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sábado, 30 de novembro de 2013

Técnica, economia e sociedade


Há anos atrás, discutia-se muito na comunidade internacional dos sociólogos a importância do factor tecnológico (do progresso técnico, dizia-se então) na evolução das sociedades. Estava-se então na época da difusão acelerada dos dispositivos automáticos de produção industrial (a “automação”, a “robótica”), bem antes de surgir a vaga avassaladora da informática, dos computadores e das telecomunicações dos tempos actuais. Aqueles cientistas tendiam geralmente a criticar a ênfase dada por outros a tais factores e mais facilmente contrapunham a esta perspectiva a “construção social das técnicas”, identificando aliás um filão de pesquisa e de apreensão dos fenómenos sociais que se estendeu para outros domínios, como a própria produção da ciência ou a germinação das culturas juvenis, por exemplo.

Esta negação do primado da técnica na evolução da vida social tem toda a justificação se a atitude a criticar é o que poderemos designar por “tecnicismo”, isto é: a convicção interiorizada no pensamento dos sujeitos de que a tecnologia – as máquinas, os dispositivos e os respectivos saberes operativos – é sempre capaz de resolver problemas e dar respostas a questões ou necessidades sociais que parecem insolúveis ou impossíveis; se não hoje, certamente um pouco mais tarde. Uma tal disposição de espírito decerto que menospreza as condições económicas em que cada inovação técnica pode, ou não, difundir-se e provavelmente ignora o papel específico desempenhado pelas dinâmicas sócio-culturais, quer na travagem, quer na aceitação ou aceleração da difusão de tais mudanças, como têm vindo a mostrar as diversas ciências sociais, desconhecendo também as relações mais fundamentais postas a descoberto pelas análises contemporâneas sobre a evolução histórica.

Vejamos alguns exemplos de manifestações concretas daquilo que estamos a afirmar – sendo certo que tais exemplos não constituem qualquer prova, mas apenas facilitam a comunicação e a apreensão do que se sustenta por parte de um leque mais alargado de pessoas. Falando do caso do Portugal que temos sob os nossos olhos, é inegável que o país se modernizou tecnicamente nos últimos trinta anos se pensarmos na rápida difusão dos sistemas tele-informáticos, na profusão de “electro-domésticos” que hoje existem nos lares portugueses ou na superação dos atrasos existentes em infraestruturas e equipamentos no âmbito das comunicações rodoviárias, da saúde pública, do ensino e da cultura, aproximando-nos dos países europeus da nossa vizinhança. Simplesmente, por não terem uma base de sustentação económica suficiente e terem sido edificados em condições de endividamento pouco acauteladas, tais bens estão hoje largamente sub-aproveitados ou carentes das necessárias despesas de manutenção. Ou seja: por voluntarismo político ou encandeamento pelas facilidades de crédito oferecidas, muitos investimentos de modernização técnica foram feitos sem que a economia realmente os reclamasse e sobretudo os pudesse sustentar. Este é o drama colectivo do nosso presente, mas vários dos que conhecem aprofundadamente a história do Portugal oitocentista afirmam que idêntico tipo de desajustamento também então aconteceu com a nossa inicial industrialização e as políticas de modernização infraestrutural do Fontismo (estradas, ferrovias, telégrafo, portos).

