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quinta-feira, 7 de maio de 2015

Indivíduo, comunidade e sociedade, num espaço mundializado

Estes conceitos aprendem-se com o B-A-BA da sociologia mas podem ser úteis para a compreensão do que vivemos e observamos no nosso quotidiano imediato e do que nos chega por via dos media.
De acordo com o que podemos interpretar a partir da leitura de autores oitocentistas clássicos como Tönnies ou Durkheim, as comunidades são modos de funcionamento dos agrupamentos humanos extensos onde cada pessoa se define, antes de tudo o mais, pelo sentimento de pertença a essa comunidade, num laço que é bi-unívoco. Isto é: manifestando-se no indivíduo de um modo em que este só é capaz de se imaginar como fazendo parte desse conjunto; e no “espírito colectivo” partilhado pelo grupo, no sentido em que se considera que todos os seus membros individuais lhe estão indissoluvelmente ligados, que só a morte ou o banimento podem quebrar (aquela perdurando porém como recordação; este, só excepcionalmente, por gravíssimo crime ou renegação fundamental).
Desde sempre se associou a comunidade a formas de organização e vivência social muito integradas, como as ditas “tradicionais”, de base camponesa ou aldeã, ou então as tribais que puderam subsistir longamente nos continentes americano ou africano. Erradamente, um certo romantismo persistente tendeu a ver nas comunidades um modelo ideal de colectividade humana, ou a confundi-las com a melhor concretização do valor da igualdade (uma espécie de Paradise Lost, que os Hippies pretenderam ressuscitar). Na verdade, é o mesmo tipo de relacionamento social que podemos encontrar ainda hoje nas camorras e mafias italianas, nas etnias ciganas, em certos movimentos religiosos, em linhagens familiares quase-impenetráveis, nas identidades mais “fanáticas” de adeptos futebolísticos ou mesmo em partidos políticos ideologicamente muito marcados. É certo que, em determinados momentos especiais, a comunidade pode entrar em “ponto de fusão”, onde cada um é igual ao outro, numa fraternidade difícil de se encontrar noutras situações. Mas isso é o excepcional, que ocorre na festa ou na celebração, ou ainda na dor profunda. Na realidade, o sentido de pertença comunitária é compatível tanto com estruturas hierarquizadas (em que o poder social está muito desigualmente distribuído entre os indivíduos), como com dinâmicas de funcionamento mais fluidas, aleatórias ou igualitárias. São duas coisas relativamente independentes.
Longe destas formas de “solidariedade mecânica”, Durkheim entreviu na sociedade industrial, mercantil, racional e expansiva que se estava desenvolvendo sob os seus olhos um modelo “societário” diferente, feito de contratos e leis formais elaboradas intencionalmente, de “divisão-técnica-e-social-do-trabalho” muito avançada e tendencialmente universalizante, de instituições especializadas e grande interdependência geral. A “solidariedade orgânica” que regeria tal conjunto, muito mais vasto e complexo do que o anterior, deveria permitir melhores condições de desenvolvimento pessoal, de abundância material e de uma “administração das coisas” de modo desapaixonado e mais eficiente. Em parte, Durkheim viu certeiro e antecipou o nosso mundo de hoje. Mas, em grande parte também falhou redondamente, desde logo ao descurar os efeitos destrutivos da concorrência (que sempre existira entre poderes, mas agora numa “escala” infinitamente maior), sobretudo da concorrência entre Estados nacionais e entre os conglomerados de interesses económico-financeiros. Do primeiro tipo de confrontos originou-se a moderna colonização da África, a corrida às matérias-primas e aos armamentos, as ideologias “de massas” e, por fim, as guerras mundiais. Do segundo dinamismo, a obsolescência dos saberes artesanais, uma rápida “proletarização” do trabalho, a asfixia das pequenas economias e o crescimento exponencial da urbanização, com os problemas inesperados que esta veio trazer e ninguém previra. Mas também é verdade que, a-par-e-passo destes resultados problemáticos, cresceram a escolarização, a ciência, a cultura e o divertimento, num grau inimaginável para qualquer pensador ousado dessas épocas.        
