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sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Achegas soltas sobre a sociedade em que vivemos (I)

Durante anos, anotei algumas ideias simples que me eram suscitadas, quer pela observação do nosso quotidiano, quer por alguma reflexão de carácter mais sociológico, ao fio de leituras, discussões académicas ou surgidas no decorrer de projectos de investigação.
 Retocando aqui e ali e procurando articular algumas dessas ideias, eis o que pode ser aproveitado para submeter à consideração de pessoas comuns com interesse e preocupação em entender o que vai girando à sua volta, mais do que aos meus colegas de profissão e de área disciplinar, que têm outra “matéria-prima” com que se ocupar. A este texto seguir-se-ão mais dois, do mesmo jaez.

Algumas das características maiores das nossas sociedades contemporâneas:

-          Modelos sociais de bem-estar, consumo e comportamentos visibilizados e difundidos universalmente, mas essencialmente localizados nos “países ricos” e reproduzidos a partir deles.
-          Modelos de família em evolução, múltiplos, comandados pelos afectos, deixando de constituir quadros estáveis de socialização dos filhos.
-          Predomínio da autonomia individual, seja no plano afectivo, racional, cognitivo, emocional, sexual, etc., sobre os laços de família e de comunidade próxima (de residência, profissional, confessional ou outra).
-          “Infantilização” da sociedade, com os jovens promovidos a actores centrais da teatralização social e o sentido lúdico da vida a aliar-se ao apetite do ganho e a substituir-se, ocultando-o, ao sentido trágico da existência, que de maneira mais rica dava sentido à procura de felicidade e o seu usufruto.
-          Encurtamento dos tempos e dos espaços-distância, fazendo convergir o instantâneo, o simultâneo, o fugaz (o efémero de Lyotard) e a impressão imagética (sensível), mobilizada pelo presente e o virtual/ilusório.
-          Porém, em paralelo, a volatilidade das relações interpessoais e a competitividade (económica mas também afectiva e ainda de realização pessoal, em face do meio envolvente) suscita a adopção de comportamentos pessoais estratégicos (calculados/calculistas), isto é: dirigidos por objectivos situados a médio/longo prazo, mas instrumentais no curto prazo.
-          Um “Estado-providência” do qual se reclama a concessão de direitos e recursos, o atendimento de reivindicações e a arbitragem justa dos conflitos de interesses.
-          Uma economia e uma comunicação mundializadas, bem como uma sensibilidade crescente das populações mais instruídas à acuidade de novos “problemas globais” (clima, epidemias, surpreendentes fragilidades do “progresso”), acompanhadas apenas pelas regras institucionais possíveis num espaço internacional onde as soberanias se mantêm fixadas nos Estados-nação. 
-          Uma desestruturação e anomização das comunidades, sociedades e instituições tradicionais (de base camponesa, convivial, inter pares ou regulamentada), empurrando-as para a crise, a letargia, a exclusão ou a desordem.
-          Desigualdades cada vez maiores, se atendermos a que o nível de referência mais baixo continua a ser quase igual ao que sempre foi – marcado pela escassez de bens, a ignorância, a exposição à doença, a submissão a “forças mágicas” e a rusticidade das relações interpessoais, que continuam a existir em largas regiões do planeta –, enquanto no outro extremo se concentra uma enorme acumulação de riqueza, saber, poder e refinamento selectivo de relações e representações sociais.
-          Porém (aparente contradição), vivemos também num mundo regulado por ideias de igualdade – entre indivíduos e entre nações – e onde muitos dos comportamentos pessoais revelam a interiorização desse valor, ao mesmo tempo que a competição (que vem de tempos imemoriais) se potenciou com o desenvolvimento económico moderno e tende claramente a sobrepor-se e a abafar os impulsos e os esforços organizados de entre-ajuda e cooperação. 

Peguemos então num ponto passível de discussão no campo da economia, não da ciência económica, mas da maneira com as pessoas vulgares a enfrentam no dia-a-dia.
Sobre o rendimento monetário que os indivíduos retiram da sua participação na vida económica, vale a pena lembrar só no quadro da economia moderna – concorrencial, de mercado e capitalista – é que se instalou, de maneira generalizada a motivação de qualquer pessoa em progredir nos seus ganhos ao longo da vida (chame-se a isso ambição, ganância, vaidade, cobiça ou outra qualquer adjectivação moral) incluindo nesta generalidade, naturalmente, os trabalhadores por conta de outrem. Como é óbvio, o desejo de aumentar ou maximizar ganhos sempre existiu e isso esteve muitas vezes ao alcance dos comerciantes e negociantes, mais tarde dos industriais e outros investidores, para já não falar nos detentores de poderes fácticos, nos vigaristas e salteadores-de-caminhos. Porém, para a maioria dos camponeses pobres e até dos remediados, dos artesãos, operários e outros trabalhadores a salário, da criadagem e pessoal de serviços, e mesmo dos funcionários estatais, procurar assegurar um rendimento da sua actividade de trabalho que fosse suficiente para as necessidades familiares e tão regular quanto possível, isso sim, é que constituía o objectivo económico fundamental das suas vidas, não o enriquecimento ou a aspiração a um grau de consumo sempre mais dilatado. É a economia moderna que instala uma tal dinâmica de consumo de massas e nela funda uma expansão ininterrupta da produção de bens e serviços.
