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domingo, 29 de outubro de 2017

Hommage to Catalonia?


Este foi o título de um livro memorial escrito pelo britânico George Orwell sobre um tempo da guerra civil que o mesmo vivera na Catalunha integrado nas milícias esquerdistas que combatiam contra os exércitos de Franco.
Então, em 1936-37, catalanistas, anarquistas e trotskistas dispunham do poder que imperava nas ruas de Barcelona, Lérida ou Huesca e no interior de Aragão até às proximidades de Saragoça, porém numa tensão constante contra outros sectores defensores da República, mais moderados ou então oportunistas como os homens do PSUC (Partido Socialista Unificado de Catalunha, isto é, o partido comunista “filho de Moscovo” mas com roupagens regionalistas).
Já ninguém sabe ou se lembra dessas dolorosas páginas de história mas, em terras hispânicas, mesmo democráticas, os modos conflituais e irredutíveis de enfrentar as discordâncias de interesses ou opiniões parecem continuar a ser o mote.
Há que ressalvar de imediato – e louvar – o facto de que tudo até agora se tenha passado de forma pacífica e civilizada, apenas jogando com manifestações de rua, contagens de votos, imagens televisivas, declarações políticas e tomadas de decisão sempre dentro da legalidade. Porém, sem disponibilidade da parte de cada um dos actores de topo – o governo da Generalitat catalã e o governo do Estado espanhol – para conversações ou negociações políticas, directas ou com mediadores reconhecidos. E, isto, devido não só à atitude intransigente e “más políticas” destes governantes, mas também ao facto de eles estarem muito condicionados por grupos de pressão e pelo peso psicológico de sectores da opinião pública altamente mobilizados para as suas causas: na circunstância, a independência sob forma republicana da Catalunha (com uma linha de recúo possível para uma autonomia mais afirmada dentro de um quadro constitucional federal do Estado espanhol), de um lado; e a manutenção do actual statu quo, na vigência da Constituição do “Estado das nacionalidades” de 1978 e outras leis subsequentes, que tem sido a linha de defesa de Rajoy e do seu Partido Popular, secundado com algumas condições e ambiguidades pelo PSOE (em princípio mais favorável à solução federal) e pelo Podemos! (sem posições firmes nesta matéria e sempre disponível para acompanhar “a rua”). Quanto à União Europeia, outra posição não poderia esta tomar se não a de remeter o caso para o “foro do Estado espanhol”, com um ou outro dirigente estrangeiro a sugerir uma solução negociada e o sr. Putin a ser o único a não esconder a sua simpatia pela causa catalã, pois tudo o que embarace a Europa é bom para ele. Finalmente, note-se a prudente espectativa do Partido Nacionalista Basco e do nacionalismo abertzale mais radical, cuja fresca recordação da “luta armada” não lhes autorizaria grandes manifestações mas que não deixarão de estar a seguir com a máxima atenção este processo, para dele tirar proveito quando a oportunidade lhes parecer mais conveniente.
É manifesto o sentido de expressão democrática que os independentistas catalães têm querido mostrar, ao respeitarem as maiorias apuradas em processos legislativos, referendários e parlamentares (escrutinados por voto individual e secreto). Porém, também é indisfarçável o “golpismo” das suas forças liderantes ao considerarem como vitória o resultado da conturbada consulta referendária de 1 de Outubro último e ao ignorarem a posição minoritária do Parlament catalão no voto de declaração da independência do dia 27, ausentando-se da sala. De facto, o parlamento compunha-se de 135 deputados e quem tomou a decisão foram os 70 votos Sim – porque houve 2 votos brancos nas bancadas da coligação de Puidgemont (62) ou dos esquerdistas da CUP (10) – contra 10 votos Não e estando ausentes os 53 restantes deputados dos partidos Ciudadanos, Socialista, Popular e ainda outro, regional. Porém, os flashes da comunicação social fixaram-se unicamente no brado “Independência!” e apenas alguns comentadores mais avisados chamaram a atenção para o que aí vinha. Tudo bem diferente do clima de debate político que acontecera na Escócia em Setembro de 2014, onde não havia sombra de dúvida sobre a legalidade da consulta e o que estava em jogo era essencialmente o ajuizamento da legitimidade da reclamação independentista e as suas prováveis consequências, para os escoceses, o Reino Unido e a Europa. Ainda assim, já neste fórum defendi que uma decisão deste tipo – pela gravidade que encerra – devia ser sujeita a um processo de escrutínio popular muito mais exigente, possivelmente requerendo uma maioria qualificada e reconfirmada por nova votação algum tempo depois, tudo devidamente regulamentado e aceite pelas partes interessadas.
A suspensão da autonomia catalã e a rápida convocação de eleições regionais pelo governo de Rajoy mostra, pelo contrário, como o jogo deverá prosseguir nos termos actuais, com paradas e respostas sucessivas e sempre desta natureza, porém agora num nível superior de perigosidade e possibilidade de derrapagens. Como vão decidir-se as forças políticas da Catalunha perante a oportunidade eleitoral e que resultados daqui advirão? Como vão actuar os responsáveis de topo e o “baixo” funcionalismo público catalão agora sob as ordens da bela “comissária madrilena” Soraya Sáenz de Santamaría? Como vai comportar-se nas ruas a massa de uns tantos milhares de irredutíveis adeptos da independência face às decisões de Madrid e aos apelos das suas próprias lideranças partidárias ou comunitárias? Lembremo-nos que grandes transformações políticas ocorridas ao longo da história resultaram de pequenos choques sempre possíveis nestas ocasiões, antes de se tornarem depois processos irreversíveis.
Basta um incidente, alguns tiros e mortos no asfalto para as comoções se excederem e o conflito poder mudar de plataforma – subindo para demonstrações de força que podem travar o processo mas só gerarão ressentimentos de longo prazo; ou descendo para um nível mais racional e de procura de soluções aceitáveis pelos representantes das partes conflituantes (que sempre serão acusados de traição pelas suas franjas radicias). No primeiro caso, há medidas políticas, judiciais, orçamentais e económicas com que Madrid (com o beneplácito da UE) pode asfixiar a região rebelde e, em último caso, mandar os militares realizarem uma demonstração de força, já que, segundo o artigo 8º da Constituição, lhes cumpre «garantizar la sobe­ranía e independencia de España, defender su integridad territorial y el ordenamiento constitucional». Mesmo apenas sob essa forma “demonstrativa” (porque não é pensável outra mais violenta, pois não estamos na Ucrânia ou no Kurdistão), esta seria a ultima ratio de Madrid, como se percebeu no tempo de Zapatero quando o Jefe de Estado Mayor de la Defensa o inquiriu a tal respeito e foi de imediato varrido de cena. No segundo caso, certamente que já existem discretamente no terreno emissários de ambas as partes que poderiam então receber luz verde para passar aos contactos e discussões preliminares. A Igreja católica, as organizações empresariais, alguma maçonaria, personalidades da cultura ou emissários de países amigos ou organizações internacionais poderiam realizar estas missões de “bons ofícios” dando certas garantias essenciais a cada um dos contendores sobre um mínimo de pontos-de-apoio sólidos, comuns e satisfatórios para ambos, permitindo-lhes “salvar a face”, de forma a que os necessários recuos possam ser sempre apresentados aos seus adeptos mais moderados (e ao mundo) como vitórias parciais mas não neglicenciáveis. No caso presente, uma saída dessas teria provavelmente que ser sancionada pelo Rei, sob a forma de uma promessa de revisão constitucional (de recorte federalista mais afirmado, eventualmente sujeita a referendo nacional), e fortemente recomendada (isto é pressionada em seu favor) pelo empresariato fixado na Catalunha, sob os aplausos da União Europeia.
Mas estas são “hipóteses de escola”, frequentemente desmentidas pelo que se passa no terreno. Em última análise, o evoluir da situação é apenas determinada pela disposição anímica que pode sustentar uma causa colectiva em luta desigual e prolongada. E – independentemente da questão de saber sobre quão progressista ou retrógrada pode ser a criação de mais um Estado-nação no espaço europeu e mundial – a desgraça é que a população residente na Catalunha (e para além da sua rica diversidade demográfica) está agora mais dividida do que nunca nas suas opiniões quanto ao eventual separatismo e irritada nas suas animosidades: uns contra os outros; alguns contra Madrid; e, em Espanha, muitos contra os catalães.
Eis, por agora, os resultados de um processo em que os principais responsáveis são, sem grandes dúvidas, as lideranças mais recentes da região autónoma da Catalunha e da elite partidária governante em Madrid.
Quanto a Portugal, embora (em tese) a existência de um polo mais autónomo na Catalunha pudesse moderar a natural preponderância que Madrid tenderá sempre a exercer sobre toda a Península Ibérica, um conveniente realismo antecipatório aconselhará a que sejam evitadas todas as situações de crise grave que abalem o estado vizinho, pelos reflexos negativos que isso também decerto nos causaria.
Finalmente, sem rejeitar liminarmente as legítimas aspirações de certos povos à sua auto-determinação, é compreensível e desejável que a União Europeia use da maior prudência na maneira como lida com cada um destes processos, tais são as subtilezas, delicadezas e especiosos arranjos estabelecidos no passado, demonstrando a precariedade e voluntarismo de quase todos os processos de afirmação nacional no espaço Europeu, e a percepção de como certos antagonismos poderiam de novo exacerbar-se. Neste sentido, é importante estarmos atentos aos objectivos expressos e implícitos destas mobilizações populares proto-nacionais, tanto como aos modos de acção colectiva a que lançam mãos (violentos, democráticos ou nem tanto), e ainda à credibilidade das suas lideranças. As imagens mediáticas e a cobertura informativa servida aos cidadãos europeus são muitas vezes enganadoras.

