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sexta-feira, 28 de julho de 2017

Contrastes estivais

Abordamos hoje três tópicos com escassa ligação ontológica entre si. “E pur…”

1.      Os jovens e a integração social
Em tempo de especial intensidade dos festivais de música, onde há de tudo, vale a pena reconsiderar o que estes encontros têm de positivo, porque quanto ao resto estamos já conversados (excessos, superficialidade, ausência de ponderação ou falsa intimidade). Não esquecemos que os festivais pop têm na base o star system originado nos estúdios cinematográficos de Hollywood e que depois se estendeu à canção ligeira, à actividade televisiva e ao mundo inteiro vergado no século XX ao american way of life. Estamos também cientes de que – tal como as tournées mundiais de cantores famosos – mesmo para organizar hoje Vilar de Mouros, Paredes de Coura, o Rock in Rio, o Super-Bock-Super-Rock ou o Festival do Sudoeste são necessários grandes investimentos financeiros, dispositivos técnicos e publicitários sofisticados, bem como especialistas munidos de diversas competências jurídicas, negociais, etc. (Note-se que não estamos a forçar a nota ao empregar todos aqueles termos em itálico, os quais já nem podemos qualificar de “estrangeirados” porque estão hoje integrados no falar de grande parte das nossas sociedades.) Apesar disto tudo ser verdade, vultoso e pouco edificante em si mesmo, também devemos reconhecer a importância que tais iniciativas revestem para a vida dos jovens (e alguns menos jovens).
É, em primeiro lugar, a fruição da música, em si mesma. Por muito ruidosas que às vezes sejam, surgem com frequência belíssimas composições (harmónica ou ritmicamente), vozes estranhas e execuções instrumentais originais que provocam emoções novas, revisitadas ou profundas em milhares de pessoas que, nessas ocasiões, se evadem de todos os constrangimentos que habitualmente os incomodam e então experimentam uma sensação libertadora que chega a marcar as suas vidas. Não raro, tais experiências sensoriais, impossíveis de conseguir em isolamento (a despeito dos phones na cabeça com que passam grande parte dos seus dias), são vividas em íntima comunhão de vibrações com outra pessoa – e aí se gera um laço amoroso ou erótico de especial intensidade. Não despiciendo mas mais sujeito a desconfianças e susceptível de efeitos nefastos (que nem sequer podemos qualificar de secundários, tal a relevância que por vezes assumem) é o clima emocional gerado entre milhares de pessoas concentradas num mesmo espaço e sujeitas à agressão dos milhares de decibéis despejados sobre o recinto, além de outras encenações encantatórias (luzes, fumos, gestos dos artistas, etc.). Isto constitui muitas vezes um momento extraordinário de emoções e sensações, que apela a novas experiências.
Mas é também aqui que a “irracionalidade das massas” provoca mais perturbações e reacções negativas em cérebros simultaneamente pausados e portadores de memória social, pois lembramo-nos amiúde dos comícios nazis de Nuremberg, dos desastres ocorridos em estádios como no Haisel de Bruxelas ou das comoções e movimentos descontrolados das multidões de peregrinos em Meca. O êxtase ou o Nirvana cohabitam muito próximos do desastre e da morte.
O mesmo tipo de equívocos se passa no desporto. Pratiquei esgrima desportiva a partir dos 14 anos, a sério, e depois, como veterano. Antes como agora, nunca me esqueci de que, além de um confronto de técnicas, recursos físicos, inteligência e vontade, do esvaziamento lúdico da nossa agressividade natural, se tratava de uma imitação simbólica do duelo agónico, em que cada estocada podia representar um golpe mortal. Isto era, porém, balizado por um conjunto de regras partilhadas por todos os contendores, as quais se percebia serem por vezes respeitadas por alguns já na zona indecisa dos limites prescritos, ou então de má-vontade, disfarçando apenas o desejo de esmagar o outro ou de vencer a qualquer preço. Hoje, com a profissionalização dos agentes desportivos e a espectacularização da sua prática, os benefícios mentais da actividade física tendem mais frequentemente a ser ultrapassados pela obsessão da vitória.
E temos também a questão dos “maus exemplos”: álcool, drogas, doping, promiscuidades sexuais, etc. Atente-se ao modo como as pessoas andam vestidas na cidade: tal como na praia. E veja-se a utilização feita pelos jovens dos capuzes que a indústria passou a coser nas golas das suas camisolas de lã ou algodão (ou mais frequentemente de fibra sintética barata). Ao cobrirem as suas cabeças deste modo, eles querem significar uma atitude de dissensão, de exclusão ou auto-exclusão em relação à sociedade “oficialmente instituída”. E se um adulto (um especialista ou um agente da autoridade, porque o simples passante já não se atreve) lhes perguntar se o fazem para se proteger do frio ou do vento, ouvirão provavelmente uma destas respostas: -Não me chateies!; -Não estou nessa cena…; -Eu sou eu e o resto que se f.; -O que é que queres, meu?
A transgressão, na linguagem, maneiras, vestuário, etc., é hoje um padrão de toda a cultura artística, seja a pop, seja mais erudita, e por isso – com a economia a montar tal cavalo e o populismo partidário a não o desperdiçar – não nos podemos espantar com tais manifestações correntes e que a Lei sejam cada vez mais impotente para normalizar comportamentos sociais. Por este tipo de coisas, manifesto o meu desacordo quanto ao ante-título com que o jornalista João Miguel Tavares costuma encimar os seus artigos de jornal: o “respeitinho” talvez não seja muito bonito. Mas o respeito deveria sê-lo.
As pessoas de hoje tem uma relação da psique com o seu próprio corpo incomparavelmente mais livre do que há meio-século atrás. As barreiras do pecado religioso ou do “parece mal” social foram arrombadas, por homens como por mulheres, desmistificando-se e naturalizando-se a masturbação, a homossexualidade ou a (in)fidelidade conjugal, tanto quanto as formas que antigamente se empregavam para as contornar. Porém, os valores da intimidade e da lealdade na relação entre pares são hoje mais difíceis de serem percebidos (e praticados). E, sem eles, vem o risco de tudo se tornar mais grosseiro, fútil ou perverso.
Em contrapartida, o “politicamente correcto” está a tornar-se de tal maneira pressionante que quase constituiu já uma ameaça à liberdade de expressão. Além de vários outros, veja-se o caso recente do dr. António Gentil Martins, vilipendiado de mil e uma maneiras por exprimir a sua opinião sobre matérias de sexualidade. Bem sei que ele utilizou algumas palavras já fora do léxico científico corrente (que contém sempre alguma espécie de censura social, embora erudita). Mas, no fundo, ele não só exprimiu a sua convicção profunda como também os sentimentos que a maioria, com prudência e alguma cobardia, se exime hoje de formular – oferecendo o deleite aos que gostam de “malhar” nesses temas. É preciso, então, recordar Voltaire: «Não estou de acordo com aquilo que dizeis, mas bater-me-ei até ao fim para que o possais dizer!». Embora com uma linguagem rebuscada e pouco clara para a maioria dos leitores, creio que no mesmo sentido vão as reflexões de Pacheco Pereira no Público de 24.Jul.2017 sobre racismo, populismo e a sua crítica pelos radicalismos de esquerda. É que a linguagem – o radicalismo do seu mau uso – voltou a ser um elemento de domínio social.

