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domingo, 25 de junho de 2017

Paradoxos do tempo

Nos últimos meses, vários processos de escrutínio popular produziram efeitos estonteantes, não apenas nos próprios países mas também em esferas mais alargadas, de âmbito regional ou mundial.
O referendo de 2016 no Reino Unido ditou o abandono deste país da comunidade de estados da União Europeia, processo político e económico que só agora está a ensaiar os primeiros passos e sobre o qual ninguém arrisca fazer previsões. No entanto, a Srª May, que já se mostrara tímida e subserviente na Casa Branca em Janeiro último, terá selado agora o seu destino político. As eleições legislativas de 8 de Junho, antecipadas de quase três anos, não lhe proporcionaram a confortável maioria que desejava ter em Westminster para negociar mais à vontade com a UE – antes pelo contrário –, mostrando claramente ser ela uma má jogadora no campo político-parlamentar-mediático. E não foi suficiente fazer causa comum com os restantes G7 face a Trump na cimeira da Sicília e na defesa do tratado de Paris sobre o clima. Várias coisas daqui se tiram: o resultado referendário das urnas fora tangencial (como geralmente acontece); os resultados eleitorais de agora constituíram mais  um “voto de protesto” contra os governantes de turno; a opinião pública do país ficou outra vez dividida a meio; e o “mau exemplo” foi dado para quem o quiser aproveitar, com os eurocépticos do continente fortalecidos com estas divisões, o presidente Juncker mais impante,  os nacionalistas e soberanistas anti-europeus exultantes (tal como o sr. Putin) e os autonomistas-nacionalistas pró-Europa (da Catalunha e mesmo da Escócia) esperançados em poder avançar mais um passo nos seus desígnios. É também provável que as negociações se arrastem inconclusivas quase até ao esgotamento do prazo de dois anos previsto e acredita-se que, não havendo nenhuma perturbação grave adicional, as partes acabem por chegar a um acordo razoável, com tarifas alfandegárias mútuas especiais e maior controlo dos movimentos de pessoas entre a Ilha e o espaço Shengen (como de resto acabará por acontecer no interior deste, da maneira que for mais compatível com a mobilidade dos factores económicos). Do prosseguimento da prosperidade dos britânicos nesse novo enquadramento (mundial) é que já é mais difícil vaticinar, mas acreditamos que, se não houver conflitos internos (regime monárquico, secessões, irredentismos ou levantamentos das suas comunidades asiáticas), eles saberão aproveitar ao máximo as suas relações preferenciais com os Estados Unidos e a Commonwealth, e usar o seu consabido pragmatismo para estabelecer laços económicos favoráveis com quem lhes interessar, da China aos países árabes, asiáticos ou africanos. E se as coisas correrem pior, talvez que as receitas proteccionistas e pro-sociais do Labour venham a ser úteis para gerir esse fatal empobrecimento.    
Em tempo de Páscoa cristã, a Turquia realizou um referendo de alterações à constituição, que passou do parlamentarismo herdado de Ataturk (sob tutela militar durante um larguíssmo período) para um presidencialismo islâmico que, não sendo ainda fundamentalista (no sentido da sharia), se vem colocando em posturas cada vez mais anti-ocidentais. É verdade que a União Europeia lhe foi progressivamente encerrando as suas portas (para uma admissão no clube) à medida que essa islamização ia progredindo. E que o acordo financeiro passado para que Ankara ficasse nos braços com o grosso dos refugiados sírios (e não só) foi uma jogada típica do “realismo dos mais ricos”. Por outro lado, as relações bilaterais russo-turcas tornaram-se de novo difíceis, com tantos motivos de convergência como de oposição de interesses próprios. Assim, a Turquia volta a ser uma crucial fronteira-tampão entre a Europa, a Rússia e o Médio-Oriente islâmico (incluindo a complexa situação dos Balcãs e as sempre suspeitosas repúblicas do sul da Federação Russa), espaço este onde se mantêm activíssimas e em simultâneo as manobras diplomáticas e propagandísticas, as guerras limitadas e as acções terroristas, com irrupções esporádicas de efervescências urbanas e intifadas, sob o olhar atento e interventivo de russos, americanos e dos maiores potentados da zona (em riqueza e poder militar). Só a presença dos turcos na NATO (até quando?) é que constitui um “cinto de segurança”, quiçá decisivo para a preservação da paz mundial.