A mecanização e a organização em grande série da produção industrial permitiram, indubitavelmente, alcançar dois resultados positivos e de grande alcance para as sociedades onde tal ocorreu. Por um lado, embarateceram o custo de produtos de uso corrente, pondo-os ao alcance da bolsa de um número muito mais alargado de consumidores. Isto foi um efeito económico, de alargamento do mercado (que, pelo seu sucesso, decerto deu lucros avantajados aos seus promotores), mas com claros reflexos positivos e imediatos na população. Um segundo efeito positivo deveu-se à possibilidade de dar trabalho a um maior volume de trabalhadores, homens e mulheres, que não dispunham de especiais qualificações para o desempenho de tarefas na indústria e a quem agora se pedia apenas para executar gestos simples, embora repetitivos e por isso mesmo cansativos: geralmente, tal oportunidade foi aproveitada por antigos camponeses (alguns provindo da imigração de territórios longínquos) e também por mulheres até então confinadas à esfera doméstica. Porém, este progresso técnico e económico teve também um custo social assinalável. Ele retirou, pouco a pouco, o espaço aos operários qualificados de ofício, que dispunham de algumas vantagens no mercado de trabalho face ao poder económico do patronato. As novas máquinas e as tarefas produtivas agora desagregadas em gestos elementares que qualquer um podia realizar eliminaram em algumas décadas o processo social das carreiras operárias que se iniciava com alguns anos de aprendizato, no próprio local de trabalho, a que se seguia uma ascensão lenta mas segura e irreversível de desempenhos profissionais num certo domínio de especialização (com designações como aspirante, oficial de 2ª, oficial de 1ª, etc.) de que podem ser exemplos os torneiros-mecânicos, os caldeireiros, os pedreiros, os marceneiros e tantos outros; e que atingia o tope com as posições de contramestres, mestres e mestres-gerais, que eram pessoas que, embora tivessem tido escolaridades elementares, se haviam guindado por mérito profissional próprio ao domínio de todos os “segredos da sua arte” e se consagravam agora a tarefas de coordenação, gestão e controlo do processo produtivo e de todo o pessoal da sua especialidade. Não que estes ofícios manuais (ou do uso competente de máquinas e ferramentas) tivessem sido banidos definitivamente; mas foram contudo reduzidos a pequenos núcleos adstritos a funções de manutenção ou reparação de equipamentos, e já não responsáveis pela produção de bens, de que resultou também uma depreciação do valor económico do seu trabalho, dos seus salários. É certo que, mesmo antes disto acontecer, já existiam sectores da indústria que empregavam largos volumes de mão-de-obra pouco ou nada qualificada, como as operárias da fiação mecânica, os serventes da construção civil ou os estivadores portuários – para já não falar nas crianças que também foram então lançadas para as oficinas. Para todos estes foi indiferente a intensificação da mecanização, salvo quando esta também se pôs a economizar empregos. Mas aquela outra “elite” ou “aristocracia” operária, orgulhosa do seu saber profissional e da sua utilidade social constituía, de facto, um valor e um património que o industrialismo do século XX destruiu e sacrificou.

Um terceiro exemplo de enorme magnitude que nos está ainda a afectar em pleno é o dos impactos brutais da industrialização sobre o meio ambiente natural, intensificada de maneira mais dispersa por todo o planeta no decorrer do último século. As alterações climáticas, a rarefacção da camada de ozono, a elevação da temperatura dos oceanos ou a degradação da qualidade das suas águas podem não ter ainda comprovação científica clara de que sejam um resultado do modelo económico dominante, com as suas poluições industriais, a energia assente na queima dos combustíveis fósseis, a super-concentração urbana e um consumo de massas baseado no “usar e deitar fora”. Mas as percepções de uma parte mais informada das populações do globo, com reflexos sobre algumas das decisões das elites políticas, já incorporaram nos seus raciocínios essa relação de causa-efeito, encarando de maneira crítica ou com desconfiança o “modelo de desenvolvimento” vigente. 

Finalmente, atente-se na enorme pressão que as atitudes sociais dos países ocidentais mais ricos têm vindo a exercer nas últimas décadas sobre as ciências e tecnologias da saúde e bio-genéticas, no sentido de que estas descubram maneiras de combater mais eficazmente as doenças e prolonguem a vida o mais possível, bem como façam recuar as fronteiras da natureza, nomeadamente quando às possibilidades da procriação humana, aliás com riscos visíveis de natureza ética. 