Por isso, é redutor cingir o apetite do lucro ao patronato, aos empresários, aos capitalistas e especuladores financeiros. Estes deram o exemplo e exibiram os seus resultados. E hoje a maioria procura, embora numa escala bem mais modesta, seguir-lhes as pisadas. Um passo decisivo terá sido dado quando o sindicalismo operário deixou de sonhar com uma transformação da vida socioeconómica para procurar reivindicar “sempre mais” – tal como ficou celebrizado nas palavras do sindicalista americano Samuel Gompers –, isto é, adoptou também o ethos liberal do capitalismo.
Estuda-se na sociologia, na psicologia e na gestão a teoria de Herzberg, segundo a qual a natureza humana comporta duas dimensões essencialmente diferenciadas: uma, que se refere ao desejo de crescer e realizar-se, que conduz a estados de satisfação verdadeira e que no trabalho moderno que podem encontrar no interesse intrínseco e no conteúdo das tarefas realizadas, bem como no reconhecimento recebido de terceiros e nas possibilidades de progressão profissional (“factores valorizantes”); outra, que procura a protecção face às agressões do meio envolvente e é fonte de insatisfações profundas, como pode acontecer com o modo de gestão da organização a que se pertence, as relações mantidas com o superior imediato e com os colegas ou as condições de trabalho (“factores ambiente”). Ora, a remuneração do trabalho, o dinheiro, é justamente o factor mais ambivalente que foi encontrada nas investigações empíricas alargadas que permitiram sustentar esta teoria. Ou seja: tanto pode ser motivo de satisfação como de descontentamento, embora mais frequentemente esteja associado a este último estado psicológico. O que pode ser interpretado como um efeito e uma manifestação desta aspiração da sociedade moderna a “sempre mais poder aquisitivo”.
De resto, é curioso recordar sociólogos como Simmel ou Veblen que há um século atrás procuraram teorizar a específica relação das pessoas com o dinheiro na sociedade moderna (a partir da “distância” entre o sujeito e o objecto desejado) e compreender os desajustamentos existentes entre possidentes e criadores (ou entre “proprietários” e “industriais”) que marcariam a economia dominante, e a quem o decorrer do século XX terá, em boa parte, confirmado as análises então produzidas, antes da 1ª guerra mundial e da grande crise económica dos anos 20.
Julgo possível pensar que toda a remuneração da actividade económica moderna repousa sobre a ideia de maximização do ganhos, quer seja na reprodução de um capital investido (incluindo nele as propriedades de raiz: terras, edifícios, etc.), seja na maximização dos ganhos do trabalho (em “fazeres” e decisões apropriadas). No primeiro caso, com as garantias jurídicas dadas pelas legislações estatais, os lucros assim obtidos confortam os consumos próprios (muitas vezes ostentatórios e predadores) mas também alimentam o investimento para um alargamento dos negócios e da riqueza. No segundo caso, os resultados desse aumento dos rendimentos angariados traduz-se quase inteiramente no aumento do consumo e na modificação dos padrões de vida das pessoas, incluindo (por via da poupança ou do crédito) o acesso à propriedade de bens fixos (sobretudo habitação), o financiamento de estudos prolongados pelos descendentes e mesmo o uso de excedentes no lançamento de algum negócio ou nos arriscados jogos dos mercados financeiros. Tudo depende dos valores que orientam a acção social dos sujeitos – imediatismo, enriquecimento a prazo, atitudes estratégicas, etc.) – perante as alternativas que eles têm finalmente que arbitrar. Mas é claro que, em tais decisões, o “meio envolvente” pesa imenso sobre a capacidade de entendimento dos indivíduos. Na sociedade tradicional, as estratégicas económicas passavam muito pelas alianças matrimoniais, os direitos de herança e a posse da terra; hoje, passam sobretudo pelo nível e qualidade de educação dos filhos, a familiaridade com os processos da vida económica e, para os mais afortunados, pela boa gestão de uma carreira profissional.    