JF / 29.Out.2017 

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Restos miseráveis do século XX

Hannah Arendt e George Orwell foram os primeiros a dizer por escrito tudo o que de essencial nos trouxeram as nefastas vivências do nazi-fascismo e do comunismo, respectivamente. Porém, As Origens do Totalitarismo ou ...A Banalidade do Mal, por um lado, ou as ficções intituladas 1984 ou Animal Farm, do outro, foram livros que não passaram para além das minorias cultas ocidentais e não entraram, como talvez devessem, nas recomendações de leitura escolar da UNESCO para as novas gerações do mundo inteiro.   
Assinala-se este ano o centenário da revolução russa. Em 2022 alguns lembrarão de novo a marcha sobre Roma, que marcou a ascensão irresistível do fascismo e da liderança buffa de Benito Mussolini. Em países desenvolvidos e ilustrados como a Alemanha, a Áustria, a Itália, a Espanha, a França, a própria Inglaterra, continuam a existir pequenas seitas de fanáticos adeptos de Hitler ou de algum dos seus sinistros imitadores, cuja consistência ideológica se expressa principalmente na exibição acéfala de certos símbolos, no ódio expresso a algum tipo de categoria social expiatória (judeus, ciganos, estrangeiros, árabes, homossexuais, pretos, mendigos, deficientes, etc.) e sobretudo no uso da violência física contra algum destes seus inimigos que se encontre mais a jeito.
É verdade que, historicamente, se pode defender que nazismo e comunismo foram dois regimes políticos opostos e que se confrontaram – de forma devastadora na II Guerra Mundial – mas, simultanemente, que usaram métodos de actuação e de exercício do poder de Estado semelhantes, a despeito de invocarem ideologias justificativas tão diferenciadas entre si. O nazismo (contracção do termo nacional-socialismo) e o fascismo (oriundo dos iniciais e arruaceiros fasci di combattimento italianos) foram essencialmente movimentos populares (ou talvez melhor, populistas) de carácter nacionalista, anti-liberal, anti-partidos tradicionais e anti-parlamentos, nascidos das profundas misérias e humilhações causadas pela Grande Guerra e que tudo apostaram num ressurgimento nacional na forma que lhes era proposta por demagogos sem escrúpulos com grande arte da palavra e fascínio do poder como foram Mussolini, Hitler e alguns imitadores de menores recursos. Foram movimentos revolucionários até conquistarem o poder de Estado e numa fase inicial do seu exercício, atacando as principais instituições e forças sociais diminantes, como a plutocracia financeira, as elites militares, as igrejas ou as maçonarias. Mas, uma vez consolidados como novos regimes autoriários, comportaram-se internamente como ditaduras de implacável violência (polícia política, censura e propaganda; ameaças, detenções, deportações e extermínios), e externamente com desígnios de expansão territorial imperialista, mais ou menos megalómenos.     
O comunismo merece-me hoje aqui a focagem principal. Para quem pertence à geração do pós-25 de Abril e do pós-queda do “Bloco de Leste”, os comunistas portugueses são apenas aquele partido que se sabe ter sempre resistido ao Estado Novo de Salazar e se distinguem por uma homogeneidade de discurso e comportamentos bem diferentes dos restantes partidos. Reconheço que são geralmente bons administradores autárquicos, onde só raramente surgem denúncias de corrupção ou outros aproveitamentos pessoais ilícitos, embora o PCP aproveite discretamente para os seus próprios fins todos os recursos públicos de que possa lançar mão. O “colectivo” domina ali fortemente e as dúvidas e discussões são firmemente guardadas no seu seio. Embora muito enfraquecido em relação ao que já foi há vinte ou trinta anos, os comunistas detêm ainda posições importantes na esfera da cultura, em alguns sectores universitários, em certas instituições do Estado, na maioria dos sindicatos e no poder local alentejano e da cintura periférica da capital. Constituem assim uma “minoria de bloqueio” de notável eficácia.
Mas é da história do seu movimento e da sua referência central fundadora, a do “poder vermelho” da União Soviética, que aqui se trata. É certo que essa aventura que marcou o século XX ruiu fragorosamente em 1989-91. E o que subsistem hoje são restos de variantes nacionais por si inspiradas, mas sem grande unidade entre elas: o regime da China, capitalista mas sempre sob o controlo férreo do PC; uma Coreia do Norte “esquizofrénica” de comunismo dinástico; arremedos do passado como o Vietnam ou Cuba, que os venezuelanos tantam imitar e que Angola e Moçambique conseguem viabilizar com melhor ou pior sucesso; e, quase caso único, o nosso PCP convertido ao jogo democrático, aguentando firmemente alguns bastiões minoritários.
O comunismo, praticado e desenvolvido pelo partido bolchevik russo, vencedor da revolução de 1917 e da guerra civil que se lhe seguiu, assentava em bases ideológicas inteiramente novas: iluminado pelo suposto cientificismo da crítica de Marx à economia liberal capitalista e pela sua convicção do Estado como principal “instrumento de dominação de classe”, aplicou à risca as instruções operacionais de Lénine sobre o “partido do proletariado” (dirigido e animado por revolucionários profissionais mas sempre com eficazes ligações às massas operárias assalariadas) e, depois, soube inspirar-se no genial oportunismo táctico de que este deu mostras enquanto durou e liderou a revolução: uso sem rebuço da “boleia alemã” para chegar a Petrograd; aposta meramente táctica nos Sovietes (que configuravam então um esboço de democracia proletária); sedução dos soldados e dos camponeses acenando-lhes com o fim da guerra; preparação e execução militar do golpe-de-Estado de “Outubro”; aproveitamento do desprezo anarquista pelo parlamentarismo para encerrar definitivamente a Duma e o voto secreto popular; “paz separada” com os alemães, traindo os aliados da “triple entente”; luz verde para a criação da “Tcheka” (a primeira polícia política, fundada por Djerzinsky, a que se seguiram mais tarde a GPU, o NKVD e o KGB); mobilização ditatorial de todos os recursos para vencer a guerra civil; esmagamento dos orgulhosos marinheiros revolucionários sovietistas (mas não bolchevistas) de Cronstadt; e, finalmente, face aos desastres socioeconómicos do “comunismo de guerra”, reviravolta política com a NEP advogada em 1921 por Bukharin, melhor conhecedor do país real e da apetência dos camponeses pela posse da terra.
