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quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Finança e poder económico

Há muita gente que exagera e mitifica o ‘poder económico’ nas sociedades contemporâneas onde vigoram regimes de propriedade privada e economias de livre iniciativa e concorrência. O pensamento de esquerda, socialista, tem interesse nisso, porque sobre esse conceito construiu a sua doutrina, contrapondo-lhe o poder político estatal (com excepção da corrente anarquista, mais por sensibilidade do que por alguma grande teoria alternativa). Por seu lado, o vulgo gosta dos enredos conspirativos e dos poderes ocultos: o termo “os mercados” (financeiros) serve-lhe às mil maravilhas para exorcizar os fantasmas de tenebrosos capitalistas sem rosto que na sombra planeariam a desgraça de classes, povos e nações.
Na realidade, a ciência explica razoavelmente o funcionamento destes sistemas económicos e a história tem analisado o essencial do que aconteceu no decurso do último século, incluindo grandes fenómenos como as guerras mundiais, a construção e ocaso do bloco socialista, as crises e os períodos de crescimento, o apogeu do colonialismo e a descolonização, os nacionalismos e as tendências à agregação internacional, a supremacia global da América e a actual mundialização económica, tecnológica e cultural. Fora das ortodoxias ideológicas, nada disto se explica fundamentalmente a partir do tal ‘poder económico’, embora os interesses económicos e financeiros se contem entre os principais factores que impulsionam as dinâmicas e as mudanças no mundo contemporâneo.
Desde a Antiguidade se sabe que, quem tem muito dinheiro, pode comprar quase tudo o que quiser: coisas e pessoas. É evidente também que, no quadro da empresa, as figuras do investidor, do proprietário ou do administrador beneficiam de um poder sócio-económico incomparavelmente maior do que o do assalariado que ali se emprega (e que, aliás, dominam em muitas circunstâncias). Mas, num plano ampliado e no médio-prazo, é a situação do mercado de procura-e-oferta de trabalho que essencialmente determina o nível de salários e outras condições laborais, embora o Estado exerça um importante papel através da legislação e haja ainda que contar com o poder social mobilizado para pressionar a distribuição dos rendimentos mais em favor do trabalho – como historicamente foi feito pelos sindicatos –, num dado quadro nacional ou regional (um exemplo deste último é o chamado ‘modelo social europeu’). Aqui chegados, o ‘poder económico’ apenas se manifestará pela influência (ou corrupção, chantagem, etc.) que possa exercer junto dos órgãos políticos governamentais, ou então por um abuso de poder derivado de posições monopolistas. O regime de concorrência, que tende a beneficiar o consumidor (embora também torne mais rudes as relações entre as pessoas em competição), constitui igualmente um travão contra tais práticas.
O mundo financeiro é um alvo predilecto para a vivaz manutenção da imagem sinistra do ‘poder económico’: vejam-se os capitalistas “fautores de guerras” que desesperavam os pacifistas de há um século atrás, a “plutocracia judaica” odiada pelos nazis ou talvez ainda os actuais cartéis discretos da “economia subterrânea”. De facto, a própria natureza abstracta-simbólica do dinheiro (próxima do pecado e da avidez), a sumptuosidade das suas maiores edificações, a ostentação de vida dos “banqueiros”, a manipulação contabilística em que se funda o seu negócio, a regra-de-ouro do sigilo bancário e alguns dos acontecimentos mais dramáticos a que tem dado lugar (usura, especulação, desfalques, falências, crachs bolsistas, desvalorizações, “branqueamento” de capitais, etc.) concorrem para uma deslegitimação da finança na consideração das populações e mesmo no concerto das actividades económicas. Toda a gente sabe que a pessoas não comem dinheiro, mas precisam da “economia real” para sobreviver!
Et pourtant… o sistema financeiro constitui um elemento essencial da economia desde há pelo menos um milénio, talvez mesmo a sua parte matematicamente mais elaborada e exigente. Assim, como tudo o que tem uma importância decisiva para a vida em sociedade – diz-se que a guerra é demasiado grave para ser deixada apenas aos militares… –, os sistemas bancários e seguradores também carecem de alguma forma de controlo social. A partir do séc. XIX, pensou-se na sua “mutualização”, depois na sua “nacionalização” (pelo Estado), ao menos parcial para impedir derrapagens. Agora fala-se em “regulação”, por entidades independentes credíveis (porque os governantes já não dão garantias suficientes), e, sempre, em esquemas de regras e controlos mais rigorosos do que em qualquer outro ramo de indústria. É também essa a razão principal porque geralmente beneficiam de impostos mais suaves e em tempos de crise são tratados com especiais precauções, devido aos “efeitos sistémicos” que a sua queda provocaria em todo o sistema económico e na confiança dos depositantes.
É certo que, nas últimas décadas, a actividade financeira se multiplicou, em parte porque o sistema económico da produção, circulação e consumo se mundializou muito mais intensamente, mas principalmente porque se alargou imenso o volume de pessoas que acederam a maiores rendimentos, ao crédito e ao supérfluo. Os adversários socialisantes (e também alguns nacionalistas) deliciam-se em chamar a isto “neo-liberalismo” – já que não conseguiram ver vencer os seus modelos estatisantes preferidos… –, acumulando-o de todos os defeitos e prejuízos imagináveis. Mas não há dúvida que os especialistas financeiros precisam de rever todos os seus cálculos e voltar a equilíbrios mais seguros no jogo do crédito, talvez aqueles que vigoravam há vinte ou trinta anos atrás no negócio bancário e que passaram a ser desprezados pelos yupies, por demasiado prudentes e conservadores. Como quer que seja, a extraordinária concentração de massas monetárias em poucas entidades (bancos, fundos de investimentos e de pensões, seguros, etc.), juntamente com a não menos extraordinária velocidade de circulação do capital que se atingiu graças às actuais tecnologias de informação, constitui sem dúvida uma nova forma de dominação económica, mas que ninguém realmente controla.
Isto é bom e é mau. Bom, porque seria desafiar a natureza humana entregar a quem quer que fosse – santos ou demónios, sábios ou talentosos – um tal poder mundial, e é bem preferível um sistema assim auto-regulado. Mau, porque as dinâmicas incontroladas dos valores nos mercados, ou a escala monetária ao dispor dos interesses de certos agentes é de tal ordem, que sempre podem provocar danos em alguns milhões de pessoas.
Daí, o apelo que vem sendo formulado para uma maior intervenção dos governos nacionais (melhor dizendo, de alguns grandes países, cuja acção é crucial para todos os outros, além do caso especial da UE), quer nas suas competências de política económica interna (taxas de câmbio, preço do dinheiro, investimentos do orçamento público, etc.), quer na forma de melhor se coordenarem para impor algumas regras mais eficientes na ordem financeira e comercial do planeta. Nesta fase, é esse talvez um poder regulador indispensável. Porém, sob duas condições, que se impõem aos governantes: colocar os equilíbrios gerais dos sistemas sócio-económicos acima dos estritos interesses nacionais; e, mantendo a confiança das suas populações autóctones, ser imunes tanto às seduções eleitoralistas como aos perigosos conúbios entre “público-e-privado”.
JF / 8.Set.2011

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