Neste quadro, o Irão foi também a votos para o cargo presidencial (com mais de um milhar de candidatos à partida!). Felizmente, acabou por triunfar o moderado Rouhani, que já estava em funções, travando reorientações mais aventureiras, agora que o acordo obtido por Obama pode ser ignorado ou riscado de uma penada pelo seu sucessor. No mundo árabo-islâmico, as rivalidades podem não ter fim à vista entre as principais potências regionais – Irão, Arábia, Egipto e Turquia – sem esquecer os, por agora discretos, países do Magrebe e a sempre adiada solução Palestiniana.
É claro que a eleição de Trump nas eleições americanas de Novembro passado foi uma surpresa que deixou o mundo estupefacto. Já todas as análises foram feitas sobre a personagem e os motivos que levaram tão grande número de cidadãos yanquees a instalaram-no na Casa Branca, mais os amigalhaços e a família. É este um dos riscos maiores dos procedimentos democráticos tradicionais, mas somente quando assim se concretizam é que nós podemos apreciar o seu alcance e os prejuízos gerais que provocam. Sendo certa a sua absoluta ignorância da história, da política e da cultura, o homem parece fazer “o que lhe dá na gana” julgando poder gerir um país como aquele – sobretudo na ordem internacional – como se fosse mais um dos seus negócios de resorts ou de casinos. Aparentemente (mas talvez seja mesmo só aparência), lida com os media como se fosse apenas um descabelado americano comum, desafia algumas das mais sólidas instituições americanas, atreve-se a anunciar decisões até agora impensáveis e usa os seus soldados no mundo como se de “jogos-de-guerra” se tratasse, com o que põe em risco a credibilidade moral e mesmo a honra dos militares norte-americanos – obedientes ao poder político democrático, mas não às ordens de um louco. A curto e a médio prazo, isto vai ter os seus efeitos na cena mundial, o que já começou com a renúncia ao tratado de Paris sobre as alterações climáticas. A sua relação com Putin (sobretudo em relação ao Próximo-Oriente, onde os “terroristas” não são os mesmos para cada uma das partes) e o triângulo USA-China-Coreia do Norte são, de momento, os processos mais perigosos.
Como se previa já há largos meses, nas eleições presidenciais francesas (e sob o regime do estado de emergência, não o esqueçamos) a Srª Le Pen quase igualou o moderado Macron na 1ª volta mas este levou a melhor na 2ª por larga margem, provocando alívios no Ocidente e recriminações internas na Frente Nacional. Porém, a significativa abstenção (12 milhões = 25% do eleitorado), os brancos e nulos (4 milhões = 10%) e os 34% de votos expressos por ela recebidos constituem dados políticos relevantes que tiveram reflexos nas legislativas de 11/18  de Junho (onde a abstenção atingiu recordes, mostrando a expectativa e distanciamento do povo francês) e condicionarão a próxima legislatura, apesar da estrondosa vitória das posições centristas – “social-liberais” – do novo presidente. Maugrado a sua larguíssima maioria – porém insuficiente para permitir mexidas constitucionais, por causa do Senado conservado – e do “estado de graça” de que vem beneficiando, é preciso não esquecer que “a rua” vai fazer-se sentir em oposição a muitas reformas institucionais e económicas e que, nesta maioria, existe tanto de rejeição  à “politiquice” anterior  (e de sempre) como de oportunismo de velhos e novos “politiqueiros”. O seu principal trunfo, é, apesar disso, a existência de uma corrente de opinião capaz de lhe fornecer uma força política mais coerente, realista e disposta à mudança composta por um significativo sector de jovens qualificados e não “contaminados” pelos velhos hábitos.
