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domingo, 13 de julho de 2014

Uma ideia exagerada da política

O teórico italiano Giampetro Berti, apaixonado pela história política, definiu um dia apropriadamente o anarquismo como sendo “uma ideia exagerada de liberdade”. Eu aproveito o mote para me referir à situação por que está passando o Partido Socialista português.
O PS – de modo bem diferente do PPD/PSD mas, como ele, um partido aberto e sociologicamente muito representativo da sociedade e da cultura portuguesas – tem vivido de tempos a tempos crises internas mais ou menos tempestuosas, desde o congresso do confronto com Manuel Serra, às saídas dos “reformadores” e da UEDS, das desavenças Soares-(Eanes)-Zenha às tricas pós-soaristas entre Constâncio, Sampaio e Guterres, às sonoras e grandiloquentes ameaças de Alegre, e dos constrangimentos provocados pela liderança “determinada” de José Sócrates até à chegada de António José Seguro que foi encarado por toda a gente como um líder-de-transição. Mas raramente se terá visto um espectáculo de “rivalidade democrática” tão mediatizado e rico de “faits divers” como o que actualmente decorre.  
Tudo o que na política há de menos nobre e interessante – duelos orais em que só se procura o efeito, vantagens prometidas, manobras legais, insinuações torpes, lavagens-de-mãos como Pilatos, arregimentação de apoiantes, empurrões e apupos, parece até que agressões – tem tido ali as suas representações, em concentrado e pouco tempo, com a ampliação feita pelos media, sobretudo depois que o nacional-futebolismo esgotou precocemente o seu filão. Porém, todos os tenores juram que só querem debater “o que interessa para o país”, sejam os “aspectos concretos” (e lá sai a última listagem de críticas e de propostas alternativas, dos tribunais que já não fecham à inevitável “política do mar” ou o apoio às PME), seja “uma estratégia nacional para sair da crise” ou para “em definitivo” garantir a permanência do Estado social. Dizem uma coisa ao mesmo tempo que a negam na prática, o que é quase inevitável nos períodos e no tipo de campanha eleitoral a que fomos habituados. É de sublinhar a opinião emitida há dias por um respeitado historiador: «considero inadmissível que o partido que sem dúvida vai ocupar o poder em próximas eleições se afirme desta forma pouco demonstrativa da política como cidadania e sim como forma de conquista do poder, aquela que afinal se tem identificado com o que há de negativo na vida dos partidos» (Luís Reis Torgal, “As duas políticas”, Público, 8.Jul.2014). Se queriam ganhar balanço para uma corrida em passo acelerado em direcção ao próximo governo, os socialistas enganaram-se na receita e arriscam-se a perder a embalagem que traziam, que era exclusivamente devida à natural reacção das pessoas pelo pioramento do seu nível de vida!
Entendamo-nos! Eu não sou socialista mas também não sou anti-socialista. A maior parte dos meus amigos situa-se nessa área, votando ou aí actuando organizadamente. Em 1974, alguns velhos anarco-sindicalistas entraram mesmo para o PS para tentarem nele constituir uma “corrente libertária e federalista”. E se a maioria desses sobreviventes da antiga CGT o não fizeram, quase todos não deixaram de ir às urnas e aí apor a sua cruz “na mãozinha”, por muito que não acreditassem na bondade intrínseca dessa forma de exercer a cidadania. O PS (e o realismo de Mário Soares, antes de mais) constituiu então a barreira fundamental que travou a eventualidade de uma aventura esquerdista/terceiro-mundista que só poderia acabar mal. Mas, desde então, o partido instalou-se e partilhou alternadamente com o PSD (com pequenos contributos do CDS) o essencial da governação do país. Muito se progrediu e mudou ao longo destes 40 anos. Mas as dificuldades por que os portugueses estão agora a passar também lhes são principalmente imputáveis.
É verdade que o eleitorado tem sido de uma enorme fidelidade aos partidos que emergiram com o restabelecimento da democracia, o que, se é uma virtude que bloqueou qualquer eventual ameaça de constituição de uma direita revanchista e radical, também é um prémio ao anacrónico “tribunismo” do PCP e ao rotativista dos dois principais alternantes no poder, com espaço e tempo suficientes para forjarem e manterem os seus laços de interesses económicos e clientelares, e se refazerem nos períodos de pousio da má imagem que deixaram da última passagem pelo governo. Com a fraca experiência do PRD patrocinado por Eanes, do (apresar de tudo, interessante) PSN e do radicalismo inconsequente do Bloco de Esquerda (agora parece que em vias de desagregação), mais o aferrolhamento do actual sistema político por interesse directo dos que lá estão, só tem restado a uma boa parte do povo português, desgostoso e crítico deste estado-de-coisas, a fuga para a abstenção e a descrença no actual modelo de representação e governação.
