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sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Assim vamos andando

Mais um Verão e novo assédio de fogos florestais, depois de um início de época que parecia mais contida do que habitualmente. Mas Agosto desatou-se em fogo incontrolável em várias partes do território português, com menos desastres pessoais de outros anos mas com as mesmas angústias e os prejuízos de sempre. Se a actividade de atear fogos ou de os apagar contasse para o PIB, ainda haveria quem se alegrasse mas, assim, estamos todos sempre a ficar um pouco pior que dantes.
Os comentários, propostas e soluções vêm habitualmente a posteriori e nunca impedem a catástrofe seguinte, seja a dos incêndios florestais, industriais ou urbanos, seja a dos tornados, tempestades ou inundações (já para não evocar o pesadelo dos sismos). De todas estas tragédias que caem como trovões na vida das pessoas que os sofrem (como, de resto, os acidentes rodoviários), as mais previsíveis e evitáveis são os incêndios. Para isso existem regras de prudência e segurança (nas edificações e nos modos de florestação), penalizações criminais para a sua provocação intencional e dispositivos organizacionais com tradição (caso dos corpos de bombeiros voluntários) que actualmente dispõem de importantes meios financiados pelo Estado através da Autoridade Nacional de Protecção Civil, inserta no Ministério da Administração Interna desde 2006. De certa maneira, este sistema público é hoje visto como tão ou mais importante do que a defesa nacional, de cujas instituições copia uma parte das suas práticas e imaginários: “soldados da paz”; “combate” (aos incêndios); “frentes” (de fogo); “comando”; “planos de operações”, etc. Fala-se muito da prevenção, por vezes da reestruturação fundiária (por nós próprios aqui aventada há seis anos atrás), de meios mais eficientes, de agravamento de penas, etc. Mas nada disto obsta a reedição destes tristes espectáculos.
É verdade que algumas destas ocorrências têm causas naturais que não podem ser previstas em antecipação aos factos nem totalmente evitadas: as alterações climáticas (sejam elas originadas ou não pelos processos de industrialização, urbanização e motorização da vida moderna) e os abalos geológicos contam-se entre as mais importantes. Porém, duas questões fundamentais parecem dever ser afrontadas sem tibieza no caso dos incêndios florestais:
1ª – O direito de propriedade destes solos deve ceder a prioridade à segurança contra o fogo, seja em termos do regime de florestação (espécies arbóreas, extensão, localização, eventual necessidade de deflorestação de certas áreas, etc.), seja em termos de limpeza e manutenção das parcelas nas condições mais adequadas para prevenir a irrupção de incêndios e facilitar o seu combate (corredores de isolamento, postos de vigilância, etc.). Todos os terrenos abandonados devem reverter sem demora para o património público e aos proprietários dos não-cuidados (por prazo de cada temporada) deveria ser automaticamente retirada a sua gestão, nos termos seguintes.
2ª – Se o dispositivo de vigilância e ataque aos fogos deve indubitavelmente ser nacional (e da responsabilidade governamental, tal como o cadastro fundiário), já a gestão económica da floresta deveria ser deixada a empresas privadas de dimensão adequada especializadas nesta actividade, em regime de concessão que respeitasse o direito dos proprietários a receber a sua quota-parte do resultado financeiro daquela exploração e as melhores regras de segurança anti-fogos e de preservação ambiental. A escala e relevância do problema já não se compadecem com velho direito do camponês de dispor da sua parcela de terra como bem lhe apetece (ou é capaz). Condicionada por aquelas regras técnicas, a “empresarialização” será hoje, provavelmente, a melhor forma de aproveitamento das riquezas da floresta para um país como o nosso.
Agora, no auge de nova comoção estival, voltou a falar-se destas questões fundamentais e em envolver mais os municípios na sua resolução. Certamente que o poder local terá um papel sempre muito importante, porque é nas suas áreas de jurisdição que ocorre cada um destes sinistros – da mesma forma sendo de encarar a acção das beneméritas associações locais de bombeiros voluntários. Mas terão de existir legislação e orientações nacionais que permitam uma gestão global e integrada das florestas num quadro de ordenamento racional do território participado por diversos actores e entidades (interesses económicos, protecção civil, investigação científica, preservação ambiental, população residente, etc.) mas concretizadas e decididas em última instância por algum órgão, alguém identificado a que possam ser exigidas responsabilidades. Os direitos de propriedade individual são actualmente aceites por todos (mesmo pelas escolas de pensamento socialistas que inicialmente contra eles se fundaram) mas, assim como no século XIX se lhes amputou o direito de escravidão e servidão de pessoas, também é hoje imperativo retirar-lhes o “absolutismo” de que gozam em certos domínios, um dos quais é este de manter terras abandonadas ou não-ordenadas sem justificação plausível.    

Ao lado destas efervescências episódicas da actualidade informativa-partidária, a vida económica do país tem vindo a manter em lume brando as polémicas sobre o (in)sucesso das políticas governativas. O primeiro-ministro António Costa multiplica-se em declarações óbvias e de circunstância, sem qualquer profundidade ou relevância, salvo a de manter a base inter-partidária em que assenta o seu governo e de parecer ir cumprindo os compromissos a que se obrigou. Quem lhe faz a oposição mais coriácea parecem ser a instituições europeias, por um lado, e os indicadores económicos que desmentem as apostas de crescimento em que se baseou o seu programa eleitoral, por outro.
Mas o problema que, arrastadamente, se mostra mais preocupante nem é agora o da nossa baixa produtividade, da falta de investimento ou o agravamento da balança comercial externa, mas sim o sector bancário que pode romper-se de um momento para o outro. É certo que o mesmo tipo de receio existe para vários outros países vizinhos bem mais decisivos do que o nosso e para a Europa no seu conjunto. Pode ser que estejamos numa espécie de corrida para ver quem foge a rebentar primeiro. Mas aqui a escala impõe-se, de maneira brutal: a Europa financeira (ou os bancos alemães, ou a própria finança italiana) não pode rebentar – pura e simplesmente. Americanos, chineses e outros não o permitiriam, pois todos veriam a sua sobrevivência posta em causa. Quanto aos portugueses – como o caso grego bem o demonstrou –, se não cumprem a regras da UE, que se danem! O país bem-pensante ficou chocado com a justificação do sr. Juncker para a ultrapassagem do limite do défice gaulês “porque é a França”. Há, de facto, a indelicadeza da frase. Mas só um “espírito liliputiano” se pode sentir ofendido com esta realista apreciação: de facto, sem a França não há Europa, sem que tal seja desprimoroso para alguém, e não evita todas as críticas que aquele país possa merecer.
É por tudo isto que se torna deprimente assistir à forma patética como o governo tem lidado com a situação da Caixa Geral de Depósitos (empréstimos ruinosos, resultados negativos, recapitalização, designação e remuneração de novos responsáveis), como lidou com o Banco Internacional do Funchal, e como se arrasta ainda o caso do Novo Banco/GES ou mesmo o já quase esquecido Banco Português de Negócios – isto, para não referir as complicadas e suspeitas relações financeiras com instituições angolanas e brasileiras, os dois “países parceiros” de choix dos nossos governantes nas últimas décadas (com PS, PSD e CDS bem juntinhos em tais oportunidades). Perante a gravidade deste quadro, a “novela” das sanções e dos incumprimentos do défice público são meros peanuts para entreter os nossos telejornais. Como o são as intervenções “apaziguadoras” e “encorajadoras” do PR ou as dissonantes tomadas de posição de Cavaco Silva (esse pequeno-Salazar-das-finanças em versão democrático-populista) no último Conselho de Estado.
O desemprego estrutural, a emigração, a escassez de investimento, os desequilíbrios da segurança social e as indeterminações acerca da ADSE vão permanecendo sem vislumbre de uma credível resolução a prazo. Com a finança e a economia periclitantes, e uma (já habitual) re-governamentalização sistemática dos dirigentes da administração pública, a aprovação do orçamento para 2017 e os indicadores das contas públicas deste ano que se vão conhecendo a pouco e pouco deverão ditar a continuidade, ou não, desta experiência de governação-de-esquerda, num macro-contexto que não permite grandes alternativas mas nem por isso inibe ásperas disputas internas pelo poder de Estado. Por alguma razão se diz agora, por aqui e por acolá, que a social-democracia terá esgotado o cumprimento da sua missão histórica.

O tempo de Verão (ou “silly season”) é aproveitado por muito gente da classe média para conversas desprendidas, para se envolver nalgum romance clássico/contemporâneo ou para leituras ocasionais, como mais uma vez aconteceu connosco. Instalei-me assim na leitura de um Hamlet traduzido num excelente francês clássico e segui cuidadosamente as páginas da delicada e erudita obra que é Fim de Império, de António (Bracinha) Vieira, também autor de um inquietante Ensaio sobre o Termo da História. E mais convicto fiquei de que, quando publicamos sobre qualquer assunto, mais nos revelamos de nós próprios.
O gestor (de quê? de empresas?) Pedro Jordão, que agora escreve com mais frequência no jornal Público, revela geralmente o sentido prático e o bom senso de quem está longe da política e enfrenta directamente problemas de economia e de sociedade a que é necessário dar resposta, por vezes com urgência. Mas tem o sentido das heranças históricas de que somos os receptáculos e da globalidade e interdependência do mundo actual. É com reflexões deste tipo, parece-me, que os governantes, altos funcionários, actores políticos e outros responsáveis institucionais deviam confrontar-se e procurar o sentido das acções que desenvolvem no dia-a-dia, e não nos “sistemas fechados” em que sempre se movem: conselheiros; adversários partidários; comunicação social; membros de outras elites sociais; e talvez raramente a voz da sua própria consciência ou de algum amigo lúcido e desinteressado.   
Entre os raros ensaios de boa qualidade lidos na imprensa, demos pela crítica de um livro reunindo textos de Almeida Santos, por Diogo Ramada Curto, intitulado “Testemunhos ou equívocos da memória colonial” (Público, suplemento Ipsilon de 22.Jul.2016), pelo texto de António Valdemar “Os quatro avisos de D. Pedro: seiscentos anos de actualidade” (Público, 22.Ago.2016) e sobretudo por “Le Corbusier e a direita radical e revolucionária”, de António Sérgio Rosa de Carvalho (no mesmo jornal, datado de 15.Ago.2016), que terá surpreendido alguns menos informados sobre esta matéria.
Também devemos registar a qualidade informativa do muito que o Novo Jornal de Angola (semanal, on line, onde se percebe “a mão” do jornalista português João Garcia) vem publicando sobre este país, desde notícias sobre economia, sociedade, política, vida cultural, etc. Na realidade, esta é hoje uma nação pujante, muito distante do que foi a antiga colónia portuguesa, com as feridas e os problemas este século, mas garantindo ainda a sua matriz cultural africana, com os arcaísmos e as belezas inerentes.
E em espaço de entretenimento, assinale-se a série televisiva francesa Ainsi-soit-ils que o 2º canal da RTP lançou para o ar aos domingos à noite neste tempo de Verão, tratando em modo ficcional (e provavelmente algo exagerado) dos meandros, hesitações e conflitos que assolam actualmente a Igreja Católica. Enquanto na rádio a nossa Antena 1 continua a proporcionar-nos os excelentes programas de David Ferreira sobre música, textos e os seus contextos.