Acredita-se que o centrismo de Macron procure responder às novas clivagens do nosso tempo e à erosão que tem laminado o prestígio e a reputação dos partidos políticos tradicionais, particularmente no caso da França (mas que é um fenómeno presente em outros países desenvolvidos), não só pelos casos de corrupção e pelas promessas eleitoralistas não cumpridas dos seus dirigentes (porque boa parte delas eram impossíveis de cumprir), mas também pela lógica sectária dos seus militantes de base, obsecados pela ocupação dos postos e instrumentos de poder e pelo combate contra os seus adversários, sem visível preocupação pelos efeitos nefastos que estes combates em arena fechada têm para a generalidade da população, numa época em que é intensa e muitas vezes imediata a relação entre política, economia, sociedade e cultura, por um lado, e entre o espaço local/nacional e o espaço global/mundial, por outro. Neste sentido, qualquer política nova tem de ser necessariamente centrista  e “social-liberal” mas suficientemente estruturada, clara e objectiva para se distinguir do “marais” (o habitual centrismo negativo “nem… nem…”). Se isto for possível, a sua corrente dinâmica atrairia obviamente gente dos partidos moderados de direita e de esquerda e, sobretudo, muitos dos actuais abstencionistas (que não sejam os a-sociais conhecidos em França por “pêcheurs-à-la-ligne”). Mas encontrará como adversários políticos os sectores mais ideologizados de direita e de esquerda, incluindo necessariamente as suas diversas franjas extremistas. Como é que tal dinâmica poderá desenvolver-se num quadro tão complicado como é o da França, onde o presidente dispõe de algumas armas raras (como governar por decretos [ordonnances], assumir os poderes especiais do Artº 16º da constituição, dissolver o parlamento ou levar a referendo projectos de alteração das normas fundamentais) mas não conseguirá ter orçamentos e ver aprovadas simples leis reformadoras na Assembleia e no Senado se a sua maioria começar a esboroar-se por falta de consolidação político-ideológica? E como poderá Macron responder às expectativas ora criadas quanto à superação da crise económica, do problema das migrações maciças e da sua integração socio-cultural – além de atender à segurança pública e opor-se com eficácia às ameaças e desafios de guerra – sem uma notória alteração dos posicionamentos da União Europeia, quando as relações com a Alemanha nunca serão fáceis, a saída do Reino Unido vai demorar a encontrar uma plataforma aceitável e será necessário lidar com os suspeitosos governos europeus de Leste, os grandes “lastros” que são a Itália e a Espanha e os recalcitrantes “pesos-plumas” (ou “pesos mortos”?) da Grécia e de Portugal? Por outro lado, a conjunção das oposições mais rudes de esquerda e de direita tornarão decerto muito estreita a margem de manobra de Macron. Mas que necessidade tinha este de lhes dar argumentos ao visitar Berlim logo no segundo dia do seu auspicioso mandato? Não poderia ter obtido um encontro na fronteira?
Para que o centrismo social-liberal possa vir a ter êxito precisará de afrontar as ideologias mais arreigadas à esquerda e à direita e estruturar uma sua própria ideologia baseada em equidade social, segurança pública, democracia participativa, prosperidade partilhada, desenvolvimento dos países mais pobres e populosos, cooperação internacional e precaução ambiental. E talvez possa chamar simbolicamente em seu favor os quatro princípios fundamentais identificados na Declaração de 1789: liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão.
A Frente Nacional dos Le Pen – de extrema-direita, nacionalista, xenófoba e anti-europeia, aparentemente moderada mas abrigando no seu seio franjas extremistas perigosas e violentas, que sempre existiram no país desde Maurras, Doriot e da governação de Pétain, colaborante com os invasores alemães em 1940-44 –, a FN, dizíamos, é provavelmente o partido mais coeso do espectro partidário do país, apesar das querelas de liderança, alimentado que é pelo ressentimento de o sistema eleitoral lhe negar uma força parlamentar à altura do eco favorável que obtém na opinião pública. Quase perdido o seu lugar de grande potência mundial devido às insuficiências do seu poder económico, a França profunda tem-se virado mais e mais para o nacionalismo e o fechamento perante o ressurgimento de velhos fantasmas (a Inglaterra, a Alemanha, os Estados Unidos), a mudança nos modos-de-vida, uma crescente população islamizada residente e nacional mas mal integrada, e as ameaças terroristas, a que o seu infeliz e inepto anterior presidente tentou responder com alguma coragem mas sem discernimento, ao enviar as suas tropas para combater jihadismos distantes e com outras medidas extraordinárias.
