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sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Alguns números sobre economia: não muitos, para não assustar

Depois de algumas evasões no libérrimo espaço do imaginário, favorecidas pelos vapores estivais, caímos noutra realidade: a dos números brutos, inevitáveis para continuar a falar da sociedade contemporânea, sobretudo no dia em que os nossos representantes parlamentares vão começar a discutir o orçamento do estado português para 2017.
Escrevemos há tempos acerca de uma economia citar sem números, para que o cidadão comum pudesse perceber melhor a evolução da sociedade em que está integrado, sob este ponto de vista tão estruturante. Agora, tentamos fornecer alguns dados que nos transmitam “ordens de grandeza” de variáveis económicas decisivas para a nossa vida colectiva e de que nem sempre temos uma noção, sequer aproximada. Fazemos este exercício sempre em termos de evolução histórica e de comparação internacional. (As fontes utilizadas foram sobretudo: César das Neves; Lains & Silva; World Bank; OIT; OCDE, Eurostat; Banco de Portugal; INE; Pordata: Observatório das Desigualdades; Wikipédia.) Naturalmente, os números aqui avançados são grosseiros e arredondados mas poderão ser verificados (e porventura rectificados) por economistas. Mas não são eles os destinatários do presente post. A pertinência destes dados em termos de análise económica é que será talvez nula, visto terem sido coligidos por um simples cidadão que de economia pouco mais conhece do que aquilo que vai saindo nos jornais.
Comecemos então por alguns dados demográficos das populações, que constituem sempre os consumidores, destinatários finais do ciclo produtivo da economia. A população portuguesa ronda agora os 10 milhões de pessoas, um número equiparável à Hungria, à Grécia, à Áustria, à Suécia, à Bélgica, à Suíça ou à República Checa, mas bem abaixo dos grandes países da Europa, que são a Alemanha (80 milhões), a França, o Reino Unido e a Itália (na casa dos 60 milhões), ou mesmo a Espanha (46) e a Polónia (38). Mas há países pequenos, como a Dinamarca ou a Noruega (com cerca de 5 milhões cada) bem mais desenvolvidos e ricos do que nós (e até mesmo a Irlanda, no mesmo patamar dimensional). No total, os 28 países da União Europeia perfazem um pouco mais de 500 milhões de habitantes-consumidores, acima dos 321 milhões dos Estados Unidos e dos 144 da Rússia mas bem longe da China e da Índia, cada qual com mais de 1.300 milhões. Outras potências demográficas assinaláveis são a Indonésia (257), a Nigéria (182) ou o Japão (126). Comparados com estes, Angola (com 25 milhões) ou mesmo a África do Sul (55) parecem países menores mas, no seu contexto regional, a Turquia (75), o Irão (79) e o Egipto (91) fazem figura de grandes potências. No total, a população mundial ascende a mais de 7 mil milhões de almas. Mas a sua muito desigual distribuição por países, cada qual administrado por um governo (mais ou menos correspondente a uma sua escolha colectiva), coloca problemas de gestão delicados para se atingirem melhores níveis de bem-estar, com mais rápido crescimento das regiões atrasadas e sem prejudicar ainda mais os equilíbrios ambientais, já tão afectados pela indústria, a mecanização do transporte, a vida urbana e a exploração dos recursos naturais quase sem regras ou limites. A potência da população (volume e dinamismo) é, pois, um dado de primeira grandeza para a análise económica, embora nem sempre seja vista enquanto tal. A “bomba demográfica” é também um capital, uma variável quase incontrolável, um dado geoestratégico e uma arma política.  
Em Portugal (metropolitano), éramos 6 milhões em 1911 e menos de 9 milhões em 1960, quando já estávamos com um crescimento demográfico “moderno” (i.e., escasso) mas entretanto a esperança de vida aumentou muito significativamente, passando de 67 anos em 1970 para 80 anos em 2014, devido às melhorias observadas na higiene, saúde, trabalho e ao aumento do rendimento económico nas famílias.
Como em todos os países mais desenvolvidos, a “terciarização” da economia e do emprego deu-se também em Portugal. As pessoas activas das profissões industriais aumentaram até aos anos 80, em termos absolutos e relativos, mas a partir daí a “desindustrialização” começou a actuar, passando aquelas de 41% do total em 1981 para 35% em 2011. No mesmo lapso de tempo, os vários profissionais do comércio e serviços (incluindo os funcionários públicos) passaram de 40 para 63% e os agricultores e pescadores de 19 para apenas 2% do total (eles, que representavam 44% da mão-de-obra em 1960!). A integração europeia (apesar dos dez anos de prazo de transição), a concorrência dos produtos industriais fabricados no Oriente e o desenvolvimento do comércio mundial (também nas prestações de serviços além-fronteiras e no turismo) bateram o toque-de-finados de uma indústria pouco qualificada como era a nossa. O “mundo operário” (e os seus imaginários, que seduziram várias gerações) pertence agora ao passado. Em contrapartida, as mulheres estão hoje inteiramente integradas no mercado de trabalho (embora pior do que “eles”): em cada 100 trabalhadores (H+M), 52 são mulheres (ou seja: em paridade com a fracção que representam na população total). E a escolarização progrediu acentuadamente, permitindo alguma mobilidade social ascendente (quantas vezes ilusória): a percentagem da população com formação superior subiu de 7 para 17% entre 2001 e 2014 – o que tende a aproximar Portugal dos seus vizinhos, com a consequência inevitável de um apelo aos “terceiro-mundistas” para que venham progressivamente substituir os portugueses de origem nos trabalhos mais duros e mal pagos, numa iníqua “divisão étnica do trabalho” que, no entanto, pode ir compensando a quebra demográfica dos nacionais. Mas os pensionistas portugueses representam hoje 41% da população, quando eram apenas 25% em 1981.
Quanto à riqueza socialmente produzida pelo sistema económico vigente – agora unificado em todo o planeta –, ela cresceu exponencialmente nas últimas décadas mercê dos avanços da ciência e das técnicas, do aproveitamento de novas formas de energia, do desenvolvimento empresarial, do crescimento dos mercados, mas também provavelmente devido a um acréscimo financeiro algo aventureirista, sector em que se deixaram de observar regras prudenciais que os negócios bancários anteriormente cumpriam. Sem preconcebermos os efeitos destes mecanismos, registemos contudo que as diferenças de rendimento entre grupos sociais no interior dos países e entre países e regiões do planeta se mantêm extremamente acentuadas – e ressentidas como injustas, sobretudo numa época em que a informação e o conhecimento se tornaram muito mais acessíveis a largas camadas populacionais.
Sabendo embora que mais correcto seria medir estas comparações internacionais em “paridades de poder de compra”, é mesmo assim elucidativo conhecer que, sendo o PIB per capita mundial de quase 10 mil dólares US (para o ano de 2015), ele atinge na União Europeia um valor superior a 31 mil, na América do Norte 54 mil, na América Latina e Caraíbas 8 mil, no Médio Oriente e Norte de África 4 mil (excluindo os países ricos da região) e na África sub-saariana somente 1.500 dólares. Referindo agora alguns países isoladamente: Estados Unidos, mais de 55 mil; Suécia, 50 mil; Alemanha, 41 mil; Portugal, 19 mil; na Rússia (e Turquia) registam-se 9 mil; e em Moçambique apenas 525 dólares por habitante. E note-se ainda que, no caso português, esta medida do produto resultante do desempenho do sistema económico terá aproximadamente duplicado o seu valor desde 1990 até agora, apesar da recessão e da fraca retoma dos últimos anos.    
A questão das desigualdades sociais é muito controversa e atravessada por insondáveis preconceitos ideológicos. Em todo o caso, subsistindo no mundo e em Portugal bolsas de pobreza profunda e dado que a riqueza social continua a aumentar, é provável que a distância entre os mais pobres e os mais ricos se acentue, a despeito da atenuação que as “políticas sociais” possam conseguir. Segundo um estudo de Carlos Farinha Rodrigues com base em dados do Eurostat, Portugal seria o segundo país com maior grau de desigualdade económica da Europa; acima do valor médio deste conjunto de países situam-se também nações como o Reino Unido ou a Itália, mas abaixo desse mesmo patamar (isto é, menos inigualitárias) estão a Alemanha, a Dinamarca, a Suécia e várias outras. A Suécia é frequentemente referida como “case study” de sucesso: escolarização avançada (e precoce, desde 1840); eficácia de um Estado democrático forte, com integração do movimento operário; neutralidade externa (mas armada); abertura nas trocas económicas internacionais; e, talvez sobretudo, a capacidade de ter criado e sustentado uma indústria forte e autónoma (na mecânica, electricidade, etc.), que foi capaz de suportar a forte concorrência alemã – sendo sobre tais bases que está sendo capaz de conservar a sua invejável riqueza: tudo, uma história bem diversa da portuguesa.
É muitas vezes referida a baixa produtividade da nossa economia (produtividade do trabalho, horária, per capita, eficiência do capital investido, etc.). Este problema é sempre evidenciado pelos números das trocas externas. Em décadas passadas, o crónico défice da balança comercial era compensado pelas remessas dos emigrantes (do Brasil no século XIX). Nos últimos anos, a evolução dos saldos da balança externa de bens e serviços mostra valores sempre negativos: entre 1995 e 2011 este défice oscilou entre 5 e 17 mil milhões de Euros; e apenas no contexto austeritário de 2013-2015 se verificou um anémico surplus das nossas exportações sobre aquilo que adquirimos ao estrangeiro. 
Tentemos referir agora a dinâmica do crescimento económico e não tanto os dados da sua estrutura. Um aumento da riqueza produzida pela economia contemporânea de 3 a 4% ao ano proporciona geralmente uma pequena melhoria do nível de vida da população, uma criação de novos empregos que supera aqueles que desaparecem (por força da modernização tecnológica, alguma recessão sectorial, etc.) e uma disposição optimista que estimula o investimento produtivo. É desta ordem de grandeza a previsão do FMI do crescimento da economia mundial para o ano de 2017. Taxas de crescimento do produto de 10% ao ano – que permitiriam duplicar a riqueza social numa década –, como há pouco tempo se verificavam em Angola, no Brasil ou na China (ou na URSS em certas épocas, mesmo descontando a manipulação das contas, habituais nesses regimes), são situações extraordinárias, só possíveis em especiais circunstâncias e que em geral trazem consigo outros fenómenos gravosos, que só mais tarde se tornam perceptíveis (êxodos populacionais, urbanizações apressadas, agressões ao meio ambiente, etc.). Mas subidas anuais do PIB de 1 ou 2%, como se tem vindo a registar em Portugal no século actual, correspondem a uma quase estagnação que pode ter efeitos diferenciados em função de outras variáveis.
