Contribuidores

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Crença, cepticismo, lucidez

Mesmo num mundo já em grande medida comandado pela ciência, as crenças estão longe de ter desaparecido, sejam elas religiosas, político-ideológicas, nacionalistas ou de fé em qualquer outro tipo de verdades – indemonstráveis racionalmente mas sempre plausíveis, face à inesgotável imaginação dos humanos. Elas (as crenças), quando partilhadas por muitos, também proporcionam integração comunitária, segurança e satisfação pessoal para os indivíduos assim integrados. Mas quase sempre vêem com desconfiança, ou por vezes mesmo com animosidade, aqueles que não pertencem à sua “fratria”, em especial quando ambas concorrem pela apropriação de certo tipo de recursos, materiais ou simbólicos. As guerras religiosas e as guerras inter-nacionais foram fenómenos extremos destas tensões, mas nem por isso raras nem menos significativas – e também sempre produtoras de sofrimento e destruição. Neste sentido, deve ser saudado o esforço ocorrido na modernidade para, por meio de negociações, tratados e organizações supra-nacionais, superar os antagonismos entre poderes estatais, a benefício de uma ordem mundial mais pacífica e, se possível, mais justa. E devem igualmente ser saudados os passos dados por algumas das grandes religiões instituídas em direcção a um maior ecumenismo, tolerância ou fraternização inter-religiosa.
Hoje, podemos constatar em nossa própria casa o caminho percorrido por confissões religiosas dominantes desde o tempo em que ocorriam matanças anti-judaicas (como o progrom de Lisboa de 1506) até às pacíficas manifestações de fé religiosa como Fátima agora exibiu; e confrontá-lo, em outros lugares, com os morticínios acidentais que que não raro acontecem em Meca, sem hereje por perto, apenas devido ao descontrolo de massas fanatizadas, ou a indignidade dos conflitos inter-religiosos que mesmo agora têm ocorrido em Jerusalém pela apropriação simbólica dos “lugares santos”. Estes são factos que interpelam sobretudo as lideranças dos movimentos religiosos, onde se situam os seus mais altos chefes, os teólogos e os organizadores da cadeia ou estrutura clerical que, no conjunto, funcionam como intermediários entre os crentes e a divindade (e amiúde mereciam ser criticados). Mas isto não explica nem resolve o fenómeno da crença religiosa com que a humanidade se tem confrontado, a partir da dúvida existencial que subsiste em cada ser, enquadrada pelo meio social em que se encontra inserido. A confissão de um “retorno à fé” por parte de uma personalidade culta, inteligente e afirmativa como Clara Ferreira Alves (ver o Expresso de 13.Maio.2017 e também a entrevista já aí publicada a 21.Novembro.2015) tem, nestas circunstâncias, um valor intrínseco que, independentemente de argumentos, críticas ou louvores, deve ser respeitado e suscitar a reflexão de terceiros.
Todo o poder político moderno, particularmente no caso do Estado-nação, coloca em termos semelhantes a relação da “classe dirigente” com os seus cidadãos. O governo democrático – do povo e para o povo – exige necessariamente esse mesmo papel de intermediação, e daí os inevitáveis instrumentos que são os partidos políticos e as consultas eleitorais ou referendárias. Mas, como diria alguém, não há intermediações grátis: não somenta elas têm um custo quantificável mas também desenvolvem interesses e estratégias próprias, que lhes importa conservar e alargar.
Voltemos, porém, à questão da crença para afirmar que nenhuma crença colectiva ou partilhada consegue marcar duradouramente o meio social onde existe se não se dotar dos instrumentos de acção colectiva indispensáveis para alargar a sua influência, subsistir face à evolução dos tempos ou às agressões de que possa ser alvo. E não se pode falar de acção, nesta escala já grandiosa, sem a ela juntar os dispositivos de organização capazes de lhe permitir a continuidade, a regularidade e a normatividade convenientes – isto é: capazes de actuar durante, e permanecer para além, das meras conjunturas. Nestas últimas, imperam a criatividade, as lideranças carismáticas, a resiliência e capacidade de reacção. Para além delas, tem de salientar-se o papel das instituições, que têm tanto de efeitos de congelação dos impulsos e gestas emocionais como, simultaneamente, garantem o papel de regularizadores da vida colectiva e de provedores da previsibilidade de que cada ser humano necessita para sustentar a sua existência e os laços que o unem a terceiros.
O espírito de seita e o antagonismo doutrinário manifestam-se frequentemente nas formações voluntárias de cidadãos. Estas, representam interesses, identidades e visões de futuro diferentes (quer sejam movimentos, sindicatos, partidos ou lobbies), todas legítimas, é certo, mas que se encontram quase sempre submetidas à lógica da luta pelo poder de Estado (ou procuram influir na sua actuação) e por isso se deixam cegar, a ponto de perderem totalmente a noção de bem-comum na sociedade de que fazem parte, seja ela de enraizamento local, nacional ou (hoje) mundial. Pior, claro, é quando no território de um Estado-nação as partes desavindas pegam em armas e instauram uma situação de guerra civil.
Laboriosamente, os estados ocidentais curaram desde há mais de um século de introduzir normas jurídicas regularizadoras dos conflitos guerreiros, para travar ou limitar o potencial de barbárie aí existente e tão conhecida no passado mais longínquo. Porém, parece ter acontecido que as partes beligerantes mais fracas se sentiram impelidas a ignorar as referidas regras, seja violando-as grosseiramente e ridicularizando o seu alcance, seja contornando-as por via da “guerra subversiva”, do “terrorismo” ou actualmente por meio da “ciber-guerra”. É certo que factores como a capacidade económica, os jogos diplomáticos ou as chantagens sobre populações civis sempre estiveram presentes nos conflitos entre poderes soberanos ou fácticos. Contudo, no último meio século foram raras as guerras “regulares” mas inúmeros os conflitos não-declarados, o que poderá dar alguma consistência a esta tese da contemporânea “desregulação da guerra” e da sua nova “mercenarização” e “barbarização”, coexistindo aliás (não por acaso) com o maior e mais completo dispositivo jurídico de protecção da vida humana que alguma vez existiu à face da Terra.     
Ao contrário da crença (ou da fé verdadeira), a hipocrisia comanda muitas vezes expressões verbais e comportamentos gestuais dos indivíduos apenas ditados pelo interesse, a pusilanimidade ou a cobardia. Acontecem também formas de oportunismo colectivo por vezes bem intrincadas com crenças ideológicas. Um exemplo, sem intuitos de melindre pessoal: ouvir o socialista dr. Jorge Coelho, em espaço de grande audiência televisiva e com aquela convicção que lhe é habitual, dizer que a única maneira de um país como Portugal se realizar, para corresponder aos anseios do seu povo, é (cito de memória) “lograr um crescimento económico significativo e de forma sustentada” será apenas um exercício de realismo? ou antes a proclamação de uma condenação sem remissão das doutrinas socialistas (que, se eu não ainda não “endoidei”, se construíram na crítica do regime económico do capitalismo)? ou ainda uma demonstração da hipocrisia a que me referia acima? 