Lénine morreu em 1924 sem sucessor designado. Apesar de alguns atritos no passado, Trotsky (político profissional, militar improvisado mas com visão e capacidade de decisão) era, de longe, o mais indicado e mais capaz para lhe suceder. Porém, a “máquina trituradora” do bolchevismo começou aí a exibir a sua lógica interna mortífera e implacável da qual saiu venceder o mais astuto e amoral de todos os ambiciosos candidatos: Estáline. O livro que recentemente lhe dedicou Simon Sebag Montefiore (há pouco distribuído em fascículos pelo Expresso), para quem tiver estofo para o digerir, arrisca-se a ser um amontuado de nomes e episódios incapazes de fornecer ao leitor uma visão histórica minimamente coerente da cronologia (a identificação de certas datas é muitas vezes insuficiente), da geografia (faltam mapas simplificados), dos acontecimentos e da sua importância relativa no xadrês russo e mundial. Mas, superadas estas dificuldades e para quem conheça o suficiente da história política e militar da época, releva-nos talvez pela primeira vez um quadro muito completo do quotidiano da elite bolchevista e sobretudo das relações interpessoais entre cada uma destas figuras, relações sistematicamente marcadas pela desconfiança, a suspeita, a guarda de provas documentais que um dia pudessem ser comprometedoras para os rivais, a ameaça, a chantagem, o uso dos familiares com fins acusatórios e medidas administrativas correntes como a nomeação, a exoneração, o afastamento, etc., ou pessoais como o chamamento ou a exclusão dos circulos de intimidade, os pedidos de opinião ou as confissões, as cartas de pedidos ou perdões e muito, muito mais. A frieza com que as decisões do Chefe eram tomadas (nunca contrariadas frontalmente por alguém) e o cálculo insidioso de todas as tomadas de posições dos “potentados”, em votações formais do Politburo ou do Comité Central, ou informais à mesa de refeições na datcha de Estáline, configuram um processo de decisão política original – diferente de Hitler, por exemplo – mas sempre indubitavelmente autocrático e ditatorial.
Dois outros pontos devem ainda ser chamados à atenção. Correspondendo à ideia que geralmente fazemos dos povos da Grande Rússia (na realidade, nações diferentes unidas à força pelos imperadores de Moscovo), os repastos de Estáline, especialmente ao jantar, eram particularmente lautos, bem regados a álcool, com brindes intermináveis e muito animados por cantorias colectivas, especialmente georgianas, que tocavam a corda sensível do “Pai dos Povos”. Frequentemente terminavam pelas cinco da manhã com todos os convivas completamente embriagados. Contrastando com a “modéstia proletária” dos seus atavios públicos (vestuário, designações oficiais, etc.), os dirigentes comunistas não se coibiam minimamente de ocupar residências sumptuosas da antiga aristocracia, de as atulhar de adereços e obras-de-arte pilhadas em países ocupados ou usurpadas internamente, e de se deslocarem em Rolls Royces ou em Packards capitalistas. As óperas clássicas eram escutadas no Bolchoi mas os filmes americanos de gangsters e de cow-boys é que, em privado, faziam as delícas desta gente. Refira-se ainda o papel das mulheres e do sexo, que o livro de Montefiore revela como talvez nenhum antes. Para além de alguns deboches – finalmente, coisa pequena no carnaval de horrores desta corte vermelha –, o facto da maior parte das cônjuges dos dirigentes comunistas serem elas próprias militantes do Partido (por convicção ou mera conveniência) tornava-as também parte activa nas constantes conspirações palacianas, não tanto como urdideiras de supostas conjuras mas sobretudo como testemunhas das manobras dos seus maridos ou companheiros de cama, como suas espias (sob ameaça) ou denunciantes. Ainda que ajudassem a condenar entes queridos, sempre declaravam fazê-lo por dever de lealdade ao Chefe Supremo. Molotov, por exemplo, manteve-se periclitantemente no poder, sob Estáline, enquanto a sua mulher Polina, investigada e acusada de “semitismo” em 1948 (mas já suspeita desde 1939), foi finalmente condenada pelo Comité Central com o voto favorável do seu marido em Janeiro de 1949. Presa no dia seguinte, negou tudo mas, excepcionalmente, não foi torturada. Simplesmente, desconheceu-se o seu paradeiro até à morte de Estáline. No dia seguinte ao funeral deste, em 1953, o froucho Molotov correu à prisão de Lubianka onde o sinistro Béria a libertou e entregou ao marido, proclamando-a “uma heroína”. 