Desta vez, porém, a crise do PS pode levar a consequências novas. Com aquilo a que já se assistiu publicamente e o que pode vir ainda a suceder até Outubro, é quase certo que muitos dos que poderiam votar PS nas próximas legislativas para castigar o actual governo deixem de o fazer, desencorajados com o espectáculo. Com António José Seguro a candidato, a vitória será sempre “curtinha” (e até dará esperanças à actual maioria); mas se António Costa partiu para esta aventura com ideias de chegar aos 116 deputados, já deve ter percebido que tal não irá acontecer, restando-lhe o trunfo de uma eventual aliança à esquerda, de um pacto de médio-prazo com o PSD ou de mais uma coligação com o CDS, uma vez removidas as actuais lideranças destes partidos. Não é provável que alguém queira e possa governar em minoria no parlamento.
Com tais perspectivas, como vão os socialistas agora alinhados com Seguro “reentrar na fila” para os cargos e as prebendas de um próximo governo chefiado por Costa? E quem acredita que, se forem vencidos, os apoiantes deste último fiquem de mãos-nos-bolsos com uma nova composição parlamentar e uma solução governamental indecisas? O risco de uma cisão não se põe ainda, enquanto Mário Soares puder intervir e o PCP não mostrar uma nova disposição, para a qual, aliás, já dispõe de uma geração de quadros políticos formados no “pós-fascismo”. Mas ela vai provavelmente passar a estar presente, como espada de Dâmocles, nos debates internos do PS (e dos outros partidos, eventualmente beneficiários ou prejudicados pela operação), sobretudo segmentados segundo linhas de fractura sobre como resolver o défice orçamental e o peso da dívida (pública e externa) a médio/longo prazo, e quanto à nossa posição marginal no concerto europeu, perante o contínuo definhamento dos padrões de vida nacionais. Pode ser até que daqui se precipite finalmente uma fragmentação e recomposição da nossa tradicional representação partidária: o que ninguém saberá é em que sentido ela se dará.
Tudo isto é curioso de observar e interessante de estudar mas, realmente, é sobretudo da vida e dos interesses dos políticos aquilo de que se trata, sobre as costas dos cidadãos. Também aqui há “excesso de política”. E défice de cidadania.
Pacheco Pereira, que tem averbado no seu currículo alguns bons combates – como contra o mainstream jornalístico, a liberdade de criticar o seu próprio campo político e agora contra a “partidocracia” que se exibe esplendorosamente no país –, enfrenta hoje o fantasma do cansaço-de-si-próprio e da sua “institucionalização”. Daí a dificuldade crescente de, no meio de uma argumentação oral, terminar frases esboçadas ou de explicitar para um público amplo e diverso o que já mil vezes lhe passou pelo cérebro e que os seus interlocutores também antecipam. (Um comunicador público tem obrigação de rever criticamente as gravações daquilo que vai destilando para o éter.) Daí também a “manipulação” com que, noutros registos, trata dados, imagens e ideias e se refere a assuntos que não conhece e abomina (a economia, o desporto, o direito ou mesmo a sociologia empírica), tudo canalizando para o domínio da política onde, de facto, tem uma enorme capacidade de análise (sobretudo dos factores subjectivos) mas onde também, não tendo sucesso como actor (honra lhe seja, nos termos em que aquela se faz), ele se compraz no seu refúgio aristocrático de comentador ou analista requestado e certamente bem-pago. Pacheco Pereira, que neste aspecto faz também “uma ideia exagerada da política”, tem-se perdido um pouco ao não resistir aos apelos interiores do opinion maker e de – legitimamente, como cidadão inteligente e empenhado – por essa via procurar “levar a água ao seu moinho”, seja no apoio à gestão autárquica de Rui Rio, na defesa da liderança partidária de Manuela Ferreira Leite ou no frentismo-de-esquerda contra o governo de Passos Coelho-Portas. Porém, tem toda a razão ao descortinar que, na actual crise do PS, é também o conjunto do sistema partidário português que, de modo mais exposto, mostra a situação comatosa a que chegou. 