A ciência e a reflexão filosófica resultaram essencialmente da inquietação e vontade de saber. O método científico moderno constituiu a base axiológica sobre a qual se desenvolveu, a um ritmo inusitado, todo o progresso técnico contemporâneo, a economia de mercado capitalista e, por último, o recente (há pouco mais de um século) desabrochamento das ciências humanas. Nessa plataforma epistemológica definitiva (até quando?), a possibilidade de repetição de prova empírica passou a desempenhar um papel crucial, substituível em certos casos por uma acumulação de dados captados na empiria que constituissem indícios convincentes de que uma nova “lei” (regularidade objectiva, não dependente das preferências do cientista) podia ser tomada como verdadeira, porém somente enquanto alguma nova formulação não viesse, pelos mesmos métodos, infirmar aquela verdade.
Este derivação serve-nos aqui apenas para colocar a disposição-de-espírito do cepticismo, não tanto como uma atitude filosófica – cujas origens radicam, como outras, nos Antigos Gregos –, mas antes como uma precaução metodológica acessória ao pensamento moderno que, em última análise, se fundará sobre os pressupostos epistemológicos da ciência que conhecemos e sobre as ilações que podemos eventualmente retirar de uma análise atenta do desenvolvimento técnico-científico-económico-cultural dos últimos dois ou três séculos. Mesmo homens de pensamento e acção como o conservador Churchill ou o anarquista Malatesta (da maturidade) deixaram-nos escritos avisando para a prudência a observar na gestão das resistências ou das mudanças sociais que só podem decorrer da presença nos seus espíritos de uma determinada componente de cepticismo, que diríamos ser de natureza epistemo-metodológica.
Esta, a origem e fundamentação da atitude céptica contemporânea. Mas ela sempre esteve impregnada em muitas circunstâncias da vida dos povos e das relações entre as pessoas, das suas próprias mundividências. Nem no primeiro caso temos de a reverenciar como algo de transcendente ou só ao alcance de uns poucos, nem no segundo se deve desvalorizar excessivamente essa sua difusão entre as largas massas de população. No Ocidente, a esmagadora influência das crenças religiosas cristãs (e judaicas, embora amarfanhadas por aquelas) começou a ser desafiada pelo pensamento iluminista e em seguida pelo desenvolvimento da ciência moderna. O cepticismo, em relação à existência de um Ser Supremo criador do universo e definidor das grandes linhas da sua existência, foi-se naturalmente instalando no espírito dos Homens com apoio nos progressos da ciência mas, sobretudo, devido às comodidades facilitadas pelo progresso técnico e a abundância de produtos a que as sociedades contemporâneas se foram cada vez mais acostumando. Para quem tem hábitos alimentares, a fome é geralmente insuportável e supri-la é a prioridade. Mas quem já está saciado arranja sempre outras formas de focalizar a sua capacidade de inteligência e acção, para o bem como para o mal, podendo então desafiar com mais à-vontade as verdades e as regras estabelecidas.
Mesmo nas regiões do mundo mais arcaicas, a racionalidade instrumental do capitalismo moderno, através da exploração do trabalho ou da apropriação das riquezas naturais ou produzidas, minou a estrutura de crenças religiosas ou animistas de muitos desses povos, ao mesmo tempo que a cultura ocidental percutia de modo mais ou menos frontal as formas mais chocantemente desiguais da sua organização social (submissão feminina, poder tribal, escravização, etc.). Deixou muitas vezes o deserto e o desamparo – e talvez as raízes de uma atitude céptica –, mas não se pode dizer que se tratou de uma mera operação de expropriação imperialista dos mais fracos: ao lado da vantagem económica, seguiu a missionação evangélica para “a salvação das almas”, que foi de par com a difusão iluminista de algum saber erudito, com a alfabetização e com a higienização dos corpos e dos espaços habitacionais. As ideias emancipalistas também brotaram deste back ground.                
O verdadeiro cepticismo não pode ser confundido com um cepticismo trapaceiro, maneira popular de referir a atitude tipológica do cinismo – não a defendida por certos filósofos Gregos amantes da virtude, mas antes a propugnada por analistas e teóricos do poder como foi o notável renascentista Maquiavel.