Entre os poucos cientistas sociais do nosso tempo que se dedicaram à investigação focada no comportamento dos empregados por conta de outrem relativamente ao seu salário, Elliot Jaques elaborou um esquema teórico tendente a definir a “justa remuneração” do trabalho de cada um, partindo de um princípio que contrariava a “fome de dinheiro” dos trabalhadores e o “sempre mais” da reivindicação sindical para identificar um princípio de necessidade e uma adequada retribuição do esforço concedido. Neste sentido, a evolução da remuneração da pessoa não deveria ser linear ao longo da sua trajectória profissional mas apresentar uma “lomba” por volta da meia-idade, quando os custos de educação dos filhos pesam mais, e decrescendo (relativamente) depois, incluindo na fase do usufruto do salário diferido (que é, nos nossos países ricos, a pensão de reforma). E, por outro lado, por comparação com o “meio envolvente”, o trabalhador também teria a noção do montante “justo” da remuneração do seu trabalho, sentindo-se injustiçado sempre que é pago abaixo disso e apenas “bafejado pela sorte” quando acontece o inverso.
Naturalmente, esta teoria será criticável sob vários pontos de vista. Mas, a meu ver, tem o mérito de se colocar de fora da lógica dominante do sistema económico actual e de procurar sobretudo atender a factores individuais e sociais, já suficientemente verificados. E por alguma razão ela não teve sucesso no mundo empresarial do último meio-século. Mas também não abriu caminho a um maior interesse dos sociólogos por esta temática, vá-se lá saber porquê!?
A mecanização da produção industrial e o taylorismo permitiram simplificar os gestos produtivos do trabalho, o que facilitou o acesso a um emprego certo (e ao correspondente salário) de muitos milhões de pessoas em todo o mundo. Ao trabalhador cabia agora apenas os actos de comando da máquina e a sua alimentação ou a execução de gestos elementares aprendíveis com uma curta habituação, ficando a sua mente liberta para evasões oníricas ou a estimulação de apetites de novos consumos. As mesmas tendências de evolução técnica, padronizadas em rotinas, puderem em seguida ser transferidos para a máquina automatizada, poupando os operários a muitas tarefas pesadas e monótonas, mas também aumentando a produtividade e reduzindo os volumes de emprego necessários, para um consumo cada vez mais barato e abundante.
Neste aspecto, a evolução tecnológica actualmente em curso com a robótica, as NTIC, etc. poderá ser benfazeja: à medida que o trabalho humano se for concentrando em fortes quantitativos de trabalho qualificado e relacional (no sector científico, controlo e manutenção de equipamentos, comércio e prestação de serviços), os trabalhadores terão muito melhores oportunidades de se compenetrarem das suas tarefas e resolverem os problemas inerentes a elas, reencontrando aí o interesse profissional que o industrialismo acabou por destruir; e, portanto, em condições de maior disponibilidade para – individual e colectivamente – discutirem e ponderarem a sua remuneração (e restantes outras condições laborais) tendo em atenção os diversos factores envolvidos (o seu contributo efectivo, viabilidade da empresa, quadro nacional, responsabilidades ambientais e globais) e não apenas para exprimirem o desejo de aumento do salário – ou, em contexto de crise, de tentarem opor-se à sua redução.
Nessa altura, teremos atingido talvez um ponto nodal de reequilíbrio entre a lógica desenvolvimentista cega da economia de mercado globalizada e as atitudes sociais das populações trabalhadoras, as quais constituirão sempre a maioria e o factor mais decisivo (enquanto produtores e enquanto consumidores) para a realização de uma sociedade mais humanizada. E esta evolução das atitudes sociais das populações empregadas seria decerto reforçada se as mesmas chegassem ao ponto de incluir a aceitação de uma redistribuição do emprego mediante a redução do tempo de trabalho (com a inevitável redução de remuneração) de modo a permitir o pleno-emprego. Mas para isso teria de haver uma autêntica revolução de mentalidades, a começar nas hostes sindicais. Está aqui em causa a consciência de representar legítimos interesses de grupo e das responsabilidades que tal implica, face às noções de interesse geral e de bem comum, ultrapassando esses interesses e pensando também nas comunidades mais desprotegidas e sem capacidade de representação e de pressão.