Mas a actualidade (que a cadeia televisiva EuroNews destila a cada meia-hora) não pára de nos interpelar, seja com o revelador “No Comment” (explicitamente: no statement, no argument, no judgement), seja com as notícias do mundo que, muitas vezes, nos deixam perplexos ou angustiados. A guerra na Síria e norte do Iraque prossegue sem fim à vista, apesar do envolvimento militar limitado dos Estados Unidos e outros aliados, e sobretudo da Rússia a sustentar o governo de Assad, com vários contendores em conflitos cruzados uns com os outros: todos contra o ISIS; sunitas contra xiitas; curdos contra todos (contando por agora com algum apoio americano); e poucos locais ao lado das forças do governo de Damasco. Note-se que Israel, a Jordânia e o Egipto têm conseguido manter-se à margem e parece milagre como a fogueira destruidora ainda não se ateou no Líbano. Mas a Rússia está ensaiando grandes manobras de aproximação e influência sobre toda a região do Médio-Oriente, pela diplomacia, as pressões políticas e pontualmente o uso da força militar. Falta-lhe a presença local dos partidos-irmãos de outros tempos e receia a contaminação do extremismo islâmico dentro das suas repúblicas e vizinhos do flanco sul (e decerto não voltará a mandar soldados para o Afeganistão) mas a política de Putin é a de nada ceder e manter a “chama russófila” onde tem populações, a ocidente; e de ganhar projecção extra-fronteiras em todo aquele vasto espaço em convulsão onde se concentram petro-dólares, reservas energéticas mundiais e povos mobilizáveis para causas anti-ocidentais. Além do seu porto de mar na Síria, o governo de Moscovo parece apostar em criar alinhamentos (se não mesmo, alianças) com as três principais potências regionais – Egipto, Irão e Turquia – limitando pelo mesmo gesto a influência americana, ou deixando-a restrita ao reino Saudita (até que este caia, sendo talvez o Iémen o “balão de ensaio” desta estratégia). Mas a Turquia será o objectivo mais imediato e apetecível, sem grandes cedências suas. Ressentido como está com a UE e a NATO, com um processo de purga interna só comparável com os tempos estalinianos, maoistas ou “kampucheanos” (segundo a Amnistia Internacional, foram soltos 38 mil presos comuns para permitir enjaular os supostos conspiradores de Julho último), o governo de Ankara joga agora a fundo todas as cartadas políticas ao seu alcance para consolidar um regime ainda mais forte e personalizado na figura de Erdogan, uma “democracia islâmica” com ar moderno que satisfaça as massas e compense a travagem da economia; agora, parece ter-se decidido a dar prioridade militar ao combate no terreno contra o “Estado Islâmico” vizinho e, simultaneamente, com o argumento do combate ao terrorismo, tentará esmagar o mais possível as veleidades independentistas dos curdos, mas arriscando-se cada vez mais a ver as suas cidades sacudidas por atentados mortíferos, que os do PKK também não são “crianças de coro”.
Com uma Turquia em turbulência, é toda a insolúvel (a curto prazo) questão dos refugiados e migrantes que cai de novo sobre os países da Europa, no não-esperado contexto aberto pelo “Brexit”. É péssimo sinal que a UE só consiga algum mínimo entendimento em política externa (e segurança e defesa) funcionando “em directório”. Mas, apesar dos seus tão criticáveis desempenhos governativos, é preferível que os senhores Hollande e Renzi se juntem a Merkel para relembrar o projecto europeu (como fizeram simbolicamente a bordo do Garibaldi na ilha de Ventotene) do que deixar Berlim isolada a comandar a economia e as finanças de todo o continente sob os ácidos apupos dos diversos impotentes esquerdismos, com os nacionalismos extremistas a medrarem e o isolacionismo americano a aprofundar-se.
Goste-se ou não, é quase certo que Hilary Clinton seja a próxima presidente dos EUA e que do milionário Trump só restem recordações de boçalidade, ignorância e estupidez. Mas o próprio facto da sua candidatura (com os apoios que suscitou) é já sintoma da má evolução da sociedade norte-americana, como também o são os afloramentos de atitudes racistas e integristas de largos sectores da sua população. Assim, com toda a sua experiência das relações internacionais e o legado “pro-social” de Obama nos problemas domésticos, é provável que a primeira mulher “dona” da Casa Branca utilize a força da sua superioridade militar e tecnológica para negociar status quo razoáveis com os seus grandes competidores do futuro (como a China, a Índia, a Indonésia, o Brasil, o Japão ou a África do Sul) enquanto tentará gerir “com pinças” as ameaças do terrorismo, do fundamentalismo islâmico e os desafios “a prazo” das alterações climáticas. Neste quadro, a Europa será apenas um parceiro secundário, bom para tentar pôr de pé o contestado tratado comercial TTIP (Transatlantic Trade and Investment Partnership) mas só verdadeiramente aliado se deste lado do Atlântico as coisas começarem a correr mesmo mal.
Uma palavra ainda sobre a lamentável crise brasileira (vide as contrastantes análises saídas na mesma edição do jornal Público de 2.Set.2016: “A queda final”, de Carlos Blanco de Morais, e “Anatomia do golpe” de Joana Mortágua). Triste, porque a situação económica é má e está de novo a lançar milhões de pessoas para difíceis situações de sobrevivência (como já acontece na Venezuela). Pode ser conspiração das forças políticas de direita mas esta esquerda politiqueira e estatista – militarizada como a de Chávez e Maduro, ou civil e operária como o PT de Lula e Dilma – tem mostrado no exercício da governação como pode ser tão vil e corrupta como os seus adversários na luta pelo poder.

