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sexta-feira, 13 de março de 2015

Não faço ideia, mas arriscar-me-ia a pensar que… (II)

E aqui seguem as restantes questões que ficaram “penduradas” do post anterior.



Ainda sobre os serviços públicos e as dificuldades dos tempos actuais
Os episódios portugueses mais recentes da compra por capital internacional de grandes empresas (à nossa escala) como a EDP, a ANA, a PT, os CTT, agora a TAP e, no futuro, talvez as Águas de Portugal, relançaram o debate acerca das empresas públicas (ou dos serviços públicos) versus as empresas privadas funcionando em concessão e dentro de regras definidas pelo Estado na prestação de serviços que, de facto, são indispensáveis à vida colectiva.
O argumento das esquerdas de que o actual governo actuaria neste campo segundo “uma agenda ideológica” é simplesmente ridículo, na medida em que simétrica acusação lhes poderia ser feita por forças de direita ou liberais. O que é verdade é que, ideológica e sociologicamente, as agregações conservadoras da direita política têm estado sempre próximas do poder económico e das classes ricas, enquanto que os seus opositores de esquerda (socialistas, comunistas e mesmo alguns simplesmente republicanos) aspiram a ter no Estado – ou seja, debaixo da alçada das suas decisões – a maior extensão possível de meios de controlo da economia. Em parte, porque pensam que isso corresponde ao interesse da maioria da população, incluindo os mais desfavorecidos; mas, em parte também, porque isso satisfaz igualmente as suas ambições de poder.
Uma análise de custo-benefício deveria, em cada caso, indicar qual a solução que melhor serve o “bem comum”. A concorrência tende a favorecer o consumidor e a dinamizar a economia e as mudanças na sociedade, mas muitas vezes à custa de uma pressão excessiva sobre os trabalhadores dessas empresas. Os serviços públicos e as empresas monopolistas instalam-se geralmente nas suas rotinas, em prejuízo do público (pelo preço e a qualidade do serviço), permitem por vezes comportamentos inaceitáveis dos seus funcionários, não estimulam a economia e, no caso do “sector público”, agravam inevitavelmente a despesa do Estado. Mas há “monopólios naturais” a que é difícil fugir, sendo neste caso preferível sustentá-los através de taxas e impostos (pagas pelos beneficiários, as primeiras; e por todos, indistintamente, os segundos). E há questões de urgência a que o poder supremo não se pode furtar (até no tempo do Marquês, à vista do terramoto). Não se esqueça, porém, que a evolução do sistema económico (sempre no sentido de uma maior complexidade e interdependência) e a dinâmica técnico-científica provocam frequentemente alterações dos dados destes ajuizamentos fazendo com que uma solução adequada aos tempos de ontem não o seja mais nos tempos de hoje.
O endividamento público é uma constante portuguesa, pelo menos desde a perda do Brasil e o advento do liberalismo. Mas hoje o endividamento privado dos cidadãos é também preocupante, levados que são pela indução ao consumo. Porém, em tempo de crise económica, pior é a sorte dos sem-trabalho, dos desempregados e dos reformados, cujas economias familiares se reduzem aos movimentos mensais de salários, pensões e subsídios, de um lado; e das despesas de consumo e prestações das obrigações financeiras que contraíram, por outro. Se, por razões que lhes são alheias, lhes faltam aquelas entradas, são eles próprios e os seus dependentes que entram logo em sofrimento, não lhes quedando o pedaço de terra donde os seus avós tiravam o indispensável para o auto-consumo que lhes permitia sobreviver. Os mecanismos da “solidariedade orgânica” de que falava Durkheim são agora indispensáveis para acorrer a estes transes, quer sejam sistemas nacionais de previdência forçada arquitectados pelo Estado (como geralmente existem na Europa, a partir do exemplo inicial de Bismark) ou seguros capitalistas privados (predominantes nos Estados Unidos), a que geralmente nos esquecemos de acrescentar as instituições mutualistas (típicas da chamada economia social) e os esforços de vários movimentos humanitários e de confissões religiosas (charities, etc.) que procuram ajudar os mais necessitados sem distinção de credos nem exigência de cartão de identidade.
