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sexta-feira, 19 de maio de 2017

Acerca dos bancos

Falo do que não conheço. Por isso, não afirmo; pergunto (mesmo quando não grafo o ponto-de-interrogação).
Ao contrário do que muita gente pensava, os bancos não são um sítio onde “há dinheiro”, onde guardamos as nossas poupanças e às vezes pedimos emprestado. São, agora mais visivelmente, um “escritório contabilístico” onde existe alguma moeda em circulação mas, sobretudo, onde se escrituram os créditos dos depositantes (e de alguns “investidores”) de um lado, e os débitos concedidos em empréstimos, por outro – tudo na observância de determinadas normas prudenciais para salvaguardar riscos, com reservas monetárias ou outros “activos” suficientes, garantir solvências e prever falências não-catastróficas, mediante o cumprimento de certos rácios quantitativos, uns da iniciativa própria de cada instituição, outros forçados por acordos estabelecidos entre os bancos-centrais de vários estados, chamados “de Basileia” (sede do Banco de Compensações Internacionais e de um Comité de Supervisão). Houve um acordo “Basileia I”, assinado em 1988, que estabeleceu montantes mínimos de capital para cobrir os riscos do crédito concedido em empréstimos e em investimentos próprios; seguiu-se um “Basileia II”, em 2004, que aperfeiçoou os dispositivos anteriores e procurou estabelecer uma supervisão mais eficiente por parte das entidades reguladoras (fundamentalmente, os bancos-centrais); e, já por efeitos da crise financeira internacional de 2008, fixou-se dois anos mais tarde um “Basileia III”, que procurou precaver os funestos efeitos de uma “corrida aos bancos”, passando a exigir uma qualidade mais comprovada dos activos de cada instituição para se proteger contra tais riscos.
Além disto, o Banco Central Europeu, no quadro de um caminho para a chamada União Bancária (no âmbito da moeda comum Euro), estabeleceu a partir de 2012 vários instrumentos para prevenir os efeitos que uma “bancarrota” – mesmo singular, desde que se tratasse de uma instituição importante – teria sobre o conjunto do sistema financeiro e sobre as próprias finanças públicas dos estados (ou seja, os pagadores-de-impostos, que muitas vezes foram chamados a intervir, por alegadas razões sociais). Foram, principalmente: o Mecanismo Único de Supervisão (e devido a isso, por exemplo, a nomeação dos administradores da nossa Caixa Geral de Depósitos tem agora de ter o agrément europeu); o Mecanismo Único de Resolução (isto é, os procedimentos a cumprir em caso de falência); e o Sistema Único de Garantia de Depósitos. Este último estabeleceu um fundo financeiro (que está ainda em vias de capitalização) para socorrer os mais prejudicados em caso de falência bancária (os simples depositantes, até ao montante de 100 mil Euros por pessoa), fixando simultaneamente graus de responsabilização financeira diferenciados entre outras várias categorias de credores: simplificadando ao máximo, digamos que “perdem tudo” os accionistas da entidade falida e os detentores de “fundos de investimento” e de “obrigações subordinadas”; perdem parte dos dinheiros aplicados os simples detentores de obrigações (que emprestaram dinheiro ao banco a juro fixo); e perdem ainda os meros depositantes em tudo o que exceda os 100 mil garantidos (restando saber se o respectivo Fundo possuirá recursos para tal, e em que prazos).
É justa esta distribuição de “resultados negativos”? A mim, leigo na matéria e mero depositante de poupanças (porque nos “obrigam” a isso, pois até para receber salários e pensões temos de ter conta aberta no banco, não há hoje condições de segurança “debaixo do colchão” e só alguns poucos podem comprar obras-de-arte ou propriedades fundiárias), parece-me que sim – comparativamente às operações de “resgate” que muitas vezes o Estado faz, em que quem acaba por pagar são todos os contribuintes e, em geral, a população, sem distinção de ricos, remediados e pobres, sendo estes os que necessariamente mais sofrem.
Quando o Estado intervém para salvar algum banco no actual contexto económico (por “nacionalização temporária” ou de outra forma, com dinheiros ou activos públicos), afirmam geralmente ser por “razões sistémicas”, quer dizer: para evitar uma derrocada em cascata de todo o sistema financeiro. Eis uma justificação que só alguns poucos são capazes de entender antes do tempo em que chegam e ficam à vista de todos as consequências de tais decisões. Para o comum dos cidadãos, resta apenas a confiança nas afirmações dos responsáveis, ou a falta dela.