JF / 10.Set.2016

domingo, 21 de agosto de 2016

Anéis olímpicos

O saudoso professor de educação física Mário Moniz Pereira acompanhou todos os Jogos Olímpicos desde 1948 até aos que antecederam a edição do Rio de Janeiro. É boa parte da história deste encontro quadrienal dos melhores desportistas mundiais que ele conheceu e dominava como poucos.
Embora já em muitos aspectos bem afastados dos seus intuitos originais, os Jogos mantêm a auréola de ser a mais importante competição desportiva do planeta, numa época em que o desporto ocupa um lugar importante na vida social. (Não é verdade que muitos se vestem no dia-a-dia como se fossem praticar actividades físicas?) As cinco argolas entrelaçadas de diferentes cores sobre fundo branco da sua bandeira representam os povos dos cinco continentes na sua mais alta aspiração de paz. O seu fundador, o francês barão Pierre de Coubertin, teve a inspiração de, num mundo de acesa concorrência económica e ásperas rivalidades políticas internacionais, encontrar um pretexto para periodicamente reunir jovens desportistas do mundo inteiro competindo lealmente entre si, segundo as regras ditadas pelas federações desportivas das diversas modalidades, tendo por objectivo apenas a conquista do aplauso público pelo feito atlético alcançado. Como era lógico, os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna realizaram-se em Atenas, em 1896, que para tal reconstruiu o estádio Panatenaico, e logo aí com o simbolismo de ter sido um estoico grego, de seu nome Spiridon Louis, a conquistar o título de vencedor da corrida da maratona, a longa distância um pouco superior a 42 quilómetros que liga o local da batalha histórica àquela cidade. E a mesma prova registou em breve outros dramas e polémicas: em 1908 em Londres, o italiano Dorando Petri chegou esgotado ao estádio e foi amparado pelos juízes que acabou por cortar a meta, não escapando à desclassificação mas acolhendo a simpatia afectiva de todo o público pelo seu esforço; e em 1912 em Estocolmo foi o português Francisco Lázaro que ali morreu, vítima de insolação, respiração cutânea bloqueada e ignorância. Polémica foi também a posterior retirada das medalhas então conquistadas pelo polivalente atleta americano Jim Thorpe (índio Sioux) por ter recebido algum dinheiro como jogador de basebol, infringindo a regra de amadorismo então observada nos Jogos, mas provavelmente com alguma dose de preconceito étnico à mistura.
Como é compreensível, boa parte dos desportos olímpicos provinha de ocupações de recreio das classes altas das sociedades ocidentais, algumas mesmo com conotações aristocráticas ou militares: hipismo, esgrima, tiro, vela, remo, ginástica, ténis e outros. Mas desde as primeiras edições competiram também atletas pertencentes às classes populares em provas individuais mais elementares de força, velocidade, destreza e resistência como são o atletismo, a luta, o boxe (que também era praticado na Grécia antiga), os halteres, o jogo da corda ou mesmo a natação e o ciclismo. Embora as competições individuais fossem as mais emblemáticas (e continuaram sempre a sê-lo), também existiram desde logo algumas provas disputadas por equipas nacionais: o futebol foi uma das primeiras, seguido do hóquei em campo, pólo aquático, etc. – erodindo assim a intenção inicial de combater as tendências para acirrar o confronto entre nações.
Em contrário da tradição grega antiga, as modernas guerras do século XX levaram à suspensão dos Jogos previstos para 1916, 1940 e 1944, festejando o encerramento de cada olimpíada (período de quatro anos), como era norma na Antiguidade.      
Os Jogos de Paris de 1900 foram incluídos nas grandes celebrações da Exposição Universal de entrada no novo século, com inauguração do comboio subterrâneo (vulgo, “métro”), do Grand e do Petit Palais para exposições de arte, etc. Os de 1904, em St. Louis, realizaram-se igualmente no âmbito de uma Feira do mesmo género, com algumas “americanadas” típicas e uns humilhantes “dias antropológicos” onde se exibiram “raças inferiores”; em contrapartida, atletas negros (americanos) pela primeira vez aí competiram e ganharam medalhas. Mas as mulheres já haviam sido admitidas a participar nos Jogos parisienses de 1900: a França era então um farol da modernização do mundo.
No período de entre-as-duas-guerras, os norte-americanos foram afirmando crescente supremacia no atletismo mas o finlandês Paavo Nurmi forjou lenda nas provas de fundo ou longa distância. E Hitler, que organizou impecavelmente os Jogos de 1936 em Berlim com intuitos de propaganda política, viu-se obrigado a engolir as quatro medalhas de ouro e o epíteto do “homem mais rápido do mundo” de um negrinho americano chamado Jesse Owens. Portugal prosseguiu sempre a sua presença olímpica iniciada em Estocolmo, com uma primeira medalha em hipismo (obstáculos, por equipas, com Luis Mouzinho de Albuquerque, Borges de Almeida e Helder Martins) em 1924 em Paris, na esgrima (em espada, também por equipas, com Jorge Paiva, Frederico Paredes, Rui Mayer, Mário de Noronha, João Sasseti, Eça Leal e Henrique da Silveira) em 1928 nos Jogos de Amesterdão, e ainda pela equipa hípica de obstáculos em Berlim (com José Beltrão, Mena e Silva e o Marquês do Funchal), com o destaque desta ser então a última prova dos Jogos, no estádio olímpico, antecedendo a cerimónia de encerramento. Entretanto, desde 1926 que se realizam uns Jogos Olímpicos de Inverno, com diversas modalidades de esqui e gelo. (Muito mais tarde apareceram uns paralelos Paralimpics, para pessoas com deficiência. E existem umas “olimpíadas da Matemática”, do Xadrês, etc.)
No segundo pós-guerra, Londres acolheu os Jogos de 1948, donde velejadores portugueses (os irmãos Bello) trouxeram uma primeira medalha de prata e os cavaleiros a de bronze na modalidade de ensino (ganha “na secretaria” após a desclassificação dos suecos). Mas no atletismo destacaram-se o declatlonista americano Bob Mathias, vencedor com apenas 17 anos de idade, e a já “mamã” holandesa Fanny Blankers-Koen, com 3 medalhas de ouro nas provas de velocidade. Em Helsínquia (1952), distinguiu-se de longe o checo Emil Zatopek, que já havia sido medalhado nos Jogos anteriores, ao ganhar todas as corridas de fundo (5 e 10 quilómetros na pista e maratona na estrada); e os portugueses obtiveram mais um “bronze” na vela (classe stars, com Joaquim Fiúza ao leme). Mas os desportistas da União Soviética, que participaram pela primeira vez nos Jogos Olímpicos, começaram a fazer-se notar pelas seus resultados, embora se discutisse à boca pequena o seu falso amadorismo, tratando-se de facto de “atletas do Estado”, preparados especialmente para exibir as qualidades vitoriosas do seu sistema social na cena internacional. Por exemplo, logo em Melbourne em 1956 o russo Vladimir Kutz ganhou as provas dos 5 e 10 quilómetros sem competidor à sua altura. Mas outro feito atlético surpreendente foi o início da série vitoriosa do discóbolo americano Al Oerter (“branco” e portador de uma deficiência física) que triunfou quatro vezes consecutivas entre 1956 e 1968. Feito semelhante foi alcançado pelo velejador dinamarquês Paul Elvstrom, que triunfou no barco individual finn consecutivamente entre 1948 e 1960. Em todo o caso, se nas disciplinas mais técnicas os competidores das potências ocidentais “davam cartas”, nas provas reveladoras de qualidades atléticas puras (como nas corridas de velocidade) eram os negros que geralmente dominavam, fossem americanos ou de outras nacionalidades. Também o Brasil, com negros, brancos e mestiços, mostraram por vezes grandes talentos e aptidões (Ademar Ferreira da Silva duplo campeão no triplo salto, o nadador Manuel dos Santos, o equitador Nelson Pessoa, os basquetebolistas Amaury, Rosa Branca, etc.).
Por esta época, os portugueses só em 1960 (Roma) voltaram a obter uma medalha de prata, ainda na vela (stars, com os irmãos Quina). Mas a esgrima mostrava a persistência dos seus grandes campeões, como o francês d’Oriola, o italiano Mangiarotti, o polaco Pawlovski ou os húngaros Gerevich e Karpati, que coleccionaram sucessivas medalhas entre 1948 e 1968. E nos Jogos da Cidade do México (1968), além dos espectaculares resultados de Bob Beamon no salto em comprimento (com um recorde “estratosférico”) ou do estilo de Fosbury na altura, assistiu-se a nova penetração da política no palco olímpico, com a matança de estudantes contestatários na Praça das Três Culturas nas vésperas da cerimónia de abertura e com a saudação do “Black Power” feita no pódio por dois dos medalhados americanos. Mas as questões políticas continuaram a perturbar estas festividades do desporto mundial. Entre 1964 e 1988, a África do Sul não pôde participar nelas, devido ao seu regime de apartheid rácico. E os Jogos de 1980 em Moscovo foram muito afectados pelo boicote de vários países ocidentais (incluindo os EUA) por causa da invasão militar soviética ao Afeganistão (que retaliaram, não comparecendo ao encontro seguinte, em Los Angeles). Mas o acto mais violador do espírito do olimpismo foi provavelmente o atentado cometido por guerrilheiros nacionalistas palestinianos sobre atletas israelitas nos Jogos de Munique em 1972, que acabou num banho-de-sangue.
A partir de 1976, já em regime democrático e com algum fomento do desporto-de-massas, o atletismo português – sobretudo impulsionado pelo já referido técnico Moniz Pereira (com quem tive ainda a feliz oportunidade de jogar voleibol, em encontros de treino) – começou a obter lugares premiados neste género de competições mundiais. Carlos Lopes tirou a “prata” nos 10 quilómetros de Montreal, naquele ano, enquanto o atirador “a chumbo” Armando Marques trouxe também idêntica medalha. Mas foi em Los Angeles (1984) que o mesmo corredor de fundo (já com 38 anos de idade) obteve a primeira medalha de ouro de um português, numa sensacional maratona (com medalhas também obtidas no atletismo por António Leitão e Rosa Mota), seguido em 1988 em Seoul por igual feito de Rosa Mota na mesma distância, entre as mulheres. Portugal alçou-se nessa época como uma das principais potências mundiais nesta especialidade atlética, sendo porém em breve substituído por gente nascida e vivida em altitude – em especial quenianos e etíopes – que, desde então, dominam em absoluto as provas de longa distância. Nestes Jogos de Seoul o sprinter negro canadiano Ben Johnson venceu os 100 metros com novo recorde mundial mas, descoberto o uso de doping, a medalha de ouro acabou por ir para o americano Carl Lewis (igualmente negro), que reincidiria várias vezes nessa posição. Também a alemã-de-Leste Kristin Otto realizou o feito inédito de ganhar seis medalhas de ouro na natação, mas ficou sempre a pairar a dúvida dos resultados alcançados pelas mulheres deste país, useiro e vezeiro neste género de práticas, tal como agora também se fará na Rússia, “apanhada” por métodos de controlo mais rigorosos. Porém, sem qualquer sombra de dúvidas quanto aos métodos de treino empregados, realce-se a importância e persistência das escolas de natação japonesa e australiana, por estas épocas.
Depois de nova “passagem em branco” nos Jogos de Barcelona (1992), onde os espanhóis brilharam em muitas modalidades (mas “aldrabaram” no caso do archeiro que devia acender a chama olímpica), a fundista Fernanda Ribeiro voltou a dar grande alegria aos portugueses ao sagrar-se campeã em Atlanta (1996) na prova dos 10 quilómetros, com os jovens velejadores da classe 470 a lograrem também uma medalha de bronze. Em Sydney, a abrir o milénio, a novidade portuguesa veio do judo, com o “bronze” de Nuno Delgado, e lugares de pódio de Fernanda Ribeiro e do velocista negro naturalizado Obikwelu, num evento em que o britânico Jonathan Edwards coroou a sua carreira com o “ouro” que lhe faltava, ele que conseguira um espantoso recorde mundial de mais de 18 metros no triplo-salto que ainda hoje se mantém. Medalhas secundárias também obtiveram em Atenas (2004) o atleta de meio-fundo Rui Silva e o ciclista Sérgio Paulinho. Finalmente, Nélson Évora sagrou-se campeão olímpico do triplo-salto em Pequim (2008), oportunidade em que a “prata” no triatlo feminino foi para a jovem Vanessa Fernandes, muito infeliz na sua trajectória posterior. E também se iniciou o reinado de um novo sprinter negro, o teatral jamaicano Usain Bolt, actual recordista mundial e campeão em três sucessivas Olimpíadas. Em Londres (2012), só os canoístas lusos Emanuel Silva e Fernando Pimenta puderam subir ao pódio dos agraciados, tal como a judoca Telma Monteiro nos recém-realizados Jogos do Rio de Janeiro. Aqui, o velejador João Rodrigues cumpriu a sua sexta participação olímpica, sempre na prancha à vela, o que é caso único em Portugal (superando as anteriores cinco presenças do também velejador Duarte Bello e do cavaleiro Henrique Calado).
Certos competidores marcaram decisivamente algumas edições dos Jogos. Por exemplo, o nadador norte-americano Mark Spitz conquistou 7 medalhas de ouro em Munique, feito inigualado até então e só superado pelo também yankee Michael Phelps com 8 em 2008 (com um total de 23 “ouros” arrecadados em quatro edições, um máximo absoluto em todas as modalidades e que superou o da ginasta russa Larissa Latynina). Estes “papa-medalhas” têm beneficiado, porém, da multiplicação de provas com que algumas disciplinas se têm brindado. Enquanto, por exemplo, o atletismo mantém desde há muito o seu programa quase inalterado, desportos como a natação ou a ginástica têm aumentado muito os seus. Perante mais este factor de crescimento quantitativo e a pressão para a admissão de novas modalidades, os organizadores obrigam agora certas federações com menos impacto mediático a seleccionarem apenas os melhores dos rankings e a reduzirem o seu leque de provas, ainda que estabilizadas há muito tempo (como é o caso da esgrima, do ténis ou do hipismo). Já existem há várias décadas Jogos pluri-desportos de âmbito geográfico mais restrito (pan-americanos, asiáticos, mediterrânicos, africanos e agora até europeus), bem como alguns com outro tipo de discriminante (os Jogos da Commonwealth ou uns efémeros e algo pífios Luso-Brasileiros). Pena que não se tenha estudado ainda a hipótese de “partir” o gigantismo dos Jogos distribuindo-os por grupos de modalidades afins, disputadas no mesmo ano mas em lugares e momentos diferentes: por exemplo, além dos desportos de Inverno, os desportos atléticos e outros individuais; os desportos de água; e os desportos de bola, por equipas. Talvez se reduzissem alguns dos inconvenientes actuais.
Além dos campeões, recordistas e medalhados, deixemos contudo que uma referência seja feita a alguns daqueles que, no seu máximo esforço, ficaram para sempre à beira da glória sem lhes provarem o sabor. Os franceses experimentaram frequentemente a situação (vide Michel Jazy em Tóquio), dizia-se que por causa do “trac”. Entre os muitos 4º classificados que experimentaram essa decepção, citem-se os portugueses: os esgrimistas da equipa de espada nos Jogos de 1920 (Antuérpia) e de 1924 (Paris); os velejadores Duarte Bello e Bustorff Silva nos stars em Melbourne, 1956; o corredor Manuel de Oliveira nos 3.000 metros obstáculos em Tóquio (1964); o team de hóquei em patins em Barcelona (onde existiu esta modalidade, em que os portugueses sempre haviam brilhado, como demonstração); as equipas de futebol e de voleibol de praia nos Jogos de 1996 em Atlanta e a dupla de canoístas Silva e Ribeiro agora no Rio. Os nossos sempre excitados jornalistas e dirigentes desportivos e políticos deviam ter mais vergonha na cara quando vaticinam medalhas irrealistas, em vez de – sendo as coisas como são – imporem mais rigor nos processos de selecção (com as condições de treino adequadas) e mostrarem mais respeito pelo esforço de todos aqueles para quem participar sem deslustre é já um resultado honroso e compensador para eles, ainda que nada abone para o país que representam. Mas há também treinadores e atletas que se deixam embalar por esses cantos de sereias.
Como se percebeu, até aos tempos do nosso 25 de Abril, as aventuras olímpicas dos portugueses foram escassas e limitadas aos poucos que usufruíam de condições particulares para tal: meninos ricos de Cascais, gente fina do Chiado, filhos de africanistas enriquecidos sabe-se-lá-como, afilhados do salazarismo e alguns militares de carreira. Cumprindo uma regularidade sociológica já testada internacionalmente, a partir dos anos 70 deu-se a oportunidade aos filhos do povo para se prepararem intensamente e, à custa de sacrifícios e vontade indómita, estes obtiveram alguns triunfos e bons resultados perante competidores semelhantes de qualquer parte do globo. Esse toque de coragem e de esforço, foi sempre a marca dos saídos dos meios sociais e dos países mais pobres e desfavorecidos: os Aldegalega, Mimoun ou Abebe Bikila; os Belarmino ou Cassius Clay; os Agostinho ou Raymond Poulidor; os Matateu, Eusébio ou Cristiano Ronaldo.
Os britânicos deram porém, frequentemente, o excelente exemplo da auto-superação nos momentos decisivos, como aconteceu com o saltador em comprimento Lynn Davies em Tóquio (superando no final por poucos centímetros os favoritos, o americano Ralph Davies e o russo Ter-Ovanesyan) e até com o fundista anglo-somali Mo Farah em Londres e agora no Rio, ou ainda com o cavaleiro de obstáculos Nick Skelton que aos 59 anos conseguiu superar toda a fortíssima concorrência para chegar ao “ouro” nesta última competição.
Sem cair em qualquer espécie de pseudo-teorização rácica, é no entanto uma evidência a supremacia de resultados obtidos por atletas de origem africana (longínqua ou actual) em disciplinas de velocidade pura, elevação ou outras mostras de destreza física, como no futebol ou no básquete. Não deixa de ser significativo ver no último pódio de estafetas doze atletas negros representando os EUA, a Jamaica e as Bahamas (embora todos seguindo o modelo desportivo americano), que são certamente descendentes dos escravos trazidos há séculos de África, à força, pela mão dos civilizados europeus (que também colonizaram as Américas) mas igualmente criaram as possibilidades e oportunidades para esta simbólica “desforra”.    
Os Jogos Olímpicos cultivaram sempre diversos cerimoniais e aspectos simbólicos: a chama, o juramento, o içar da bandeira, os desfiles inaugural e de encerramento – o último dos quais se transformou, desde há décadas e por força da juvenil vontade de prolongar os namoricos e o convívio da aldeia olímpica, numa caótica e feliz despedida com todos os atletas misturados, subvertendo o princípio das nacionalidades. (Também subvertido, mas noutro sentido, pela naturalização-de-conveniência de bons atletas de países pobres por nações ricas, vendo-se agora por via destes processos burocráticos corredores de fundo de origem africana a representarem países nórdicos ou mesa-tenistas orientais com emblemas de países europeus.)
Se os primeiros “heróis do estádio” receberam coroas de louro (com os da Antiguidade), a subida ao pódio e as medalhas “de ouro, prata e cobre” para os três primeiros classificados de cada prova impuseram-se rapidamente, mas só a partir de 1960 com as medalhas a serem colocadas com uma fita à volta do pescoço. No entanto, o simultâneo içar das bandeiras dos atletas premiados e a execução musical do hino do vencedor foi uma cedência ao persistente nacionalismo espontâneo das massas – que, por exemplo, subiu ao rubro por razões da conjuntura política do momento nas competições de polo aquático entre húngaros e russos em 1956 e de hóquei no gelo entre russos e checoslovacos em 1968. Há por isso quem considere mais conforme ao “espírito olímpico” o cerimonial dos Jogos Mundiais Universitários onde esta entrega de prémios é sempre acompanhada pelos acordes do Gaudeamus Igitur. Mas tem sido inevitável a tentação da contagem das medalhas ganhas pelos países no final da cada edição olímpica. É que existem também questões de identidade nacional, mais ou menos interiorizadas pelas pessoas e comunidades, a que tais gestos simbólicos conseguem responder. Durante muitos anos, houve uma disputa particular entre a URSS e os Estados Unidos, quase sempre os grandes “açambarcadores”, os primeiros devido a sua política-de-Estado (prosseguida agora pela Rússia) e os segundos graças à pujança da sua juventude, sistema desportivo-universitário, riqueza e ao inesgotável reservatório da sua “raça negra”.
O amadorismo durou mais de meio-século – apesar de alguns entorses menos divulgados – mas não resistiu aos apelos materialistas da economia contemporânea. Até ‘Magic’ Johnson e seus comparsas do “dream team” da liga profissional de básquete americano actuaram sob o aplauso geral nos Jogos de Barcelona. E hoje competem nas Olimpíadas jogadores de futebol, golfistas ou tenistas profissionais, havendo mesmo fundistas cujos prémios em maratonas internacionais são cheques bancários de elevado valor. Neste aspecto, o desporto actual e o olimpismo renderam-se ao “deus dinheiro”. Contudo, não é isso que faz correr homens e mulheres do mundo inteiro: além do bem-estar físico e mental, é sobretudo o desafio da superação e o fugaz momento de glória do vencedor – que a maioria nunca chega a experimentar.
Estes magnos eventos desportivos têm sempre sido organizados por cidades e não por países: parecia ser mais uma maneira de travar a competição internacional. E durante muito tempo os comités olímpicos nacionais (mesmo de grandes nações como a britânica) faziam gala em não receber dinheiro dos seus governos, preferindo recorrer a subscrições públicas e outras formas de angariação directa de fundos. Mas as despesas de organização de uns Jogos atingiram somas astronómicas e deixaram frequentemente em má postura financeira os municípios que se aventuravam a tal cometimento, a partir do momento em que se construíram propositadamente estádios e pavilhões para impressionar as opiniões públicas – o que parece ter sido ainda o caso de Atenas em 2004, ajudando a precipitar o país na desastrosa crise económica em que tem vivido desde então. Veremos daqui a algum tempo as sequelas pós-Rio, onde os Jogos passaram “ao lado” da maioria da população, foram objecto de contestação política ou social por alguns sectores e muitos bilhetes ficaram por vender (além da má demostração de desportivismo de muitos dos brasileiros que presenciaram as competições). Em todo o caso, desde há várias décadas que a disputa para a escolha da cidade anfitriã é cerrada no seio do Comité Olímpico Internacional, tendo já sido identificados casos de corrupção e “compra de votos”. Mas, por outro lado, desde os anos 80 que os Jogos passaram a dar lucro ao movimento olímpico e às diversas federações desportivas internacionais, graças aos direitos televisivos (e publicidade comercial, etc.). As despesas com a preparação dos melhores atletas (agora quase todos dedicados em exclusivo à sua modalidade) são hoje também custeadas com tais receitas, além das ajudas do Estado, cujos dirigentes não perdem nunca o ensejo de se glorificarem com o esforço dos outros.
Contudo, apesar das doenças do gigantismo e do negocismo que atingiram este fenómeno social da Modernidade, é importante reconhecer que o modelo orgânico do movimento desportivo e do olimpismo, desde os clubes locais até quase aos grandes clubes-empresas, e das federações nacionais e internacionais das diferentes modalidades, tem-se mantido sempre de livre iniciativa e responsabilidade, com modos democráticos de tomada de decisões e designação dos dirigentes, e recusando sempre a intromissão dos governos (e da política, das convicções religiosas, preconceitos raciais, sexismo, etc.) na gestão das suas actividades.