Também aqui, não há soluções únicas nem arquitecturas definitivas. Mas é bom que se tenham em vista três exigências: 1ª, que os necessitados (sobretudo em caso de urgência) não tenham de ficar à espera dos apoios de que carecem por desentendimentos das elites acerca da melhor maneira de os socorrer; 2ª, que as comunidades mantenham a sensibilidade humanista de ajudar os seus membros que mais precisam; e 3ª, que não se eternize a dependência dos ajudados em relação à fonte da sua sobrevivência.

A segurança e defesa perante as novas ameaças
Os exércitos foram usados durante muito tempo pelos governantes tanto para executar missões de defesa ou de ambições de conquista externa como para assegurar internamente a ordem por eles decretada. Com o decurso da modernidade, acabou por se estabelecer, nos Estados-de-direito, uma certa divisão de funções em que aos militares cabia a defesa das fronteiras e às polícias o controlo da segurança interna. Isto, bem entendido, em situações de normalidade, porque os juristas arranjaram sempre maneira de, em situações extremas (estado de guerra, de sítio ou de emergência), justificarem o emprego dos maiores meios de força para assegurar a manutenção da ordem interna definida pelo poder em exercício (que sempre o há-de auto-justificar) e melhor ou pior legitimada por formas de consulta ou assentimento das populações. No limite, estes mecanismos formais garantem a “eternidade” de uma fórmula de poder instituída, que só uma sua grave cisão interna ou uma sua “implosão” poderão pôr em causa.
Parece-me que os tempos actuais mostram que esta situação está em vias de ser ultrapassada. Quando vemos soldados vestidos de “camuflado” e armados de metralhadoras a patrulhar as ruas de Paris; quando o envio de “meia dúzia” de agentes policiais para países instáveis obriga a discussão e deliberação de um Conselho Superior de Defesa Nacional; quando o acto de violência de um homem num café de Sidney mantém o mundo em suspenso por vinte e quatro horas; quando graças às forças navais italianas se salvam milhares de africanos em risco iminente de naufrágio no Mediterrâneo; quando (nos dizem que) ataques informáticos devastadores são a cada dia travados por serviços especializados e a contra-espionagem consegue abortar acções terroristas prestes a rebentar sobre os alvos mais diversos – então somos levados a pensar mais seriamente numa das dimensões teorizadas pelo recém-falecido Ulrich Beck em Risk Society (1992), que é a das novas ameaças que impendem sobre a paz e segurança das comunidades, num quadro de globalização só antes entrevisto com a hipótese concreta da guerra nuclear há meio-século atrás. Onde começa hoje a defesa e acaba a segurança?
Os riscos de guerra (convencional ou atómica) mantêm-se, mas mudaram de escala e de premência. Os elementos (e instrumentos) de conflitualidade internacional tradicionais continuam a ser usados tal como dantes, casos da água e das fontes de energia, da pilotagem da economia, das migrações, da demarcação de fronteiras estatais e da gestão dos “espaços livres” (o mar, a Antárctida, o espaço) ou das lideranças e da dimensão e coesão interna de certas formações sociais (por defeito ou por “excesso”). Mas as novas ameaças à paz neste início do século XXI atingem e põem em causa princípios tão enraizados como são: a divisão territorial das soberanias nacionais; o “simples confinamento” de guerras civis dentro das suas fronteiras; a relação entre direitos humanos e de cidadania democrática, por um lado, e o papel do intelligence (contra-espionagem) e do recurso a forças e acções “não-oficiais”, por outro, bulindo mesmo com a questão do direito à informação e aceitando a legitimidade de alguma censura nos media, com outras justificações; a apropriação social dos instrumentos da tele-informática e o crime ou a guerra no ciber-espaço; a demarcação jurídica entre “estado de paz” e “estado de guerra”; finalmente, a referida divisão conceptual entre “segurança” e “defesa” e as missões daí decorrentes para as várias instituições envolvidas, incluindo a vigilância e o controlo, o socorro, a presença e as remanescentes acções de fogo e destruição de alvos.
