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sexta-feira, 9 de junho de 2017

Actos de guerra, desespero, violência e “intoxicação” informativa

A cidade de Raqa, capital proclamada do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL ou ISIS), parece já estar a ser assediada por milicianos curdos apoiados (e orientados?) pelos Estados Unidos. O cerco de Mossul por forças do exército do Iraque e milícias xiitas iraquianas e curdas, com idêntico apoio aéreo de países ocidentais, vai prosseguindo, sem que se consiga socorrer eficazmente a população civil refém dos cruéis combatentes do Daesh nem, por outro lado, evitar pilhagens e vinganças sangrentas de xiitas sobre sunitas. E na zona ocidental da Síria o poder militar do presidente Assad, com os bombardeamentos aéreos dos seus aliados russos e a preciosa ajuda das milícias xiitas do Hezbolah, vai pouco a pouco reassumindo o controlo da maior parte do território e das principais vias de comunicação terrestres, isolando as bolsas do ISIL em Palmira e outros lugares, e as dos rebeldes anti-governamentais sírios em zonas cada vez mais restritas. Apenas na fronteira norte os Curdos em armas não foram ainda afrontados, mas estes são de vez em quando fustigados por retaliações e ataques das forças da Turquia (com o material NATO de que dispõem). É legítimo reconhecer ao povo curdo a ambição de vir a constituir uma entidade política nacional reconhecida pelos restantes estados, mas o recurso ao bombismo e à guerra de guerrilhas dos seus peshmergas, colocando-os na dependência de russos, americanos ou de quem lhes forneça armas, não augura nada de muito interessante quanto ao regime que conseguirão porventura instalar na região montanhosa que partilham com o Irão, o Iraque, a Turquia e a Síria. E talvez que a natureza das relações que consigam manter com a minoria religiosa Iazidi nos venha a indicar a futura tolerância do seu Estado, ou a sua ausência.      
Temos, pois, nestes vastos territórios maioritariamente desérticos, uma guerra convencional de baixa intensidade travada no terreno em torno de cidades (onde se apinham populações pobres), com base em assaltos de infantaria e veículos armados com castigos de artilharia, completados por bombardeamentos aéreos (e ocasionalmente navais de longa distância, sempre de potências estranhas) sobre nós de comunicações, depósitos, reservas e postos de comando dos insurgentes. Nestas condições, as discretas operações de infiltração de tropas especiais ocidentais e russas (ou autóctones, por estes treinadas) e a espionagem e contra-informação militar a partir de satélites e no ciber-espaço têm um papel muito importante, a que se liga a propaganda soltada para os mass media e “redes sociais”. Estes meios têm autonomia própria, que pode agir em sentidos diversos e opostos, mas não são imunes àquelas penetrações.
Manobras de guerra de maior intensidade militar mas de curta duração ocorreram na Ucrânia há três anos, após o episódio da Crimeia e com mal-disfarçado envolvimento da Rússia, seguindo-se uma rápida passagem para intermináveis e inconclusivas negociações diplomáticas, que não livraram Putin de medidas de retaliação ocidental gravosas para a sua economia e do isolamento de que ainda agora padece, que só tem vindo a ser rompido pela surpreendente estratégia do novo presidente Trump. 
Assistiu-se também há pouco, na retaguarda, a manobras diplomáticas da mais alta importância acerca das quais, nem nós nem a maioria dos comentadores foram capazes de captar todo o entendimento, naquilo que traziam escondido e no que foi revelado. Na viagem inaugural de Trump pelo mundo, focou-se sobretudo a venda de armamento à Arábia Saudita mas menos o seu discurso a uma alargada assembleia de chefes de estado do mundo árabe; e nas cimeiras da NATO e do G7 de Taormina, o quase completo desacordo com os outros ocidentais. Mas já se percebe agora que a operação de isolamento diplomático do Qatar que ocorreu dias depois foi uma decorrência directa de compromissos então tomados em Riad para cercar os bastiões xiitas na Síria, no Iémen e sobretudo na potência regional que é o Irão, ainda que sacrificando o Daesh e alguns dos seus apoiantes do Golfo Pérsico. Irá o conflito religioso entre sunitas e xiitas passar a uma nova fase protagonizada por um inédito realinhamento de estados na região, e a um outro nível de confronto bélico? Ou terá sido mais um ímpeto publicitário “à Trump” e no Golfo tudo voltará em breve ao que era antes, enquanto entidades públicas ou privadas sauditas continuam a financiar os sunitas armados do Levante ou a construção de mesquitas e a acção proselitista dos seus imãs na Europa?