2.      Europeismo
Há boas razões para desconfiar do “europeísmo”, tal como ele é superficialmente entendido e discutido: um “albergue espanhol” onde tudo cabe, desde as decisões de um “directório” (franco-alemão), à tolerância para com políticas nacionais quase-autoritárias como as da Hungria, da Checa ou da Polónia (estando já longe as ameaças de um Guterres contra o austríaco Haider), à existência de um “euro-grupo” com a importância que adquiriu apesar de inexistente nos tratados formais, ao predomínio dos interesses económicos dos grandes poderes sobre todos os “periféricos”, à asfixiante burocracia centralista da Comissão, aos privilégios dos parlamentares e ao inacreditável despesismo com a sua casa itinerante entre Bruxelas e Estrasburgo, etc. Mas é importante reconhecer a paz e as cooperações reforçadas entre velhas nações rivais que a CEE/UE tem permitido, a existência de espaços de encontro e de vivência construindo progressivamente uma identidade europeia, bem como, finalmente, a presença de instâncias judiciais de recurso comuns a que, em última instância, se devem subordinar os tribunais nacionais, os governos, as empresas e os cidadãos do continente, numa época em que a escala demográfica e económica – além da capacidade técnico-científica – voltou a ser decisiva no nosso mundo globalizado.
É certo que, sendo a ligação à UE e ao Euro fundamentais, estas instituições manifestam precisar de várias reformas, económicas e políticas, talvez em simultâneo com a negociação do Brexit (ou talvez só após, se ainda houver tempo para isso), que: a) revejam as questões financeiras, bancárias e orçamentais; b) instituam políticas coordenadas mais eficazes nos domínios da segurança, fronteiras, migrações, justiça e intelligence; c) dêem caça aos desperdícios e disfunções das instituições europeias (parlamento em 2 sítios, burocracia, presidências rotativas, etc.); d) melhorem, tanto quanto for possível, a legitimação popular e o processo decisional das instâncias de topo da União, mais num sentido confederal do que propriamente federal. Mas muita atenção vai ter que ser prestada nestes próximos anos ao relacionamento externo da Europa com a NATO, os EUA, a Rússia, a China, a Turquia e o mundo árabe (além do resto). E não parece que a simpática Srª Mogherini esteja em condições para o fazer cabalmente.