Os chefes comunistas estrangeiros que contavam para Estáline eram exclusivamente apenas aqueles que interessavam a geoestratégia do Kremlin, dirigida a partir de 1944 contra o rival americano: Alemanha de Leste, Checoslováquia, Hungria, Polónia, Roménia, Bulgária, Jugoslávia (com quem se desentendeu), Turquia, Irão, Mongólia, Japão e China. Mesmo a guerra da Coreia passou-lhe largamente ao lado, tal como a luta indochinesa contra os franceses. Montefiore nem fala de Togliatti ou de Thorez (pelo menos nesta edição para o grande público), quanto mais em Santiago Carrillo ou Álvaro Cunhal, que ainda eram uns jovens em início de carreira. E aplicando a famosa “flexibilidade táctica” leninista, Estáline navegou à vista no processo da guerra civil espanhola, nada lhe custou extinguir em 1943 o Komintern (liderado pelo utilitário búlgaro Dimitrov) para amaciar os aliados ocidentais, criando em 1947 um mais discreto Kominform, sempre com o intuito de dirigir a acção comunista no mundo, embora de modo menos centralista: a dissidência de Tito não o consentia.     
O outro ponto sensível impossível de iludir é o da máquina-de-morte constituída pela polícia política, os seus chefes, torturadores e zelosos funcionários. Em finais de 1934, o suspeitíssimo assassinato de Kirov, o homem forte de Leninegrado, foi o sinal de partida para as grandes “purgas” no partido, no exército, na indústria e mesmo entre a elite dos “velhos bolcheviks”. Uma lei de 1 de Dezembro legitimou todas as arbitrariedades. O funcionamento de uma justiça sumaríssima que funcionava à porta fechada, com a excepção dos julgamentos-espectáculo de Zinoviev e Kamenev, e de Radek, Tomski e Bukharin (e outros) em 1936-38 – todos executados com bala na nuca –, nunca passou de um simulacro ou uma encenação política; e em seguida actuava a propaganda que punha a correr pelo mundo inteiro as supostas traições daqueles até então “destacados dirigentes” comunistas: o assassinato de Trotsky exilado no México em 1940 constituiu o cume desta espiral. Mas as supostas conspirações continuaram até à morte do secretário-geral do Partido: “tchekistas” excessivamente sabedores ou ambiciosos; generais que ele julgava incompetentes; infiltrados ingleses ou americanos; conspiração sionista; conjura dos médicos, etc. A confissão (muitas vezes inverosímil e quase sempre arrancada pela violência) era o passo decisivo que punha fim às torturas (mas não ao banimento nem constituia garantia de vida). E “Inimigo do Povo” era a acusação clássica que determinava sempre a condenação: humilhação pública, deportação para os gulag siberianos ou execução imediata.       
Muitos foram os militantes comunistas vítimas da sua própria cegueira ideologica. Já tinha passado a época das mortes por lapidação em pelourinho ou na fogueira; os comunistas (como os nazis) também não enveredaram pelas execuções públicas; mas os campos de deportação e de trabalho escravo (lager ou gulag), em lugares isolados e quase sem testemunhas, dizimaram milhões de indivíduos (com e sem acusações formais) pela fome, maus tratos, exaustão ou assassinatos em massa. Não há alegações de “negacionismo” que sejam hoje, mínima e honestamente sustentáveis. 
Os serviços secretos foram uma autêntica câmara de horrores, que não poupou a maior parte dos que os dirigiram e posteriormente cairam em desgraça. Lakoba, chefe da polícia política, foi provavelmente envenenado por Béria em finais de 1936. Yagoda, mais a sua coorte de torturadores, terão sido sacrificados em 1937. Yezhov, um torcionário implacável, durante um tempo senhor todo-poderoso do NKVD, acabou executado em 1940.
Mas muitos dos camaradas mais próximos de Estáline não escaparam ao mesmo destino. Sergo Ordjonikize – um dos seus possíveis delfins – suicidou-se em 1937, antecipando-se à acção do carrasco. O marechal Tukatchevski, um dos melhores técnicos militares russos, foi preso, torturado, condenado e executado no mesmo ano por “trotskismo”. (De resto, o Exército Vermelho foi também em certas alturas alvo particular da repressão política, inclusive durante a guerra.) O diplomata Litvinov morreu na sequência de um suspeito acidente rodoviário em 1951 – entre muitos, muitos mais.
É certo que o “cerco” demo-liberal à “revolução proletária” e a ameaça latente de Hitler tiveram o seu papel na exasperação totalitária do regime bolchevik, mas não explicam o essencial. Apesar de tudo, este assédio foi muito relativo, com o governo soviético a estabelecer relações comerciais com a Itália logo em 1921, diplomático-comerciais com a Alemanha em 1922 (Tratado de Rapallo), diplomáticas com a França e com a China em 1924, com a Suíça em 1927, com a Inglaterra em 1929, um tratado de amizade e comércio com a Polónia em 1931, admissão na SDN em 1934 e um tratado comercial com os americanos em 1935. Naturalmente, a 2ª guerra mundial fez passar os interesses geoestratégicos dos estados à frente dos pruridos ideológicos, tanto no respeitante ao impensável pacto germano-soviético de 1939, como à aliança de Moscovo com as democracias ocidentais a partir do Verão de 1941. Esses anos da guerra foram terríveis para os povos da URSS, como o foram para os alemães e restantes beligerantes. Todas as vítimas devem ser lembradas com igual dignidade. Mas os seus verdadeiros responsáveis deveriam ser todos proscritos, para memória das gerações futuras.
E se o objectivo da vitória levou ambos os lados a massacres dificilmente justificáveis (bombardeamentos aéreos de cidades, duas bombas atómicas), houve crimes verdadeiramente atroses, como o holocauto dos judeus pelos alemães, a execução em massa de milhares de oficiais polacos prisioneiros dos soviéticos em 1939 ou as torturas praticadas no oriente por militares japoneses.      
