Estas ideias são todas antigas. No período de grandes crises que se seguiu à Guerra de 1914-18, os anarco-sindicalistas portugueses procuravam distribuir o pouco trabalho existente por todos os trabalhadores, de molde a evitar os despedimentos e a completa falta de recursos para os desempregados sobreviverem. A CGT chegou a falar numa redução do horário para 30 horas semanais, mas, de facto, em alguns sectores (como no vidro, nos transportes marítimos, na metalurgia, na cortiça), os sindicatos lograram diminuir drasticamente o tempo de trabalho – e o correspondente salário – equitativamente entre toda a força-de-trabalho. Em contrapartida, os comunistas de então reclamavam a criação de um subsídio para os sem-trabalho – a que Salazar respondeu com um desconto obrigatório de 2% nos salários para um Fundo de Desemprego que, aliás, só veio a pagar subsídios aos desempregados mais de três décadas depois…
Há poucos anos, falavam certos especialistas europeus nas vantagens de “repartir o trabalho”, nomeadamente através do incremento do trabalho-a-meio-tempo. Na Holanda e outras nações nórdicas, esta modalidade de emprego está significativamente mais difundida no que na generalidade dos países (embora, naturalmente, o nível de salários aí praticado facilite tal opção).
Agora, em plena crise, ninguém parece sugerir soluções deste tipo, muito menos em Portugal. Os que têm trabalho agarram-se a ele, aceitam alongamentos do horário; e os que fazem regularmente “horas suplementares” nem por sombras pensam prescindir desse rendimento extra a que se habituaram. Lamentam os colegas lançados para o desemprego, bramam contra o governo e os ricos, mas: nem sonhar com qualquer modalidade de resistência económica mais equitativa e solidária! No mundo individualista e concorrencial em que vivemos, não espanta que assim aconteça.
É certo que as taxações dos altos rendimentos e das operações financeiras especulativas aparecerão sempre, aos olhos da maioria, como as soluções mais justas e mais óbvias, que não serão mais vigorosamente executadas apenas pelo “conluio existente entre os poderes político e económico”. Há uma certa dose de verdade nesta afirmação, mas o problema mais espinhoso é que, para cada país de per si (e pior se for um país pequeno), os impostos sobre a riqueza financeira afastam imediatamente os capitais e os investimentos produtivos para outras paragens, não apenas por motivos de ganância, mas também pela decisão racional de um gestor financeiro que vai proporcionar a cada um de nós – pequenino aforrador ou depositante bancário – uma remuneração das suas poupanças ligeiramente mais atractiva. Este, um dos dramas da insidiosa economia global actual. Os grandes números fazem o resto.
É, porém, possível que todos tenham uma parte de razão, mesmo pensando apenas no curto prazo. Que, de acordo com a situação de cada sector de actividade e um reexame das prioridades pessoais de cada qual, se possa caminhar para mais frequentes soluções de “partilha do trabalho” e modalidades de part-time. Que, mesmo de forma não-contributiva, não devam faltar a cada pessoa os apoios de sobrevivência mínima, sem que com isso se estimule o ócio ou a delinquência. E que a falada “supervisão financeira internacional”, constrangindo e taxando os movimentos de capitais, permita um aumento significativo da contribuição das classes mais ricas em favor de um desenvolvimento mais equilibrado do conjunto da sociedade.
JF / 30.Dez.2011
Contribuidores
sexta-feira, 30 de dezembro de 2011
sexta-feira, 23 de dezembro de 2011
Pensadores portugueses
Vem isto a propósito das recentes homenagens de que foram alvo Eduardo Lourenço e Gonçalo Ribeiro Teles. Este último é decerto um “homem do agro” com visão, conhecimentos alargados e muita determinação na forma como defende as suas convicções e naquilo em que se empenha, seja na crítica ao Estado Novo, ao industrialismo e à urbanização sem limites, seja na ambição de uma cidade mais ruralizada e equilibrada, seja ainda na sua fé acerca da superioridade do “regime do beija-mão”.
