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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Uma ordem pública mantida sob coacção policial não dá quaisquer garantias de futuro. E quanto à ordem internacional…

Uma em cada três ou quatro semanas, surgem novidades capazes de nos surpreender ou obrigar a olhar para trás. Foi ainda há poucos dias e todos estaremos recordados da “inacção voluntária” dos elementos da Polícia Militar do estado do Espírito Santo, no Brasil, uma invulgar forma de luta reivindicativa em que as mulheres dos polícias bloquearam as saídas dos quartéis durante uma semana reclamando aumentos de 40% dos salários dos seus maridos para compensar o agravamento do custo de vida. Felizmente, já não estamos nos tempos em que a ordem pública chegava a ter de ser assegurada pelo exército que, quando necessário, espingardeava manifestações populares de protesto. Porém, devido a razões antigas e já de si significativas, as principais forças de polícia brasileiras funcionam sob regime militar, onde a greve é infracção criminal severamente punida, mas são pagas e dependem operacionalmente dos governos estaduais, uns mais ricos do que outros, uns com as contas equilibradas mas outros em quase-descalabro financeiro e com os salários dos funcionários em atraso. Resultado prático: a ausência de policiamento traduziu-se num aumento em flecha da criminalidade nas cidades de Espírito Santo, com mais de cem mortos numa semana. O conflito lá se resolveu por negociação informal mas o caso merece reflexão, se a ele juntarmos vários outros, como as práticas, habituais em muitos países africanos, de os polícias e outras autoridades menores do Estado usarem dessa qualidade (ou da arma que trazem à cintura) para extorquir dinheiro de quem lhes está ao alcance, ainda por cima à la tête du client.

No curto prazo, isto resultará do facto de grandes massas de funcionários, trabalhadores, camponeses e lúmpen-proletariado urbano terem acesso às imagens do mundo rico e poderem agora confrontá-las com a sua estagnada pobreza. Mas os processos são de longo prazo e superior complexidade, envolvendo as dinâmicas do desenvolvimento técnico-económico e social, a actual “globalização”, bem como o sistema de relações internacionais gerado após a segunda guerra mundial, a descolonização e a queda do “império soviético”. 

O “equilíbrio do terror” atómico e o cálculo racional dos líderes dos dois blocos evitou o colapso da humanidade e há setenta anos que praticamente não se fazem guerras entre estados nacionais. Mas os conflitos armados não diminuíram por isso, apenas tomaram outras formas: guerras subversivas, civis, religiosas, sectárias, civilizacionais, terrorismo, no ciber-espaço, etc. E, contra estas, o Conselho de Segurança da ONU tem tido pouca eficácia.

Um segundo dado de enorme relevância é o facto – também novo, no presente contexto de mundialização – de, nos territórios onde o Estado se dissolveu (geralmente após a queda de regimes ditatoriais) se ter entrado numa situação de descontrolo, de poderes-de-facto exercidos à força das armas, com toda a sorte de arbitrariedades, exploração dos mais desmunidos, tráficos ilegais, exílios forçados e bandos à solta de senhores-da-guerra: são os chamados “Estados falhados” (como a Somália, o Sudão, o Iémen, a Líbia ou a Síria). Aqui, nem as ajudas das instituições de socorro e solidariedade das Nações Unidas têm sido suficientes.

Mesmo noutros contextos, são muitas as situações relatadas em que a ausência de forças policiais instaura uma espécie de perigosa “lei da selva” e bem mais raros os exemplos de comunidades capazes de, nessas circunstâncias, assegurarem a sua auto-defesa de forma controlada, sem deixar que tal vazio seja ocupado por um qualquer gang de fanáticos ou traficantes.

Por outro lado ainda, as pressões económicas agigantaram a capacidade de as grandes potências e os impérios empresariais multinacionais coagirem os países mais fracos, aumentando a distância entre o nível de vida médio das suas populações. Isto, no exacto período em que a mobilidade dos factores (mercadorias, pessoas e capitais) mais se acentuava, o mesmo acontecendo com a informação e o conhecimento científico.  

Quem são os responsáveis deste estado de coisas? Para além da resposta óbvia e verdadeira mas largamente inconsequente – ou seja, “o sistema” –, se é preciso apontar o dedo a alguém, esses terão de ser os dirigentes políticos e os grandes empresários que tomam as decisões essenciais e se atribuem rendimentos milionários, bem acima das médias dos seus países.