Estáline foi uma figura ímpar e sem ele não teria existido “Estalinismo”, mas a corte que o rodeava revelou-se sempre como um covil de hienas em permanente conspiração umas contra as outras, entrecortado de breves e pouco seguros entendimentos, sempre fazendo os mais solenes juramentos de lealdade ao Grande Líder da Revolução. Os famosos comboios especiais em que se deslocavam, blindados e artilhados, não eram só uma recordação da guerra civil, mas um sinal inequívoco da distância entre o poder e o povo. A psicose dos envenenamentos, dos atentados e dos acidentes forjados sempre mobilizou os muitos milhares de funcionários do KGB, que aliás se tornaram mestres na matéria. Tal como na Revolução Francesa (como na Alemanha e mais tarde na China ou no Cambodja), o período do Terror foi obra de uma extensa lista de culpados. Alguns foram instrumentos passageiros dos desígnios do dono do poder: Zdanhov, na purga de 32-33; Mekhlis, editor do Pravda e por um tempo censor-mor da intelectualidade e dos artistas; ou mesmo o escritor Gorki, que morreu em 1936, com suspeitas de “ajuda médica”.         
Molotov (que assinou o pacto germano-soviético com Ribbentrop), Vorochilov, os marechais Zhukov, Timochenko e Budeny, Kaganovitch (o construtor do monumental Metro de Moscovo), Mikoian, Malenkov ou Bulganine, foram talvez os que mais duraram, flutuando ao sabor dos humores ou rancores do Chefe. O ambicioso Béria, provavelmente o mais inteligente e decerto o mais sinistro e implacável de todos (por exemplo, prendera em 1938 a mulher de Kalinine, o presidente da URSS, e ordenara inúmeros espancamentos mesmo no seu gabinete), acabou por ser apanhado na sua própria teia e nos ajustes-de-contas que se seguiram à morte de Estáline. Krushtchev, que parecia um rude camponês georgiano (mas na realidade mostrara a sua estirpe ao sacrificar milhões de agricultores com a colectivização forçada e a Grande Fome de 1932-33 e nunca estivera muito longe do poder central) levou a melhor sobre todos os outros concorrentes: Béria (que sabia demais) foi expeditivamente condenado à morte a 22 de Dezembro de 1953 por um tribunal político secreto, acusado de traição e terrorismo e logo executado com uma bala na cabeça, sendo o seu corpo cremado para evitar recordações; Molotov, foi despachado para um irrelevante cargo de embaixador na Mongólia; etc. (Afinal, os “cocktails Molotov” não foram uma invenção deste dirigente soviético, mas antes uma improvisação dos finlandeses na invasão que sofreram em 1939 por parte dos seus vizinhos russos.)
A crítica do “culto da personalidade” foi a fórmula que Krushtchev fez consagrar no XX Congresso do PCUS em 1956 e que lhe permitiu liderar sem partilha o império vermelho até ser apeado pelo mais realista Brejnev em 1964: a derrota na “crise dos mísseis de Cuba” e o persistente fracasso da agricultura – levando à política de “coexistência pacífica” e à necessidade de compra maciça de trigo americano – pesaram mais do que a edificação do Pacto de Varsóvia, o êxito do Sptunik ou o arsenal atómico entretanto desenvolvido. O “Estalinismo” passou para o plano do esquecimento mas atiçou as reações ideológicas e políticas entre a URSS e a China, envolvendo também potências menores como o Vietnam, a Coreia do Norte ou a minúscula Albânia. E dividiu os movimentos comunistas em vários países. A grande geoestratégia de Moscovo passou então a assentar na gestão do statu quo europeu/atlântico e, sobretudo, nas lutas independentistas do “3º mundo” como avanço da sua influência mundial (infelizmente assunto pouco tratado na realmente interessante e valiosa análise da descolonização portuguesa feita por Pezarat Correia na sua tese de doutoramento apresentada em Coimbra em Julho passado).  
É verdade que a URSS se tornou em poucos anos numa potência industrial, tecnológica e nuclear que pôde fazer frente ao mundo ocidental e ao sistema capitalista em que este assentava. Também veio a proporcionar às suas populações urbanas padrões sanitários e educacionais nunca antes imaginados. Mas a que preço! E a ineficiência da sua economia administrativa-estatal era espantosa. Por exemplo, a produção agrícola só passado o meio do século voltou a igualar os níveis de antes da 1ª guerra mundial.
Contudo, é certo que depois da morte de Estáline e do XX Congresso, os processos ditatoriais estalinistas cessaram, na sua mais horrenda expressão. As denúncias de alguns arrependidos e o apoio que o Ocidente deu a personalidades como Soljenitzyne ou Sakarov produziram efeitos. A força militar (efectiva ou como ameaça) ficou reservada apenas para acções externas, como o faria em circunstâncias idênticas qualquer outro estado imperial: caso das insurreições húngara (1956) e checoslovaca (1968), do escorregamento pró-ocidental da Polónia ou da invasão do Afeganistão nos anos 80. Só isso explica – mais a tentativa reformadora de Gorbatchev-Schevardnadze, tardia e impotente – a “implosão” do império soviético, cujo formidável potencial militar-policial acabou por ser absolutamente impotente para salvar o regime. O qual, apesar deste balanço avassalador, continua a alimentar as ambições e a acção determinada de alguns dos seus mais fervorosos seguidores, incluindo teóricos e artistas de alguma craveira intelectual.
Ainda hoje, os comunistas me inspiram simultaneamente respeito (pelo rigor com que geralmente pautam as suas intervenções), temor (porque veneram os seus amigos que “encostaram à parede” todos os que resistiram ao  seu poder dominante, fossem eles capitalistas, católicos, monárquicos ou anarquistas, e muitos deles voltariam a fazê-lo se a situação o proporcionasse) e algum desprezo (pelo fanatismo primário com que defendem a sua causa e os seus caudilhos). 
O comunismo foi tão exterminador de vidas como o nazismo ou mesmo mais (o que não se mede em mais ou menos milhão de mortos). Mas o comunismo foi decerto o maior embuste do século XX.