Nestes vários exemplos, temos casos em que o dinamismo prioritário e dominante parece situar-se nos domínios da técnica, sendo que a economia e “o social” podem, ou não, acompanhar esses progressos. Temos outros em que uma frutuosa combinação da técnica e da economia levou a grandes mudanças nas sociedades, porém, ambivalentes: umas positivas e outras negativas. O terceiro exemplo mostra-nos a tomada de consciência de uma parte ainda restrita de humanidade sobre efeitos nefastos a longo prazo da economia e da técnica actualmente dominantes, a contra-corrente de interesses poderosos e ao lado da desatenção e ignorância da maioria, só capaz de enxergar os benefícios do curto prazo. E temos por último um caso de efeito dinâmico e de liderança por parte de já amplos sectores das sociedades contemporâneas que, aqui sim, provocam um efeito de arrastamento na produção científica.

Este último caso corporiza da melhor maneira uma subordinação da técnica à procura social. Mas nem todos os exemplos revestem a aparente benignidade deste processo. Lembremos que a investigação sobre a energia atómica foi muitíssimo acelerada pela busca de uma arma decisiva para vencer a II Guerra Mundial, como já tantas vezes acontecera na história mas talvez nunca com um “galgar de patamar” tão significativo como ocorreu dessa vez. É certo que foi uma decisão de um restritíssimo grupo de homens, mas o que estava em jogo era a sociedade no seu conjunto. E foi esta que justificou e provocou mais este salto nos avanços científico-tecnológicos.

Não há que menosprezar o papel da tecnologia na evolução humana. Em primeiro lugar, porque que todos os passos notáveis de inovação técnica resultam de um esforço prolongado e sistemático de investigação científica. Já não estamos no tempo das descobertas geniais de uma mente privilegiada (modelo Leonardo da Vinci), ou sequer dessa feira das consolações do Portugal de há meio-século que eram as medalhas-de-ouro e as menções-honrosas do salão dos inventores de Genebra. Os recursos hoje consagrados à qualificação das populações e à sustentação dos sistemas de investigação científica são considerados investimentos, a despeito de serem custos que muitos ajudam a suportar. Em segundo lugar, também porque, diferentemente das conquistas sociais e dos progressos da economia, os avanços científico-tecnológicos, uma vez adquiridos, tornam-se irreversíveis (para o melhor e para o pior). A técnica é pois, também ela, um produto do saber humano, que pode ter utilizações com intenções e efeitos muito diferenciados de um ponto de vista moral ou político.

Igualmente, a economia deve ser encarada sem preconceitos ideológicos. O pensamento político de esquerda habituou-se desde há mais de século e meio a encarar negativamente os sistemas económicos modernos, rebaixando-os sob os epítetos de “capitalista”, de “exploração do homem-pelo-homem”, “imperialista”, “de mercado”, “neo-liberal”, etc. Se, em certa medida, os poderes políticos democráticos conseguiram corrigir alguns dos aspectos mais detestáveis desta economia (abuso do patrão sobre o assalariado, concentração desmedida da riqueza, etc.), orientando-a no sentido de contemplar melhor objectivos benéficos para a maioria (na distribuição do rendimento, na saúde, educação ou previdência social), os ensaios para criar um regime económico alternativo, de base racional e administrativa, organizado pelo Estado, conduziram até hoje a patentes fracassos. E as experiências de “economia social” (cooperativismo, mutualismo popular, entreajuda solidária local, etc.), sendo humanamente muito ricas e pedagogicamente interessantes, nunca conseguiram mais do que constituir “ilhas” de refúgio para valores democráticos e comunitários, mas sem capacidade para se imporem no quadro mais amplo das sociedades urbanas contemporâneas. No contexto actual de globalização, a economia também pode ser vista como um tecido de relações sociais que, pela primeira vez, unificou o mundo, ultrapassando as fronteiras nacionais, as línguas, as crenças religiosas e outros particularismos culturais, traduzida por dados estatísticos e por uma contabilidade monetária imediatamente compreensível e significativa em qualquer ponto do planeta. É uma aquisição que não deve ser menosprezada. E talvez aqui a economia esteja “em avanço” sobre outros mecanismos de controlo social, nomeadamente por não existir um poder político mundial representativo capaz de estabelecer regras de regulação mais eficazes em certos domínios, como sejam as transacções financeiras, o comércio internacional ou os standards mínimos para um trabalho digno e gratificante.

