Itália não assume também posições nacionalistas e anti-europeias sempre que estas encontram aplauso em largas camadas populares? O referendo de 4 de Dezembro sobre uma importante e necessária reforma constitucional proposta pelo governo Renzi não conseguiu aprovação, como já era previsível pelas reacções assustadas dos eleitorados que se observam em vários países perante problemas diversos, mas neste caso face a uma tentativa de dar melhor governabilidade ao sistema político italiano. Os partidos “do sistema” estão com as suas cotações muito em baixo e qualquer oportunidade parece boa para os castigar.

Ocorre então perguntar se toda esta gente que, com os seus votos, vai empurrando os partidos de direita (mais ou menos extremos) para diante e quiçá um dia para o exercício do poder é, digamos assim, “neofascista”? A nossa percepção inclina-se para a negativa. Com efeito, partimos das quatro seguintes constatações: em primeiro lugar, as sociedades democráticas “de bem-estar” habituaram os indivíduos a progressos constantes do seu nível de vida e isso é hoje cada vez menos evidente, sendo necessário algum tempo para reaprender a viver com maior contenção consumista; depois, as “classes políticas” perderam grande parte do prestígio e da autoridade que possuíam, ruídas pela corrupção, a ganância e o apetite do poder, existindo hoje um claro anseio de “refundação democrática”; em terceiro lugar, a globalização tornou mais evidente a injusta repartição da riqueza no mundo, tendendo a lançar os “damnés de la terre” ao assalto das “fortalezas ocidentais” e exigindo destas respostas novas e mais adequadas; e, finalmente, existe uma agenda e uma motivação de forças políticas radicais (islâmicas, mas não só) para utilizarem meios extremos no seu combate contra o modo-de-vida ocidental, o qual vai ter que reforçar as suas defesas nos planos fronteiriços, de segurança interna e informático. Neste quadro, a maioria dos votantes nestes partidos de extrema-direita está longe de querer lançar-se numa qualquer experiência totalitária, limitando-se a desejar mais segurança e ordem nas ruas, ver travada a corrente imigratória e preservada a identidade colectiva tradicional do seu país, e querendo também operar uma renovação profunda do pessoal político que desde há décadas ocupa e domina a cena pública. Por inevitável incultura política, dispõe-se a entregar o poder a forças direitistas, porque as esquerdas deixaram de responder aos seus anseios.

Isto não retira, porém, a noção de perigosidade ao fenómeno em si mesmo, dado que: Primo, as lideranças e a militância dos referidos partidos direitistas são perigosas, conscientes e visam objectivos que, em alguns casos, comportam elementos gravemente cerceadores das liberdades; Secundo, os eleitores que lhes entregarão o poder não imaginam as consequências futuras do seu voto; e Terzo, o combate que lhes moverão as esquerdas e outros companheiros-de-caminho será de molde a dar-lhes a coesão que não tinham à partida, por reflexo-de-defesa.

O dr. Jorge Sampaio veio dizer palavras de grave preocupação sobre o futuro que nos espera se nada de muito vigoroso e esclarecido, e rapidamente, for feito para travar esta subida eleitoral dos populismos. Mas deve dizer-se que tanto as forças políticas maioritárias de direitas como as de esquerda – mas talvez sobretudo estas – têm uma parte importante de responsabilidade por esta irrupção populista instrumentalizada por líderes como Trump ou Le Pen. É claro que logo personalidades emblemáticas de esquerda vieram “nuancear” o alerta de Sampaio: o jornalista José Vítor Malheiros, que têm clara noção do que são as exigências da comunicação televisiva (e, quando aí aparece, se comporta adequadamente), nas páginas do seu jornal não se coibiu de vir destapar ligeiramente a panóplia habitual do politicamente correcto, que à esquerda cabe protagonizar, juntando-lhe a tarefa adicional de desmascarar a “amálgama” onde querem confundi-la (com forças situadas nos antípodas), pelas suas críticas à UE ou à ditadura dos mercados; por seu lado, Francisco Louçã, que é um homem inteligente, conhecedor e culto, que se exprime de modo “jesuítico” mas que ultimamente tem tomado poses mais macias e institucionais, empurra a posição de Sampaio para onde mais lhe interessa: a de uma “economia responsável”, em que o Euro tenha desaparecido ou sido substancialmente transformado (Público, 16.Nov.2016).