Por exemplo, a desvalorização do poder aquisitivo da moeda vai erodindo (ou, às vezes, laminando brutalmente) os rendimentos nominais auferidos, sobretudo os mais fixos, como as pensões ou as rendas. A “espiral de preços e salários” foi uma das suas manifestações mais conhecidas no último meio-século. Por exemplo, as intervenções do FMI em Portugal depois da revolução de 74-75 incidiram principalmente sobre a “desvalorização interna” (com taxas de inflação da ordem dos 20% que “comeram” os aumentos salariais que haviam sido concedidos), combinada com a “desvalorização externa” do Escudo para favorecer um pouco as exportações para o estrangeiro, expediente que aliás se manteve ainda nos primeiros anos da nossa adesão à CEE com a chamada “desvalorização deslizante”. Mas o bloqueio férreo de preços e salários, à maneira do dr. Salazar, também tem custos tremendos no longo prazo, pelo fechamento e isolamento do exterior a que condena as sociedades. Diga-se, num parêntesis, que os regimes socialistas estatais só puderam subsistir durante várias décadas numa autarcia deste tipo devido à grande escala de uma URSS ou de uma China e ao enorme atraso que registavam em relação aos países industrializados do seu tempo. (E recorde-se o caso de Cuba ou da Coreia do Norte, sem dimensão interna para seguirem o mesmo modelo.) Também parece que um excesso de circulação monetária anuncia a inflação a prazo relativamente breve. Mas dizem os entendidos que uma pequena dose de inflação monetária (da ordem dos 1 a 2% ao ano) é finalmente mais funcional ao crescimento económico do que seria uma inflação nula, com riscos de entrada no fenómeno inverso e ainda mais nefasto da deflação.
A fixação da paridade cambial das várias moedas entre si tem sido até agora uma prerrogativa dos governos nacionais embora, naturalmente, ela esteja em última análise dependente da força ou da fraqueza das economias nacionais e das reservas monetárias existentes. Esta é uma variável que permite alguma margem de manobra para a pilotagem das economias a este nível mas a sua utilização também se presta a manobras especulativas, tão ou mais acentuadas do que o “jogo bolsista” ou nos mercados de matérias-primas. Uma das dificuldades estruturais da actual “zona Euro” é haver um banco central (o BCE) que conduz a política monetária – taxa de juro de referência, taxa de câmbio, regulação do crédito bancário e massa monetária em circulação (ou seja, a impressão de “papel”) – mas não tem os instrumentos de política económica habituais de um governo: controlo das despesas públicas, do défice orçamental e da dívida, ou capacidade para lançar novos impostos. Pelo seu grau de integração interna, a economia da UE é “uma unidade” face às outras potências mundiais; mas não funciona internamente como elas, outrossim como um conglomerado de interesses diversos e frequentemente opostos entre si. Costuma dizer-se nestes casos: um gigante económico, mas um anão político.
E quanto a ganhos ou lucros? As margens de benefício dos agentes económicos variam bastante consoante o sector de actividade mas não são ilimitadas. Vejamos alguns exemplos: no sector do livro, era habitual o autor ficar com 10% do valor final das vendas, o distribuidor com 20%, o livreiro com 30% e o editor com 40% – sendo este último verdadeiramente o empresário de tal negócio, já que era ele que custeava a edição e pagava todos os encargos de tipografia, etc. Se a obra era um flop, ninguém ganhava, mas era ele quem perdia o investimento e ficava com o stock de “monos”!
Em outros ramos do comércio de retalho era frequente os clientes pedirem “um descontozinho”, ficando na expectativa de uns 5 ou 10% “para amigo” (o que hoje tomou a forma de “promoções”, “saldos” e outros “preços de oportunidade”). Tendo em conta as despesas fixas (de instalações, de pessoal, encargos financeiros, etc.) e o valor da mercadoria recebida (sob vários regimes de responsabilidade ou titularidade), pode pensar-se que um plano de negócios nesta área seria sustentável com margens de lucro realistas da ordem dos 30% do total da facturação prevista ou registada.
Na indústria, com a exigência de vultosos investimentos iniciais na maquinaria, é possível que um retorno anual de 20% do valor investido (recuperando a “mise” em um quinquénio) fosse já convidativo – isto, desde que houvesse boas expectativas de venda do produto final. E na exploração agrícola ou no negócio imobiliário talvez o rendimento anual possa ser ainda menor. Não é com 10% das disponibilidades próprias (o “dízimo”) que certas seitas religiosas prometem aos fiéis o ganho da vida eterna?  
Mas a partir de que nível lucrativo se poderá considerar especulativa a aquisição monetária obtida numa só operação? O cristianismo condenou o “preço do dinheiro” –  o juro – como pecado de agiotagem, condenando pela mesma ocasião os judeus que o praticavam. E o Islão seguia o mesmo preceito até há poucas décadas, antes das suas elites financeiras terem descoberto as delícias dos petro-dólares.
Os negócios de compra-e-venda (de propriedades, empresas, obras raras, invenções, direitos, etc.) são os que geralmente proporcionam alguns “lucros fabulosos” com percentagens de ganho sobre o valor investido de várias dezenas de pontos percentuais. Mas quando se entra na casa das centenas, é já de desconfiar que se trate de “negócios-da-China”. Esta expressão popular continha tanto de alusão aos mercadores europeus (portugueses, antes de outros) que exploraram esse comércio marítimo de longa distância – mais económico do que o das rotas das caravanas e sem o risco dos salteadores árabes ou afegãos – como à piratagem que então pululava por aqueles mares. Em qualquer dos casos, o saque era acto corrente; como provavelmente hoje acontece à volta dos “off shores” e nas diversas modalidades de “branqueamento” ou “lavagem” de dinheiros arrebanhados de forma ilegal que, segundo alguns, atingirá a astronómica cifra de vários triliões de dólares. E num mundo financeiramente globalizado é por vezes muito ténue a diferença entre concorrência fiscal (procurando atrair investimentos externos para o seu país ou cidade) e “paraísos fiscais” (onde não se pergunta de onde vem o dinheiro e quem são os verdadeiros mandantes).
Tocamos aqui a questão dos impostos cobrados pela máquina do Estado para financiar as suas actividade e o sustento dos seus funcionários, gestores e governantes. Há dois anos, Adriano Moreira produziu uma declaração com ondas de choque afirmando que o país se encontrava sob “fadiga fiscal”. De facto, a carga fiscal em Portugal corresponde hoje a qualquer coisa como 25% do PIB, quando era de 22% em 2010. Isto apesar das receitas do Estado estarem sempre aquém das suas despesas.
O imposto sobre o trabalho foi uma novidade trazida pela nossa Modernidade. Uma das razões que logo indispôs o movimento operário contra os novos líderes da República foi, além de uma liberal lei da-greve-e-do-lock out e da fuzilaria de Setúbal, a tentativa de criar uma contribuição industrial que também incidia sobre os salários dos trabalhadores. Até então, o grosso das receitas do Estado provinha da taxação da propriedade, do consumo e das alfândegas. Agora, segundo números da OCDE, Portugal tributaria o trabalho (rendimentos dos trabalhadores e encargos dos empregadores) a um nível de 42% do PIB, mesmo assim abaixo dos 49% da Alemanha e dos 55% da Bélgica mas muito longe dos 17% da Nova Zelândia e dos 7% do Chile. Com tais diferenciais de custos, adivinha-se como isso poderá afectar as decisões de investimento em empresas de mão-de-obra intensiva no mundo globalizado em que vivemos.
Mas falemos então das nossas contas públicas, recuando no tempo para termos uma perspectiva histórica do fenómeno. Entre 1851 e 1910 o valor da dívida pública anual em percentagem do PIB oscilou entre 37% e um máximo de 89% (no ano de 1893, na sequência de grave crise), com um valor médio de 67%. Durante o período da República parlamentar, o valor médio fixou-se em 73% do PIB com um mínimo de 59% em 1920 e um máximo de 87% três anos depois. Sob a Ditadura Militar e o Estado Novo e com o pulso-de-ferro de Salazar o valor médio para esse quase meio-século foi apenas de 32%, tendo começado com 74% em 1927 e encerrando com 18% em 1974, apesar da guerra colonial. Com a Democracia, os valores voltaram a subir: média anual de 42% até à entrada da CEE; em 2001 atingiu os 111% e agora anda perto dos 130%. Como se vê, o endividamento público é uma constante portuguesa desde a transição para a Modernidade, embora muito mais acentuada nas décadas mais recentes depois de ter estado fortemente atenuada sob a ditadura. Mas, nesses tempos, sempre ouvi os desafectos ao salazarismo afirmarem que não era crime ter dívidas; crime, era não ter condições para as pagar, o que parece ser agora o caso, tal o volume adquirido pelo fenómeno. Por alguma razão a União Europeia estabeleceu o tecto de 60% do PIB, e grave é Portugal estar agora em mais do dobro desse valor, embora alguns críticos (os de sempre?) afirmem que a culpa foi dos credores.
É claro que a dívida pública é o resultado dos défices anuais acumulados, com os governantes a recorrerem aos empréstimos por não lhes chegarem os quantitativos cobrados em impostos e outras receitas. Só para citar números recentes, diga-se que entre 2000 e 2003 e em 2006-2008 o excesso das despesas do Estado sobre as suas receitas oscilaram sempre entre os 2 e os 4% do PIB; mas em 2004-2005 saltaram para os 6% e em 2009-2010 para os 8% – com alternância de governos de esquerda e de direita. E sob a “receita da troika”, o défice público foi caindo mas, como se sabe, ainda não abaixo dos 3%. 
O procedimento de recorrer à emissão de dívida para custear estes insuficientes desempenhos do Estado será racional quando se trate de verbas para investimento e bens públicos com efeitos duradouros sobre a qualidade de vida das populações (infraestruturas, saúde, educação, socorro social). Mas se, para além dos custos de soberania (justiça, diplomacia, defesa e segurança, funcionamento dos órgãos nacionais), reiteradamente, for sobretudo para alimentar a burocracia do Estado e as corporações que medram à sua sombra ou, ainda pior, para pagar os favores com que a “classe no poder” assegura a sua manutenção, então já podemos considerar desnecessário, nefasto e vicioso o processo de endividamento público. A dimensão do fenómeno crescerá, os seus efeitos perversos acentuam-se e sobrecarregam-se injustamente os vindouros ou, como agora se diz, “empurra-se o problema com a barriga” (antes era: “quem vier depois, que se amanhe”). Não sendo especialistas, não sabemos dizer qual o nível de endividamento público aceitável (para não lhe chamar “virtuoso”). Mas podemos apostar que não deverá ser muito além do tal referencial de 60% do PIB que nos exige a UE.
A doença do excesso de endividamento atinge também as famílias, as empresas e os bancos. As primeiras têm vindo a pagar as suas consequências com a perda de rendimentos resultante do abrandamento do crescimento económico, a entrega das residências que haviam adquirido a crédito e a quebra de confiança no país, reagindo com a saída para o estrangeiro dos que podem fazê-lo, a reclamação de socorros ao “Estado social” ou entregando-se ao desespero. As empresas comuns desinvestem (salvo quando conseguem algum subsídio público), comprimem gastos com o pessoal ou fecham as suas portas, apenas subsistindo e prosperando aquelas aptas e capazes de inserção na “nova economia”, que são poucas e, sobretudo, criam pouco emprego (com a excepção do turismo). Mas é particularmente pelas actividades em que a escala empresarial – de produção e distribuição – é determinante (além da tecnologia e inovação) que Portugal apresenta o maior défice de desenvolvimento económico. E os bancos mostram agora – da Itália a Portugal, do Barclays ao Deutsche Bank, do BES à “Caixa” – a nossa ilusão sobre a firmeza das bases em que tem assentado a sua suposta riqueza. Mas até quando poderá o Banco Central Europeu (que financia os bancos nacionais) continuar a sustentar dívidas externas como a nossa? O turismo tem vindo a dar uma ajuda aos portugueses, mas todos sabemos das suas fragilidades intrínsecas, sobretudo na actualidade.
Perante tudo isto, apetece voltar aos clássicos: «Neither a borrower nor a lender be. For loan oft loses both itself and friend. And borrowing dulls the edge of husbandry». Ou seja: “Não peças emprestado, nem emprestes. Emprestar, é muitas vezes perder o dinheiro e o amigo. Pedir emprestado, enfraquece o espírito de poupança.” (Shakspeare, Hamlet, Acto I, Cena III)