Há muitas e justificadas razões de queixa contra o mandarinato que Alberto João Jardim e os seus apaniguados têm exercido na Madeira ao longo de todo este período democrático. Reconhecendo obviamente o esforço feito para o desenvolvimento económico da região, nenhuma simpatia ou condescendência nos merece a personagem e o seu modo de governação populista. Dito isto, até o Diabo tem razão em certos momentos, como aconteceu agora com a iniciativa de deputados do PSD ilhéu em avançarem com uma proposta de alteração constitucional que reduzisse o papel político de quem exerce a fiscalização da constitucionalidade das leis, neste caso o Tribunal Constitucional. É claro que este passo se insere, como mais uma “jogada”, na tensão política que se tem gerado entre esta alta-corte-de-justiça e o actual governo. Mas o mesmo se diga de todas as forças (políticas e sociais) que a este se opõem quando constantemente incensam os juízes do palácio Ratton como a “ultima trincheira de defesa dos cidadãos contra um governo fora-da-lei”. No meio de tudo isto, aqueles juízes são ainda os que “menos política têm feito”, embora sobre eles possam recair pesadas críticas, porém de outra natureza, quanto ao entendimento que têm vindo a fazer da sua função fiscalizadora e jurisdicional. 
A tremideira a que agora se assiste do grupo financeiro Espírito Santo, visível no espaço público, é bem reveladora de tudo o que a generalidade dos cidadãos ignora acerca destes negócios. O assunto é já, em si mesmo, complexo e inextricável para a maioria das pessoas, mas essa complexidade deveria ser rodeada por um “cordão sanitário” de credibilidade a-toda-a-prova, até para cortar cerce a fácil especulação que a tal propósito se pode fazer. A confiança é um dado volátil mas fundamental nestas questões. Porém, além da inevitável mobilidade de capitais que a globalização proporcionou, multiplicando-a, é aqui sobretudo perceptível o tipo de relações promíscuas que estes grandes interesses financeiros mantêm com titulares do poder político, com benefícios para ambas as partes, e frequentemente também com personalidades bem colocadas na comunicação social e na justiça, duas esferas que podem encobrir ou ajudar a descobrir jogos menos lícitos ou mesmo ilegais, como pode ter sido o caso do ex-presidente francês Sarkozy, que agora se encontra sob acusação judicial. Banqueiros, grandes empresários, governantes, juízes e jornalistas deveriam estar constrangidos por normas mais rigorosas que delimitassem os seus respectivos campos de actuação. E idênticas medidas cautelares deveriam ser tomadas contra países cujos dirigentes e formas de governo autocrático os tem tornado justificadamente suspeitos de “negócios escuros”. Há qui excesso de política, mas também abuso de poder económico privado.
Até que enfim! André Freire, um colega e especialista com amplo acesso a várias plataformas da comunicação social, usou há dias essa posição para denunciar com veemência o exagero disparatado com que as televisões – incluindo a RTP1 – nos têm vindo a servir o espectáculo futebolístico (Público, 2.Jul.2014). Tirando algumas adjectivações mais próprias do combate político do que da análise sociológica (“totalitalismo”, “alienação”, etc.), é de saudar esta pedrada-no-charco contra o mainstream dominante. Parece até que o Papa Francisco teve de prometer à presidente brasileira Dilma (em campanha) que se manteria neutro perante as disputas do “mundial”! (o qual, diga-se de passagem, foi fértil em bons jogos, surpresas e frustrações colectivas).   
Já agora, não esqueçamos no dia de hoje o lema republicano divulgado pela Revolução Francesa: Liberdade – Igualdade – Fraternidade. E parabéns pela canção recente “Não me façam pagar / Por aquilo que eu não fiz…” do cantor Tiago Bettencourt, que parece ser um autêntico hino de cidadania.    

JF / 14.Jul.2014

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