Além de poetas, os portugueses sempre tiveram excelentes escritores e alguns bons pensadores. Entre os nossos contemporâneos, Eduardo Lourenço estará entre os de primeira linha. Com aquela sempre perturbante fisionomia e dicção que tanto o aproximam de Salazar, está-lhe porventura nos antípodas, quer do pensamento, quer da acção: é, por assim dizer, a sua absoluta negação. Mas é também o mais douto e talentoso representante da opinião “de esquerda” – exprima-se ela no plano político, cultural ou literário –, com o que isso implica de acampamento no “arraial do contra-establishment” e, portanto, num certo sentido, bem distante da complexidade inteligente do Pessoa que tanto admira, e cujo nome designa o prémio com que acaba de ser distinguido.
É talvez seu émulo, em quadrante ideológico oposto mas com intervenções políticas mais afirmadas (e talvez mais arriscadas), Adriano Moreira, outro espírito de enorme sabedoria e acutilância, que foi capaz de ser um potencial reformador do Estado Novo e de tornar-se depois numa figura respeitada do regime democrático, não deixando de afirmar o seu lugar no mundo universitário e nos espaços onde hoje se debate a essência e o futuro da nação.
Sua vizinha de percurso e de convicção religiosa, Maria de Lurdes Pintasilgo mereceria talvez outro reconhecimento público, pela forma como soube entender algumas das principais fermentações (e desde logo a emancipação da mulher e as condições de participação na cidadania) que, desde as décadas de 60/70 do século passado, começaram a emergir nas sociedades ocidentais, e pela sua preocupação em procurar articulá-las com a situação mundial.
Não podemos também deixar de lembrar António José Saraiva, homem de letras, da cultura e da história, vindo da área dos compagnons de route comunistas mas que, atentíssimo ao que se ia passando pelo mundo, veio a adoptar uma postura francamente libertária, sem nunca se vergar à disciplina de qualquer seita ou capela.
Mas estes nomes não devem obscurecer o de Agostinho da Silva, um humanista livre e visionário que, sem deixar de pensar em português e quase realizando o milagre de fundir o Gama com o velho restelense, soube oferecer-nos um extenso rol de reflexões para nos armar o espírito crítico, tão necessário de preservar quando se esbatem os contornos dos territórios culturais que vestimos e se desenham outros novos que ainda estamos longe de abarcar. E deu-nos também o exemplo da capacidade de sonhar.
Em tempo de “Festas”, é bom pensarmos no melhor.
JF / 23.Dez.2011
Além de poetas, os portugueses sempre tiveram excelentes escritores e alguns bons pensadores. Entre os nossos contemporâneos, Eduardo Lourenço estará entre os de primeira linha. Com aquela sempre perturbante fisionomia e dicção que tanto o aproximam de Salazar, está-lhe porventura nos antípodas, quer do pensamento, quer da acção: é, por assim dizer, a sua absoluta negação. Mas é também o mais douto e talentoso representante da opinião “de esquerda” – exprima-se ela no plano político, cultural ou literário –, com o que isso implica de acampamento no “arraial do contra-establishment” e, portanto, num certo sentido, bem distante da complexidade inteligente do Pessoa que tanto admira, e cujo nome designa o prémio com que acaba de ser distinguido.
É talvez seu émulo, em quadrante ideológico oposto mas com intervenções políticas mais afirmadas (e talvez mais arriscadas), Adriano Moreira, outro espírito de enorme sabedoria e acutilância, que foi capaz de ser um potencial reformador do Estado Novo e de tornar-se depois numa figura respeitada do regime democrático, não deixando de afirmar o seu lugar no mundo universitário e nos espaços onde hoje se debate a essência e o futuro da nação.
Sua vizinha de percurso e de convicção religiosa, Maria de Lurdes Pintasilgo mereceria talvez outro reconhecimento público, pela forma como soube entender algumas das principais fermentações (e desde logo a emancipação da mulher e as condições de participação na cidadania) que, desde as décadas de 60/70 do século passado, começaram a emergir nas sociedades ocidentais, e pela sua preocupação em procurar articulá-las com a situação mundial.
