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sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Desporto, negócio e política

Foi recentemente anunciado que em 2015 se realizarão no Azerbaijão, em Baku, os primeiros Jogos Europeus, réplica dos Jogos Olímpicos mas restritos aos atletas do “velho Continente”. Dado o gigantismo atingido pelas comemorações olímpicas, desde há várias décadas que vinha sendo sugerida por alguns uma certa descentralização destas competições desportivas, seja pela via de encontros de base geográfica continental, seja (mais raramente) por uma repartição por vários países, no mesmo ano olímpico, dos desportos da neve (que já se fazem desde a década de 1930, embora agora em anos intervalares), dos desportos de equipa (basquetebol, voleibol e outros) e dos desportos de água (natação, remo, vela, etc.), reservando para encerramento da olimpíada as provas atléticas mais convencionais (o atletismo, a ginástica, o halterofilismo, as “artes marciais”, o ténis, etc.).
Os jogos regionais (continentais) surgiram já há mais de cinquenta anos, realizando-se regularmente os Jogos Pan-Americanos, os Jogos Asiáticos e mais recentemente os Jogos Africanos, a que finalmente se irão juntar os Jogos Europeus. Mas outras competições multi-desportos se foram criando: Jogos Mundiais Universitários (Universíada), os Jogos do Mediterrâneo (que talvez agora desapareçam) e os Jogos da Comunidade Britânica são talvez dos mais conhecidos mas houve outros, tendo até chegado a existir uns Jogos da FISEC (do desporto escolar católico) e uns Jogos Desportivos Luso-Brasileiros (agora modestamente substituídos por uns Jogos da CPLP) – sempre sobre um modelo organizativo e simbólico copiado do movimento olímpico moderno.
É certo que muito mudou desde que o sonho universalista, pacifista e atlético (isto é, físico-estético-mental) do barão Pierre de Coubertin se começou a tornar realidade, numa época de nacionalismos exacerbados mas também de crenças fortes na proximidade de um “mundo novo”, inspirado pelos melhores exemplos históricos da democracia ateniense, das aspirações modernas das “luzes” e da romantizada ética cavaleiresca.
Não por acaso, o desporto moderno nasceu na segunda metade do século XIX por iniciativa de elementos das decadentes aristocracias europeias que lograram interessar, como espectadores e depois como praticantes, massas crescentes de jovens urbanos pertencentes às classes sociais mais pobres e numerosas. Não se originou nas práticas recreativas tradicionais da vida camponesa (com os jogos da malha, do varapau, etc.) nem nas competições lúdicas da antiga nobreza (as liças, a caça). Compreensivelmente, integrou num espírito de emulação cortês actividades físicas ainda utilizadas na preparação militar (como a equitação, a esgrima ou o tiro de pontaria com armas de fogo portáteis) ou lazeres aventurosos das classes ricas (como as regatas vélicas) mas associou-as rapidamente a formas populares de confronto inter-individual (como a luta ou o pugilismo) e, sobretudo, à regulamentação de amigáveis pugnas inter-grupais experimentadas entre colegiais que era necessário entreter nos recreios das escolas públicas ou nos campus das universidades: os jogos de bola saltitante (o futebol e depois outros), o rugby, o jogo-da-corda, o remo, etc. Finalmente, já dentro de um processo racional protagonizado por “educadores físicos”, foram formalizados os torneios competitivos destinados a medir as capacidades atléticas individuais mais básicas (correr rápido ou longas distâncias, saltar, lançar, nadar) ou aquelas (forças ou destrezas) proporcionadas pelos novos inventos das “artes mecânicas”, tais como a bicicleta, a motocicleta, o automóvel ou a moto-náutica.      
No pensamento destes ideólogos da educação física prevaleceu sempre um conjunto de objectivos e valores morais de pendor reformador e fraternal, adaptados às nascentes sociedades de massas: disciplinar a agressividade natural; competir com regras e respeito pelos outros concorrentes; premiar o mérito e o esforço (“Glória para os vencedores! Honra para os vencidos!”); igualizar à partida as classes sociais e as nações, respeitando a diversidade étnica e religiosa; incluir as mulheres neste verdadeiro processo de regeneração social.
Tais referências foram sempre simbolicamente enfatizadas nas grandes festas desportivas em que se tornaram os campeonatos europeus ou mundiais de várias modalidades que se iam sucedendo ou, a fortiori, os Jogos Olímpicos.
Como seria inevitável, tais princípios de convivência social foram subvertidos por atletas, treinadores ou dirigentes dispostos à trapaça, pela ânsia do efémero momento de glória ou popularidade proporcionado pelo facto de se ter sido “o primeiro” ou “o vencedor”. Mas esses constituíram casos de excepção, sendo que largamente prevaleceu – entre os praticantes e na convicção dos espectadores – a ideia da disputa leal. A este crédito somou-se o princípio moderno e democrático que enformou o movimento desportivo desde o seu início, consistente no clube (com adesão livre e dirigentes eleitos) e na associação federativa e voluntária de tais entidades de base para constituírem agregações de âmbito local/regional, nacional e mesmo internacional, autónomas e fora da esfera do Estado, das igrejas ou dos partidos políticos. 