3.      Economia globalizada
O desenvolvimento da economia moderna, de mercado e livre concorrência, sempre foi acompanhado de um paralelo desabrochamento das actividades financeiras, desde que os fechamentos e proteccionismos medievais-corporativos cederam sob a pressão das filosofias liberais do século XVIII e algumas revoluções e transformações políticas posteriores. Esta evolução foi-se acentuando ao ritmo de décadas, com ocasionais crises do sistema económico-financeiro e outros conflitos de natureza diferente: lembremos as guerras por interesses dinástico-nacionais e visões estratégicas, a irrupção do movimento operário socialista na cena social e na disputa política, a superação do tabu da escravatura, o afloramento da emancipação da mulher ou os processos de descolonização. Nessas épocas, o poder económico das velhas e novas aristocracias encontrou formas de acomodação com os interesses da grande burguesia (e da média, que ia crescendo) enquanto os pequenos proprietários (de terras, comércios ou meios de produção artesanais) se viram muitas vezes sujeitos a implacáveis condições de sobrevivência, caindo alguns na “proletarização”-a-salário, decidindo-se outros pela migração territorial (para as cidades, o “novo mundo” ou países mais ricos carentes de mão-de-obra barata) e apenas alguns conseguindo medrar como empresários em novas e ásperas actividades concorrenciais. 
Com a unificação dos mercados à escala mundial (parte fundamental da chamada globalização), enfim plenamente possível após a evolução da China ocorrida nos anos de 1975/80 e a queda do bloco socialista liderado pela URSS, o poder das empresas multinacionais acentuou-se aproveitando a fundo os avanços tecnológicos coevos, mas o surto económico “neo-liberal” focou-se especialmente nos sectores do comércio (com acréscimo e sofisticação da correlativa publicidade, conquista de novas populações consumidoras, etc.) e nas actividades financeiras.
Ora, estas últimas puderam multiplicar-se aproveitando a ausência de uma efectiva supervisão mundial, criando muitas vezes (graças a operações de crédito de risco e mesmo manipulações delituosas) uma ilusão de riqueza usufruível por uma “classe média” cada vez mais ampla e inclusiva, embora muito segmentada e sem qualquer “consciência de classe”. Bens de consumo caros e baratos, duradouros ou logo fungidos, viagens e equipamentos (de inovação/rotação acelerada), aquisição de bens de raiz (essencialmente propriedades urbanas, incluindo uma residência secundária) e de toda a sorte de serviços de preço variável desenvolveram-se então desmedidamente, constituindo uma “locomotiva” do crescimento económico a que o sector produtivo (das fábricas, bens primários e produtos de ciência-e-tecnologia) ia dando resposta e simultaneamente estimulando, graças à automatização dos processos laborativos e a algum embaratecimento (relativo) dos custos do trabalho a eles associado.
Neste quadro, as actividades especulativas (sobre os câmbios monetários), os mercados das dívidas (estatais e privadas, empresariais ou particulares) e mesmo as operações ilegais (de drogas e outros tráficos, branqueamento de negócios sujos, etc.) puderam medrar, ao mesmo tempo que gizaram oportunidades de corrupção dos agentes políticos a que estes não souberam resistir – porque também os valores e normas morais (muito ligados às religiões, ao patriotismo e ao espírito republicano) tinham sido entretanto abalados pelos novos costumes, libérrimos ou mesmo libertinos.
No caso de Portugal, foi patente o contraste entre a disciplina rigorosa que a Europa do norte nos tentava impor (também em seu benefício próprio) e o “fartar vilanagem” a que se entregaram dirigentes empresariais e partidários nas suas relações com parceiros como “os grandes” do soba socialista de Angola, o Brasil, a Venezuela, o Médio-Oriente ou onde vigorassem “paraísos fiscais”. O excesso de consumo privado e de despesa pública é negado pelos arautos tradicionais do anti-capitalismo, incluindo aqui a esquerda-caviar à moda do doutor Francisco Louçã e mesmo a inteligente argumentação de um Ricardo Paes Mamede (ver o seu O que Fazer com este País, 2015), para quem todo o mal vem dos empresários, especialmente se forem americanos, e toda a solução só pode vir das políticas estatais. Mas muito da nossa perda de empresas importantes e dos descalabros financeiros de que ainda padecemos teve, na sua génese, decisões tomadas por gente da elite partidária governamental, em estreito conluio com grandes interesses económicos. Ao mesmo tempo, o leque da distribuição da riqueza e dos rendimentos gerados alargou-se, com um pequeno número de “bilionários” e perto de 30% da nossa população encontrando-se no limiar ou em situação plena de pobreza, ainda assim mitigada pela acção pública, sejam os mecanismos redistribuidores do Estado-providência, seja a ajuda das instituições particulares de solidariedade social.
De registar que, se subsistem ainda algumas famílias da alta-burguesia e da aristocracia do nosso liberalismo com forte capacidade económica – pensemos nos Champalimaud, nos Melo, nos Burnay, mas que alguns, como Ricardo Salgado, foram capazes de desbaratar –, os “cabeças de lista” são agora nomes fundadores de novas linhagens familiares com os Amorim, os Belmiro de Azevedo, os Soares dos Santos, os Guedes (dos vinhos e dos casinos) ou os Nabeiro, todos de ascendência modesta, para já não falar dos Zeinal Bava, dos Granadeiro ou dos Mexia que oscilam entre os píncaros da fama e suspeitas menos abonatórias.
Não é verdade que os case studies agora discutidos nas faculdades de economia e gestão se referem a Bill Gates (e a outros que começaram nas garagens paternas), em vez dos Henry Ford de há décadas atrás?


JF/ 28.Jul.2017

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