JF / 15.Out. 2016

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

Secretário-geral da ONU

Hoje, 5 de Outubro, soube-se que António Guterres será o próximo secretário-geral da ONU. É uma rara distinção, que o próprio fez por merecer e que gratifica também o nosso país, no seu conjunto. Neste caso – tal como em 1999 por causa da independência de Timor-Leste, quando o mesmo Guterres era primeiro-ministro de Portugal e teve nesse processo uma intervenção decisiva –, o país soube unir-se, superando as suas divisões internas: então, com assinalável participação popular e o envolvimento da Igreja Católica; agora, com uma boa conjugação de esforços de todos os agentes políticos (e certamente com uma acção preponderante de Belém).
Como político do PS, o engº António Guterres foi um parlamentar aguerrido que alguns acusaram de “tirar o tapete” ao seu líder Jorge Sampaio. Era visto como “apaixonado pela educação” e sempre “aberto ao diálogo”, mostrando como governante (sem maioria na Assembleia) alguma dificuldade em tomar decisões difíceis. Por exemplo, deixou progredir o “facilitismo” na educação, entregou o processo de adesão ao Euro a Sousa Franco e das obras públicas a João Cravinho, limitando-se a “cumprir calendário” no êxito mitigado que foi a “Expo-98”. Nessa época, foi vencido duas vezes pela matreirice política de Rebelo de Sousa, líder do PSD, ao perder os referendos que aceitou (sobre a regionalização e o aborto). E deixou o país estupefacto e incrédulo quando abandonou o governo em 2002 após derrota em autárquicas “porque não queria deixar o país num pântano”, ninguém percebendo completamente o alcance desta tirada.
Depois, afastou-se realmente da cena política portuguesa. Católico praticante, Guterres mostrou grande emprenho e sensibilidade aos problemas humanitários enquanto alto-comissário da ONU para os refugiados, apesar dos escassos meios de que dispôs. Mas não terá conseguido corrigir as recorrentes acusações de mau desempenho de algumas ONG e de outros intermediários no encaminhamento de socorros aos verdadeiramente necessitados. E foi incapaz de começar a reverter a situação de alguns campos de refugiados instalados há várias décadas, com o sustento e sob a protecção das Nações Unidas, mas onde se diz que agentes políticos radicais actuam à vontade na catequização dessas populações fragilizadas e recrutam combatentes para as suas organizações. Mas esses eram desígnios que certamente estariam para além de onde a sua actuação poderia alcançar.
Agora, o lugar de secretário-geral da ONU é ainda mais espinhoso e de maior responsabilidade. Há, desde logo, os teatros de guerra, com êxodo de populações, que seria mister travar. Há a reforma do Conselho de Segurança, eternamente adiada. E há o funcionalismo da organização, sobre o qual existem queixas de ineficiência e despesismo. Veremos o que o novo rosto da ONU será capaz de fazer. Boa sorte!
E viva a República!

JF / 5.Out.2016    

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Assim vamos andando

Mais um Verão e novo assédio de fogos florestais, depois de um início de época que parecia mais contida do que habitualmente. Mas Agosto desatou-se em fogo incontrolável em várias partes do território português, com menos desastres pessoais de outros anos mas com as mesmas angústias e os prejuízos de sempre. Se a actividade de atear fogos ou de os apagar contasse para o PIB, ainda haveria quem se alegrasse mas, assim, estamos todos sempre a ficar um pouco pior que dantes.
Os comentários, propostas e soluções vêm habitualmente a posteriori e nunca impedem a catástrofe seguinte, seja a dos incêndios florestais, industriais ou urbanos, seja a dos tornados, tempestades ou inundações (já para não evocar o pesadelo dos sismos). De todas estas tragédias que caem como trovões na vida das pessoas que os sofrem (como, de resto, os acidentes rodoviários), as mais previsíveis e evitáveis são os incêndios. Para isso existem regras de prudência e segurança (nas edificações e nos modos de florestação), penalizações criminais para a sua provocação intencional e dispositivos organizacionais com tradição (caso dos corpos de bombeiros voluntários) que actualmente dispõem de importantes meios financiados pelo Estado através da Autoridade Nacional de Protecção Civil, inserta no Ministério da Administração Interna desde 2006. De certa maneira, este sistema público é hoje visto como tão ou mais importante do que a defesa nacional, de cujas instituições copia uma parte das suas práticas e imaginários: “soldados da paz”; “combate” (aos incêndios); “frentes” (de fogo); “comando”; “planos de operações”, etc. Fala-se muito da prevenção, por vezes da reestruturação fundiária (por nós próprios aqui aventada há seis anos atrás), de meios mais eficientes, de agravamento de penas, etc. Mas nada disto obsta a reedição destes tristes espectáculos.
É verdade que algumas destas ocorrências têm causas naturais que não podem ser previstas em antecipação aos factos nem totalmente evitadas: as alterações climáticas (sejam elas originadas ou não pelos processos de industrialização, urbanização e motorização da vida moderna) e os abalos geológicos contam-se entre as mais importantes. Porém, duas questões fundamentais parecem dever ser afrontadas sem tibieza no caso dos incêndios florestais:
1ª – O direito de propriedade destes solos deve ceder a prioridade à segurança contra o fogo, seja em termos do regime de florestação (espécies arbóreas, extensão, localização, eventual necessidade de deflorestação de certas áreas, etc.), seja em termos de limpeza e manutenção das parcelas nas condições mais adequadas para prevenir a irrupção de incêndios e facilitar o seu combate (corredores de isolamento, postos de vigilância, etc.). Todos os terrenos abandonados devem reverter sem demora para o património público e aos proprietários dos não-cuidados (por prazo de cada temporada) deveria ser automaticamente retirada a sua gestão, nos termos seguintes.
2ª – Se o dispositivo de vigilância e ataque aos fogos deve indubitavelmente ser nacional (e da responsabilidade governamental, tal como o cadastro fundiário), já a gestão económica da floresta deveria ser deixada a empresas privadas de dimensão adequada especializadas nesta actividade, em regime de concessão que respeitasse o direito dos proprietários a receber a sua quota-parte do resultado financeiro daquela exploração e as melhores regras de segurança anti-fogos e de preservação ambiental. A escala e relevância do problema já não se compadecem com velho direito do camponês de dispor da sua parcela de terra como bem lhe apetece (ou é capaz). Condicionada por aquelas regras técnicas, a “empresarialização” será hoje, provavelmente, a melhor forma de aproveitamento das riquezas da floresta para um país como o nosso.
Agora, no auge de nova comoção estival, voltou a falar-se destas questões fundamentais e em envolver mais os municípios na sua resolução. Certamente que o poder local terá um papel sempre muito importante, porque é nas suas áreas de jurisdição que ocorre cada um destes sinistros – da mesma forma sendo de encarar a acção das beneméritas associações locais de bombeiros voluntários. Mas terão de existir legislação e orientações nacionais que permitam uma gestão global e integrada das florestas num quadro de ordenamento racional do território participado por diversos actores e entidades (interesses económicos, protecção civil, investigação científica, preservação ambiental, população residente, etc.) mas concretizadas e decididas em última instância por algum órgão, alguém identificado a que possam ser exigidas responsabilidades. Os direitos de propriedade individual são actualmente aceites por todos (mesmo pelas escolas de pensamento socialistas que inicialmente contra eles se fundaram) mas, assim como no século XIX se lhes amputou o direito de escravidão e servidão de pessoas, também é hoje imperativo retirar-lhes o “absolutismo” de que gozam em certos domínios, um dos quais é este de manter terras abandonadas ou não-ordenadas sem justificação plausível.    