Enquanto esperamos pela decantação desta complexa situação, as derrotas militares sofridas e a redução do espaço de manobra do Estado Islâmico no seu califado levantino determinaram já há algum tempo uma sua operação estratégica de retirada, para outros objectivos e outros meios de actuação. É de crer que a aventura do Estado Islâmico e a sua guerra impiedosa na Síria e no Iraque estejam terminadas em breve, embora seja provável que prossiga o conflito entre os curdos e o governo turco. As autoridades de Bagdad e Damasco (com ou sem a presença de Assad) estarão sempre enfraquecidas e deverão resignar-se a ver os curdos afirmarem-se mais autonomamente nas suas províncias setentrionais. E não é crível que a Rússia se empenhe em tal caso, uma vez que o seu grande objectivo nesse flanco é a saída para o Mediterrâneo e uma Turquia que não lhe levante obstáculos. Em qualquer caso, acabando a guerra aberta na Síria e no norte do Iraque, sobra para a União Europeia o problema das centenas de milhar de refugiados que aqui se acolheram, e persistirá o êxodo de africanos e asiáticos pela porta escancarada da Líbia e do Mediterrâneo cuja resposta militar ou de segurança será sempre de muito pequeno efeito sobre as causas do fenómeno.
Os dois instrumentos principais usados pelo ISIL na sua campanha guerreira – a crueldade sangrenta sobre quaisquer alvos humanos e a hábil adaptação e utilização da actual cultura informática global, sobretudo por via das “redes sociais” – mantêm-se nos atentados ultimamente praticados na Europa mas estes têm descido progressivamente de escala e grau de gravidade. Os atentados bombistas ou tomadas de reféns colectivos têm-se tornado mais raros – ao contrário do que continua a acontecer em África e sobretudo na Ásia – e as violências com intenção terrorista são hoje cometidas por “amadores” com instrumentos rudimentares: estamos a passar do uso de armas portáteis automáticas para as facas de cozinha. Isto, sem que o alarme público deixe de soar e que as pessoas se sintam menos ameaçadas, graças sobretudo ao efeito multiplicador dos mass media. O livre escrutínio dos acontecimentos por parte destes órgãos informativos é uma marca constitutiva da nossa cultural ocidental, visível sobretudo no papel dos comentaristas e no confronto de opiniões. Mas o apetite pelo “furo informativo” torna estes meios quase-aliados do terrorismo quando eles contribuem para instilar nas populações sentimentos de pânico e estes servem para virar os cidadãos de ascendência nacional contra as comunidades imigradas mais recentes, em especial as de religião islâmica. Esta é uma linha estratégica fundamental do terrorismo contemporâneo.     
Não somos capazes de escapar ao impacto mediático da actualidade. Quase ao mesmo tempo em que se celebrava um espectáculo desportivo de alto nível onde alguns europeus do sul davam cartas (com destaque para o “nosso” Cristiano Ronaldo), 80 mil jovens alemães tinham de ser evacuados de um local aberto de concerto rock por alarme de bomba, centenas de tiffosi ficavam feridos por pânico e atropelo em Turim quando assistiam à derrota da Juve em ecrãs gigantes e o mundo ficou toda a noite suspenso das imagens de mais um atentado praticado em Londres contra inocentes, com toda a marca de radicais islamitas.
O terrorismo – seja ele escrito com ou sem aspas – vem cada vez mais fazendo parte do nosso quotidiano, como os desastres de automóveis ou as incivilidades e violências urbanas. Provoca geralmente menos vítimas nos países do Ocidente do que no Médio Oriente graças aos nossos serviços de informação e de segurança, mas é muito mais amplificado do que esses devido aos aparelhos mediáticos, à sensibilidade das populações a qualquer morte (ou ofensa física, por hedonismo) e às prioridades de agenda dos actores políticos.
Há um século atrás, ainda havia quem conseguisse concretizar atentados mortíferos sobre chefes de Estado ou outros altos responsáveis políticos: em Portugal, por exemplo, assistimos ao regicídio de 1908, à morte do presidente Sidónio em 1918 e ao assassínio do primeiro-ministro Granjo em 1921. Isso hoje já não é possível. Os estadistas, governantes e outras altas patentes públicas – e as suas cimeiras ou encontros internacionais – estão permanentemente rodeados de uma fortíssima cintura de segurança, dobrada por uma outra cerca informativa gerada pelas televisões, rádios e imprensa escrita. Apenas as “redes sociais” escapam a tal controlo mas, em contrapartida, permitem e estimulam toda a sorte de insanidades e esvaziamento de frustrações, para além das manipulações, grosseiras ou sofisticadas, de que estamos a tomar agora mais consciência.
Os “mediadores de massas” – sejam eles chefes tribais, párocos de aldeia, caciques locais, jornais, discursos de caudilhos amplificados pela propaganda, mass media ou agora as novas tecnologias de informação – quase sempre colocam os indivíduos comuns numa tutela menorizada, como se não fossem capazes de pensar por si mesmos. Talvez as ciências sociais e humanas, ou mesmo as biológicas e médicas, confirmem isto mesmo, pelo menos em sociedades massificadas e onde a escolarização se limitou a adaptar os indivíduos para a vida e a economia modernas, enquanto consumidores. Porém, apesar disso, a difusão da ciência (e dos seus resultados com aplicações práticas), por um lado, e uma mais cuidada captação (do caos) da informação por parte dos públicos, por outro lado, tornarão talvez possível uma real emancipação dos indivídios face àqueles aparelhos de poder – que no fundo são, embora se apresentem hoje sob sofisticadas formas tecnológicas. É o que se nota já entre as camadas mais jovens muito qualificadas pela formação escolar.