JF / 22.Ago.2016

sexta-feira, 22 de julho de 2016

Sentido estético (e mais além)

O vestuário define, em primeira aproximação, a pessoa que o habita. Mas também, muito fortemente, ele ganha significado pela forma como a pessoa dispõe publicamente do seu corpo: a postura, a pose, o gesto. Por exemplo, lembremo-nos do caso do toureiro: com o seu trajo de luces (onde os dourados, sobretudo sobre uma cor forte, fazem o mesmo efeito que nas representações dos santos católicos), o homem paramenta-se para um possível/provável encontro com a morte. Atente-se em especial no modo como ele coloca a montera na cabeça, bem transversal e carregada sobre os olhos, como para tornar mais sombria essa perspectiva. Imaginemos agora a montera em posição mais horizontal e a imagem já nos fará sorrir evocando talvez aqueles bandarilheiros de há um século, algo barrigudos e com um “ar de bimbo” indisfarçável. Levemos, porém, mais longe a imaginação: a montera posta “às três pancadas”, para trás, ou, ainda pior, em diagonal – e só nos ocorrerá a figura de um Cantinflas ou de um pobre “muleta negra” acampado à porta do Campo Pequeno à pedincha de uma oportunidade. Do drama, passou-se num instante para o burlesco. Só pela maneira como o homem se cobriu.