Ao lado destas efervescências episódicas da actualidade informativa-partidária, a vida económica do país tem vindo a manter em lume brando as polémicas sobre o (in)sucesso das políticas governativas. O primeiro-ministro António Costa multiplica-se em declarações óbvias e de circunstância, sem qualquer profundidade ou relevância, salvo a de manter a base inter-partidária em que assenta o seu governo e de parecer ir cumprindo os compromissos a que se obrigou. Quem lhe faz a oposição mais coriácea parecem ser a instituições europeias, por um lado, e os indicadores económicos que desmentem as apostas de crescimento em que se baseou o seu programa eleitoral, por outro.
Mas o problema que, arrastadamente, se mostra mais preocupante nem é agora o da nossa baixa produtividade, da falta de investimento ou o agravamento da balança comercial externa, mas sim o sector bancário que pode romper-se de um momento para o outro. É certo que o mesmo tipo de receio existe para vários outros países vizinhos bem mais decisivos do que o nosso e para a Europa no seu conjunto. Pode ser que estejamos numa espécie de corrida para ver quem foge a rebentar primeiro. Mas aqui a escala impõe-se, de maneira brutal: a Europa financeira (ou os bancos alemães, ou a própria finança italiana) não pode rebentar – pura e simplesmente. Americanos, chineses e outros não o permitiriam, pois todos veriam a sua sobrevivência posta em causa. Quanto aos portugueses – como o caso grego bem o demonstrou –, se não cumprem a regras da UE, que se danem! O país bem-pensante ficou chocado com a justificação do sr. Juncker para a ultrapassagem do limite do défice gaulês “porque é a França”. Há, de facto, a indelicadeza da frase. Mas só um “espírito liliputiano” se pode sentir ofendido com esta realista apreciação: de facto, sem a França não há Europa, sem que tal seja desprimoroso para alguém, e não evita todas as críticas que aquele país possa merecer.
É por tudo isto que se torna deprimente assistir à forma patética como o governo tem lidado com a situação da Caixa Geral de Depósitos (empréstimos ruinosos, resultados negativos, recapitalização, designação e remuneração de novos responsáveis), como lidou com o Banco Internacional do Funchal, e como se arrasta ainda o caso do Novo Banco/GES ou mesmo o já quase esquecido Banco Português de Negócios – isto, para não referir as complicadas e suspeitas relações financeiras com instituições angolanas e brasileiras, os dois “países parceiros” de choix dos nossos governantes nas últimas décadas (com PS, PSD e CDS bem juntinhos em tais oportunidades). Perante a gravidade deste quadro, a “novela” das sanções e dos incumprimentos do défice público são meros peanuts para entreter os nossos telejornais. Como o são as intervenções “apaziguadoras” e “encorajadoras” do PR ou as dissonantes tomadas de posição de Cavaco Silva (esse pequeno-Salazar-das-finanças em versão democrático-populista) no último Conselho de Estado.
O desemprego estrutural, a emigração, a escassez de investimento, os desequilíbrios da segurança social e as indeterminações acerca da ADSE vão permanecendo sem vislumbre de uma credível resolução a prazo. Com a finança e a economia periclitantes, e uma (já habitual) re-governamentalização sistemática dos dirigentes da administração pública, a aprovação do orçamento para 2017 e os indicadores das contas públicas deste ano que se vão conhecendo a pouco e pouco deverão ditar a continuidade, ou não, desta experiência de governação-de-esquerda, num macro-contexto que não permite grandes alternativas mas nem por isso inibe ásperas disputas internas pelo poder de Estado. Por alguma razão se diz agora, por aqui e por acolá, que a social-democracia terá esgotado o cumprimento da sua missão histórica.

O tempo de Verão (ou “silly season”) é aproveitado por muito gente da classe média para conversas desprendidas, para se envolver nalgum romance clássico/contemporâneo ou para leituras ocasionais, como mais uma vez aconteceu connosco. Instalei-me assim na leitura de um Hamlet traduzido num excelente francês clássico e segui cuidadosamente as páginas da delicada e erudita obra que é Fim de Império, de António (Bracinha) Vieira, também autor de um inquietante Ensaio sobre o Termo da História. E mais convicto fiquei de que, quando publicamos sobre qualquer assunto, mais nos revelamos de nós próprios.
O gestor (de quê? de empresas?) Pedro Jordão, que agora escreve com mais frequência no jornal Público, revela geralmente o sentido prático e o bom senso de quem está longe da política e enfrenta directamente problemas de economia e de sociedade a que é necessário dar resposta, por vezes com urgência. Mas tem o sentido das heranças históricas de que somos os receptáculos e da globalidade e interdependência do mundo actual. É com reflexões deste tipo, parece-me, que os governantes, altos funcionários, actores políticos e outros responsáveis institucionais deviam confrontar-se e procurar o sentido das acções que desenvolvem no dia-a-dia, e não nos “sistemas fechados” em que sempre se movem: conselheiros; adversários partidários; comunicação social; membros de outras elites sociais; e talvez raramente a voz da sua própria consciência ou de algum amigo lúcido e desinteressado.   
Entre os raros ensaios de boa qualidade lidos na imprensa, demos pela crítica de um livro reunindo textos de Almeida Santos, por Diogo Ramada Curto, intitulado “Testemunhos ou equívocos da memória colonial” (Público, suplemento Ipsilon de 22.Jul.2016), pelo texto de António Valdemar “Os quatro avisos de D. Pedro: seiscentos anos de actualidade” (Público, 22.Ago.2016) e sobretudo por “Le Corbusier e a direita radical e revolucionária”, de António Sérgio Rosa de Carvalho (no mesmo jornal, datado de 15.Ago.2016), que terá surpreendido alguns menos informados sobre esta matéria.
Também devemos registar a qualidade informativa do muito que o Novo Jornal de Angola (semanal, on line, onde se percebe “a mão” do jornalista português João Garcia) vem publicando sobre este país, desde notícias sobre economia, sociedade, política, vida cultural, etc. Na realidade, esta é hoje uma nação pujante, muito distante do que foi a antiga colónia portuguesa, com as feridas e os problemas este século, mas garantindo ainda a sua matriz cultural africana, com os arcaísmos e as belezas inerentes.
E em espaço de entretenimento, assinale-se a série televisiva francesa Ainsi-soit-ils que o 2º canal da RTP lançou para o ar aos domingos à noite neste tempo de Verão, tratando em modo ficcional (e provavelmente algo exagerado) dos meandros, hesitações e conflitos que assolam actualmente a Igreja Católica. Enquanto na rádio a nossa Antena 1 continua a proporcionar-nos os excelentes programas de David Ferreira sobre música, textos e os seus contextos.

Mas a actualidade (que a cadeia televisiva EuroNews destila a cada meia-hora) não pára de nos interpelar, seja com o revelador “No Comment” (explicitamente: no statement, no argument, no judgement), seja com as notícias do mundo que, muitas vezes, nos deixam perplexos ou angustiados. A guerra na Síria e norte do Iraque prossegue sem fim à vista, apesar do envolvimento militar limitado dos Estados Unidos e outros aliados, e sobretudo da Rússia a sustentar o governo de Assad, com vários contendores em conflitos cruzados uns com os outros: todos contra o ISIS; sunitas contra xiitas; curdos contra todos (contando por agora com algum apoio americano); e poucos locais ao lado das forças do governo de Damasco. Note-se que Israel, a Jordânia e o Egipto têm conseguido manter-se à margem e parece milagre como a fogueira destruidora ainda não se ateou no Líbano. Mas a Rússia está ensaiando grandes manobras de aproximação e influência sobre toda a região do Médio-Oriente, pela diplomacia, as pressões políticas e pontualmente o uso da força militar. Falta-lhe a presença local dos partidos-irmãos de outros tempos e receia a contaminação do extremismo islâmico dentro das suas repúblicas e vizinhos do flanco sul (e decerto não voltará a mandar soldados para o Afeganistão) mas a política de Putin é a de nada ceder e manter a “chama russófila” onde tem populações, a ocidente; e de ganhar projecção extra-fronteiras em todo aquele vasto espaço em convulsão onde se concentram petro-dólares, reservas energéticas mundiais e povos mobilizáveis para causas anti-ocidentais. Além do seu porto de mar na Síria, o governo de Moscovo parece apostar em criar alinhamentos (se não mesmo, alianças) com as três principais potências regionais – Egipto, Irão e Turquia – limitando pelo mesmo gesto a influência americana, ou deixando-a restrita ao reino Saudita (até que este caia, sendo talvez o Iémen o “balão de ensaio” desta estratégia). Mas a Turquia será o objectivo mais imediato e apetecível, sem grandes cedências suas. Ressentido como está com a UE e a NATO, com um processo de purga interna só comparável com os tempos estalinianos, maoistas ou “kampucheanos” (segundo a Amnistia Internacional, foram soltos 38 mil presos comuns para permitir enjaular os supostos conspiradores de Julho último), o governo de Ankara joga agora a fundo todas as cartadas políticas ao seu alcance para consolidar um regime ainda mais forte e personalizado na figura de Erdogan, uma “democracia islâmica” com ar moderno que satisfaça as massas e compense a travagem da economia; agora, parece ter-se decidido a dar prioridade militar ao combate no terreno contra o “Estado Islâmico” vizinho e, simultaneamente, com o argumento do combate ao terrorismo, tentará esmagar o mais possível as veleidades independentistas dos curdos, mas arriscando-se cada vez mais a ver as suas cidades sacudidas por atentados mortíferos, que os do PKK também não são “crianças de coro”.
Com uma Turquia em turbulência, é toda a insolúvel (a curto prazo) questão dos refugiados e migrantes que cai de novo sobre os países da Europa, no não-esperado contexto aberto pelo “Brexit”. É péssimo sinal que a UE só consiga algum mínimo entendimento em política externa (e segurança e defesa) funcionando “em directório”. Mas, apesar dos seus tão criticáveis desempenhos governativos, é preferível que os senhores Hollande e Renzi se juntem a Merkel para relembrar o projecto europeu (como fizeram simbolicamente a bordo do Garibaldi na ilha de Ventotene) do que deixar Berlim isolada a comandar a economia e as finanças de todo o continente sob os ácidos apupos dos diversos impotentes esquerdismos, com os nacionalismos extremistas a medrarem e o isolacionismo americano a aprofundar-se.
Goste-se ou não, é quase certo que Hilary Clinton seja a próxima presidente dos EUA e que do milionário Trump só restem recordações de boçalidade, ignorância e estupidez. Mas o próprio facto da sua candidatura (com os apoios que suscitou) é já sintoma da má evolução da sociedade norte-americana, como também o são os afloramentos de atitudes racistas e integristas de largos sectores da sua população. Assim, com toda a sua experiência das relações internacionais e o legado “pro-social” de Obama nos problemas domésticos, é provável que a primeira mulher “dona” da Casa Branca utilize a força da sua superioridade militar e tecnológica para negociar status quo razoáveis com os seus grandes competidores do futuro (como a China, a Índia, a Indonésia, o Brasil, o Japão ou a África do Sul) enquanto tentará gerir “com pinças” as ameaças do terrorismo, do fundamentalismo islâmico e os desafios “a prazo” das alterações climáticas. Neste quadro, a Europa será apenas um parceiro secundário, bom para tentar pôr de pé o contestado tratado comercial TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) mas só verdadeiramente aliado se deste lado do Atlântico as coisas começarem a correr mesmo mal.
Uma palavra ainda sobre a lamentável crise brasileira (vide as contrastantes análises saídas na mesma edição do jornal Público de 2.Set.2016: “A queda final”, de Carlos Blanco de Morais, e “Anatomia do golpe” de Joana Mortágua). Triste, porque a situação económica é má e está de novo a lançar milhões de pessoas para difíceis situações de sobrevivência (como já acontece na Venezuela). Pode ser conspiração das forças políticas de direita mas esta esquerda politiqueira e estatista – militarizada como a de Chávez e Maduro, ou civil e operária como o PT de Lula e Dilma – tem mostrado no exercício da governação como pode ser tão vil e corrupta como os seus adversários na luta pelo poder.