Mas, ao contrário do que em tempos alguns pensaram, não basta – e será mesmo geralmente perigoso – desbancar do poder essas elites, sem que exista uma ideia-directriz alternativa ao modelo vigente de organização do Estado-nação e de correcção do funcionamento da economia mundializada que existe. E, com base nessa nova ideologia (que tem de ser plural, embora assente em alguns pilares firmes), se constitua um movimento político (igualmente plural) capaz de prosseguir duradouramente com estruturas organizativas e capacidade de acção para finalmente lograr os seus propósitos reformadores mais decisivos. Mas, desde já uma observação fundamental deve ser feita: apesar da extrema diversidade sociocultural do nosso mundo presente (que hoje está unificado pela economia e pela comunicação), é indispensável que tal ideologia e movimento integrem totalmente todos os povos e nações do mundo, e não sejam um novo produto feito à medida da intelligentsia dos países mais desenvolvidos. É também óbvio que deverão aproveitar da herança democrática o melhor que esta pôde oferecer à humanidade (liberdade, igualdade cidadã e civil, renovação do mandato dos governantes eleitos, observância de regras impessoais, decisão pela maioria com respeito pelas minorias, etc.), mas rejeitem sem tibiezas ou compromissos os aspectos mais nefastos que a sua longa prática proporcionou: partidos-gémeos irremediavelmente desavindos, oligarquização partidária, eleitoralismo, populismo, caudilhismo, compadrio e corrupção.       

Há trinta ou quarenta anos atrás, nós próprios partilhámos a convicção daqueles que achavam que, afastados os poderosos dos seus lugares de mando, o bom-senso, a nociva experiência vivida e a “sociabilidade natural” das gentes apoiariam maioritariamente uma nova organização do poder político e de auto-controlo da liberdade económica, sustentáveis e de qualidade humana bem superior ao antecedente. E que, na ordem externa, o banimento do militarismo e um esforço significativo de desarmamento – mesmo unilateral, capaz de desencorajar moralmente um potencial agressor – pudessem ser suficientes para inaugurar uma era de relações internacionais baseada na cooperação, em vez da competição agressiva ou da dominação. Os efeitos perversos da auspiciosa estratégia de acção não-violenta de Gandhi – com os conflitos intercomunitários, a partilha da “grande Índia”, a disputa do Pundjab, o seu próprio assassinato, o apetite da China sobre o Tibete, a escalada nuclear, o intratável Afeganistão, etc. – deviam logo ter-nos feito compreender que não bastava o alto valor moral daquele tipo de luta.

O lema “si vis pacem, para bellum” foi quase sempre usado para mascarar ânsias de poder nacionalista ou imperial e para alimentar os lucros dos negociantes de armamento, sejam empresas ou estados. Mas (embora possamos estar com uma visão perturbada por acontecimentos que oxalá possam vir a ser superados por negociações ponderadas e razoáveis) tudo nos leva a crer que a paz universal continuará a ser uma bela miragem – pela qual é bom que alguns se batam, para que não o esqueçamos – e que, entretanto, seja preciso que as armas existentes estejam em mãos confiáveis e sirvam para controlar a violência e manter a paz, civil e mundial, e não para o inverso. 

Hoje, parece evidente que – devendo ser afirmados os mesmos valores de liberdade e equidade social – actores políticos como os islamitas radicais, os senhores Putin e Trump, o governo chinês e o norte-coreano ou o neo-fascismo à espreita em alguns países europeus, embora muito diferentes entre si, exigem respostas mais ousadas e eficazes que, porém, nem a moderação liberal ou conservadora nem “as esquerdas” (em geral) estão em condições de protagonizar – pela razão simples de que também são co-responsáveis pela animação do sistema que nos governa. (Apesar de tudo, a leitura de uma biografia de Churchill como a escrita por Sebastian Haffner ajuda-nos a compreender melhor as subtilezas da relação que existe entre a política convencional e os grandes fenómenos da vida mundial. Em contrapartida, o Estaline de Sebag Montefiore só nos pode deixar emporcalhados pela criminosa orgia de sangue, álcool, mentira e loucura que ressaltam dos factos e pela técnica pessoalizada, humana até, da sua narração.)

Aos pensadores do futuro e aos homens e mulheres práticos das gerações actuais (libertos dos vícios da “política politiqueira”) cumpre, portanto, a ingente tarefa de reinventar um destino plausível e mais risonho que afugente as sérias ameaças que nos rodeiam.

JF / 24.Fev.2017

(Julgo que esta é a minha declaração política mais importante dos últimos anos, certamente fruto de frustração e pessimismo.)

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