Música simples e música complexa. Em um século a música evoluiu imenso (como tudo o resto). Persistem as orquestras sinfónicas, a música de câmara, as representações operáticas, os grupos corais, as bandas filarmónicas ou os instrumentistas e as cançonetas populares (estas agora com um sucesso, na modalidade “pimba”, nunca antes alcançado). E surgiu de novo, qual onda avassaladora, o agrupamento “rock” (música feita “à pedrada”) em que uma “bateria”, duas guitarras electrónicas e um vocalista, com gestos inusitados (e ar selvagem quanto possível), têm conseguido pôr em transe sucessivas gerações de “fans” (v.g., fanáticos) em concertos de massas e feito expandir exponencialmente a indústria discográfica.
Tudo isto é música simples, no sentido em que, com mais subtileza ou grandiosos uníssonos, com mais ritmo e percussão ou harmonia, toda ela nos pode facilmente penetrar pelos sentidos e produzir efeitos de agradável bem-estar, êxtase ou melancolia. Que nos puxa para o movimento corporal, a dança, ou nos embala para doces adormecimentos ou evasões. Mas é claro que não é música simples de fazer. Os seus criadores ou intérpretes têm sempre que ser génios ou possuir dotes extraordinários, ainda que para isso certos performers contemporâneos recorram ao uso e ao abuso de drogas.
Outra coisa é a música que outros génios tiveram que começar a inventar quando bateram contra o tecto da excelência que os seus antecessores haviam deixado. A “ruptura epistemológica" ter-se-á dado quando perceberam que não se podia ir além da perfeição que os clássicos haviam atingido. Então, partindo do impressionismo francês (Ravel, etc.), inauguraram um caminho de experimentação e pesquisa, paralelo e coevo com os primórdios da pintura não-figurativa, rompendo com as noções da harmonia, ritmo e melodia, essenciais na composição romântica anterior. Stockhausen terá sido a figura crucial desta história, mas é significativo que Boulez, agora desaparecido, tenha começado por fazer estudos de matemática. O pensamento e a análise estão aqui presentes, ao menos tanto quanto as sensações. Daí também as incursões feitas por alguns na chamada música electrónica e nos seus diversos aparelhos, dos sintetizadores aos computadores. É isto música, ou antes jogos de sons? Que exigem, em todo o caso, disponibilidade especial ao auditor para compreender a peça simultaneamente ao que escuta (ou mesmo antes). Para além dos efeitos de moda, tão corrente nas sociedades modernas, só poucos conseguem amar este tipo de música. Ouvi uma vez Penderecki no Scala de Milão – considerado um neo-clássico, por reacção ao experimentalismo, mas nem por isso menos seu tributário – e não desgostei, mas foi talvez mais o ambiente (partitura, execução e envolvência) que me induziu a “degustá-lo”. Porém, sou incapaz de me concentrar, apreciar e fruir da maior parte destas produções musicais “do meu tempo”. É verdade que sou um leigo na matéria mas ainda assim sensível à música simples do século XIX, fosse ela popular ou erudita (romântica e/ou nacionalista). Por isso, não receio errar muito se classificar esta música complexa como elitista. Não necessariamente para a elite social, mas decerto para uma elite de conhecedores da matéria.
Em todo o caso, aproveito o ensejo para reconhecer e louvar grandes iniciativas como são ‘Os Dias da Música’ ou ‘Serralves em Festa’ e, em geral, a programação de instituições públicas como o Centro Cultural de Belém, a Casa da Música do Porto, a Fundação de Serralves, o Canal 2, a Antena 2 e mesmo alguns programas da Antena 1 da RTP e os canais de notícias (salvo o excesso de futebolismo). Até os múltiplos “festivais de Verão” animam a economia e entretêm muita gente sem interesses para mais. Mas, num cenário onde predominam o barulho, o fogacho e o “mau gosto”, aqueles primeiros espaços cumprem o mesmo papel de reencontro connosco mesmos, de reaprendizagens e de considerarmos novas maneiras de olhar o mundo que cumprem as velhas igrejas hoje vazias que subsistem nos centros das cidades fervilhantes.

Hoje em dia afirmam-se sem dúvida grandes escritores mas talvez que a abundância lhes diminua a influência que outros tiveram nas gerações de leitores do século XX. Em geral, sou tomado de entusiasmo pelas imaginativas histórias ficcionadas de um Pérez-Reverte (por exemplo em A Pele do Tambor, que ainda não conhecia). Mas ler (ou reler) Tolstoi, Malraux ou Kafka percute em nós de modo intenso, ainda que os seus textos nos sejam mais distantes, na forma como relatam, nos temas ou nos universos em que se inscrevem. Por exemplo, do primeiro, em Visions de Sébastopol, redescobri os ambientes de guerra experimentados pela geração de meus avós e as diferentes expectativas que alimentavam as classes sociais de então em uniforme, apesar do risco comum. No francês, esforcei-me por interpretar a variedade e desmedida do seu léxico no universo fechado dos aventureiros de La Voie Royale, em confronto com a inesgotável selva oriental, a sensualidade, a sombra do ópio, o sofrimento físico e tentação da morte. E no checo, tomando como boas as traduções de La Métamorphose e outros contos, pude seguir penosamente a tortuosa imaginação de um escritor enredado nos meandros da depressão e do seu próprio desespero, num meio social em crise apesar das lustrosas aparências e num tempo em que a Europa se estraçalhava e, ali ao lado, a psicanálise estava ainda nos seus primeiros balbuciamentos. Mas todos eles fazem parte de plêiade de criadores literários que ajudaram a construir os fundamentos culturais da modernidade em que se formaram as gerações actuais.   

A Associação Portuguesa de Sociologia realizou no Algarve o seu 9º congresso, testemunho de uma vitalidade associativa notável para uma agremiação de cientistas apenas com três décadas de existência. A este propósito, Ana Romão, João Teixeira Lopes e Paula Abreu subscreveram um oportuno texto onde se afirma que a sociologia «é uma das maneiras mais estimulantes de […] não desistirmos de encontrar as causas dos fenómenos […]» (Público, 5.Jul.2016). Não estou certo de que esta ciência social se encontre no seu melhor período, mas partilho inteiramente daquela mesma convicção. Outro tanto não direi da frase com que aqueles estimados colegas encerram o seu texto, que remete para uma história antiga, com mais de 150 anos: «trilhar os caminhos difíceis é a decisão mais certa para, compreendendo-o, mudarmos o mundo». No meu modesto parecer, a sociologia devia exigir-se tanto na compreensão dos sentidos das mudanças – propostas ou encetadas – como nas razões das resistências e tentativas de conservação dos acquis de épocas anteriores. Os programas de “mudar do mundo” (“changer le monde, changer la vie”) tiveram e têm todo o cabimento em certas confrarias (secretas ou não, laicas ou religiosas), em movimentos sociais e (para aqueles que pretendem servir-se dos instrumento do poder de Estado) em partidos políticos com tal vocação. Mas a confusão de motivações pessoais pode não servir os propósitos de uma disciplina que, com dificuldade, adquiriu o seu lugar no espaço da ciência moderna.

Fez 80 anos no passado dia 18 que os generais espanhóis desencadearam um golpe-de-Estado militar contra a jovem República, apoiados pelo falangismo e o que de mais conservador exista no país. O operariado e os sindicatos, o povo de esquerda, o progressismo republicano, fizeram-lhes frente nas grandes cidades frustrando os seus intentos. Mas, com o apoio externo de Hitler e Mussolini, Franco ocupou grande parte das províncias com o seu exército de marroquinos e instalou-se uma sangrenta guerra civil que durou quase três anos. No final, a nação estava devastada e dividida, também refugiada no exterior e profundamente ressentida por tempo de duas gerações. Alguns nostálgicos do anti-fascismo ainda comemoram as esperanças desses dias de mobilização e exaltação popular. Mas, à terceira geração, muita coisa muda no sentido que atribuímos aos factos. No 25 de Abril, os capitães portugueses viram-se de imediato sustentados pelo povo urbano em festa. No Egipto, foi a força desse mesmo povo urbano que derrotou Mubarak, com a neutralidade do exército; mas foi este que, com mão de ferro, travou a dinâmica de islamização que se seguira. Agora, dá-se na Turquia o surpreendente levantamento de um sector militar, sem que se percebesse bem quais as suas intenções. Parecia nas primeiras horas estar a ter sucesso mas o apelo de um Erdogan (em fuga) para que o povo saísse à rua e enfrentasse os soldados surtiu efeito: desta vez, os populares bloquearam os tanques e os meios aéreos tornaram-se inúteis. Os responsáveis e os comentadores ocidentais ficaram em suspenso perante tais acontecimentos. E, como sempre, “ay de los vencidos”. Mas é quase certo que a deriva de islamização do regime turco vai acelerar-se e talvez se observe um reajustamento de todas as relações internacionais na região. Com alastramento das frentes de guerra? A benefício da Rússia? Em perda para o Ocidente? (pode ler-se a interessante análise de Carlos Gaspar: “Berlim e a instabilidade europeia”, Público, 21.Jul.2016).

O campeonato da Europa de futebol foi um acontecimento com surpresas e confirmações do que já se antevia. No plano desportivo e tal como acontecera no último campeonato nacional, não ganhou o conjunto que melhor futebol praticou, o da Alemanha. Mas a equipa portuguesa realizou um feito notável com o seu triunfo, graças à inteligência operativa do seleccionador Fernando Santos e à coesão que soube construir dentro e em redor daquele lote de jogadores. Além disso, vencer a França na final teve um sabor muito subjectivo, castigando o chauvinismo gaulês e dando uma rara e breve mas genuína alegria a milhões de portugueses (que o amigo Paquete de Oliveira infelizmente já não pôde partilhar). Porém, sobressaiu também a grande uniformidade do jogo praticado sobre os relvados: predominância do poder físico dos jogadores; acção distribuída sobre a totalidade do terreno; muito “pontapé para o ar” e jogo de cabeça improdutivo; aborrecidos duelos de corpo-a-corpo junto às linhas laterais; excesso de cruzamentos da bola sobre a grande área; e estratégias assentes sobre a defensiva. Apesar de Ronaldo (em declínio), notou-se a falta de grandes virtuosos, com o exemplo contrastante de um Eric Dyer, formado nas escolas do Sporting e por este desprezado, ter conquistado um ano depois um lugar fulcral no team da Inglaterra. No plano social, o nacionalismo larvar existente nestes pleitos não ultrapassou as suas marcas habituais e foram milhões as pessoas que vibraram emocionalmente com a incerteza dos resultados: um bom espectáculo mundializado! Mas, de novo, a agressividade patente em algumas minorias de jovens acéfalos e encharcados em álcool justificou as acções de força repressiva das polícias e as medidas securitárias tomadas pelo governo do país organizador, o que não impediu mais uma noite de terror, desta vez em Nice, no quatorze juillet. Veremos como correm as coisas nos Jogos Olímpicos de um Brasil em crise, onde esta espécie de guerra simbólica entre nações se dissipa fortemente em favor da admiração do feito atlético, mas onde a grande concentração de massas humanas e a exibição mediática global criam sempre condições tentadoras para qualquer gesto terrorista. Todos estes eventos desportivos tornados espectáculos universais contêm tais potencialidades. Mas cada um deles inclui especificidades próprias que agravam ou diluem os riscos e as fruições possíveis. Compare-se o futebol com o ténis ou o boxe com o críquete! E imagine-se o que poderão ser os próximos rendez-vous em Moscovo ou no Qatar.         
E porque falamos de emoções, vale lembrar que há cinco pulsões essenciais da vida humana (que porventura só se tornam evidentes para o próprio quando esta está prestes a esgotar-se): to eat, to act, to fuck, escape the paine and to think. Os instintos naturais têm todos a mesma dignidade. Mas a espécie humana distinguiu-se, desde o início, pela capacidade de pensar: memória, acção deliberada, auto-reconhecimento, inter-relacionamento de factos, compreensão de processos, abstracção teórica e especulativa, imaginação, pensamento estratégico e outras propriedades. A agressividade natural existe e deve ser reconhecida; mas, salvo casos patológicos, pode ser controlada. Se o próprio o não consegue, exige-se a ajuda de terceiros, mais atentos e informados. A actividade desportiva pode contribuir para tal. Mas no espectáculo de massas isso é muito mais difícil de conseguir.