Deixem-me referir agora um outro ponto no campo da economia, embora o façamos de um modo apenas evocativo e sumário, em termos de meras curiosidades observadas no dia-a-dia. Trata-se dos comportamentos relacionais das pessoas das classes médias e populares no espaço do consumo, quer como consumidores, quer como empregados comerciais (ou, de qualquer modo, em contacto directo com a clientela). A estes últimos, o mundo contemporâneo pediu que juntassem às competências de domínio da informação acerca dos artigos em venda, uma imagem pessoal “agradável e atractiva”. O primeiro termo pode ser encarado no âmbito geral de um desejável comportamento de relações funcionais ou ocasionais entre pessoas que não se conhecem. Mas o segundo – imagem atractiva – sugere desde logo a intencional pretensão a seduzir o comprador, quer pela argumentação produzida, quer sobretudo pelo aspecto físico do vendedor, muito particularmente no caso das mulheres. E aqui entram em acção os psicólogos e toda a panóplia de truques e artifícios (que mulheres e “ambulantes” desenvolveram ao longo de séculos) destinados a capturar docemente a ingenuidade do cliente. O marketing é a sua ciência; a publicidade, a ideologia que nas nossas mentes veio ocupar o lugar da religião. Por alguma razão, há anos atrás, pelo menos, as tabelas de comparticipação pública em despesas de saúde num país tão “moderno” como a França incluíam as próteses dentárias para os empregados no comércio, mas não para os operários da indústria!  
Do lado do comprador, há também comportamentos típicos que ressaltam da nossa simples experiência de sermos também compradores. Ocorre-me assinalar que a racionalidade da “fila” de espera para ser atendido numa loja não é algo de natural ou espontâneo, mas apenas a interiorização pelas gentes urbanas desse princípio – prioridade para quem chega primeiro – porque, ao longo dos anos, a isso nos obrigaram os agentes da autoridade pública e outros “organizadores das massas”: para a distribuição de géneros alimentares sob racionamento, em diversos momentos da vida escolar, nas operações de vacinação ou exame médico, nas estações dos correios, nas repartições de finanças, no serviço militar obrigatório, na entrada para espectáculos, etc.
Quando em meados dos anos 80 fui viver para a província, logo me saltou à vista que ali essa racionalidade tinha uma aplicação social muito reduzida. As pessoas eram atendidas pelo vendedor ou funcionário, não pela sua ordem de chegada, mas pelo grau de conhecimento pessoal existente entre vendedor e comprador, ou pelo estatuto social mais elevado deste último. E essa deferência era muitas vezes retribuída pelo prolongamento da conversação sobre assuntos relativos à vida familiar dos interlocutores (para exaspero dos que esperavam), ou até “comprada” por pequenos gestos de apreço e mesmo ofertas trazidas pelos fregueses mais desprovidos (lembro-me bem dos saquinhos de ovos da camponesa para presentear o empregado bancário). Também era patente a insegurança deste género de clientela quando, já em ambiente racional-urbano (como numa agência bancária), em que a fila lhes era imposta mas manifestamente não correspondia aos seus hábitos, as pessoas se encostavam à parede ou ao balcão (em vez de se alinharem em frente ao posto de atendimento), como reflexo da sua insegurança e para buscarem alguma protecção e apoio físico que a simples organização social da fila lhes não dava.
Contudo, este tipo de consumidor popular mas já socializado na racionalidade da “bicha” ou na profusão e livre escolha das grandes lojas self-service (onde frequentemente pega e desarruma a mercadoria que finalmente não compra) encontra uma oportunidade de “vingança” sobre os empregados vendedores sempre que se encontra face-a-face com eles num balcão (no talho, na charcutaria, na queijaria, etc.) e está na posição de “ordonner” (literalmente, dar ordens, em francês) ao funcionário uma sucessão interminável de escolhas, no meio de hesitações, lembranças de última hora e acrescentos (o famoso “já agora…”), colocando-o durante breves momentos sob a sua autoridade, ao mesmo tempo que impondo a sua vontade soberana aos clientes que aguardam a sua vez (“agora esperas!...”). De facto, os triviais actos de consumo podem ser também oportunidades para, através destes jogos, se exercitarem fugazes formas de poder inter-pessoal, ainda que só de modo imaginário ou inconsciente.
Em contrapartida, vivendo durante algum tempo numa sociedade muito mais desenvolvida e racional-urbana do que a portuguesa, pude observar como em idêntico espaço de trabalho e consumo (uma agência bancária), as pessoas “em fila” respeitavam escrupulosamente uma distância de “reserva e intimidade” para o cliente que estava a ser atendido ao balcão, muito ao contrário do que frequentemente ainda acontece entre nós. 
É por isso interessante que os sociólogos e psicólogos sociais que se dedicam ao estudo das relações de trabalho e que durante muito tempo focaram predominantemente as suas investigações sobre as tensões existentes entre empregadores e trabalhadores agora também se interessem pelas relações entre empregados e público-cliente, e tanto mais quanto é certo a economia actual tender a automatizar as produções e a concentrar o trabalho na distribuição e prestação de serviços.
JF / 6.Dez.2014

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