Porém, se a ultrapassagem de certas normas de convivência democrática que julgávamos indiscutíveis pode ser justificada perante males maiores, novas exigências de cidadania terão de ser também contempladas, para nos defendermos dos malefícios que possam provir dos nossos próprios defensores. Pois não é verdade que o sigilo e a ocultação pública favorecem a ocorrência da ameaça, coacção, extorsão e outros crimes que vão surgindo cada vez com maior naturalidade nos meandros dos aparelhos de fiscalização, investigação e segurança?   

Bola e espectáculo a mais?
Há tempos, massacrado com a obstrução dos canais de informação televisivos pelos comentadores de futebol, lancei o meu grito de protesto que encontrou eco e foi repercutido por uma dúzia de colegas universitários e de gente da própria comunicação social. Foi… nada! – em relação ao que hoje se faz e se exige nas “redes sociais” para difundir uma qualquer ideia ou estado-de-alma.
Por mera casualidade, poucas semanas depois embrulharam-se as coisas de tal modo no topo da estação pública de rádio e televisão que o conselho de administração acabou demitido (entre outras coisas pelos excessivos custos do “futebolismo”) mas com a esquerda política a bradar à re-governamentalização da RTP. De facto, tudo serve para o pequeno combate partidário, mesmo os pretextos mais simplórios e incongruentes. Se há programas estupidificantes, a culpa é dos capitalistas que querem explorar todos os filões lucrativos, ou do governo que manda as estações públicas anestesiar o povo. Se se trava um pouco o futebol, alerta! que estão a desatender o gosto popular e o governo quer privatizar ou favorecer os privados...
Apesar de tudo, de serem burocráticas e rotineiras (“Ó Zé, às cinco da tarde mete a cassete!”), a rádio e televisão públicas ainda são geralmente o que de melhor se faz entre nós em termos de “serviço público”. Sem elas, não haveria música clássica, nem “Alma Lusa”, nem “A Vida dos Sons”, nem “Prós e Contras”. Mas bem nos podiam poupar d’ “O Preço Certo”, escusavam de pagar direitos ao estrangeiro para um concurso de cultura geral como o “Quem Quer Ser Milionário” e, no caso que agora nos move, justificava-se reduzir a 30% o espaço de programação dedicado à bola. Sobretudo agora em que um jornal de referência como o Público tem vindo a perder qualidade (mas o defeito deve ser meu), salvando-se nos últimos tempos a edição especial comemorativa dos seus 25 anos, a boa resposta de António Cândido Franco à crítica que recebera o seu livro O Estranhíssimo Colosso – uma biografia de Agostinho da Silva (Supl. Ípsilon, 27.Fev.2015) e a polémica entre António Guerreiro e Francisco Assis (Público, 26.Fev.2915; supl. Ípsilon, 6.Mar.2015; e Público, 12.Mar.2015), este último o único político que na nossa praça se exprime com bagagem teórica consistente – que só em parte me convence, como só em parte reconheço pertinência às observações daquele crítico, o que só abona quanto à matéria que assim é servida ao leitor. 
Porém, a concorrência entre estações pela captação de audiências e o correspondente mercado publicitário que as sustenta é avassaladora, pelo que parece terem razão aqueles que preferiam ver a “pública” sair de todo desse mercado e consagrar-se aos programas de boa qualidade mas fracas audiências, com financiamento exclusivo vindo dos impostos.
Vale a pena, contudo, assumir também o papel de advogado do diabo quanto à razão porque tantos programas de entretenimento balofo ou bacoco conseguem obter audiências extensas.