Por outro lado, como se viu com (parte d’) os “lesados do BES”, a iliteracia financeira da maior parte das pessoas que conseguem aforrar e as técnicas comerciais insidiosas usadas pelos empregados bancários (que também ganham comissões nisso) levam muitos incautos a subscrever títulos “de risco” pelo atractivo de uma melhor remuneração, julgando tratar-se de uma mera “aplicação” garantida e sentindo-se depois defraudados quando “rebenta o escândalo” e verificam que ali perderam o seu dinheiro.
Portanto, duas orientações deviam ser tomadas com urgência e rigor: travar (pelas inspecções e supervisões adequadas) aquelas práticas comerciais; e incluir nos programas de estudos básicos da população matérias esclarecedoras destes mecanismos da vida moderna.
Mas uma palavra deve ainda ser dita acerca das responsabilidades incorridas nestes casos de falência (além da investigação e castigo de eventuais delitos criminais). Julgamos necessário tornar muito mais rigoroso o apuramento de responsabilidades numa instituição que chega ao ponto de falência, no que respeita aos seus administradores e quadros superiores envolvidos em decisões que se verificaram ser gravosas para todos. Para uma “classe de decisores” que, nas últimas décadas, mais se tem locupletado com o rendimento produzido nas suas empresas, não é pedir demais.
Neste ponto é oportuno chamar a atenção para a limitada incidência que hoje tem a acusação por todos os males sociais que desde há século e meio as esquerdas socializantes (incluindo comunistas, sociais-democratas, esquerdistas, anarquistas e mesmo mais recentes movimentos católicos) atribuem à “classe proprietária” (ou burguesia), sobretudo quanto à deficiente distribuição da riqueza no nosso mundo moderno. Se é verdade que, citando casos concretos, uma distinta família de banqueiros (os Espírito Santo) foi capaz de quase arruinar as finanças do país, mais verdade é o facto de parvenus ascendidos-a-pulso como José Oliveira e Costa (Banco Português de Negócios) ou Tomás Correia (Montepio Geral) terem sido autores de gestões delituosas ou de greve risco com dinheiros que não eram seus, em instituições que não tinham herdado de família mas de que apenas eram mandatários de investidores ou do crédito de confiança que os depositantes lhes concediam. São este tipo de “trabalhadores que ascendem” (a gestores e funcionários de alto nível das grandes empresas e instituições públicas), que, como bem sabemos desde Galbraith, tomam actualmente decisões que vêm a afectar seriamente a vida da generalidade dos povos. Mas, por não terem nomes conhecidos, passam mais descercebidos do que os Rothschilds, os Rockefellers ou os Melos. Só quando, apanhados nas redes da comunicação social (e mais raramente da justiça), os seus arriscados negócios e complicadas manipulações (que a globalização financeira hoje permite e estimula) vêm a público é que damos conta da sua imagem, nos ecrãs de televisão ou nas “redes sociais”, com foros de escândalo.
Paralelamente àquela necessária responsabilização (gestionária, fiscal e criminal), deveria também ser incrementado o grau de profissionalização dos empregados bancários (também de seguradoras e outras entidades de intermediação financeira), que os torne aptos a poderem resistir a eventuais pressões ilícitas das suas chefias para determinadas práticas e operações menos legítimas para a confiança pública em geral, e para os clientes em particular.
Há dias, num artigo de opinião (Público, 15.Mai.2017), o economista Ribeiro Mendes, que já foi membro de governo socialista, reafirmava a sua fé nas «mutualidades, caixas económicas, cooperativas de crédito mútuo e outras entidades afins» mas não conseguia disfarçar a preocupação que o actual sistema financeiro constitui para a sobrevivência destas instituições da economia social. Estando certamente a pensar sobretudo no caso do Montepio Geral, não pôde dizer melhor do que recomendar «uma oferta solidária responsável mais atractiva» procurando explorar os «sectores da sociedade que os mercados mais tendem a excluir», perante a inevitável necessidade de «concentração» e «intensa capitalização».