Por seu lado, afogada entre divisões ideológicas e pessoais, a esquerda – e especialmente o outrora poderoso partido socialista – encontra-se mais enfraquecida do que nunca e prisioneira das querelas do passado (Veja-se esta pequena amostra do “delírio” existente entre alguns cientistas sociais, extraída de uma comunicação privada: « […] Touraine ou Wiewiorka  […] nous les considérons comme des réactionnaires»). O “gaulismo” também desapareceu face ao atractivo americain way of life e aos escândalos dos seus principais dirigentes. A estes dois antigos bastiões dominantes, resta-lhes, como capital político, a implantação territorial conseguida ao longo de décadas e a importância europeia do “eixo Paris-Berlim”, em cuja gestão o PS se mostrou sempre tão diligente quanto os seus adversários de centro-direita.
Assim – a menos que a União Europeia consiga um “golpe de rins” de recorte mais federalista (o que não se vê facilmente como, atendendo às atitudes nacionalistas dos países do Leste) –, a Frente Nacional aparecerá como a única força portadora de um projecto de mudança correspondente aos desafios do tempo actual: resposta errada e perigosa (tanto política como economicamente) mas que se distingue claramente dos outros “gestores do statu quo”, e como tal é reconhecida por uma parte significativa do eleitorado francês. Veremos o que vai acontecer daqui até 2022.
Aguardamos por Setembro para verificar os resultados das eleições gerais na Alemanha, e pelo Outono para a consolidação do arranjo de governo que vai seguir-se, sendo que a CDU-CSU vem ganhando vantagem, embora o cenário da continuação da “grande aliança” com o SPD não esteja afastado. Mas para além do titular da chancelaria (Merkel), será decisivo saber quem assumirá o ministério das finanças (Schäuble ou outro) e o score do partido euro-céptico Alternativa para a Alemanha (AfD), que agora parece em quebra. Na Holanda, no escrutínio de Março passado, o candidato populista Geert Wilders (cujo Partido da Liberdade dizem ser inexistente, apenas contando o seu discurso) obteve a segunda melhor posição no eleitorado mas ficou fora do governo. Na Áustria as correntes direitistas não desarmam mas não conseguiram eleger o novo presidente da república. Será que se está a atingir o patamar-limite do crescimento eleitoral das forças populistas de direita com um posicionamento anti-UE que, com diferentes matizes, é também o sustentado pelas esquerdas soberanistas? Ou será apenas uma pausa no geral enfraquecimento dos partidos do centro político (moderados de esquerda e de direita) e que a radicalização nos extremos possa levar a confrontos incontroláveis, dado que nenhuma destas forças aceitará de bom grado uma derrota? As travagens eleitorais que estes movimentos sofreram nos últimos meses em vários países da Europa podem não ser senão transitórias.   
Também para o Outono ou pouco mais tarde poderá haver novas eleições em Itália, onde o Movimento 5 Estrelas  (que reune anti-europeus de esquerda e de direita) fracassou nas recentes eleições municipais. Houve um acordo conseguido em finais de Maio entre os principais partidos sobre uma reforma da lei eleitoral, “à alemã”, que não alterará sensivelmente as condições de instabilidade governativa gerada por esta elite política, onde pesam sobretudo o populismo negocista de Berlusconi (e o fechamento xenófobo da Liga Norte), o populismo anti-sistema do M5S e a demagogia-de-esquerda de um líder “modernizador” como Renzi.

Bem mais discretas são as divergências em Portugal entre os partidos com acesso ao poder executivo, por via do apoio que PCP e Bloco de Esquerda emprestam no parlamento ao governo socialista de António Costa, por troca com a adopção de certas medidas legislativas e orçamentais por eles avançadas, ao mesmo tempo que se sentem livres para “falar contra o governo” em outras matérias, de molde a garantirem a suas respectivas bases eleitorais. Tudo isto é obra de Costa, de Centeno e do suporte que têm encontrado no inquilino de Belém. O primeiro confirma a arte negociadora por todos reconhecida e permanece exibindo as piruetas verbais que forem necessárias para continuar a sorrir. O segundo, com maior ou menor maquilhagem das contas públicas, consegue apresentar números que fazem calar tanto as oposições nacionais como os seus interlocutores europeus. E o terceiro continua a sua imparável acção de “popularização” da magistratura suprema do Estado, ao mesmo tempo que participa na governação (sobretudo na frente externa) e aposta na estabilidade governamental… enquanto esta durar. Também a tragédia humana dos mortos e feridos do incêndio de Pedrógão Grande pode vir a ter efeitos benéficos para o sentimento de coesão nacional (que o Presidente não se cansa de realçar), e por reflexo para a governação actual, bem ao contrário do que aconteceu com o equiparável acidente urbano acontecido em Londres uma semana antes.