JF / 20.Out.2017      

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Duas, é demais! (o Estado que temos, o Estado que queremos)

17 de Junho e 15 de Outubro de 2017 são duas datas negras que ficam a rasgar a maré de optimismo em que o país parecia instalar-se de há ano e meio para cá.
Responsável ministerial, chefe-do-governo e Presidente desentenderam-se finalmente, perante a amplitude da tragédia em que os fogos florestais mostraram a fragilidade das nossas condições estruturais e a debilidade das instituições e procedimentos que temos vindo a pôr de pé para responder aos desafios colectivos da nossa época. Dizia-se que o boom turístico cessaria desde que mão inimiga planeasse e executasse um ou dois atentados terroristas em solo português. A população portuguesa tem agora mais consciência (embora fixada sobretudo no plano emocional) de que um sismo, uma grossa tempestade ou um gravíssimo acidente serão suficientes para deixar o país num caos, sem que as organizações especializadas (dentro ou a partir do Estado) sejam capazes de actuar com a eficácia que as circunstâncias exigem.
Mas o Estado tem costas largas. O Estado já foi a força ao serviço de certas famílias, justificando-o como “a vontade de Deus na Terra”. O republicanismo idealizou o Estado como a representação institucional de toda a nação. Já se teorizou que o Estado era o instrumento de dominação de uma classe social (definida pela posse das rédeas da economia). Falta conceber o Estado como o lugar geométrico onde os arrivismos pessoais e as corporações de todo o tipo se instalam e confrontam entre si, dispondo dos bens públicos para a satisfação dos seus melhores interesses e produzindo os mais elaborados discursos teóricos e propagandísticos para convencer “o povo” de que assim obtém a melhor governação possível. Entre muitos outros, Portugal parece querer enfileirar nesta última categoria.
É contudo esperançosa a ideia que começa a germinar em certos sectores de que o Estado nacional deveria, acima de tudo, preocupar-se com o interesse geral e o bem comum das populações que o constituem e suportam; com os seus agentes, organismos e responsáveis a mais não serem que os mandatários da “vontade popular” (apurada através de algum modo satisfatório de verificação). Esperançosa ideia – na condição de que cada cidadão se consciencialize e comporte com parte activa e responsável desse mesmo Estado.     

JF / 17.Out.2017

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Os sociólogos ao serviço de quem?