JF / 10.Set.2016

domingo, 21 de agosto de 2016

Anéis olímpicos

O saudoso professor de educação física Mário Moniz Pereira acompanhou todos os Jogos Olímpicos desde 1948 até aos que antecederam a edição do Rio de Janeiro. É boa parte da história deste encontro quadrienal dos melhores desportistas mundiais que ele conheceu e dominava como poucos.
Embora já em muitos aspectos bem afastados dos seus intuitos originais, os Jogos mantêm a auréola de ser a mais importante competição desportiva do planeta, numa época em que o desporto ocupa um lugar importante na vida social. (Não é verdade que muitos se vestem no dia-a-dia como se fossem praticar actividades físicas?) As cinco argolas entrelaçadas de diferentes cores sobre fundo branco da sua bandeira representam os povos dos cinco continentes na sua mais alta aspiração de paz. O seu fundador, o francês barão Pierre de Coubertin, teve a inspiração de, num mundo de acesa concorrência económica e ásperas rivalidades políticas internacionais, encontrar um pretexto para periodicamente reunir jovens desportistas do mundo inteiro competindo lealmente entre si, segundo as regras ditadas pelas federações desportivas das diversas modalidades, tendo por objectivo apenas a conquista do aplauso público pelo feito atlético alcançado. Como era lógico, os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna realizaram-se em Atenas, em 1896, que para tal reconstruiu o estádio Panatenaico, e logo aí com o simbolismo de ter sido um estoico grego, de seu nome Spiridon Louis, a conquistar o título de vencedor da corrida da maratona, a longa distância um pouco superior a 42 quilómetros que liga o local da batalha histórica àquela cidade. E a mesma prova registou em breve outros dramas e polémicas: em 1908 em Londres, o italiano Dorando Petri chegou esgotado ao estádio e foi amparado pelos juízes que acabou por cortar a meta, não escapando à desclassificação mas acolhendo a simpatia afectiva de todo o público pelo seu esforço; e em 1912 em Estocolmo foi o português Francisco Lázaro que ali morreu, vítima de insolação, respiração cutânea bloqueada e ignorância. Polémica foi também a posterior retirada das medalhas então conquistadas pelo polivalente atleta americano Jim Thorpe (índio Sioux) por ter recebido algum dinheiro como jogador de basebol, infringindo a regra de amadorismo então observada nos Jogos, mas provavelmente com alguma dose de preconceito étnico à mistura.
Como é compreensível, boa parte dos desportos olímpicos provinha de ocupações de recreio das classes altas das sociedades ocidentais, algumas mesmo com conotações aristocráticas ou militares: hipismo, esgrima, tiro, vela, remo, ginástica, ténis e outros. Mas desde as primeiras edições competiram também atletas pertencentes às classes populares em provas individuais mais elementares de força, velocidade, destreza e resistência como são o atletismo, a luta, o boxe (que também era praticado na Grécia antiga), os halteres, o jogo da corda ou mesmo a natação e o ciclismo. Embora as competições individuais fossem as mais emblemáticas (e continuaram sempre a sê-lo), também existiram desde logo algumas provas disputadas por equipas nacionais: o futebol foi uma das primeiras, seguido do hóquei em campo, pólo aquático, etc. – erodindo assim a intenção inicial de combater as tendências para acirrar o confronto entre nações.
Em contrário da tradição grega antiga, as modernas guerras do século XX levaram à suspensão dos Jogos previstos para 1916, 1940 e 1944, festejando o encerramento de cada olimpíada (período de quatro anos), como era norma na Antiguidade.      
Os Jogos de Paris de 1900 foram incluídos nas grandes celebrações da Exposição Universal de entrada no novo século, com inauguração do comboio subterrâneo (vulgo, “métro”), do Grand e do Petit Palais para exposições de arte, etc. Os de 1904, em St. Louis, realizaram-se igualmente no âmbito de uma Feira do mesmo género, com algumas “americanadas” típicas e uns humilhantes “dias antropológicos” onde se exibiram “raças inferiores”; em contrapartida, atletas negros (americanos) pela primeira vez aí competiram e ganharam medalhas. Mas as mulheres já haviam sido admitidas a participar nos Jogos parisienses de 1900: a França era então um farol da modernização do mundo.
No período de entre-as-duas-guerras, os norte-americanos foram afirmando crescente supremacia no atletismo mas o finlandês Paavo Nurmi forjou lenda nas provas de fundo ou longa distância. E Hitler, que organizou impecavelmente os Jogos de 1936 em Berlim com intuitos de propaganda política, viu-se obrigado a engolir as quatro medalhas de ouro e o epíteto do “homem mais rápido do mundo” de um negrinho americano chamado Jesse Owens. Portugal prosseguiu sempre a sua presença olímpica iniciada em Estocolmo, com uma primeira medalha em hipismo (obstáculos, por equipas, com Luis Mouzinho de Albuquerque, Borges de Almeida e Helder Martins) em 1924 em Paris, na esgrima (em espada, também por equipas, com Jorge Paiva, Frederico Paredes, Rui Mayer, Mário de Noronha, João Sasseti, Eça Leal e Henrique da Silveira) em 1928 nos Jogos de Amesterdão, e ainda pela equipa hípica de obstáculos em Berlim (com José Beltrão, Mena e Silva e o Marquês do Funchal), com o destaque desta ser então a última prova dos Jogos, no estádio olímpico, antecedendo a cerimónia de encerramento. Entretanto, desde 1926 que se realizam uns Jogos Olímpicos de Inverno, com diversas modalidades de esqui e gelo. (Muito mais tarde apareceram uns paralelos Paralimpics, para pessoas com deficiência. E existem umas “olimpíadas da Matemática”, do Xadrês, etc.)
No segundo pós-guerra, Londres acolheu os Jogos de 1948, donde velejadores portugueses (os irmãos Bello) trouxeram uma primeira medalha de prata e os cavaleiros a de bronze na modalidade de ensino (ganha “na secretaria” após a desclassificação dos suecos). Mas no atletismo destacaram-se o declatlonista americano Bob Mathias, vencedor com apenas 17 anos de idade, e a já “mamã” holandesa Fanny Blankers-Koen, com 3 medalhas de ouro nas provas de velocidade. Em Helsínquia (1952), distinguiu-se de longe o checo Emil Zatopek, que já havia sido medalhado nos Jogos anteriores, ao ganhar todas as corridas de fundo (5 e 10 quilómetros na pista e maratona na estrada); e os portugueses obtiveram mais um “bronze” na vela (classe stars, com Joaquim Fiúza ao leme). Mas os desportistas da União Soviética, que participaram pela primeira vez nos Jogos Olímpicos, começaram a fazer-se notar pelas seus resultados, embora se discutisse à boca pequena o seu falso amadorismo, tratando-se de facto de “atletas do Estado”, preparados especialmente para exibir as qualidades vitoriosas do seu sistema social na cena internacional. Por exemplo, logo em Melbourne em 1956 o russo Vladimir Kutz ganhou as provas dos 5 e 10 quilómetros sem competidor à sua altura. Mas outro feito atlético surpreendente foi o início da série vitoriosa do discóbolo americano Al Oerter (“branco” e portador de uma deficiência física) que triunfou quatro vezes consecutivas entre 1956 e 1968. Feito semelhante foi alcançado pelo velejador dinamarquês Paul Elvstrom, que triunfou no barco individual finn consecutivamente entre 1948 e 1960. Em todo o caso, se nas disciplinas mais técnicas os competidores das potências ocidentais “davam cartas”, nas provas reveladoras de qualidades atléticas puras (como nas corridas de velocidade) eram os negros que geralmente dominavam, fossem americanos ou de outras nacionalidades. Também o Brasil, com negros, brancos e mestiços, mostraram por vezes grandes talentos e aptidões (Ademar Ferreira da Silva duplo campeão no triplo salto, o nadador Manuel dos Santos, o equitador Nelson Pessoa, os basquetebolistas Amaury, Rosa Branca, etc.).
Por esta época, os portugueses só em 1960 (Roma) voltaram a obter uma medalha de prata, ainda na vela (stars, com os irmãos Quina). Mas a esgrima mostrava a persistência dos seus grandes campeões, como o francês d’Oriola, o italiano Mangiarotti, o polaco Pawlovski ou os húngaros Gerevich e Karpati, que coleccionaram sucessivas medalhas entre 1948 e 1968. E nos Jogos da Cidade do México (1968), além dos espectaculares resultados de Bob Beamon no salto em comprimento (com um recorde “estratosférico”) ou do estilo de Fosbury na altura, assistiu-se a nova penetração da política no palco olímpico, com a matança de estudantes contestatários na Praça das Três Culturas nas vésperas da cerimónia de abertura e com a saudação do “Black Power” feita no pódio por dois dos medalhados americanos. Mas as questões políticas continuaram a perturbar estas festividades do desporto mundial. Entre 1964 e 1988, a África do Sul não pôde participar nelas, devido ao seu regime de apartheid rácico. E os Jogos de 1980 em Moscovo foram muito afectados pelo boicote de vários países ocidentais (incluindo os EUA) por causa da invasão militar soviética ao Afeganistão (que retaliaram, não comparecendo ao encontro seguinte, em Los Angeles). Mas o acto mais violador do espírito do olimpismo foi provavelmente o atentado cometido por guerrilheiros nacionalistas palestinianos sobre atletas israelitas nos Jogos de Munique em 1972, que acabou num banho-de-sangue.
A partir de 1976, já em regime democrático e com algum fomento do desporto-de-massas, o atletismo português – sobretudo impulsionado pelo já referido técnico Moniz Pereira (com quem tive ainda a feliz oportunidade de jogar voleibol, em encontros de treino) – começou a obter lugares premiados neste género de competições mundiais. Carlos Lopes tirou a “prata” nos 10 quilómetros de Montreal, naquele ano, enquanto o atirador “a chumbo” Armando Marques trouxe também idêntica medalha. Mas foi em Los Angeles (1984) que o mesmo corredor de fundo (já com 38 anos de idade) obteve a primeira medalha de ouro de um português, numa sensacional maratona (com medalhas também obtidas no atletismo por António Leitão e Rosa Mota), seguido em 1988 em Seoul por igual feito de Rosa Mota na mesma distância, entre as mulheres. Portugal alçou-se nessa época como uma das principais potências mundiais nesta especialidade atlética, sendo porém em breve substituído por gente nascida e vivida em altitude – em especial quenianos e etíopes – que, desde então, dominam em absoluto as provas de longa distância. Nestes Jogos de Seoul o sprinter negro canadiano Ben Johnson venceu os 100 metros com novo recorde mundial mas, descoberto o uso de doping, a medalha de ouro acabou por ir para o americano Carl Lewis (igualmente negro), que reincidiria várias vezes nessa posição. Também a alemã-de-Leste Kristin Otto realizou o feito inédito de ganhar seis medalhas de ouro na natação, mas ficou sempre a pairar a dúvida dos resultados alcançados pelas mulheres deste país, useiro e vezeiro neste género de práticas, tal como agora também se fará na Rússia, “apanhada” por métodos de controlo mais rigorosos. Porém, sem qualquer sombra de dúvidas quanto aos métodos de treino empregados, realce-se a importância e persistência das escolas de natação japonesa e australiana, por estas épocas.