O mundo que conhecemos no século XX foi, pois, a “sociedade” conceptualizada por Tönnies ou Durkheim e que, na leitura apressada de muitos, significaria o desaparecimento quase completo das “comunidades”. Na realidade, talvez tenha sido ela que permitiu a irrupção do “individualismo”, fenómeno do qual a ciência sociológica contemporânea teve alguma dificuldade em dar conta, a não ser por via de autores mais polémicos como G. H. Mead, Elias, Boudon ou Giddens. Uma coisa era a aspiração antiga (expressa por poetas ou dramaturgos) a que os filósofos e economistas clássicos deram a forma de teorias e que os juristas modernos codificaram sob o epíteto de “direitos”. Outra coisa foi a realidade do “indivíduo-massa” das cidades e dos países industrializados, ou mais tarde das gigantescas metrópoles cercadas de bidonvilles, favelas ou musseques. O individualismo das elites (nomeadamente o das elites culturais, artísticas e científicas) pôde estender-se sem grandes dificuldades a uma classe crescente de jovens escolarizados e foi potenciado pelos processos mais recentes da globalização económica e comunicativa. Mas para a grande massa dos “deserdados do progresso”, o desenraizamento provocado pela mera concentração urbana e pelo despojamento de qualquer património próprio (sequer da posse de um ofício, para já não falar de um domínio particular sobre a natureza: do agricultor, do caçador, do pescador…) acabou por conduzir a uma tal fragilização do indivíduo que, em dado momento, se tornou atractivo para cada qual, o apelo ou a invenção de uma forma de integração comunitária, fosse ela nova ou redescoberta.
Os comportamentos inter-individuais que hoje se espraiam no espaço tecnológico das “redes sociais”, os sinais de violência privada que os media catapultam diariamente urbi et orbi, o recrutamento de jovens para movimentos sectários radicais (sejam eles políticos ou religiosos) ou as formas do “novo terrorismo” (ubíquas ou “territoriais”, mas sempre surpreendentes e espectaculares) são, todos eles, fruto desses desajustamentos entre indivíduo e sociedade, sendo que agora esta se expandiu para os seus limites geográficos máximos (o que significa também o máximo de variedade possível de povos e dos artefactos por eles gerados). Perante tal distensão, poucas (relativamente) são as pessoas a quem o saber e a cultura permitem equacionar escolhas racionais e razoáveis para a orientação das suas vidas e a manutenção de relações com terceiros. A maioria socorre-se dos processos de integração que estão ao seu alcance e das instituições que conhecem e lhes dão alguma segurança e previsibilidade (família, trabalho, rede de amigos, normativos legais, associações de interesses, etc.). Mas uma outra minoria – especialmente fragilizada por qualquer ordem de razão – apenas encontra como saída plausível para as suas dificuldades (ou para as suas angústias existenciais) o “reencontro” (de supostos iguais) e o acolhimento dentro de uma comunidade, com os respectivos símbolos, rituais e os tais mecanismos próprios de uma solidariedade “mecânica ou automática”. A qual, no limite, aceita mesmo no seu seio o abrandamento dos controlos sobre as pulsões-de-morte ou até potencia o seu desencadeamento.
A Islândia, a Suíça e a Holanda são hoje, possivelmente, os países mais libertários que existem porque conseguem conjugar da melhor maneira os espaços do indivíduo, da comunidade e da sociedade, dentro de um quadro de liberdade, ordem e responsabilidade. Mas estão longe de ser perfeitos: são todos pequenos países (a Islândia é como a Madeira), o que os livra de exigentes compromissos globais; podem atrair abundância de capitais apátridas; e têm populações mais instruídas do que a média – o que não os impede de poderem ser desinteressados pela sorte dos povos mais desgraçados ou verem surgir em sua casa partidos xenófobos. Dispor de uma democracia participada e de representantes políticos honestos e diligentes é uma (excelente) condição. Não uma garantia de boas orientações. Mas induz provavelmente na sua população um sentimento de auto-estima e poder de realização que falta em quase todos os outros.  
A individualidade foi uma conquista fundamental da civilização humana. Possam agora as sociedades de hoje gerir melhor os seus equilíbrios globais e aproveitar das comunidades subsistentes – como, por exemplo, as communities de proximidade residencial anglo-saxónicas, e sobretudo norte-americanas – o melhor que elas possam conter de elementos identitários de cooperação e integração das diferenças, em vez do refúgio em comunidades fechadas, exclusivistas e supostamente portadoras de uma redenção que – como muito bem analisou António Costa Silva no Expresso de 3.Abr.2015 – só pode ser bárbara ou medieval.   
JF / 8.Mai.2015
       

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