Nesta perspectiva, os efeitos paralisantes das acções terroristas tenderão a desaparecer ou ser superados pelos comportamentos das pessoas normais, num ambiente social de razoável convivência inter-identitária (étnica, religiosa, cultural, partidária ou linguística, porque geralmente pensamos com a língua). Veja-se o exemplo da actual cidade de Lisboa: metrópole cosmopolita, multicultural e poliglota, onde se cruzam portugueses, europeus, africanos, asiáticos e norte ou latinoamericanos, sem problemas de maior, à parte o incómodo das suas bagagens de mão, o excesso de actividades comerciais pró-turista e o número de garrafas de cerveja vazias nas mesas das esplanadas, a discutível renovação habitacional dos centros históricos ou as deficiências infraestruturais dos nossos transportes públicos. O mesmo se diria do Porto, a “capital do norte”. Tudo isto é frágil e facilmente reversível, mas não deve ser negado antes que aconteça.
Guerra convencional de baixa intensidade é também a que se vive no Iémen, onde forças Houtis do norte, de tendência xiita, dominam boa parte do território mas são combatidas pelo governo sunita de Áden que beneficia do apoio, agora com reforço aéreo, de uma coligação internacional da mesma tendência religiosa liderada pela Arábia, com pequeno envolvimento dos americanos. A ver se, com o incentivo de Trump, este campo de batalhas não se transforma numa guerra mais permanente, intensa e definida, como aquela que teima em não acabar no Afeganistão entre os intratáveis taliban (sunitas radicais) e a instável aliança tribal que sustenta o governo de Cabul, a quem a NATO tem dado o principal músculo militar desde há década e meia, apesar disso insuficiente para vencer a guerra.  
Os casos de violência política no Paquistão, Indonésia e Filipinas, no arco islâmico do sul do continente asiático; e na Líbia, Mali, Nigéria, Sudão, Somália e outros territórios a sul do Sael, representam a mais bem tipificada actividade guerrilheira levada a cabo por grupos islâmicos radicais (Boko Haram, etc.) em conexão por vezes íntima com meros traficantes de pessoas e mercadorias com as quais realizam lucros pecuniários, sem porém hesitarem no recurso às armas, nas ameaças sobre reféns e outras formas de pressão violenta. Já mais para sul, na África central, os intermitentes conflitos que ali ocorrem derivam as mais das vezes de espoliações e vinganças por gente às ordens de ditadores estatais ou então de animosidades étnicas ou tribais, sob fundo de uma miséria e subdesenvolvimento de populações rurais ou amontoadas em gigantescas periferias suburbanas. 
Numa posição lateral em relação aos cenários de guerra e de terrorismo ou luta subversiva, a contestação juvenil e popular contra o governo da Venezuela evoca o que se passou há poucos anos com as “Primaveras árabes”: embora com os traços típicos das ditaduras sul-americanas (profundamente corruptas mas nem por isso menos sanguinárias, com “jagunços” e esquadrões-da-morte, chefes “de opereta”, etc.), o seu deslizamento para cenários mais graves não está afastado, até porque existe um antigo conflito fronteiriço com a Colômbia e os exércitos de guerrilheiros têm tradição na região. E, embora sem as características da violência estatal, a corrupção da classe política e os protestos da baixa classe média urbana colocam o Brasil na calha para evoluções pouco recomendáveis.   
Por último, falando sempre de ameaças violentas que impendem sobre as cabeças das pessoas, não podemos esquecer a situação no Extremo-Oriente criada em torno do regime político agressivo e anacrónico da Coreia do Norte. Decerto construída com “fugas” da China ou da União Soviética, a capacidade nuclear de Pyongyang já não pode ser ignorada, apesar dos efeitos de propaganda procurados. Os seus esforços parecem concentrar-se agora no veículo técnico capaz de levar a ameaça a terras mais distantes, do outro lado do oceano. Mas, desde já, são os vizinhos coreanos do sul e o Japão os mais directamente ameaçados, desempenhando a China o principal papel de contenção para dramáticas derrapagens na região. Se do lado dos dirigentes comunistas coreanos se conhecem os limites essenciais da sua irracionalidade, o mesmo não acontece agora com o líder eleito do gigante americano, que parece disposto a ensaiar lances de “cheque-ao-rei” face ao seu pequeno desafiador, sempre com a pesada China por perto. Trata-se de novos, inúteis e perigosos “jogos de guerra”.
Todas estas coisas mostram o contraste entre o progresso científico, técnico, económico e cultural que tínhamos alcançado neste início do século XXI e a persistência de formas de guerra e violência que oscilam entre o bárbaro e pós-moderno. Isto parece recomendar-nos uma próxima revisitação do que foi a Europa pré-moderna que nos antecedeu.

JF / 10.Jun.2017

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