Depois de nova “passagem em branco” nos Jogos de Barcelona (1992), onde os espanhóis brilharam em muitas modalidades (mas “aldrabaram” no caso do archeiro que devia acender a chama olímpica), a fundista Fernanda Ribeiro voltou a dar grande alegria aos portugueses ao sagrar-se campeã em Atlanta (1996) na prova dos 10 quilómetros, com os jovens velejadores da classe 470 a lograrem também uma medalha de bronze. Em Sydney, a abrir o milénio, a novidade portuguesa veio do judo, com o “bronze” de Nuno Delgado, e lugares de pódio de Fernanda Ribeiro e do velocista negro naturalizado Obikwelu, num evento em que o britânico Jonathan Edwards coroou a sua carreira com o “ouro” que lhe faltava, ele que conseguira um espantoso recorde mundial de mais de 18 metros no triplo-salto que ainda hoje se mantém. Medalhas secundárias também obtiveram em Atenas (2004) o atleta de meio-fundo Rui Silva e o ciclista Sérgio Paulinho. Finalmente, Nélson Évora sagrou-se campeão olímpico do triplo-salto em Pequim (2008), oportunidade em que a “prata” no triatlo feminino foi para a jovem Vanessa Fernandes, muito infeliz na sua trajectória posterior. E também se iniciou o reinado de um novo sprinter negro, o teatral jamaicano Usain Bolt, actual recordista mundial e campeão em três sucessivas Olimpíadas. Em Londres (2012), só os canoístas lusos Emanuel Silva e Fernando Pimenta puderam subir ao pódio dos agraciados, tal como a judoca Telma Monteiro nos recém-realizados Jogos do Rio de Janeiro. Aqui, o velejador João Rodrigues cumpriu a sua sexta participação olímpica, sempre na prancha à vela, o que é caso único em Portugal (superando as anteriores cinco presenças do também velejador Duarte Bello e do cavaleiro Henrique Calado).
Certos competidores marcaram decisivamente algumas edições dos Jogos. Por exemplo, o nadador norte-americano Mark Spitz conquistou 7 medalhas de ouro em Munique, feito inigualado até então e só superado pelo também yankee Michael Phelps com 8 em 2008 (com um total de 23 “ouros” arrecadados em quatro edições, um máximo absoluto em todas as modalidades e que superou o da ginasta russa Larissa Latynina). Estes “papa-medalhas” têm beneficiado, porém, da multiplicação de provas com que algumas disciplinas se têm brindado. Enquanto, por exemplo, o atletismo mantém desde há muito o seu programa quase inalterado, desportos como a natação ou a ginástica têm aumentado muito os seus. Perante mais este factor de crescimento quantitativo e a pressão para a admissão de novas modalidades, os organizadores obrigam agora certas federações com menos impacto mediático a seleccionarem apenas os melhores dos rankings e a reduzirem o seu leque de provas, ainda que estabilizadas há muito tempo (como é o caso da esgrima, do ténis ou do hipismo). Já existem há várias décadas Jogos pluri-desportos de âmbito geográfico mais restrito (pan-americanos, asiáticos, mediterrânicos, africanos e agora até europeus), bem como alguns com outro tipo de discriminante (os Jogos da Commonwealth ou uns efémeros e algo pífios Luso-Brasileiros). Pena que não se tenha estudado ainda a hipótese de “partir” o gigantismo dos Jogos distribuindo-os por grupos de modalidades afins, disputadas no mesmo ano mas em lugares e momentos diferentes: por exemplo, além dos desportos de Inverno, os desportos atléticos e outros individuais; os desportos de água; e os desportos de bola, por equipas. Talvez se reduzissem alguns dos inconvenientes actuais.
Além dos campeões, recordistas e medalhados, deixemos contudo que uma referência seja feita a alguns daqueles que, no seu máximo esforço, ficaram para sempre à beira da glória sem lhes provarem o sabor. Os franceses experimentaram frequentemente a situação (vide Michel Jazy em Tóquio), dizia-se que por causa do “trac”. Entre os muitos 4º classificados que experimentaram essa decepção, citem-se os portugueses: os esgrimistas da equipa de espada nos Jogos de 1920 (Antuérpia) e de 1924 (Paris); os velejadores Duarte Bello e Bustorff Silva nos stars em Melbourne, 1956; o corredor Manuel de Oliveira nos 3.000 metros obstáculos em Tóquio (1964); o team de hóquei em patins em Barcelona (onde existiu esta modalidade, em que os portugueses sempre haviam brilhado, como demonstração); as equipas de futebol e de voleibol de praia nos Jogos de 1996 em Atlanta e a dupla de canoístas Silva e Ribeiro agora no Rio. Os nossos sempre excitados jornalistas e dirigentes desportivos e políticos deviam ter mais vergonha na cara quando vaticinam medalhas irrealistas, em vez de – sendo as coisas como são – imporem mais rigor nos processos de selecção (com as condições de treino adequadas) e mostrarem mais respeito pelo esforço de todos aqueles para quem participar sem deslustre é já um resultado honroso e compensador para eles, ainda que nada abone para o país que representam. Mas há também treinadores e atletas que se deixam embalar por esses cantos de sereias.
Como se percebeu, até aos tempos do nosso 25 de Abril, as aventuras olímpicas dos portugueses foram escassas e limitadas aos poucos que usufruíam de condições particulares para tal: meninos ricos de Cascais, gente fina do Chiado, filhos de africanistas enriquecidos sabe-se-lá-como, afilhados do salazarismo e alguns militares de carreira. Cumprindo uma regularidade sociológica já testada internacionalmente, a partir dos anos 70 deu-se a oportunidade aos filhos do povo para se prepararem intensamente e, à custa de sacrifícios e vontade indómita, estes obtiveram alguns triunfos e bons resultados perante competidores semelhantes de qualquer parte do globo. Esse toque de coragem e de esforço, foi sempre a marca dos saídos dos meios sociais e dos países mais pobres e desfavorecidos: os Aldegalega, Mimoun ou Abebe Bikila; os Belarmino ou Cassius Clay; os Agostinho ou Raymond Poulidor; os Matateu, Eusébio ou Cristiano Ronaldo.
Os britânicos deram porém, frequentemente, o excelente exemplo da auto-superação nos momentos decisivos, como aconteceu com o saltador em comprimento Lynn Davies em Tóquio (superando no final por poucos centímetros os favoritos, o americano Ralph Davies e o russo Ter-Ovanesyan) e até com o fundista anglo-somali Mo Farah em Londres e agora no Rio, ou ainda com o cavaleiro de obstáculos Nick Skelton que aos 59 anos conseguiu superar toda a fortíssima concorrência para chegar ao “ouro” nesta última competição.
Sem cair em qualquer espécie de pseudo-teorização rácica, é no entanto uma evidência a supremacia de resultados obtidos por atletas de origem africana (longínqua ou actual) em disciplinas de velocidade pura, elevação ou outras mostras de destreza física, como no futebol ou no básquete. Não deixa de ser significativo ver no último pódio de estafetas doze atletas negros representando os EUA, a Jamaica e as Bahamas (embora todos seguindo o modelo desportivo americano), que são certamente descendentes dos escravos trazidos há séculos de África, à força, pela mão dos civilizados europeus (que também colonizaram as Américas) mas igualmente criaram as possibilidades e oportunidades para esta simbólica “desforra”.    
Os Jogos Olímpicos cultivaram sempre diversos cerimoniais e aspectos simbólicos: a chama, o juramento, o içar da bandeira, os desfiles inaugural e de encerramento – o último dos quais se transformou, desde há décadas e por força da juvenil vontade de prolongar os namoricos e o convívio da aldeia olímpica, numa caótica e feliz despedida com todos os atletas misturados, subvertendo o princípio das nacionalidades. (Também subvertido, mas noutro sentido, pela naturalização-de-conveniência de bons atletas de países pobres por nações ricas, vendo-se agora por via destes processos burocráticos corredores de fundo de origem africana a representarem países nórdicos ou mesa-tenistas orientais com emblemas de países europeus.)
Se os primeiros “heróis do estádio” receberam coroas de louro (com os da Antiguidade), a subida ao pódio e as medalhas “de ouro, prata e cobre” para os três primeiros classificados de cada prova impuseram-se rapidamente, mas só a partir de 1960 com as medalhas a serem colocadas com uma fita à volta do pescoço. No entanto, o simultâneo içar das bandeiras dos atletas premiados e a execução musical do hino do vencedor foi uma cedência ao persistente nacionalismo espontâneo das massas – que, por exemplo, subiu ao rubro por razões da conjuntura política do momento nas competições de polo aquático entre húngaros e russos em 1956 e de hóquei no gelo entre russos e checoslovacos em 1968. Há por isso quem considere mais conforme ao “espírito olímpico” o cerimonial dos Jogos Mundiais Universitários onde esta entrega de prémios é sempre acompanhada pelos acordes do Gaudeamus Igitur. Mas tem sido inevitável a tentação da contagem das medalhas ganhas pelos países no final da cada edição olímpica. É que existem também questões de identidade nacional, mais ou menos interiorizadas pelas pessoas e comunidades, a que tais gestos simbólicos conseguem responder. Durante muitos anos, houve uma disputa particular entre a URSS e os Estados Unidos, quase sempre os grandes “açambarcadores”, os primeiros devido a sua política-de-Estado (prosseguida agora pela Rússia) e os segundos graças à pujança da sua juventude, sistema desportivo-universitário, riqueza e ao inesgotável reservatório da sua “raça negra”.
O amadorismo durou mais de meio-século – apesar de alguns entorses menos divulgados – mas não resistiu aos apelos materialistas da economia contemporânea. Até ‘Magic’ Johnson e seus comparsas do “dream team” da liga profissional de básquete americano actuaram sob o aplauso geral nos Jogos de Barcelona. E hoje competem nas Olimpíadas jogadores de futebol, golfistas ou tenistas profissionais, havendo mesmo fundistas cujos prémios em maratonas internacionais são cheques bancários de elevado valor. Neste aspecto, o desporto actual e o olimpismo renderam-se ao “deus dinheiro”. Contudo, não é isso que faz correr homens e mulheres do mundo inteiro: além do bem-estar físico e mental, é sobretudo o desafio da superação e o fugaz momento de glória do vencedor – que a maioria nunca chega a experimentar.
Estes magnos eventos desportivos têm sempre sido organizados por cidades e não por países: parecia ser mais uma maneira de travar a competição internacional. E durante muito tempo os comités olímpicos nacionais (mesmo de grandes nações como a britânica) faziam gala em não receber dinheiro dos seus governos, preferindo recorrer a subscrições públicas e outras formas de angariação directa de fundos. Mas as despesas de organização de uns Jogos atingiram somas astronómicas e deixaram frequentemente em má postura financeira os municípios que se aventuravam a tal cometimento, a partir do momento em que se construíram propositadamente estádios e pavilhões para impressionar as opiniões públicas – o que parece ter sido ainda o caso de Atenas em 2004, ajudando a precipitar o país na desastrosa crise económica em que tem vivido desde então. Veremos daqui a algum tempo as sequelas pós-Rio, onde os Jogos passaram “ao lado” da maioria da população, foram objecto de contestação política ou social por alguns sectores e muitos bilhetes ficaram por vender (além da má demostração de desportivismo de muitos dos brasileiros que presenciaram as competições). Em todo o caso, desde há várias décadas que a disputa para a escolha da cidade anfitriã é cerrada no seio do Comité Olímpico Internacional, tendo já sido identificados casos de corrupção e “compra de votos”. Mas, por outro lado, desde os anos 80 que os Jogos passaram a dar lucro ao movimento olímpico e às diversas federações desportivas internacionais, graças aos direitos televisivos (e publicidade comercial, etc.). As despesas com a preparação dos melhores atletas (agora quase todos dedicados em exclusivo à sua modalidade) são hoje também custeadas com tais receitas, além das ajudas do Estado, cujos dirigentes não perdem nunca o ensejo de se glorificarem com o esforço dos outros.
Contudo, apesar das doenças do gigantismo e do negocismo que atingiram este fenómeno social da Modernidade, é importante reconhecer que o modelo orgânico do movimento desportivo e do olimpismo, desde os clubes locais até quase aos grandes clubes-empresas, e das federações nacionais e internacionais das diferentes modalidades, tem-se mantido sempre de livre iniciativa e responsabilidade, com modos democráticos de tomada de decisões e designação dos dirigentes, e recusando sempre a intromissão dos governos (e da política, das convicções religiosas, preconceitos raciais, sexismo, etc.) na gestão das suas actividades.