Verdadeiramente, o fulcro do negócio bancário situa-se na fixação das taxas de juro. Certamente que, para o banco ser sustentável e produzir lucros para os seus accionistas, os juros dos depósitos têm de ser globalmente inferiores aos juros dos empréstimos consentidos. O que parece ser traduzido no aforismo que costuma afirmar que “os bancos ganham é nos empréstimos que concedem”. As taxas de juros são determinadas por vários factores: a concorrência inter-bancária é decerto um dos mais poderosos; mas também há a fixação das taxas de câmbio entre as várias moedas (derivadas de negócios internacionais e que podem constituir reservas bancárias), as inovações comerciais e técnicas (tele-bancos, ATM’s, comunicações bolsistas, etc.) que alteram as condições da actividade financeira e até certas normas ditadas pelos governos (vide a antiga fixação do “juro de lei” para prevenir a usura). Ao lado disto, há outras fontes de rendimento, já abusivas relativamente a alguma antiga ética bancária que ainda possa subsistir, como é o caso das “comissões”, que quase sempre excedem os custos do serviço que afirmam prestar (quando mesmo o justificam…). Mas, dadas as diferenças de escala, parecem ao mero espectador serem hoje duas, as principais fontes de rendimento onde as entidades bancárias procuram envolver-se e querem garantir para si: um volume tão grande quanto possível de depositantes-aforradores (a quem podem depois tentar vender novos “produtos bancários” sempre com roupagens apetecíveis); e enormes negócios de fundos financeiros e empresas gigantes multinacionais, quase sempre com participação de governos nacionais (seja como investidores, mutuários, accionistas, clientes, avalistas, etc.). Esta era, no fundo, a diferenciação que em tempos existia entre “bancos comerciais” e “banques d’affaires” mas que talvez já esteja obsoleta, tal a variedade e especialização financeira hoje existentes.
A actual experimentação da moeda virtual bitcoin, assente numa tecnologia de informação inovadora, a blockchain, ainda de uso muito restrito mas já praticada por algumas grandes empresas multinacionais, irá revolucionar (dentro de cinquenta anos, digamos) o sistema bancário mundial (de maneira paralela àquela com que a plataforma uber veio concorrenciar o tradicional negócio dos taxis)? Ou será mais uma porta escancarada para vigarice e a opacidade dos sistemas financeiros?  
E, para terminar, tocamos aqui o papel do Estado na economia mundial, mercantil e capitalista, que hoje conhecemos. Ao contrário do que poderia parecer neste sistema de quase-livre-troca à escala global, os governos (das nações e das principais cidades do planeta) não têm hoje menos importância no funcionamento das economias do que o tiveram nos tempos em que estavam na moda as “economias dirigidas”. Dependendo embora da força (ou da fraqueza) do seu desempenho económico (produção, consumo, comércio externo, endividamento, etc.), os estados ainda definem alguma coisa nas taxas de câmbio das suas moedas, controlam a emissão monetária (e, por essa via, um pouco a inflação), constituem um “centro de custos” muito significativo (que financiam com os impostos cobrados, além da “venda de títulos de dívida”) e tutelam de várias maneiras os respectivos bancos-centrais, além da sua capacidade soberana de “ditar leis”. É por isso que o Banco Central Europeu constitui uma anomalia (e talvez uma disfunção) na regulação económica do espaço europeu e da moeda Euro. Aquela instituição bancária emissora terá sido pensada para ser complementada por outros progressos no quadro da União Económica e Monetária, que não aconteceram e talvez já não possam ser concretizados, ficando a política monetária muito isolada e lidando com realidades político-económicas nacionais muito diferenciadas.
Se assim é, que pena só agora compreendermos isso! E onde estavam os filhos-dos-“pais-da-Europa” (incluindo o sr. Delors) que não nos alertaram para o problema? 
Mas, não podendo “rebobinar a fita”, há talvez que aproveitar o já existente, travar os nossos nacionalismos (mesmo os não-confessados) e procurar soluções que salvaguardem as liberdades e as autonomias fundamentais mas incrementem as melhores cooperações.


JF / 20.Mai.2017

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