A (estúpida e prejudicial) regra da coincidência temporal das eleições autárquicas não vai alterar significativamente o quadro político nacional, com as costumadas declarações de vitória de todos os partidos, a reafirmação de alguns candadatos independentes (quase todos “dinossauros” ou zangados com os seus correligionários) e uns ajustes de contas internos, como muitos admitem que possa acontecer no PSD. Mas vai dar argumentos aos vários componentes da coligação apoiante do governo para provocar reajustamentos e alterar prioridades quanto às medidas a tomar proximamente. Sobretudo, desencadeará discussões e ensaios de estratégia partidária face às eleições gerais seguintes. Estratégias que, porém, estarão sempre fundamentalmente sujeitas à melhor ou pior evolução da economia e a qualquer alteração que se verifique na envolvente externa. 
Falando em regras institucionais, pode observar-se que, em muitos países e alguns dos mais importantes, se está criando a sensação de que os processos eleitorais de constituição de assembleias parlamentares ou de escolha directa de governantes começam a deixar um crescente número de cidadãos insatisfeitos com os resultados dos mesmos e os desempenhos desses seus representantes, seja por falta de cumprimento de promessas feitas, seja por suspeitas de corrupção ou sujeição a interesses espúrios, ou ainda pela abertura de uma notória clivagem entre as elites, os partidos e a grande maioria do povo eleitor. Estes defeitos dos regimes políticos democráticos são há muito conhecidos mas, com naturais altos e baixos, mantiveram-se geralmente dentro de um padrão de razoabilidade que satisfazia o pragmatismo da maioria, a qual também não vislumbrava qualquer outra alternativa institucional superior. A legitimação de partidos e líderes governantes pelos aplausos de uma multidão em delírio ou pela “razão das armas” de um golpe-de-Estado ou luta revolucionária triunfante foi aceite no século passado apenas no caso de povos atrasados – sempre evoluindo para ditaduras mais ou menos afirmadas – e, excepcionalmente, na débacle de regimes autoritários mas logo confirmado por processos de escrutínio popular livre (isto é, com garantia de expressão individual sigilosa). Hoje, são populações há muito escolarizadas e habituadas a governos democráticos que não se revêem nas propostas dos partidos e dão apoio a acenos de ruptura, vindos de forças radicais de esquerda ou, mais frequentemente, das direitas. E as tímidas propostas de reforma constitucional que emergem – por exemplo, de Renzi em Itália, num sentido federalista na vizinha Espanha ou agora por Macron em França – não encontram acolhimento suficiente face às rupturas anunciadas por líderes carismáticos neo-nacionalistas. Parece que estamos à beira de um novo choque traumático – desta vez essencialmente económico e político, à escala internacional – que talvez permita enfim que os povos mais cultos e educados façam prevalecer a voz da razão e do entendimento sobre os esgares dos condotieri e a algazarra dos seus apoiantes.
Por todo o lado, os processos eleitorais e as regras tradicionais da representação estão a evidenciar um acentuado desgaste e necessidade de regneração. Nestas circunstâncias, mais se nota a urgência de uma renovada forma de intermediação entre os cidadãos (trabalhadores-consumidores-eleitores) e o exercício da governação para um melhor-estar das populações, porém desgraçadamente numa época em que os mandatários populares se mostram mais fechados sobre si próprios e permeáveis aos fenómenos da corrupção, do  negocismo e da falta de ética.
Entretanto, nesta álgida situação que a humanidade atravessa, deve perguntar-se o que andará fazendo um António Gueterres quase desaparecido. Talvez esteja tentando reanimar a máquina burocrática da ONU ou diligenciando discretamente junto dos principais líderes mundiais. Oxalá a ausência de eco da sua acção não signifique ter já sido abafado por forças mais poderosas do que o consenso das não-oposições que permitiram a sua ascensão ao cargo de secretário-geral daquela incontornável organização internacional.

JF / 24.Jun.2017

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