É verdade que parte desses programas são explorações de alguns aspectos do detestável que o ser humano pode conter: exercício de violência gratuita, comprazimento com a dor alheia, ambição desmedida por poder ou dinheiro, ódios e invejas de morte, etc. Esses casos deviam ser claramente rejeitados pela crítica e, no plano moral, responsabilizados os seus promotores pelo mal que possam causar em terceiros, mais frágeis ou culturalmente desprotegidos para lidar com tais imagens, discursos ou alusões.
Porém, na sua maioria, trata-se simplesmente de programas massificantes, estúpidos ou “de moda”, como é o caso dos excessos de futebol (sobre outros espectáculos desportivos), de música “pimba” ou pop (americana, mesmo quando é imitada por portugueses ou colombianas), de telenovelas “à brasileira”, de concursos de entretenimento patetas, de talk shows ou revelação de intimidades para donas-de-casa e adolescentes pouco orientados, ou, last but not least, de filmes e “séries” sempre assentes nos efeitos explosivos e no sangue, quando não em sadismo mal disfarçado.
Ora, as pessoas que se deixam ficar presas do écran de televisão, do tablet ou aos phones com este tipo de emissões não são provavelmente tão limitadas de interesses e aspirações quanto a análise fria de tais programas poderia fazer supor. Admitamos como hipóteses explicativas situações como as seguintes: 1ª-Cansadas da sua vida de trabalho, de estudo ou do tédio da desinserção social ou afectiva (desemprego, isolamento, etc.), as pessoas evadem-se dessas suas realidades quotidianas para assim ocuparem um tempo vazio. E, nisto, podem estar a ser perfeitamente racionais, ainda que não-conscientes do que fazem; 2ª-A possibilidade de escolha entre várias alternativas de relaxamento ou lazer pressupõe uma capacidade crítica que a família não estimula (por hábito e conservadorismo), a escola não promove (a não ser em níveis já muito elevados) e o trabalho geralmente não exige na mesma amplitude. Em tais circunstâncias, é sempre mais económico para a vida psíquica dos sujeitos aderirem ao que lhes é maciçamente proposto, o que é ainda um comportamento racional; 3ª-O prosseguimento da assistência a espectáculos de baixa qualidade pode suscitar nos sujeitos o cansaço e a procura do diferente, o que é o melhor início de caminhada para algo de mais interessante, pela própria pessoa; 4ª-A adesão a estes “programas de ocupação de tempos livres” corresponde à atitude da maioria da população com que as pessoas mais se identificam (grupo de amigos, colegas, meio social, etc.), o que conforta o seu sentimento de integração e o seu ser social. Com isso, facilita-se a vida de relação trivial, intensifica-se a comunicação, estimula-se por vezes a imaginação (de que o anedotário espontâneo e os rumores são duas expressões bem evidentes). Donde, de novo, uma atitude eivada de racionalidade e sentido de pertença a entidades supra-individuais que, contudo, não compromete definitivamente o sujeito nem põe em causa a sua autonomia face a encruzilhadas e decisões de outra natureza mais gravosa.
Estes são aspectos a crédito dos comportamentos de conformidade, em matérias prosaicas. Deveríamos então contentar-nos ou mesmo aplaudir estes entretenimentos e espectáculos que começámos por criticar? (embora, “ao vivo” eles ganhem uma outra natureza, mais emocional e carismática). A negativa surge necessariamente pela ambição de melhoria progressiva da qualidade de vida para todos e também – matéria em que o conhecimento científico decerto poderá ajudar decisivamente – pela suspeita de que estes habitus rotineiros não sejam finalmente sempre inócuos ou indiferentes à maneira como essas mesmas pessoas enfrentarão dilemas e situações cruciais para as suas vidas ou da comunidade onde estão inseridas. O hábito de “agir como massa” pode então ser desastroso para o próprio e para todos.
JF / 13.Mar.2015

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