Eu fui sociólogo profissional, investigando, ensinando e publicando durante cerca de três décadas. Já uma vez abordei aqui esta questão, recordando um antigo e famoso debate “franco-britânico” sobre the servants of power. Noutra ocasião, lembro-me de ter travado uma interessante discussão oral sobre a mesma questão, aliás com pessoa muito minha amiga; mas, como é normal, não chegámos a qualquer conclusão consensual.
Dessa conversa ficaram-me contudo algumas pistas e ideias vagas por explorar, que vou tentar agora retomar.
A primeira é, obviamente, a que de que, quem tenha uma boa formação teórica em sociologia (e necessariamente também suficientes conhecimentos de economia, ciência política, história e relações internacionais) estará em boas condições para funcionar como “conselheiro do príncipe”, isto é, como analista, redactor ou propositor dos discursos que a personagem ocupante do poder é constantemente obrigada a pronunciar, seja ela presidente, ministro, alto funcionário ou chefe autárquico. Felizmente, só ocasionalmente participei em algum desses círculos mas não me foi difícil perceber que, nos brain stormings que antecedem as principais decisões dos dirigentes, os mais bem preparados e incisivos dos peritos também presentes (sociólogos e outros) possam influenciar decisivamente a decisão final do “chefe”. A sua capacidade de influência não estará tanto na qualidade e abrangência dos estudos que anteriormente tenham feito ou consultado, mas antes na excelência da sua expressão e capacidade argumentativa. É certo que, neste domínio (tal como nas propostas de redacção de textos normativos), os juristas levam geralmente vantagem sobre quaisquer outros especialistas (dado que foram seleccionados e longamente treinados para tal). Mas, como estamos tratando de grupos restritos, tal “lei sociológica” pode ser aqui perfeitamente irrelevante: contam sobretudo as qualidades pessoais de cada qual – e só de forma mais distante a teoria e a investigação empírica que porventura foram usadas como justificação. Digamos de outra forma: as decisões do poder (que afectam todos os abrangidos pela sua autoridade soberana) são provavelmente, na sua maioria, resultado de um restrito jogo de interacções entre uma dúzia de pessoas (incluindo as ausentes mas que se fazem notar pelo telefone), cujos interesses e motivações inconfessáveis poderão ser mais de ordem pessoal ou interpessoal, do que propriamente em função do “interesse geral” da colectividade a quem irão ser aplicadas. Nestas condições, os sociólogos mais aptos e brilhantes em tais exercícios podem esperar ter um futuro brilhante à sua frente, apenas com o risco de, em democracia, a ocupação do poder supremo ser mutável, mas com a garantia de que os derrotados já não acabam degolados ou a apodrecer numa enxovia.
A segunda ocupação profissional mais indicada para os sociólogos é hoje a de jornalista (e, se for bem sucedido, de comentador). Aqui não é o poder que atrai, fascina e instrumentaliza os saberes do especialista: é outra coisa, mas que não tenho a certeza que seja mais nobre, embora o pareça. Trata-se, não de gerir o poder de comandar as massas, mas, de certa maneira, de orientar as massas contra o poder en place. Com alguma ingenuidade, pode tomar-se isto como a versão mais libertária da forma de intervenção política disponível na actualidade. Mas, na realidade, a actividade jornalística(-comentadora-publicitária) ao dispor dos sociólogos alarga-se em uma panóplia vastíssima de formas, modalidades e efeitos que ela pode vir a tomar e, em seguida, a chegar, enquanto tal, aos públicos. O holandês Pim Fortuyne, por exemplo, usou os seus saberes sociológicos ao serviço de uma intervenção política situada à extrema-direita. Muitos dos nossos melhores profissionais da imprensa (escrita e falada) conseguem ter o dom de parecer neutros e imparciais nas disputas que atravessam a sociedade e estruturam a vida política quando, cuidadosamente analisados – nas entrevistas, editoriais ou textos de comentário – raros são os que não pendem para um dos lados do conflito. Quanto aos sociólogos-jornalistas menos elaborados, a sua preocupação irá hoje sobretudo para a manutenção do seu posto de trabalho e alinhavam as suas intervenções de acordo com o que lhes mandam fazer e lhes parece mais conforme àquele objectivo. Finalmente, numa versão mais sofisticada, é hoje corrente os jornais (e outros meios informativos) basearem as suas notícias em “estudos”, normalmente carimbados com garantia académica. Mas aqui, de duas, uma: ou o “estudo” é de fraca valia, mereceu a duvidosa aprovação de um júri distraído ou de conveniência e trata-se, no fundo, do esforço de divulgação da “tese” de um “doutor(a)” pleno de ambição e poucos escrúpulos; ou é um trabalho científico sério que apenas foi lido, mal e apressadamente, pelo jornalista, o qual procura tirar de algumas das suas passagens as afirmações que lhe parecem mais “bombásticas”, susceptíveis de títulos atraentes para o grande público.
Quer como “conselheiros do poder”, quer como “fazedores de notícias”, há evidentemente lugar para que sociólogos bem formados e de forte personalidade realizem desempenhos profissionais sérios e produtivos. E alguns exemplos concretos poderiam ser apontados. O mesmo se pode dizer daqueles que fazem a sua vida activa nas empresas e em instituições públicas ou de solidariedade social, sejam elas laicas ou de inspiração religiosa.
Porém, no que respeita à dualidade (e confusão) entre ciência e intervenção política, há muito que fui impressionado pela frase com que uns editores espanhóis intitularam uma antologia de textos do doutrinador anarquista Kropótkine que tratava de questões de Estado, históricas e revolucionárias próprias do século XIX, nestes termos: «La sociedad fue primero». E apostaria dizer que, acima que tudo, onde a vocação do sociólogo mais plenamente se realiza será no seio de institutos de investigação de reputação bem estabelecida, onde a autonomia (devidamente regulamentada) da escolha dos objectos de estudo, da orientação dos projectos, dos responsáveis e dos investigadores esteja plenamente assegurada.
Fiquei algo incomodado por um artigo publicado na imprensa por Boaventura de Sousa Santos  (“Em defesa da Venezuela”, Público de 29.Jul.2017) no qual se proclama defensor da “revolução bolivariana” (criada por sucessivos pequenos “golpes” institucionais do militar paraquedista Chávez e prosseguida por outros do seu “perroquet” Maduro) e do progresso social por ela logrado para os “descamisados” (educação, distribuição do rendimento, etc.), revolução que, segundo ele, tem vindo a ser combatida pela Casa Branca (incluindo Obama), pelo “império petroleiro” americano (cujos interesses são indesmentíveis, mas não como um diabo pintado) e pela comunicação social do Ocidente (aqui, provavelmente com uma parcela de razão, mas não sob a batuta de alguém). Se no caso do PCP só se espantará quem já estava embalado pelo “democratismo” quotidiano de que dá mostras em política interna (por vezes com razão e bons resultados porque “eles não brincam em serviço”), no professor de Coimbra, arauto de uma sociologia crítica nos areópagos académicos, esta sua postura parece assemelhar-se à de um Chomsky que aproveita todas as liberalidades do sistema americano para descarregar a fundo sobre os crimes e pecados deste e juntar a sua voz à de qualquer um que o queira destruir – de Moscovo ao “Crescente”, da China a outras potências menores –, não lhe faltando razões para isso (nem faltarão nos tempos mais próximos, com a “cabeça agitada” que agora manda em Washington). Valeu a demarcação feita alguns dias depois na mesma folha por Elísio Estanque para “salvar a honra do convento”.  
Outras armadilhas povoam o terreno do pensamento científico contemporâneo. Ao acaso de leituras dispersas, retive referências na imprensa a Jacques Le Gof, sobre «o delírio narcísico do indivíduo pós-moderno» (Visão, 14/20.Ago.2914), ou de João Pedro Marques sobre «A ditadura da memória», a propósito do “politicamente correcto” no caso das abordagens históricas do fenómeno da escravatura (inter alia, Público, 1.Set.2017). Num parêntesis, diga-se que, para entender melhor o regime português da escravidão e da sua abolição, não pode deixar de reflectir-se sobre as obras recentes de Arlindo Manuel Caldeira (Escravos em Portugal, 2017), Miguel Bandeira Jerónimo (Livros Brancos, Almas Negras, 2010) ou do próprio João Pedro Marques (Os Sons do Silêncio, 1999).
Também li há pouco o arranjo romanceado de Catherine Clément O Último Encontro (entre Heidegger e Hannah Arendt), uma espécie de “livro de vida” para um ocidental inquieto que viveu o século XX. Além da exploração de outras valências e dimensões do pensamento e da acção humanas, esta excelente obra mostra-nos os equívocos, riscos e ilusões em que facilmente podem cair os pensadores (mais talvez os filósofos do que os cientistas) que se aventuram incautamente pelos terrenos da intervenção política. Mas, como bem viu António Pedro Dores (em Anarquismo, Trabalho e Sociedade, 2017: 619-632), a definição weberiana d’O Político e o Cientista não chega para resolver este tipo de problemas.