JF / 22.Ago.2016

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Sentido estético (e mais além)

O vestuário define, em primeira aproximação, a pessoa que o habita. Mas também, muito fortemente, ele ganha significado pela forma como a pessoa dispõe publicamente do seu corpo: a postura, a pose, o gesto. Por exemplo, lembremo-nos do caso do toureiro: com o seu trajo de luces (onde os dourados, sobretudo sobre uma cor forte, fazem o mesmo efeito que nas representações dos santos católicos), o homem paramenta-se para um possível/provável encontro com a morte. Atente-se em especial no modo como ele coloca a montera na cabeça, bem transversal e carregada sobre os olhos, como para tornar mais sombria essa perspectiva. Imaginemos agora a montera em posição mais horizontal e a imagem já nos fará sorrir evocando talvez aqueles bandarilheiros de há um século, algo barrigudos e com um “ar de bimbo” indisfarçável. Levemos, porém, mais longe a imaginação: a montera posta “às três pancadas”, para trás, ou, ainda pior, em diagonal – e só nos ocorrerá a figura de um Cantinflas ou de um pobre “muleta negra” acampado à porta do Campo Pequeno à pedincha de uma oportunidade. Do drama, passou-se num instante para o burlesco. Só pela maneira como o homem se cobriu.

Música simples e música complexa. Em um século a música evoluiu imenso (como tudo o resto). Persistem as orquestras sinfónicas, a música de câmara, as representações operáticas, os grupos corais, as bandas filarmónicas ou os instrumentistas e as cançonetas populares (estas agora com um sucesso, na modalidade “pimba”, nunca antes alcançado). E surgiu de novo, qual onda avassaladora, o agrupamento “rock” (música feita “à pedrada”) em que uma “bateria”, duas guitarras electrónicas e um vocalista, com gestos inusitados (e ar selvagem quanto possível), têm conseguido pôr em transe sucessivas gerações de “fans” (v.g., fanáticos) em concertos de massas e feito expandir exponencialmente a indústria discográfica.
Tudo isto é música simples, no sentido em que, com mais subtileza ou grandiosos uníssonos, com mais ritmo e percussão ou harmonia, toda ela nos pode facilmente penetrar pelos sentidos e produzir efeitos de agradável bem-estar, êxtase ou melancolia. Que nos puxa para o movimento corporal, a dança, ou nos embala para doces adormecimentos ou evasões. Mas é claro que não é música simples de fazer. Os seus criadores ou intérpretes têm sempre que ser génios ou possuir dotes extraordinários, ainda que para isso certos performers contemporâneos recorram ao uso e ao abuso de drogas.
Outra coisa é a música que outros génios tiveram que começar a inventar quando bateram contra o tecto da excelência que os seus antecessores haviam deixado. A “ruptura epistemológica" ter-se-á dado quando perceberam que não se podia ir além da perfeição que os clássicos haviam atingido. Então, partindo do impressionismo francês (Ravel, etc.), inauguraram um caminho de experimentação e pesquisa, paralelo e coevo com os primórdios da pintura não-figurativa, rompendo com as noções da harmonia, ritmo e melodia, essenciais na composição romântica anterior. Stockhausen terá sido a figura crucial desta história, mas é significativo que Boulez, agora desaparecido, tenha começado por fazer estudos de matemática. O pensamento e a análise estão aqui presentes, ao menos tanto quanto as sensações. Daí também as incursões feitas por alguns na chamada música electrónica e nos seus diversos aparelhos, dos sintetizadores aos computadores. É isto música, ou antes jogos de sons? Que exigem, em todo o caso, disponibilidade especial ao auditor para compreender a peça simultaneamente ao que escuta (ou mesmo antes). Para além dos efeitos de moda, tão corrente nas sociedades modernas, só poucos conseguem amar este tipo de música. Ouvi uma vez Penderecki no Scala de Milão – considerado um neo-clássico, por reacção ao experimentalismo, mas nem por isso menos seu tributário – e não desgostei, mas foi talvez mais o ambiente (partitura, execução e envolvência) que me induziu a “degustá-lo”. Porém, sou incapaz de me concentrar, apreciar e fruir da maior parte destas produções musicais “do meu tempo”. É verdade que sou um leigo na matéria mas ainda assim sensível à música simples do século XIX, fosse ela popular ou erudita (romântica e/ou nacionalista). Por isso, não receio errar muito se classificar esta música complexa como elitista. Não necessariamente para a elite social, mas decerto para uma elite de conhecedores da matéria.
Em todo o caso, aproveito o ensejo para reconhecer e louvar grandes iniciativas como são ‘Os Dias da Música’ ou ‘Serralves em Festa’ e, em geral, a programação de instituições públicas como o Centro Cultural de Belém, a Casa da Música do Porto, a Fundação de Serralves, o Canal 2, a Antena 2 e mesmo alguns programas da Antena 1 da RTP e os canais de notícias (salvo o excesso de futebolismo). Até os múltiplos “festivais de Verão” animam a economia e entretêm muita gente sem interesses para mais. Mas, num cenário onde predominam o barulho, o fogacho e o “mau gosto”, aqueles primeiros espaços cumprem o mesmo papel de reencontro connosco mesmos, de reaprendizagens e de considerarmos novas maneiras de olhar o mundo que cumprem as velhas igrejas hoje vazias que subsistem nos centros das cidades fervilhantes.

Hoje em dia afirmam-se sem dúvida grandes escritores mas talvez que a abundância lhes diminua a influência que outros tiveram nas gerações de leitores do século XX. Em geral, sou tomado de entusiasmo pelas imaginativas histórias ficcionadas de um Pérez-Reverte (por exemplo em A Pele do Tambor, que ainda não conhecia). Mas ler (ou reler) Tolstoi, Malraux ou Kafka percute em nós de modo intenso, ainda que os seus textos nos sejam mais distantes, na forma como relatam, nos temas ou nos universos em que se inscrevem. Por exemplo, do primeiro, em Visions de Sébastopol, redescobri os ambientes de guerra experimentados pela geração de meus avós e as diferentes expectativas que alimentavam as classes sociais de então em uniforme, apesar do risco comum. No francês, esforcei-me por interpretar a variedade e desmedida do seu léxico no universo fechado dos aventureiros de La Voie Royale, em confronto com a inesgotável selva oriental, a sensualidade, a sombra do ópio, o sofrimento físico e tentação da morte. E no checo, tomando como boas as traduções de La Métamorphose e outros contos, pude seguir penosamente a tortuosa imaginação de um escritor enredado nos meandros da depressão e do seu próprio desespero, num meio social em crise apesar das lustrosas aparências e num tempo em que a Europa se estraçalhava e, ali ao lado, a psicanálise estava ainda nos seus primeiros balbuciamentos. Mas todos eles fazem parte de plêiade de criadores literários que ajudaram a construir os fundamentos culturais da modernidade em que se formaram as gerações actuais.   

