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sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Estéticas vanguardistas

 Já sei que este escrito levantaria um coro de protestos se tivesse uma divulgação pública mais ampla. Mesmo assim aqui fica porque, embora não goste de meter a foice em seara alheia, suspeito representar também uma corrente de opinião que tem tanto direito de se exprimir como qualquer outra.

É conhecido que – tratando-se sempre de produtos originais – a criação artística, para além do talento e da excelência do trabalho do autor, pressupõe também a ultrapassagem, superando-as, dos limites anteriores das obras até então mais consideradas, em cada disciplina. Na literatura, como na música, no bailado, no teatro e nas artes plásticas tradicionais (incluindo, até certo ponto, a arquitectura), até ao início do século XX havia como que uma galeria de génios e obras geniais, onde ia sucessivamente aumentando o stock de tesouros da humanidade. Nessa altura, a irrupção da pintura não-figurativa e do cinema (“arte de síntese” da tecnologia industrial) veio perturbar esta noção simples, cumulativa.
Mas a “ruptura estética” – talvez o equivalente funcional da “ruptura epistemológica” no pensamento teórico – que foi introduzida pelo abstracionismo de cores e formas planas de Bracque, Picasso e companhia não foi senão o sinal anunciador de outras mudanças paradigmáticas que acabaram por pontuar todo o século, da música dodecafónica às performances e instalações, da escrita-não-pontuada às actuais “expressões pictóricas em ambiente digital”, body painting, etc. O leque dos criadores e a escala dos públicos de arte alargou-se consideravelmente, falando-se hoje correntemente em “indústrias culturais” e no fenómeno da democratização das práticas artísticas, onde se incluem as pinchagens da “arte urbana” e os contorcionismos ritmados do hip-hop. Porém (parece-me), com dois inconvenientes pesados: o da renúncia à superação da perfeição; e (contradição apenas aparente) o do auto-fechamento.
É verdade que os grandes artistas da cultura europeia clássica só puderam criar dentro dos cânones de gosto que agradavam às cortes que os sustentavam e não ofendiam a Igreja. Mas as suas obras de escultura, de desenho, música ou poesia podiam ser imediatamente apreendidas por públicos muito mais vastos, com um mínimo de sensibilidade e inteligência, mesmo sem a necessidade de uma educação estética. 
Será então que na pintura, na sinfonia, na ópera, no bailado ou, mais recentemente, no romance, por terem porventura encontrado patamares altíssimos de perfeição e virtuosismo, os criadores contemporâneos terão desistido de os superar no seu próprio terreno e passaram antes a procurar outros caminhos, sem dúvida de ruptura e exploração criativa, mas que desde logo os isolaram de públicos mais vastos e os fecharam nos labirintos (dizem que por vezes cruéis) dos críticos, dos “queridos artistas” concorrentes, dos curadores e gestores culturais, das fundações e ministérios, e de um restrito público educado para entender tais obras (ou apenas para dizer que as aprecia), mas que deixam inteiramente à margem as grandes massas populacionais, apesar de tudo muito mais apetrechadas culturalmente que há dois séculos atrás? E, no entanto, é destas massas populacionais – dos seus desencontros, anseios, perplexidades e alienações – que aqueles criadores pretendem geralmente falar (quando não se trata do seu próprio umbigo).
Dizem-me que é uma questão de tempo, que dentro de cinquenta anos Stockhausen será entoado no caminho para o liceu ou uma personagem de Saramago discutida no intervalo de um jogo de futebol. Este optimismo não me convence. Talvez mais cinicamente, admito antes que a explicação fundamental destas novas formas de arte se situe no âmbito da sua psicologia de criadores e nas condições sociais que estimulam a existência destas “vanguardas”.
É fácil perceber serem os artistas geralmente tributários de um ego que, no limite, se alimenta do sonho da glória e da imortalidade (ou às vezes acaba na auto-destruição). Superar Mozart ou os grandes românticos do século XIX não era fácil. Da literatura realista dessa mesma época – de Eça, por exemplo – se encarregou Pessoa em Portugal, ao desdobrar-se em vários e em contrários, ferindo de morte a técnica do romance sequencial. Mas quantos contemporâneos de Pessoa puderam apreciar e entender os seus textos, para além da Mensagem que o Estado Novo nos divulgava?
As guerras e revoluções mundiais do século XX trouxeram-nos um novo sentido do apocalipse, terreno e rasteiro, por vezes rondando a nossa porta. E talvez em função disso se configurou um certo sentido da responsabilidade social da arte e dos criadores, paralela à dos cientistas e dos “intelectuais” (categoria incerta onde se alinham filósofos, jornalistas e opinion makers de alguma notoriedade). Não terão aqui as influências do mundo político transformador (comunistas, nacionalistas emancipadores, etc.) transitado para a esfera dos criadores culturais, fazendo-os acreditar num seu papel de vanguarda colectiva das grandes mutações culturais, tentando envolver o povo nesses processos? Sendo que, uma vez perdida a guerra ideológica, se mantém como atitude individual mas se retrai agora para os meandros da subjectividade do artista, no (inverso) papel social da “arte pela arte” ou da exploração das profundezas do ser?
JF / 30.Nov.2012

3 comentários:

  1. Meu Caro João Freire,
    Só te falta designares claramente os autores da "arte degenerada" que devem ser condenados por poluírem a alta ideia de arte, perdão, Arte que as elites tradicionais têm o direito, e o dever, de defenderem contra as novas tendências... :)
    Um abraço
    JRdS

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  2. Inclino-me a pensar, com Bourdieu ("A Institucionalização da Anomia") que a ruptura com a "escola da cópia" é anterior a Bracque e Picasso. Quanto ao resto, há uma dimensão que me parece crucial: a arte é hoje uma mercadoria e é esse o único valor da maior parte do lixo a que, nas artes plásticas, chamamos 'arte'... A crítica não se deve ficar, portanto, por um debate em torno da dupla articulação (Lévi-Strauss) e do 'sentido' da dita 'arte' mas, antes, pela crítica da mercadoria, do trabalho e do valor.
    Abraço

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  3. 1. "a arte é hoje uma mercadoria": mas o nascimento da "Arte" não foi desde o início a encomenda, e portanto a venda dos objectos "artísticos" aos mecenas e outros ?
    2: "dupla articulação (Lévi-Strauss)" não vejo o que vem fazer a dupla coisa. Nem é uma questão linguística, nem do L.-S....
    3. Crítica do trabalho: sim, se entende do"Trabalho", instituição; não, se entende o "trabalho" como actividade criadora.
    3. Crítica do valor: sim, claro. E para a Arte, da sedimentação dos diferentes valores sobrepostos: valor de uso (pelo utilizador), valor simbólico (capacidade para dar a ver coisas ou relações que estão encobertas no ordinário, valor de estatuto social, valor de troca.
    Mas o "lixo" não é uma parte (aliás impossível de separar com rigor) do resultado da procura experimental, que às vezes resulta e outras não?
    Liberdade de experimentar para os artistas! Absoluta!
    Um abraço
    JRdS

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