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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A WikiLeaks perturba os sistemas e divide opiniões

Há tempos, foi a revelação de uns milhares de relatórios militares classificados do “Pentógono” acerca das actuais guerras no Médio-Oriente. Depois, outros milhares de mensagens reservadas da diplomacia norte-americana. Assim se criou a expectativa de ver quais as próximas novidades escondidas que estes arautos do “jornalismo científico” irão pôr a descoberto, para desespero de alguns grandes poderes mundiais.
E a contorvérsia está estabelecida, a nível planetário. Entre nós, todos estão já a tomar posições, face ao embrulho de questões que isto levanta. Entre os mais independentes e avisados comentadores – por exemplo, Pacheco Pereira, Sousa Tavares, José Cutileiro, Miguel Monjardino, Gustavo Cardoso ou Miguel Gaspar – parece predominar a cautela e o receio da “caixa de Pandora”, mais do que o elogio da liberdade de expressão e da “transparência”.
Também é essa a minha reacção. Mas as questãos são fundas e contraditórias, imprevisíveis mesmo, quanto às consequências futuras.
Uma primeira questão remete para a insólita proeza de um punhado de jornalistas-detectives-tipo-Robin-dos-Bosques ser capaz “furar” sistemas de segurança que se suporiam dos mais sofisticados, não para obter um ou meia-dúzia de documentos classificados, mas para sacar milhares deles!? Será apenas o acaso de um jovem soldado indiscreto que se cruzou com o senhor Assange, ou uma “garganta funda” que sempre pode aparecer nos corredores do poder? Isto, nem nos ‘anais de ouro’ da espionagem internacional alguma vez deve ter sido contado! Mas, se o objectivo era introduzir alguma visibilidade e transparência na gestão dos grandes poderes, pode prever-se que que a reacção destes vai ser a de se blindarem ainda mais contra novas aventuras deste tipo.
O segundo tipo de questões remete para o conteúdo mais espalhafatoso do que tem sido revelado pela imprensa. No caso das guerras, é mais que sabido que o segredo militar não serve só para proteger “os nossos rapazes” das manobras do inimigo, mas igualmente para furtar a este o conhecimento de “podres” e das fraquezas próprias, e para tentar manter tão elevado quanto possível o moral das NT e das populações de onde elas provêm. Já na esfera da diplomacia se está perante a evidência da dupla linguagem inerente a estes negócios de estado: cortês e habilidosa na forma protocolar; por vezes, acutilante e sem meneios, no relatório lacrado. Mas é claro que, durante algum tempo, os actores ressentir-se-ão da devassa, tal como a seguir ao “por que no te callas”. Em todo o caso, releva de alguma hipocrisia pública o escandalizar-se com o teor destes discursos privados quando, de facto, a intimidade ou o segredo servem para isso mesmo: para dizer o que não se pode (deve) dizer em público. É certo que é desejável limitar convenientemente esta reserva do poder, para que os seus titulares de ocasião dela se não aproveitem para fins ilícitos ou não excedam o necessário: os governantes e poderosos não são anjos; são homens mais bem informados mas com os defeitos de qualquer de nós e muito mais oportunidades para prevaricar. Mas parece de um infantilismo anarquizante pensar que esses ‘grandes segredos’ devessem vir todos para o meio da rua.
E como os Assange não são crianças nem anarquistas, logo se põe a terceira questão, que abarca: os critérios de selecção dos materiais acedidos e que vão sendo divulgados; as escolhas dos momentos de divulgação e os seus destinatários preferenciais; os governos (ou empresas multinacionais ou outras pessoas ou instituições mundialmente conhecidas) que são alvo deste ‘jornalismo’ e quais os que saem branqueados, pelo silêncio; e, finalmente, a pergunta sobre que ‘máquina’ tão segura é esta que consegue trabalhar internacionalmente (possuindo um número de colaboradores decerto elevado) com um grau de segurança tal que, aparentemente, consegue manter-se imune às reacções dos serviços especializados dos estados tecnologicamente mais poderosos do planeta?
Por tudo isto, colocar os problemas levantados pela WikiLeaks como se fosse apenas um combate entre a liberdade (do uso da Internet e do direito à informação) e as obscuras manobras do poder político-económico (sobretudo o norte-americano, para não variar…), como tantos opinadores afirmam nas páginas dos jornais e no ciberespeço, seria de uma ingenuidade impossível de reconhecer em quem tem argumentos e capacidades técnicas para formular semelhantes discursos.
JF / 24.Dez.2010