A Associação Portuguesa de Sociologia realizou no Algarve o seu 9º congresso, testemunho de uma vitalidade associativa notável para uma agremiação de cientistas apenas com três décadas de existência. A este propósito, Ana Romão, João Teixeira Lopes e Paula Abreu subscreveram um oportuno texto onde se afirma que a sociologia «é uma das maneiras mais estimulantes de […] não desistirmos de encontrar as causas dos fenómenos […]» (Público, 5.Jul.2016). Não estou certo de que esta ciência social se encontre no seu melhor período, mas partilho inteiramente daquela mesma convicção. Outro tanto não direi da frase com que aqueles estimados colegas encerram o seu texto, que remete para uma história antiga, com mais de 150 anos: «trilhar os caminhos difíceis é a decisão mais certa para, compreendendo-o, mudarmos o mundo». No meu modesto parecer, a sociologia devia exigir-se tanto na compreensão dos sentidos das mudanças – propostas ou encetadas – como nas razões das resistências e tentativas de conservação dos acquis de épocas anteriores. Os programas de “mudar do mundo” (“changer le monde, changer la vie”) tiveram e têm todo o cabimento em certas confrarias (secretas ou não, laicas ou religiosas), em movimentos sociais e (para aqueles que pretendem servir-se dos instrumento do poder de Estado) em partidos políticos com tal vocação. Mas a confusão de motivações pessoais pode não servir os propósitos de uma disciplina que, com dificuldade, adquiriu o seu lugar no espaço da ciência moderna.

Fez 80 anos no passado dia 18 que os generais espanhóis desencadearam um golpe-de-Estado militar contra a jovem República, apoiados pelo falangismo e o que de mais conservador exista no país. O operariado e os sindicatos, o povo de esquerda, o progressismo republicano, fizeram-lhes frente nas grandes cidades frustrando os seus intentos. Mas, com o apoio externo de Hitler e Mussolini, Franco ocupou grande parte das províncias com o seu exército de marroquinos e instalou-se uma sangrenta guerra civil que durou quase três anos. No final, a nação estava devastada e dividida, também refugiada no exterior e profundamente ressentida por tempo de duas gerações. Alguns nostálgicos do anti-fascismo ainda comemoram as esperanças desses dias de mobilização e exaltação popular. Mas, à terceira geração, muita coisa muda no sentido que atribuímos aos factos. No 25 de Abril, os capitães portugueses viram-se de imediato sustentados pelo povo urbano em festa. No Egipto, foi a força desse mesmo povo urbano que derrotou Mubarak, com a neutralidade do exército; mas foi este que, com mão de ferro, travou a dinâmica de islamização que se seguira. Agora, dá-se na Turquia o surpreendente levantamento de um sector militar, sem que se percebesse bem quais as suas intenções. Parecia nas primeiras horas estar a ter sucesso mas o apelo de um Erdogan (em fuga) para que o povo saísse à rua e enfrentasse os soldados surtiu efeito: desta vez, os populares bloquearam os tanques e os meios aéreos tornaram-se inúteis. Os responsáveis e os comentadores ocidentais ficaram em suspenso perante tais acontecimentos. E, como sempre, “ay de los vencidos”. Mas é quase certo que a deriva de islamização do regime turco vai acelerar-se e talvez se observe um reajustamento de todas as relações internacionais na região. Com alastramento das frentes de guerra? A benefício da Rússia? Em perda para o Ocidente? (pode ler-se a interessante análise de Carlos Gaspar: “Berlim e a instabilidade europeia”, Público, 21.Jul.2016).

O campeonato da Europa de futebol foi um acontecimento com surpresas e confirmações do que já se antevia. No plano desportivo e tal como acontecera no último campeonato nacional, não ganhou o conjunto que melhor futebol praticou, o da Alemanha. Mas a equipa portuguesa realizou um feito notável com o seu triunfo, graças à inteligência operativa do seleccionador Fernando Santos e à coesão que soube construir dentro e em redor daquele lote de jogadores. Além disso, vencer a França na final teve um sabor muito subjectivo, castigando o chauvinismo gaulês e dando uma rara e breve mas genuína alegria a milhões de portugueses (que o amigo Paquete de Oliveira infelizmente já não pôde partilhar). Porém, sobressaiu também a grande uniformidade do jogo praticado sobre os relvados: predominância do poder físico dos jogadores; acção distribuída sobre a totalidade do terreno; muito “pontapé para o ar” e jogo de cabeça improdutivo; aborrecidos duelos de corpo-a-corpo junto às linhas laterais; excesso de cruzamentos da bola sobre a grande área; e estratégias assentes sobre a defensiva. Apesar de Ronaldo (em declínio), notou-se a falta de grandes virtuosos, com o exemplo contrastante de um Eric Dyer, formado nas escolas do Sporting e por este desprezado, ter conquistado um ano depois um lugar fulcral no team da Inglaterra. No plano social, o nacionalismo larvar existente nestes pleitos não ultrapassou as suas marcas habituais e foram milhões as pessoas que vibraram emocionalmente com a incerteza dos resultados: um bom espectáculo mundializado! Mas, de novo, a agressividade patente em algumas minorias de jovens acéfalos e encharcados em álcool justificou as acções de força repressiva das polícias e as medidas securitárias tomadas pelo governo do país organizador, o que não impediu mais uma noite de terror, desta vez em Nice, no quatorze juillet. Veremos como correm as coisas nos Jogos Olímpicos de um Brasil em crise, onde esta espécie de guerra simbólica entre nações se dissipa fortemente em favor da admiração do feito atlético, mas onde a grande concentração de massas humanas e a exibição mediática global criam sempre condições tentadoras para qualquer gesto terrorista. Todos estes eventos desportivos tornados espectáculos universais contêm tais potencialidades. Mas cada um deles inclui especificidades próprias que agravam ou diluem os riscos e as fruições possíveis. Compare-se o futebol com o ténis ou o boxe com o críquete! E imagine-se o que poderão ser os próximos rendez-vous em Moscovo ou no Qatar.         
E porque falamos de emoções, vale lembrar que há cinco pulsões essenciais da vida humana (que porventura só se tornam evidentes para o próprio quando esta está prestes a esgotar-se): to eat, to act, to fuck, escape the paine and to think. Os instintos naturais têm todos a mesma dignidade. Mas a espécie humana distinguiu-se, desde o início, pela capacidade de pensar: memória, acção deliberada, auto-reconhecimento, inter-relacionamento de factos, compreensão de processos, abstracção teórica e especulativa, imaginação, pensamento estratégico e outras propriedades. A agressividade natural existe e deve ser reconhecida; mas, salvo casos patológicos, pode ser controlada. Se o próprio o não consegue, exige-se a ajuda de terceiros, mais atentos e informados. A actividade desportiva pode contribuir para tal. Mas no espectáculo de massas isso é muito mais difícil de conseguir.

Atenção! Cidadãos comuns, apaguem agora os vossos receptores. Esta é só para militares reformados… (porque já estão libertos do quotidiano castrense e mais propensos a sorrir sobre aspectos cómicos das suas próprias vivências).
Que me perdoem os antigos oficiais do exército mas, desde que deixaram no museu os talabartes donde pendiam os seus pesados chanfalhos, a maneira como os da marinha pegam na espada embainhada é muito, mas muito mais, elegante e superior à sua. Os marujos cuidam da aparência e, beneficiando também da maior leveza da sua tradicional arma branca, transportam-na com esmero e donaire. Parados e à vontade, pegam nela com os dois dedos menores na mão esquerda enfiados no guarda-mão; perfilados, mantêm a posição, flectindo apenas ligeiramente o cotovelo; em marcha, agarram na bainha entre as duas abraçadeiras, com a ponta para diante e a parte arqueada da lâmina virada para cima. Tudo muito aristocrático e harmónico com as sucessivas posturas corporais. E muito uniforme, tal como aprendido desde os tempos da Escola Naval, mas feito com grande naturalidade.
Em total contraste, os “cinzentos” (que nunca se preocuparam com esta estética) pegam na arma como qualquer paisano o faria, ou o “almeida” na sua vassoura. Porque a sua espada não dispõe do pequeno fecho que solidariza a arma com a bainha, não podem sustentá-la pelo guarda-mão, mesmo se alguns metem um palito ou um pau de fósforo para tentar o travamento. Mesmo assim, desajeitadamente e com frequentes insucessos, tendem a sustentá-la com os copos debaixo do antebraço, apertando o instrumento lateralmente contra o corpo, mas com isso reduzindo muito a liberdade de movimentos deste e da própria mão esquerda. Pior é ainda com os sabres de cavalaria (também usados pelos cadetes da Academia Militar), pelo maior volume do guarda-mão. Mas, mais frequentemente pegam na arma pela bainha, abaixo da argola do talim, projectando o punho para diante, como se estivessem a oferecer ao interlocutor o uso da lâmina mortal com que desejam fazer-se trespassar. Ou, algo ingenuamente, como se oferecessem o seu mais belo ramo de flores à dama por cujos olhos se encontram apaixonados.
Mas termino com o relato abreviado de uma caricata cena que se passou em tempos com um oficial da administração naval. Porque nessas épocas os mesmos não comandavam forças em “ordem unida” e como, por acidente, se tivesse partido a lâmina da sua espada, o nosso herói resolveu substituí-la por um sarrafo de madeira, já que nunca seria chamado a desembainhá-la e saía muito mais barato. Aconteceu-lhe, porém, no ultramar, ser chamado de urgência a integrar um tribunal militar, onde as sentenças se liam com os juízes de espada desembainhada, coisa que o nosso homem ignorava. Quando chegou o momento supremo, a audiência só pode ter claudicado quanto ao dramatismo habitual destas ocasiões. “Apresentar… sarrafos!”. E nem sequer, ao menos, o réu terá aproveitado da circunstância.
Bom tempo de Verão! (para quem pode gozá-lo) Neste dia em que começam a concentrar-se no Tejo os grandes navios veleiros do mundo, simbolizando alguns dos nossos melhores sonhos.

JF / 22.Jul.2016

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