JF / 13.Out.2017

quinta-feira, 5 de outubro de 2017

Três notas brevíssimas

As eleições autárquicas e a governação do país.
Com alguma importância para cada uma das três mil e tantas autarquias locais existentes no continente e ilhas, a contabilidades geral dos seus resultados é assunto que interessa exclusivamente os estados maiores partidários, os seus militantes, os especialistas e comentadores e os meios de comunicação social, como grandes encenadores destes espectáculos. Como se esperava, o PS ganhou o maior número de municípios (incluindo Lisboa), o PSD afundou-se mais um tanto enfraquecendo ainda mais a posição do seu contristado líder, o PC manteve os seus bastiões, o Bloco de Esquerda consolidou-se um pouco mais no Estado e vários dos independentes (os sérios e os mascarados) e pelo menos um “dinossauro” obtiveram vitórias, nem sempre sinal de boa consciência cívica.
O nome de Pedro Passos Coelho merece uma referência, no momento do seu abandono. O homem não tinha estatura para o cargo que exerceu, apoiou-se em gente detestável, cometeu certamente vários erros e acabou por protagonizar um período sombrio para a maior parte dos portugueses. Mas há que reconhecer o tom cordato e imperturbável com que enfrentou uma tal chuva de críticas e insultos (em condições emocionais da sua vida pessoal que se adivinham difíceis). E, chame-se rigor ou austeridade, assumiu o ónus de alertar o país para a ilusão de viver acima das suas possibilidades e refém de anteriores decisões públicas muito contestáveis.
Hoje, graças a condições contextuais favoráveis e a uma melhor pilotagem dos instrumentos da acção governativa, a população sente-se mais feliz. Quando para a maioria das pessoas a economia “marcha”, tudo parece ir pelo melhor dos mundos.
Isto, apesar de sabermos que, embora formalmente democrático, o Estado português tem vindo a ficar cada vez mais prisioneiro dos partidos, dos lóbis, das corporações profissionais, de alguns sindicatos e dos negócios público-privados, os quais, captando recursos para os seus próprios fins e para os mais habilidosos dos seus membros, se neutralizam mutuamente dando um ar de confortável estabilidade a todo o “sistema”. Porém cremos que em desfavor do interesse comum e do povo, ao qual só restam os efeitos do crescimento económico, o entretenimento proporcionado pelos fenómenos mediáticos e alguma percepção das realidades que o jogo concorrencial dos órgãos noticiosos permite destilar para os cidadãos. Existirão também os jogos interpessoais das sociedades secretas e a acção dos agentes de espionagens diversas (sem esquecer a investigação criminal), mas sobre isto, como no passado, nada se pode afirmar, apenas conjecturar, estar alerta contra os boatos ou a especulação e vir a conhecer alguma coisa vários anos passados: por exemplo, sobre a (in)existência de armas de destruição maciça que justificou a invasão do Iraque em 2003 ou os alegados ilícitos de José Sócrates durante o seu mandato. (Em todo o caso, pelo dia que hoje passa: viva a República!)

Uma palavra também sobre a Europa, face ao independentismo da Catalunha e perante as eleições alemãs, em fundo de Brexit (que se mantém como problema bicudo de resolver).
A votação para o Bundestag do passado dia 24 deu os resultados esperados, com a continuação da chanceler Merkel e o apoio que ela for capaz de negociar nas próximas semanas. O partido de extrema-direita AfD (que reúne euro-cépticos, receosos da invasão islâmica e neo-nazis) entrou de rompante no parlamento de Berlim com uma minoria que vai fazer barulho e obstrução mas não deverá conseguir alterar o sentido das políticas do país. E o magro resultado do SPD mostra a desorientação em que se encontra a outrora poderosa social-democracia europeia.
Mais grave e complexa é a actual situação dos nossos vizinhos espanhóis. Com a intransigência legalista do PP do sr. Rajoi e o aventureirismo dos actuais dirigentes da Generalitat, o processo do referendo independentista ilegal bloqueou todas as saídas razoáveis: o governo de Madrid não podia deixar de mobilizar os meios jurídicos e policiais que mobilizou para impedir esse acto; e os independentistas não podiam desistir dessa prova de força, ficando com a vantagem da vitimização face às imagens de força policial (apesar de tudo, muito contida) e da inabalável vontade de expressão democrática dos seus muitos adeptos. Só o Rei poderia ter dito uma palavra apelando ao apaziguamento e à negociação: mas este preferiu o lado da legalidade e da Constituição do Estado Espanhol, alienando o resto de confiança que teria nessa parcela do território. Assim, o republicanismo vai provavelmente tender a renascer.
No próximo dia 13 passa mais um aniversário do fuzilamento do pedagogo Francisco Ferrer em Montjuich em 1909. A história da Espanha moderna é um roteiro semeado de vítimas. Acalmados os ânimos, a perspectiva de uma Espanha federal numa Europa confederal, talvez possa vir a ser o modelo institucional que maximize as vantagens da cooperação e da escala, no respeito das identidades nacionais de que a Europa foi feita.

O jogo perigoso da Coreia do Norte e do presidente Trump, mobiliza actualmente parte da atenção dos media, tal como as manobras geo-políticas do sr. Putin, a guerra que ainda grassa no Médio-Oriente ou o terrorismo islâmico contra o Ocidente.
Hoje, os conflitos armados em curso ou com possibilidade de repentinamente se desencadearem apresentam uma grande variedade de formas, modalidades e suas combinações: através de armas de alta tecnologia e longa distância muito precisas, por meio de bombardeamentos aéreos, navais ou lançadores terrestres, incluindo a possibilidade de emprego de catastróficas bombas termo-nucleares, onde se apagam as noções de  frente e retaguarda; guerras tradicionais de duração e áreas geográficas limitadas, à base de carros de combate, infantaria, apoio aéreo e uso de forças especiais; guerras não-convencionais e de baixa intensidade, por muitos contendores não serem soldados regulares mais sim “guerrilheiros” ou milicianos muito motivados que facilmente firam as barreiras legais, morais ou sociais, actuando em meio urbano ou a coberto da natureza através de emboscadas, minas, armadilhas, raptos, atentados bombistas ou outros; a nova ciber-guerra, interferindo nas comunicações e nas redes e sistemas informáticos do adversário, visando a sua desorganização, o alarme informativo, a insegurança e o terror das populações (i.e., sempre a propaganda deturpadora). Etc.
A distinção conceptual entre matérias e instituições de segurança e de defesa dos estados nacionais, consolidada ao longo do século XX, encontra-se hoje claramente em porte-à-faux.
O mundo está cada vez mais imprevisível.

JF / 5.Out.2017

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