1 comentário:

  1. António Pedro Doressábado, 25 dezembro, 2010

    Olá João,

    Toda a ponderação do mundo por ti apresentada não deixa de pôr em cima da mesa a hipótese de haver alguma utilidade no trabalho do Wikileaks. Que não se saiba qual possa vir a ser essa utilidade é outra coisa. (Pensava que o determinismo histórico já tinha passado à história. Mas ele renasce onde menos se espera) Isto para chamar a atenção da suavidade com que posições de quase condenação – alegadamente dos métodos do wikileaks – vêm à tona, à falta base para condenação liminar.
    Por mim acho muito estranho, num caso de guerra (que é nitidamente o caso, embora uma ciber guerra) haver quem se pronuncie de forma neutra. Eu nisto não sou neutral: estou do lado do wikileaks não por concordar com os seus métodos – que nem sei bem quais são – mas por me opor (apenas em intenção, claro) à destruição dos ideais do Estado de Direito, que por sua vez sapa o Estado Social em nome do salve-se quem puder.

    A discussão do episódio wikileaks em si (personalidades, métodos, apoios políticos, conspirações) é completamente lateral ao essencial do que revelam os acontecimentos. E o essencial é que não é só a liberdade de expressão que tem estado limitada (e auto-limitada) por razões industriais e culturais – o que a mim me parece evidente em geral (não há transparência absoluta - nem isso seria desejável, estou de acordo) mas sobretudo em particular em termos comparativos: cada vez mais há penas contra quem fala contra a corrente (estou a referir-me sobretudo e com conhecimento de causa relativamente ao caso português e ao caso norte-americano) – como o próprio estado de direito está nas mãos de interesses alheios ao Rule of Law. As declarações de ódio ao sr. Assange do Procurador Geral norte americano para o mundo e a decisão singular do tribunal londrino de não aceitar fiança para a libertação do homem são descaradas. Só são possíveis porque o chão está minado (as torturas em Abu Grahib só foram possíveis porque o mesmo ou equivalente se passou e passa nas prisões norte-americanas, como revelou o NYT). Esta decisão britânica não tem paralelo (não é rule of Law) e a declaração do Procurador configura um acto de banditismo à frente de uma das instituições mais importantes dos EUA: ninguém pode perseguir em nome da lei seja quem for (nem um terrorista) quando não há lei onde assentar tal perseguição.
    Imagina que a mim me apetecia dizer publicamente que o sr. YY era um bandido que ia ser preso dentro de quinze dias? Pode ser? Se o caso fosse a tribunal não me condenavam? E se eu fosse responsável político ou judicial?
    Infelizmente os EUA entraram numa deriva belicista (custe o que custar, com mentiras e manipulação do sistema de justiça à mistura) da qual não têm conseguido (ou querido) sair, o que explica em grande medida também o rasgar do contrato social que estamos a assistir na Europa, seguidista das políticas do acrescentar aos privilégios dos mais fortes.
    Nota, caro João, que esta tem sido uma das principais causas da decadência da hegemonia ocidental no mundo. E este tema – a hegemonia da nossa civilização no mundo – o fim de um ciclo histórico de 500 anos, isso sim é relevante e silenciado pelos media. E isso ainda é cedo para vir denunciado nas revelações do wikileaks.

    1 abraço,
    António Pedro Dores

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