Voltemos ao ponto de partida. Haverá alguma razão fundamentada para atribuir uma prioridade aos factores técnicos na marcha da sociedade? Há autores que falam de uma 1ª revolução industrial (a do carvão e da máquina a vapor, que transformou a fábrica, a navegação e criou o caminho-de-ferro), de uma 2ª revolução industrial (a proporcionada pela electricidade e o motor de explosão, na origem do automóvel e do avião) e de uma 3ª revolução industrial (inaugurada pelo aproveitamento da energia nuclear). Mas esta é uma periodização essencialmente útil para sistematizar a evolução das tecnologias de produção (como igualmente poderíamos fazer para as armas, os utensílios domésticos, etc.). É muito discutível que sirva para o fim que aqui temos em vista.

Por outro lado, é verdade que componentes genuinamente próprias da vida social podem impor travagens ao progresso técnico ou estimular o seu contínuo borbulhar, como podem ignorar ou combinar-se com modelos económicos de modo muito diverso. Atentemos no fenómeno das religiões, que parece quase imune às condições técnicas e económicas conhecidas pela história dos últimos dois milénios, pelo menos, e que só recentemente tem registado algumas alterações significativas por força de mudanças internas à vida social, como sejam o surgimento da filosofia das luzes, o desenvolvimento da ciência e o alargamento da educação. Também se sabe que os modos de vida tradicionais das culturas camponesas – fosse da exploração agrícola familiar de modelo europeu, fosse dos pastores itinerantes das estepes asiáticas, das savanas africanas ou das pradarias americanas – opuseram sempre fortes resistências a deixarem-se transformar em assalariados com rendimento assegurado e que só o fizeram, com ou sem emigração, quando os reduziram à fome mediante cortarem-lhes as bases da sua sustentação económica. 

Hoje, nas sociedades ocidentalizadas (ao modelo americano), as pessoas são tendencialmente adeptas das inovações técnicas (veja-se a paixão de tantos pelas viaturas mecânicas ou os gadgets da comunicação interpessoal) e amigas da economia do consumo ilimitado de bens materiais, só parecendo emergirem reacções de crítica, recusa ou desconfiança perante efeitos perversos potencialmente catastróficos como sejam os “engarrafamentos urbanos”, a espionagem electrónica ou as crises de desregulação económico-financeira. Eis, pois, mais alguns exemplos de relações específicas entre (e intra) estas realidades com estruturação própria mas que, simultaneamente, interferem muito entre si, de maneira complexa.

Se considerarmos, por simplificação, as três variáveis – técnica, economia e sociedade – como as que fundamentalmente condicionam, no médio/longo prazo, o futuro de cada um de nós, a nossa “tese” é então a de que não devemos privilegiar a importância de qualquer uma delas sobre as restantes, mas que as três se condicionam mutuamente e de maneira equilibrada entras elas, sem qualquer “pré-determinação” de uma sobre as outras (como pretendia a filosofia marxista relativamente à economia). No detalhe de cada época e de cada campo de investigação científica e tecnológica ou de cada circuito económico particular (de investimento-produção-circulação-consumo) se jogarão então as combinações virtuosas que permitem mudanças universais significativas – se de sentido civilizacional positivo, negativo ou controverso, é uma outra questão que não se coloca no mesmo plano – ou, pelo contrário, os bloqueios que as impedem. Embora decerto rudimentar, será esta uma visão aceitável do processo histórico da nossa modernidade?

 

JF / 30.Nov. 2013

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