Em especial, está qui patente o fenómeno das migrações maciças dos países pobres para as democracias bem nutridas. As diferenças abissais na distribuição da riqueza, os fáceis meios de comunicação existentes e as liberalidades do “way of life” ocidental explicam o essencial deste fenómeno, que só se esbaterá com fortíssimos investimentos financeiros nos países pobres. Mas as responsabilidades da situação actual repartem-se: à direita, porque se acomodaram facilmente com todas traficâncias, desde que a mão-de-obra fosse barata e os negócios prosperassem; à esquerda – que durante décadas havia sido hostil (por temperamento) às forças policiais e militares mas que aprendeu o valor da segurança já há uns trinta anos atrás –, porque continuou cega e surda a acreditar na abertura das fronteiras, como se a liberdade do comércio internacional (isto é, o abatimento das taxas alfandegárias e outras medidas facilitadoras da mobilidade mercantil) fosse automaticamente equivalente a ter escancaradas as passagens de pessoas nas linhas divisórias das soberanias legais e ainda porque acredita genuinamente na “fusão cultural universal”. A famosa “4ª liberdade” de circulação interna na CEE e na UE – a das pessoas – era uma ideia interessante mas, como de resto se viu na prática, a ter de ser implementada muito progressivamente, ao longo de décadas, no pressuposto de se estar caminhando para um duplo patamar – nacional e “comunitário” – de cidadania e de organização política da Europa. A circulação de profissionais regulamentados e o direito de estabelecimento foram processos complicados, de que o “canalizador polaco” foi o símbolo mais risível. Agora, que o processo de construção europeia está visivelmente “gripado”, alguma reposição dos controlos humanos fronteiriços vai certamente ser feita, em articulação com medidas de vigilância mais apertadas sobre as populações residentes e sobretudo sobre as suas “minorias problemáticas”. Além do acréscimo da despesa pública, alguém já nota em França que o país está há um ano a viver sob o “estado de emergência”? É triste reconhecê-lo, mas talvez que a futura clivagem política mais importante se faça entre os que assegurem esse controlo fronteiriço, filtrem as novas entradas e disponham de programas eficazes de ajuda aos refugiados e de integração social dos migrantes, por um lado, e aqueles outros que (entre outras medidas preocupantes), como o senhor Trump afirma, pretendem expulsar 3 milhões de pessoas que estariam ilegalmente no seu país ou “impedir a entrada a muçulmanos”, por outro.

Apesar de tudo, não sejamos trágicos antecipadamente. No caso da Europa, não nos parece que, mesmo que algum destes partidos populistas de direita venha a aceder à governação, isso seja “o fascismo de novo em acção” – ainda que eles pudessem alterar muitas leis liberais que julgávamos definitivamente adquiridas ou instaurassem medidas de segurança pelas quais anseiam até muitos eleitores de esquerda. Estribamo-nos no que atrás acentuámos. E também porque o maior perigo do nacionalismo – que é o lançar as nações e os povos uns contra os outros, pela guerra – nos parece definitivamente esconjurado. Bem sabemos que hoje se fazem guerras apenas com militares profissionais e armas de “comando remoto”, mas desde que os seus efeitos destruidores, com vítimas inimigas e civis “colaterais”, fiquem distantes. Porém, pela nossa parte, mantemos uma forte convicção (fundada em juízo analítico) de que “toda a Europa” sairia à rua para travar qualquer aventura deste tipo no seu solo.

Porém, muito mais plausível e também negativo para as vivências liberais de que têm usufruído as três últimas gerações (e para as aspirações libertárias de alguns de nós) é a tendência de que as políticas de centro-direita e de centro-esquerda vigentes entretanto se desumanizem cada vez mais, num reflexo de “grande centrão ameaçado”, acabando por cumprir uma parte do programa das “direitas perigosas” (nacionalistas, eurocépticas e autoritárias) para responder às expectativas do seu eleitorado e assim tentar vedar-lhes o caminho do seu acesso ao poder.
   