Atenção! Cidadãos comuns, apaguem agora os vossos receptores. Esta é só para militares reformados… (porque já estão libertos do quotidiano castrense e mais propensos a sorrir sobre aspectos cómicos das suas próprias vivências).
Que me perdoem os antigos oficiais do exército mas, desde que deixaram no museu os talabartes donde pendiam os seus pesados chanfalhos, a maneira como os da marinha pegam na espada embainhada é muito, mas muito mais, elegante e superior à sua. Os marujos cuidam da aparência e, beneficiando também da maior leveza da sua tradicional arma branca, transportam-na com esmero e donaire. Parados e à vontade, pegam nela com os dois dedos menores na mão esquerda enfiados no guarda-mão; perfilados, mantêm a posição, flectindo apenas ligeiramente o cotovelo; em marcha, agarram na bainha entre as duas abraçadeiras, com a ponta para diante e a parte arqueada da lâmina virada para cima. Tudo muito aristocrático e harmónico com as sucessivas posturas corporais. E muito uniforme, tal como aprendido desde os tempos da Escola Naval, mas feito com grande naturalidade.
Em total contraste, os “cinzentos” (que nunca se preocuparam com esta estética) pegam na arma como qualquer paisano o faria, ou o “almeida” na sua vassoura. Porque a sua espada não dispõe do pequeno fecho que solidariza a arma com a bainha, não podem sustentá-la pelo guarda-mão, mesmo se alguns metem um palito ou um pau de fósforo para tentar o travamento. Mesmo assim, desajeitadamente e com frequentes insucessos, tendem a sustentá-la com os copos debaixo do antebraço, apertando o instrumento lateralmente contra o corpo, mas com isso reduzindo muito a liberdade de movimentos deste e da própria mão esquerda. Pior é ainda com os sabres de cavalaria (também usados pelos cadetes da Academia Militar), pelo maior volume do guarda-mão. Mas, mais frequentemente pegam na arma pela bainha, abaixo da argola do talim, projectando o punho para diante, como se estivessem a oferecer ao interlocutor o uso da lâmina mortal com que desejam fazer-se trespassar. Ou, algo ingenuamente, como se oferecessem o seu mais belo ramo de flores à dama por cujos olhos se encontram apaixonados.
Mas termino com o relato abreviado de uma caricata cena que se passou em tempos com um oficial da administração naval. Porque nessas épocas os mesmos não comandavam forças em “ordem unida” e como, por acidente, se tivesse partido a lâmina da sua espada, o nosso herói resolveu substituí-la por um sarrafo de madeira, já que nunca seria chamado a desembainhá-la e saía muito mais barato. Aconteceu-lhe, porém, no ultramar, ser chamado de urgência a integrar um tribunal militar, onde as sentenças se liam com os juízes de espada desembainhada, coisa que o nosso homem ignorava. Quando chegou o momento supremo, a audiência só pode ter claudicado quanto ao dramatismo habitual destas ocasiões. “Apresentar… sarrafos!”. E nem sequer, ao menos, o réu terá aproveitado da circunstância.
Bom tempo de Verão! (para quem pode gozá-lo) Neste dia em que começam a concentrar-se no Tejo os grandes navios veleiros do mundo, simbolizando alguns dos nossos melhores sonhos.

JF / 22.Jul.2016

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Os zingarelhos funcionam? Também na Europa?

O seu a seu dono. A geringonça ficou cunhada por direitos de autor. Mas zingarelho é um termo popular equivalente que podemos usar mais livremente para retratar o mesmo fenómeno.
O referendo no Reino Unido deu a vitória aos partidários da saída da União Europeia, como as sondagens já anunciavam (mas não as primeiras previsões, à boca das urnas). E, desta vez, os mercados financeiros (pelos comportamentos verificados nas últimas horas) enganaram-se tanto quanto os comentadores das primeiras projecções dos resultados. Não bastou o choque psicológico do assassinato da deputada trabalhista para reverter a tendência de ilusório (ou perigoso) repli sobre as próprias fronteiras que se verifica um pouco por todo o continente.
Deste acontecimento maior da política internacional podem tirar-se desde já duas reflexões de fundo. A primeira refere-se à constatação do irreversível estado de desagregação e declínio em que se encontra o “projecto europeu”. É sabido que o governo de Londres nunca quis abdicar dos instrumentos essenciais da sua soberania: a moeda, a segurança, a defesa e, sobretudo, serem os representantes eleitos do povo (o parlamento e o governo dele saído) a ter a última palavra sobre qualquer decisão vinda do “colectivo” da UE. Agora, neste processo, tinha obtido de Bruxelas novas concessões que eram mais do que uma mera “geometria variável”, para ver se o novo zingarelho funcionava. Mas colocar esta escolha fundamental no aleatório teatro do referendo já foi uma escolha de alto risco, determinada por turvos interesses partidários e pessoais do governante, tal como acontecera com a submissão da independência da Escócia a idêntico instrumento de consulta popular. Quase todos os analistas políticos e económicos prevêem fortíssimas repercussões internacionais deste exit. E se no espectro partidário-ideológico só os movimentos nacionalistas exultam com o resultado verificado, alguma esquerda soberanista estará agora na expectativa de perceber melhor os impactos a médio-prazo para determinarem depois a sua estratégia contra o “bloco central europeísta”, a predominância alemã e as políticas de austeridade. É verdade que a cadeia de decisões que, desde Delors, mantinham o zingarelho europeu em operação (a tal “bicicleta que não se pode deixar de pedalar”) se esgotou, mostrando impreparação dos dirigentes para acautelar os possíveis efeitos perversos. Recordemos: “mercado único”; Maastrich; alargamento a Leste; moeda Euro; a falhada constituição europeia e o substitutivo tratado de Lisboa; crise financeira de 2008 que pôs à mostra a das dívidas soberanas de vários países; pacto de estabilidade e crescimento; penosa edificação da união bancária; e quase-estagnação actual, a que se vieram juntar os efeitos externos da gripagem económica de algumas das novas grandes potências, as guerras no mundo islâmico e o afluxo extraordinário de refugiados e migrantes – ameaçando pôr em causa delicados equilíbrios sociais e mesmo identidades nacionais ou comunitárias (quer dos que chegam, quer dos que acolhem). Nestas condições, não espanta que movimentos nacionalistas e xenófobos possam prosperar e que governos nacionais ponham os seus interesses próprios à frente de quaisquer interesses comuns europeus.
A segunda reflexão diz respeito ao questionamento que deve ser feito dos mecanismos democráticos de decisão e consulta das populações. Que um passo desta magnitude possa ser dado porque, num dado momento, “meia dúzia de votos” assim fizeram pender o prato da balança; que a comoção provocada por um acto criminoso possa ter o mesmo efeito; ou que “o sistema” (discurso demagógico+dinheiro+mass media+motivos de descontentamento ou ressentimento) possa permitir um candidato presidencial americano como Tramp (ou Hitler vitorioso nas urnas em 1933) – eis o que os “apóstolos democratas” aceitam como riscos inevitáveis mas que qualquer espírito crítico, lúcido e não-arregimentado procuraria diligentemente superar, com soluções institucionais e opções políticas inovadoras que só não avançam e ganham credibilidade pelo facto – hoje mais evidente do que nunca – do conluio de interesses existente entre os gestores do poder político e os detentores de maior capacidade económico-financeira. Salvo raras excepções pouco conhecidas, todos os partidos existentes assim se comportam porque os seus membros activos e dirigentes vivem exclusivamente motivados pela sua “luta” contra os partidos concorrentes e aspiram fundamentalmente a alcançar as rédeas de comando do poder político democrático; a preservá-lo uma vez logrado esse objectivo; e a tirar pessoalmente o melhor partido dessa experiência para o decurso restante das suas vidas. O regime democrático só é claramente superior a qualquer dos outros anteriormente experimentados pelos princípios estruturantes da liberdade e da igualdade no foro civil, e por um governo resultante da vontade popular expressa por voto secreto; não pela regra (apenas operatória) da “metade mais um”. Por isso tenho defendido metodologias eleitorais e de governação diferentes das actualmente existentes.
Também se sabe que o referendo requer muito cuidado no seu emprego. Sendo indiscutivelmente um instrumento democrático de consulta popular, contém riscos e vícios não negligenciáveis: se usado muito frequentemente (como na Suíça, onde dispõe de antiga tradição), pode (em qualquer outro país) banalizar-se e tomar decisões gravosas apenas pela maioria de uma minoria de votantes; instrumentalizado por correntes partidárias ou movimentos de opinião, decide-se quase sempre por uma escassa diferença de votos, deixando o país “dividido ao meio” em termos de disposição anímica; quase sempre, as oposições políticas aproveitam o ensejo para votar contra a posição tomada pelo governo, alterando o sentido do voto muito para além da pergunta colocada; a formulação da questão – a ser respondida por sim ou não – também se presta a subtis manipulações, como bem sabem os cientistas sociais; finalmente, usado como instrumento de poder (para se legitimar, perpetuar ou alargar legalmente as suas competências), por alguma razão o referendo tem sido um meio pelo qual ditadores ou cliques autoritárias têm consolidado o seu poder. Assim, se para decidir questões de gestão autárquica ou do foro moral (casamento, sexualidade, aborto, eutanásia, etc.) o referendo pode ser um processo democrático aconselhável, já um referendo de secessão ou independência nacional deveria exigir uma maioria qualificada, confirmada por novo escrutínio dois ou três anos depois.            

A situação política espanhola depois destas novas eleições de Junho ilustra o que acima se dizia acerca da inadequação dos mecanismos instituídos para a formação dos governos de base parlamentar e das graves responsabilidades da maior parte dos actuais partidos que lutam pelo poder sem especial atenção ao melhor interesse e bem-comum dos seus concidadãos. Sendo “impossível” uma terceira consulta eleitoral ou a permanência do governo-de-gestão em funções desde finais do ano passado, talvez uma difícil coligação acabe por se formar no parlamento, com base nas responsabilidades exigidas pela pertença à UE ou num projecto de revisão constitucional que adie por mais um tempo uma melhor decantação política das preferências dos cidadãos. Lá como cá, são as quatro décadas passadas de esquecimento do franquismo (a tal “memória histórica”) que inibem o surgimento de algum novo “tejerazo” com efeitos indeterminados sobre as futuras liberdades, que parecem tão naturalmente adquiridas aos olhos dos jovens de hoje. Eis, pois, um outro antigo estado multinacional que vem sofrendo tensões internas que ameaçam desintegrá-lo. Perante estas, a Europa só pode assistir – impotente e incrédula – aos seus resultados, reagindo depois de alguma maneira às situações de facto, não sendo certo que o faça em boa ordem e unidade. Com a Rússia do senhor Putin a soprar sobre as brasas deste rescaldo. 