Tocamos aqui, ao de leve, a terceira posição que procuraríamos explorar, a da lucidez.
Não ser crente, mas ser capaz de compreender e interpretar as razões das crenças, pode ser um passo na direcção da lucidez. Controlar o cepticismo inerente ao espírito científico sem cair no cinismo ou na depressão psicológica ajudará decerto à aquisição de um estado de lucidez que só poderá enriquecer-se com quantos maiores contributos puderem ser apropriados no âmbito do conhecimento da história e nos domínios da cultura. Neste ponto, é também muito instrutiva a leitura de um sintético mas felicíssimo artigo de opinião da autoria do universitário João Paiva, enganadoramente intitulado “A apologia da ciência e a inutilidade das artes e das humanidades”, que foi ontem divulgado (Público, 1.Junho.2017).
Mas não se iluda o lúcido, nem aqueles que o queiram admirar ou imitar. A lucidez não traz felicidade e talvez aproxime do inferno. Sobretudo, para que possa com mais impacto transmitir-se a terceiros, faltam-lhe as armas decisivas da acção e da organização. E geralmente, como se diz em linguagem corrente, sobra-lhe o defeito de, porventura, “ter razão antes do tempo”.

JF / 2.Jun.2017

Sem comentários:

Enviar um comentário

Arquivo do blogue