Da Grécia fala-se agora pouco, com o Syriza depurado do senhor Tsipras a aplicar a austeridade imposta pela terceira operação de “reestruturação da dívida” na última meia-dúzia de anos. Mas a anterior ala mais esquerdista deste partido (amigo do nosso Bloco de Esquerda), provavelmente em concordância com o antigo ministro das finanças Varoufakis, não deixará de se exprimir nas próximas eleições, provavelmente complicando as contas de qualquer coligação governamental, tal como (no outro extremo) os apoiantes do partido Aurora Dourada poderão crescer para níveis ainda mais preocupantes. Perder-se-á então a actual maioria de governo? A benefício de quem?
Da Turquia só pode falar-se com grandes dúvidas e receios. No meio deste clima de depuração política do Estado e da sociedade, com a perspectiva da entrada na União Europeia definitivamente arredada e uma economia em dificuldade, que esperanças restarão para os sectores mais esclarecidos e inconformistas do país? Aos laicos e ocidentalizados, esperar anos até que passe a onda de islamização e intolerância, emigrando alguns para o continente; mas os mais crentes e impacientes poderão ser tentados pela via da luta armada, sejam curdos ou não, defensores ou opositores de um Islão integrista. O que poderá fazer deslizar mais a Turquia para o turbilhão de instabilidade e insegurança que assola o Iémen, o Iraque e várias zonas da bordadura mediterrânica como a Síria, Gaza e a Líbia. Mesmo fora destes casos extremos, a vizinhança da fronteira sul da Europa continua a ser de molde a causar-nos grandes preocupações: a série televisiva espanhola O Príncipe, apesar de muitas simplificações “hoolywoodescas”, foi capaz de evidenciar com grande força de imagens a importância dos laços familiares nestas culturas islamizadas e a enorme falta de alternativas que se apresentem aos jovens das cidades do Magrebe (à parte a economia da droga e os pequenos tráficos e delinquências), sujeitos como os demais aos apelos da moda, das focagens mediáticas e ao abuso das “redes sociais”.  
Finalmente, a Espanha é talvez o país onde, não estando agora em causa focos de violência interna nem ameaças extremistas de direita, é o próprio regime democrático que põe à mostra alguns dos seus piores defeitos próprios: intransigência partidária e ideológica; confusão e enfrentamentos dentro do PSOE; bloqueio das instituições; riscos de exasperação dos nacionalismos periféricos. Com a pergunta adicional de saber que papel será capaz de jogar o jovem rei para manter o “Estado das nacionalidades” gizado nos anos 70; ou se, dessa incapacidade em o reformar, nascerá mais um grave problema para estes que são nossos vizinhos e principais parceiros económicos (nas trocas comerciais, banca e mesmo investimentos directos na produção e bens fundiários). Por agora, a economia não parece ter sofrido muito deste quase um ano “sem governo” e a sua ausência nos fora europeus até pode ter simplificado os seus sempre difíceis entendimentos. Mas, a prazo, na falta de certas decisões centrais necessárias, será também o sistema económico que poderá começar a “arrastar os pés” e a produzir descontentamento entre as populações.
 
Fora destes contextos político-institucionais nacionais, a outra “grande política” prossegue, de maneira sangrenta no Próximo-Oriente, e em modo larvar noutras paragens. Russos e alguns ocidentais, jihadistas e regulares, sunitas e xiitas, governos e seitas (religiosas, étnicas, tribais, políticas ou nacionais) – todos se enfrentam de armas na mão na Síria e no Iraque, e mais dispersamente nas Arábias e em África, em coligações precárias e sempre reversíveis. Mas no Extremo-Oriente (passe o habitual euro-geocentrismo), grandes manobras se desenham em torno dos mares da China, com de novo russos, japoneses, quiçá vietnamianos e indonésios, mais vizinhos turbulentos como a Coreia do Norte e o Sr. Duterte (que agora preside com punho-de-ferro na república “latino-americana” das Filipinas), a não quererem deixar a China falar sozinha na região frente aos Estados Unidos (que só pode contar com o apoio certo de australianos e neozelandeses). China que também tem internamente problemas complicados para resolver…

Depois de Palmira, Ramadi, Faluja, Nimrud, Tikrit e Kirkuk, a queda de Mossul para a coligação anti-Daesh irá deixar o Estado Islâmico com uma “profundidade de campo” de actuação e recursos muito reduzidos, com uma possível batalha final em torno de Racqua, nas margens do rio Eufrates. O destino do que resta de Alepo é ainda uma incógnita mas, se não se gerar aí algum incidente grave que ponha russos e americanos face a face, não é de crer que os bárbaros jihadistas do EIIL consigam triunfar, e menos ainda os guerrilheiros “moderados” que perecem ser os alvos preferenciais da aliança Putin-Assad. Isto significará o fim da guerra territorial em que a estratégia do EIIL assentou nos últimos anos. Este espaço (norte do Iraque e partes da Síria) e tempo (quase um quinquénio) foram suficientes para: fixar ali uma guerra de tipo convencional (que só se ganha no terreno à custa da destruição de cidades); indispor Washington contra Moscovo; lançar apelos e mobilizar aderentes em âmbitos mais vastos; expulsar para a Europa uma multidão de refugiados e assustá-la em simultâneo com a ameaça de atentados terroristas bem-sucedidos. Mas todos os analistas se preocupam já com o que será este pós-guerra, no terreno e fora dele. Reduzir-se-á o Daesh a um grupúsculo perigoso como parece ser hoje a Al-Kaeda? Ou este medievalismo brutal irá agora voltar a irromper de forma mais pontual em geografias alargadas? (em África, no Oriente ou mesmo na América?) Ou ainda: serão os próximos cenários de confrontos violentos o Egipto, a Turquia, o Magrebe ou o mesmo as imediações da península arábica?  

Isto não é política partidária mas, tal como aquela que está agora a ser praticada nos casos referidos, é também a disputa do poder (de decidir sobre nações e recursos gigantescos) que mobiliza as elites dirigentes e governantes. Ambas estão esquecidas de que a vida é curta, e que a maioria das pessoas espera deles outra actuação.


JF / 5.Dez.2016

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