Seis meses passaram com a governação “de esquerda” do PS apoiada pelo Bloco e o PC. Tudo agora é mais pensado e inteligente, e o exercício do poder também. O país não tropeçou, os escolhos foram sendo evitados e a gestão política revelou-se muito hábil, entre a frente interna (com fraca oposição, abrindo até a porta à evidenciação da nova líder do pequeno CDS) e a externa (mais coriácea, mas também sem bloqueios). O “prestidigitador” António Costa não melhorou a qualidade do seu discurso mas exaltou a multiplicidade dos seus registos expressivos consoante os cenários e as circunstâncias: evasivo, irónico, contundente, demagogo, sempre inteligente – um político! (no melhor e no pior das acepções). Por isso, a lenta derrapagem dos indicadores económicos não tem sido suficiente para lhe estragar o sorriso: equilíbrio orçamental (já ameaçado pelo ano eleitoral de Passos Coelho e estragado pelo caso BANIF), exportações, crescimento, investimento, desemprego, tudo tem abrandado, estagnado, se não piorado – por referência a uma recuperação da economia que era ainda anémica. E o “rigoroso cumprimento das promessas eleitorais” só acrescenta despesa pública, sem que a estratégia da “procura interna” provoque os efeitos virtuosos anunciados. Mas além do profissionalismo da “política de comunicação”, o primeiro-ministro tem contado com a inestimável ajuda de um Presidente da República que não deixou de “ser Marcelo”.
Este, está a modelar ao seu jeito o funcionamento do sistema político português, com uma capacidade de iniciativa de Belém como nunca alguém ousara ter (desde os incomparáveis tempos de Sidónio Pais). Num país irritado, desavindo e frustrado pelas receitas de realismo económico impostas de fora, o PR está a jogar em pleno a carta temporária da estabilidade, sob fundo de um nacionalismo que mesmo os mais antigos povos afeiçoam, sobretudo as classes populares. Além do “populismo” dos beijinhos e do pastel-de-nata, repare-se na sua ubiquidade face aos portugueses espalhados pelo país e pelo mundo, na ofuscação da pasta dos negócios estrangeiros, no respeitoso aligeiramento das funções de “comandante supremo”, na permanente gravata azul ou na ressurreição unionista do 10 de Junho. Para o ano que vem teremos o centenário de Fátima e depois o do próprio Sidónio, mais o que adiante se verá… talvez mesmo capaz de fazer vibrar a corda do nacionalismo ultramontano (mas fundamentado) de um Brandão Ferreira. Mas, por agora, é apenas um apelo patriótico que deixa “a esquerda” meio-fascinada, meio-desconfiada.
A questão das 35 horas de trabalho semanal é muito ilustrativa do momento actual. Eis um patamar absolutamente respeitável para servir de referência para a generalidade dos trabalhadores a salário. A saber: dois dias inteiros e contíguos de descanso e 5 “dias úteis" a 7 horas de trabalho, tendo em conta a produtividade atingida pelas economias modernas, a sua sustentação pelo consumo e os constrangimentos decorrentes da vida urbana (transportes, etc.) – seria, de facto, um objectivo social que mereceria ser perseguido entre os ainda mais urgentes “objectivos do milénio”! Porém, nem a OIT o terá conseguido ver adoptado como leitmotiv para as suas campanhas estratégicas de médio-longo prazo! Está talvez na calha, como estará também o de um forte incentivo para o trabalho a meio-tempo capaz de alavancar supletivamente o emprego (onde os rendimentos sejam já suficientes), mas ainda não pôde ser activado. Fora de uma dinâmica deste tipo, a adopção unilateral e sectorial das “35 horas” arrisca-se (como aconteceu em França) a produzir mais confusão e efeitos negativos do que benefícios para o mundo do trabalho e para a sociedade no seu conjunto, pois trata-se de uma temática onde desde há mais de 20 anos a “flexibilidade”, a “competitividade” e a desregulamentação escavacaram a velhíssima noção das “8 horas de trabalho” (diário) ou mesmo da “semana americana” (que sucedeu à “inglesa”). Tudo isto talvez pelo simples facto de haver também uma escondida “variável biológica” – que nunca se vê considerada nas teorias de referência –, ligada à capacidade de esforço prolongado dos indivíduos, que a economia real sabe muito bem aproveitar. E o Partido Comunista, que nestas coisas é sempre o mais avisado de todos, não deixou de levar à Assembleia da República uma proposta para a universalização das “35 horas”: para marcar posição e memória futura. 
Entretanto, é verdade que assistimos a um combate “de armas emboladas” entre alguns dos mais caros valores de esquerda e dos mais genuínos credos de direita, sobre uma questão social tão importante como é a da escolarização. O pretexto foi o do reajustamento dos “contratos de associação” com colégios privados feitos pelo Ministério da Educação para subsidiar turmas sem escola pública por perto. Questões relevantes para debater são certamente as do papel de ambas as modalidades de ensino no nosso tempo, da liberdade de escolha entre elas e entre estabelecimentos públicos, o papel dos rankings nessa concorrência, as equivalências ou equidade das notas, exames e diplomas, a adequação dos programas à evolução social, os processos de selecção e de encaminhamento para formações mais práticas ou mais teóricas, os resultados académicos e as formas de auxiliar os mais fracos, ou ainda a (fundamental) qualidade do professorado e da direcção das escolas. Mas não é isso que se discute e, sobre tal base e dos consensos possíveis, se decide. É sobre argumentos jurídicos relativos a decisões tomadas no passado ou capciosas “contas de merceeiro”, onde os respectivos especialistas, juristas e gestores, exalam as suas respectivas capacidades argumentativas.
Numa coisa estaremos todos de acordo quanto aos comportamentos sociais de hoje: quaisquer pais (de esquerda ou de direita) procurarão pôr os seus filhos na escola (pública ou privada) que julguem ser de melhor qualidade e esteja ao seu alcance: é ver como a classe média-alta manda estudar os jovens para o estrangeiro, intuindo que daí sairão melhor preparados! 
Provavelmente, o ministro Crato, favoreceu financeiramente mais um pouco o “lóbi dos privados”; e os aliados do PS escolheram esse terreno para agredir a oposição e esgrimir os seus argumentos de universalidade, legalidade e constitucionalidade. A direita partidária está na expectativa de nova bancarrota a prazo e encoraja os colégios para a contestação de rua, tal como a esquerda estalinista “manda avançar” a CGTP para que não abrandem os protestos e as reivindicações (eles lá estarão para, se e quando for o caso, “saber terminar uma greve”). Neste caso, por detrás da cena, manobram esquerda e direita, num plano, e “laicistas” e “católicos”, noutro, mas que não ousam assumir-se enquanto tais. Quantas vezes vimos já isto num país exemplo deste tipo de conflitos como é a França?
No plano das instituições do sistema financeiro (exibindo fragilidades antes escondidas), a Caixa Geral de Depósitos, que parecia o inexpugnável refúgio de segurança da classe média tradicional, revela agora que aqueles que a têm dirigido não fizeram menos asneiras e favores-de-amigos do que os já desacreditados banqueiros do BPN, do BPP, do BES ou do BANIF (para além das desconfianças suscitadas pelo BCP e MG, do receio de financeiros espanhóis e do medo dos gestores angolanos). Para um leigo, o sistema europeu de resolução bancária já posto em prática no caso de Chipre – com a protecção integral dos pequenos depositantes, assunção parcial dos riscos por sucessivas categorias de obrigacionistas/“investidores”, perdas totais para os accionistas e castigos (“profissionais” e, eventualmente, criminais) para os gestores responsáveis – parecia mais justo e adequado do que o recurso aos dinheiros dos contribuintes, sempre com a justificação de evitar as “implicações sistémicas” duma falência. Será esta uma razão efectiva, ou apenas mais uma crença dos governantes estatistas que não perdem uma oportunidade para ganhar maior protagonismo? Se assim fosse, até poderia acontecer que uma participação minoritária de capitais privados (os tais que só olham à rendibilidade dos seus “investimentos”) na CGD obrigasse a maior rigor de contas e prudência de negócios por parte dos administradores nomeados pelo governo. Mas talvez esta suposição derive antes de uma “desconfiança visceral” nos actuais procuradores do nosso bem-comum, agravada pela deslegitimação a que têm sido sujeitos os diversos reguladores independentes (incluindo o Banco de Portugal) perante a opinião pública. 

A decisão dos povos britânicos de 23 de Junho põe tudo em aberto: que União Europeia poderá subsistir depois deste abalo? Como encarará a Alemanha esta nova situação estrutural? O “sonho” de uma Europa unida respeitadora da diversidade de nações que a compõem, assente sobre liberalidades realmente inextensíveis e sobre um apetite de bem-estar e consumismo inesgotáveis, começou a esfumar-se com a crise financeira de 2008 e recebeu agora o seu golpe-de-misericórdia. Essa unidade mítica só poderá porventura vir de novo a existir perante alguma temível ameaça externa que atinja as liberdades fundamentais dos seus cidadãos. Estes, por agora, parecem antes querer ajustar contas com os partidos que nas últimas décadas têm dirigido os seus destinos, sem cuidarem do que pode vir a seguir.
É com estes e outros desafios que a UE se encontra confrontada, e onde não abranda a vaga migratória e de refugiados do Médio-Oriente e de originários do coração de África. Veremos se, um após outro, os nacionalismos não levam a melhor e se o desbancar-de-feira dos partidos do “centro europeísta” não leva à emergência de outros extremismos, ainda mal qualificados do ponto de vista ideológico. O mundo não está florescente mas, em certos aspectos, a Europa está pior.           
JF / 28.Jun.2016

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Economia sem números para leigos