Contudo, o sucesso das competições desportivas no quadro das sociedades contemporâneas – progressivamente sempre mais urbanas, individualistas, competitivas e espectaculares – suscitou bem cedo o interesse de negociantes que se propuseram organizá-las com entradas pagas para um público indiferenciado, bem como dos meios de comunicação social que aí descobriram um importante filão de expansão das suas actividades. Em três momentos diferenciados, a imprensa, a rádio e a televisão multiplicaram decisivamente o impacto do fenómeno desportivo, contribuindo para a promoção da imagem dos “deuses do estádio” (geralmente saídos da pobreza e decerto do anonimato, à semelhança das “stars” do cinema ou da canção) e para a geração de identidades clubísticas que vieram dar um sentido de pertença às multidões de assalariados e outras classes populares, substituindo as antigas identidades comunitárias religiosas, camponesas ou dos ofícios artesanais. As claques de “fans” (abreviatura de fanáticos, em inglês) são sobretudo uma expressão exagerada e desregrada disso mesmo.
Este clubismo, emocional e exclusivo do outro, combinou-se por vezes com o nacionalismo e a xenofobia modernos. Em ambos os casos, a afirmação do eu colectivo é feita sobretudo por oposição ao que é diferente (ou mesmo pela sua negação), corporizado pelo estrangeiro (abstracto ou concretizado num povo determinado) e pelos adeptos rivais, que assim se tornam adversários/inimigos (veja-se o comportamento e o imaginário de muitas das actuais claques de futebol). Esta aproximação foi sobretudo explorada pelas ideologias extremistas do fascismo e do nazismo nas décadas em que se assenhorearam do poder político em vários países da Europa. Mas foi também tolerada ou convenientemente aproveitada em outros regimes políticos, em especial no plano das suas relações com as outras nações. Vibrar com o içar das bandeiras e a execução dos hinos dos vencedores e, sobretudo, contabilizar os títulos e as medalhas e estabelecer rankings de sucesso desportivo tornou-se uma forma adicional de estimular a competição entre países e angariar prestígio para os regimes ou os governos em funções. Por outro lado, a construção de infraestruturas e equipamentos para tal fim específico, bem como a organização de grandes competições internacionais, levou os poderes públicos a assumirem um papel importante neste domínio, ao mesmo tempo que iam pondo de pé uma “política para a juventude e o desporto”, até então inexistente. Entraram neste campo a criação ou o apoio oficial a organizações de massas para os jovens: Komsomol, Balilas, Hitlerjugend, Flechas y Pelaios, Mocidade Portuguesa ou, noutra versão, escuteiros, Maisons de la Jeunesse, associações de estudantes, IPJ, etc. – além de formas variadas de afastar os jovens da cena política ou da tentação da delinquência, aliás com resultados bastante discutíveis.
Tal como no sistema político, o modo democrático de resolver a questão da luta pelo poder não impediu que emergissem ocasionalmente dirigentes desportivos populistas ou corruptos que estimularam aquelas tendências negativas dos movimentos sociais ou facilitaram a mercantilização do ideal desportivo. A questão do amadorismo e da profissionalização dos atletas foi um bom teste para o confronto entre estas duas lógicas em que, ao cabo de algumas décadas, o próprio movimento olímpico, o principal paladino do desporto-pelo-prazer-de-o-praticar e das recompensas simbólicas, acabou por soçobrar. Não quer isto dizer que competições entre profissionais não possam ser tão, ou mais, leais e interessantes de contemplar do que entre atletas amadores. Mas a ideologia desportiva do “desprendimento” tenderá provavelmente a ceder o passo ao “cálculo” e à obsessão do resultado. Não por acaso, foi nos países socialistas do Leste que inicialmente proliferou a política dos “atletas do Estado” e se fizeram alguns ensaios de “manipulação químico-hormonal” muito contestados. 
Tal como nos circos romanos ou nas jutas medievais, a adesão da populaça a tais eventos forneceu uma fantástica base social de apoio ao desporto-espectáculo do século XX, ao mesmo tempo que o dinheiro dos bilhetes e das quotizações, em grande escala, permitiam uma “caixa” atractiva para gerir. Porém, foi a televisão, já num âmbito cada vez mais mundializado, que permitiu um novo salto-em-frente, tanto na popularização do fenómeno como no volume do negócio financeiro proporcionado.
Hoje, o desporto-espectáculo constitui um sector significativo da economia, uma componente do processo sócio-cultural da chamada globalização e, ironicamente, um factor de estímulo e arrastamento para a prática de actividades físicas de enormes massas populacionais das classes médias e populares, já sobretudo orientadas para a promoção da saúde, o prazer, a auto-superação ou o convívio (sem esquecer a interiorização de determinados estereótipos sociais).
Por tudo isto, aguardaremos com interesse os tais Jogos Europeus de Baku, precisamente num país do Cáucaso de religião predominante muçulmana. E afirmámos aqui, há pouco tempo, que foi uma pena a não atribuição a Istambul da organização dos Jogos Olímpicos de 2020, pois seria talvez uma oportunidade interessante para aproximar os povos do Ocidente e do Islão – decerto numa base de interesse material (como demonstra o campeonato do mundo de futebol que irá ter lugar em 2022 no Qatar!), mas ainda assim evocando alguns valores de referência do melhor que pode existir na prática desportiva: sobretudo, a convivência pacífica e a ética da gratuitidade.

JF / 20.Dez.2013

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