A economia é, academicamente, uma ciência recente mas a sua prática social terá começado há milénios quando as comunidades humanas se meteram a produzir mais do que consumiam e, em vez de armazenar o que podia sê-lo ou oferendar aos deuses, trataram de trocar esse excedente com produtos de que careciam ou apreciaram, oriundos de outras comunidades. A troca, e a necessária busca de um “equivalente de valor”, está, pois, na génese da economia. Até então (e prosseguindo sempre, embora em histórico declínio) colectavam-se os frutos da natureza, roubava-se, pilhavam-se recursos alheios, destruíam-se concorrentes, etc., mas isso não era economia: eram actividades diferentes, do âmbito da luta pela sobrevivência, da agressividade humana ou da guerra, que ainda hoje subsistem, imperfeitamente civilizadas.
Entre os séculos XVII e XVIII, bons pensadores filosofantes empreenderam o esforço de dar uma base racional rigorosa a esta actividade humana, articulando-a com a “riqueza das nações” (Adam Smith), procurando definir melhor os factores criadores de valor (a posse da terra, o capital amealhado, o trabalho) e esclarecer matematicamente os processos de formação dos preços dos produtos. Mas já havia séculos que inteligentes matemáticos hebraicos tinham calculado os mecanismos do crédito e da usura (e, claro, daí tirado benefício); e muito mais tempo havia passado desde quando certos poderes políticos haviam normalizado a moeda, para mais facilmente cobrarem o tributo – mas contribuindo também poderosamente para facilitar as trocas e o comércio. Às antigas civilizações mediterrânicas devemos todos nós esse incentivo.
O comércio é, pois, historicamente mais recente do que o esforço de produção (semear, colher, fabricar, pescar, caçar), mas talvez tenha introduzido nas relações humanas um primeiro quantum de pacífica convivência, por interesse mútuo, com possibilidades de expansão ilimitada. Mas um quantum de interesse e benefício mútuo quer dizer isso mesmo: uma porção, não a totalidade ou a obrigação forçosa que assim seja. De facto, esta relação social biunívoca e vantajosa para ambos – vendedor e comprador – também se presta ao desenvolvimento de outras “paixões humanas” menos interessantes:  a ganância, o engano ou a extorsão. O interesse mútuo do vendedor e do comprador no mercado e no acto de mercadejar é dobrado pela oportunidade ou o estímulo do mais forte enganar ou esmagar o mais fraco, deixando-o ainda assim na dúvida se não se tratou de uma troca ou de um contrato justo.
A permuta de bens móveis e mercadorias alargou-se aos bens fixos, fundiários (terras e edifícios), já garantidos por normas de direito (leis e contratos) que haviam vindo consagrar as circunstâncias da posse (pelo uso continuado), da conquista ou do roubo. O comércio alargou-se também, mais tarde, à negociação e troca de direitos de propriedade e de outras vinculações que abrangiam tanto coisas como as próprias pessoas. Do “direito de presa” – da guerra ou de outras formas de violência sobre os vencidos – terá decorrido a opção dos vencedores em guardarem ou venderem a terceiros os seus cativos. E daqui se originou a secular prática antiga da escravatura, que hoje tanto nos repugna mas que era ainda uma realidade presente, embora em extinção, no tempo dos bisavós dos mais idosos de hoje (e de que nós, pelo menos, sabemos o nome). Por outro lado, a iníqua “relação de forças” entre proprietários poderosos, de um lado, e populações miseráveis, do outro, condenou ao longo de inúmeras gerações estas últimas à condição servil de sobreviverem da árdua labuta da terra ou da pastorícia mas em que a porção principal desse resultado ia directamente para usufruto do proprietário. E em certas regiões a “superestrutura” social criou um conjunto harmónico e blindado de crenças – tradições, normas jurídicas, transmissão por herança, guerras justas, alianças matrimoniais entre poderosos, consagração religiosa, etc. – que deu viabilidade aos condados feudais, aos reinos e aos impérios, os quais, a despeito do barbarismo do método, impuseram uma certa “ordem social e económica” durante séculos a grandes teatros de conflitos, como foi o caso da Europa e da bacia mediterrânica.   
No seio dessa “ordem”, a prática das transacções comerciais começou a ser regularizada por acordos e posturas corporativas e comunais, e também por acção do poder político aí dominante, através de instituições como as feiras e mercados, as vilas francas (isto é, livres de impostos mais gravosos) ou a protecção das caravanas e almocreves, ainda então muitos sujeitos à rapina dos salteadores de caminhos. Por outro lado, o desenvolvimento do comércio marítimo medieval e renascentista obrigou à necessidade de reunir elevados montantes financeiros para financiar a construção, armamento, pagamento de equipagens e elevados stocks de mercadorias, ao mesmo tempo que suscitava a criação de mecanismos de asseguramento contra os riscos do acidente marítimo, que eram então geralmente calamitosos e totais. A banca, o crédito e o seguro tiveram aí a sua grande experiência para se virem a constituir como instituições indispensáveis ao progresso económico, quer esse papel tivesse sido então assumido por empreendedores privados (negócio em que ricos judeus se mostraram exímios e sem os escrúpulos cristãos ou muçulmanos acerca da ilicitude da usura ou da agiotagem), quer por guildas ou ligas das corporações mais ligadas à circulação económica, sobretudo no norte da Europa.
A tal ponto o sucesso deste processo económico-financeiro foi grande que, muitas vezes, os detentores do poder – político, militar, jurídico e da capacidade de levantar impostos, quase sempre com a justificação do beneplácito divino – passaram a ter que a ele recorrer para conseguir os fundos necessários para financiar campanhas militares ou a construção de castelos e catedrais. Isto é: conseguindo os seus objectivos mas ficando forçados a endividarem-se e a pagar os respectivos juros e, no modo combinado, o capital emprestado. Embora aqui se tratasse ainda, realmente, de negócios privados das grandes casas reinantes, a natureza regaliana destas entidades conferia-lhes já, em germe, o carácter de intérpretes de um “interesse público”. Quando o Estado – ainda que interpretado pessoalmente por um monarca – pedia emprestado dinheiro a quem o tinha, em vez do habitual lançamento de novos impostos, estávamos realmente já a falar de “dívida pública” e das condições da sua solvabilidade.
No Meridião, este papel económico-financeiro coube também, em parte, a ordens militares-religiosas, em parte a coligações aristocráticas ou oligárquicas,  ou ainda, mais tarde, a monopólios comerciais criados ou garantidos pelo poder político: por exemplo, a nossa Casa da Índia (a seguir à da Guiné) para o ouro e as especiarias, ou foi assumido através das prerrogativas concedidas a longínquos agentes representantes do poder real (vice-reis, capitães-mores, etc.)
Esta realidade económica-financeira não foi substancialmente alterada até ao século XVIII, nem sequer com o aumento da escala das grandes companhias formadas para o comércio intercontinental, em seguida à aventura descobridora de portugueses (e outros seguidores): o entreposto de Antuérpia ou as Companhias das Índias holandesa e inglesa, que controlaram durante três séculos este comércio de longa distância, trazendo para a Europa os produtos exóticos aqui apreciados e exportando mercadorias além inexistentes. Mas também nesta época se foi organizando de forma sistemática e maciça o comércio de escravos de África para as Américas, onde eram patentes as necessidades de mão-de-obra e tentadoras as oportunidades de exploração agrária extensiva (cana do açúcar, algodão, etc.), para além das riquezas da pastorícia (para a exportação de peles) e da extracção das jazidas mineiras proporcionadas por esse “novo mundo”.
O que alterou decisivamente este quadro foi a revolução industrial do século XVIII na Grã-Bretanha (depois em França, na Bélgica, Alemanha, etc.) com as grandes manufacturas, a aplicação da força motriz das máquinas a vapor e uma divisão-do-trabalho mais avançada, superando os antigos métodos de trabalho artesanais. Dentro deste modelo, desenvolveram-se particularmente as indústrias têxteis e metalúrgicas – também as da madeira, do papel e, com mais atraso, as químicas – e, a montante, a mineração do carvão e do ferro. A jusante, requeriam-se novos mercados extensos, que foram sendo constituídos pela procura interna (vestuário, utensílios e habitação urbana), pela exportação (incluindo os prometedores mercados de infraestruturação básica dos territórios de além-mar, que também ofereciam para a troca matérias-primas interessantes como o algodão, a borracha ou as oleaginosas) e pelas despesas públicas do Estado moderno (tanto com as obras públicas e sumptuárias, como com as sociais e as destinadas à guerra). Mas tudo isto carecia de enormes volumes de investimento financeiro. As riquezas acumuladas pela nobreza ao longo de gerações estavam sobretudo investidas em propriedades fundiárias, não directa e imediatamente convertíveis em dinheiro para adquirir maquinaria, comprar matéria-prima e contratar trabalhadores. Pior ainda com os novos burgueses que, contudo, dispunham da importante vantagem de aceitarem correr riscos, em vista de um lucro futuro.
Nestas condições, é compreensível que o século XIX, já com a produção industrial a encontrar mercados consumidores nos quatro cantos do mundo, tivesse também assistido ao aparecimento e formalização jurídica de novas entidades como foram as sociedades anónimas e por quotas, as bolsas de valores, os bancos e companhias seguradoras na forma moderna sob a qual ainda hoje os conhecemos. Estas últimas jogavam no cálculo de probabilidades que nos diz que o acidente só ocorre de vez em quando e a catástrofe apenas raramente, estabelecendo o valor dos “prémios” com uma conveniente e segura margem de lucro. Os bancos recebiam os depósitos que remuneravam com juros; e emprestavam, mediante garantias e cobrando igualmente juros, com regras prudenciais para nunca caírem em situação de “descoberto”. O crédito tinha, pois, chegado à economia como um factor essencial e indispensável do crescimento, por agora ainda essencialmente reservado às grandes empresas e projectos, já que a classe média preferia então aplicar as suas poupanças em investimentos imobiliários (para aluguer, rendendo alguma coisa), e aos pobres restava, quando muito, a associação mutualista.     
O século-e-meio transcorrido até agora assistiu à exibição e confronto (por vezes violento) de poderes de vária outra natureza (política e ideológica, militar-estratégica, social “das-grandes-massas”, da imprensa e outras formas de comunicação informativa e cultural, etc.), mas sempre com a constante presença de duas outras “variáveis independentes”: a da economia (dita “real”) e a do capital financeiro, interdependentes uma da outra, às vezes com os processos de produção-circulação-consumo a parecerem impôr-se a bancos e seguradoras (ou aos cartéis e trusts financeiros que já Lénine apostrofava), quase sempre por força de intervencionismos estatais; outras vezes com estas instituições (mais os recentes “fundos financeiros”, reciclagens de rendimentos ilícitos, ganhos especulativos “de oportunidade”, etc.) a determinarem as condições de produção e o nível de vida das mais extensas camadas da população. É hoje o caso, com a agravante de, nos países mais desenvolvidos, as “classes médias” terem passado a ser grandes consumidoras de bens e grandes utilizadoras do crédito para as suas necessidades de consumo.
O poder de Estado surge aqui com uma capacidade de imposição fora do alcance de qualquer dos outros grandes actores deste complexo jogo, que já há muito ultrapassou as fronteiras nacionais. Por isso (além do resto), esse poder de Estado se tornou um objecto apetecível para aquelas forças (ideias e interesses organizados) que entendem dever forçar todo o conjunto da sociedade (cidadãos, instituições, empresários, trabalhadores, práticas sociais, tradições e projectos) à suposta bondade das suas soluções e às convicções de que se julguem ungidos. O problema maior é que, embora importante no caso das grandes nações, o poder do Estado nacional e hoje muito pequeno para controlar um sistema de trocas económicas e de mobilidade financeira que funciona, em grande medida, à escala mundial. 
Em todo o caso, é por estas razões que se mantêm tão fortes as relações entre a economia e a política – mas de modo assaz diferente daqueles que se verificaram no passado. Na hora actual, para além da percepção dos seus mecanismos fundamentais, é preciso também conhecer alguns números para se conseguir ter uma ideia aproximada de como a economia e a política se entrelaçam e condicionam mutuamente. O que não está ao alcance de muitos e é sempre um trabalho cheio de armadilhas.
JF / 20.Maio.2016

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