Não podemos também deixar de lembrar António José Saraiva, homem de letras, da cultura e da história, vindo da área dos compagnons de route comunistas mas que, atentíssimo ao que se ia passando pelo mundo, veio a adoptar uma postura francamente libertária, sem nunca se vergar à disciplina de qualquer seita ou capela.
Mas estes nomes não devem obscurecer o de Agostinho da Silva, um humanista livre e visionário que, sem deixar de pensar em português e quase realizando o milagre de fundir o Gama com o velho restelense, soube oferecer-nos um extenso rol de reflexões para nos armar o espírito crítico, tão necessário de preservar quando se esbatem os contornos dos territórios culturais que vestimos e se desenham outros novos que ainda estamos longe de abarcar. E deu-nos também o exemplo da capacidade de sonhar.
Em tempo de “Festas”, é bom pensarmos no melhor.
JF / 23.Dez.2011
sábado, 17 de dezembro de 2011
Direitos e deveres humanos
Mais uma vez se assinalou no dia 10 de Dezembro o aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem que, na sequência da última guerra mundial, ajudou a definir o papel da ONU.
Não foi um inédito mas trata-se de um documento notável onde, em 30 singelos artigos, se diz o fundamental sobre os princípios que deveriam guiar a vida das colectividades humanas na nossa época. Notável, sobretudo, por ter sido produzido num tempo em que já se estava instalando a divisão do mundo em dois blocos inconciliáveis e à beira da emancipação política dos povos colonizados.
Depois disso, a afirmação e o exercício dos ‘direitos’ progrediu extraordinariamente, a par de uma maior e melhor informação disponibilizada pelos novos meios de comunicação social. A pena de morte e as torturas e tratamentos (prisionais mas também policiais, militares ou familiares) qualificados de cruéis, degradantes ou desumanos sofreram um enorme recuo. Aos direitos civis e políticos básicos (que têm essencialmente a ver com a liberdade individual e a dignidade da pessoa) foram acrescentados outros, de natureza económica, social e cultural. Surgiram depois os direitos reivindicados por grupos sociais mais específicos, como as mulheres e as “minorias” (crianças, idosos e outros), de preservação do ambiente natural, dos animais, etc.
Porém, é também legítimo perguntar se tal reivindicação de direitos não leva, por vezes, a resultados opostos aos pretendidos, no conhecido processo dos efeitos perversos. Isto é, se, para as novas gerações que encontram uma sociedade plena de direitos, de “objectos de desejo” e de fracos impedimentos para as transgressões – ao mesmo tempo que uma cultura altamente estimulante para o “sair de si”, a negação, a experienciação, a re-criação, o espectacular e a violência (veja-se o caso dos filmes e da música) – isto não é um convite a que se destruam equilíbrios fundamentais entre a realidade e o projecto, os recursos e a acção, a integração e as mudanças, os direitos e os deveres.
É certo que existem hoje ameaças reais suscitadas pelo uso de tecnologias sofisticadas que justificam uma atenção constante dos cidadãos para que, sob a aparência de gadgets modernistas, se não comprimam as liberdades individuais e colectivas, submetidas a poderes fácticos ou mesmo legitimados pela opinião da maioria.
Mas sabe-se que nenhum sistema social razoavelmente justo, restrito ou amplo, funciona sem um equilíbrio de direitos e deveres dos participantes. Está, pois, talvez na altura de se procurar um balanceamento mais equitativo entre as supracitadas afirmações de direitos, liberdades e garantias – sem dúvida importantes, em si mesmos, e aferidores de uma superior qualidade da existência humana – e as correspondentes contribuições que indivíduos e comunidades particulares devem dar em prol do bem comum. Sobretudo quando se sabe que o universalismo que se atribuíram os redactores da Declaração, apesar de toda a sua boa-vontade, incide apenas sobre uma fatia parcial da população mundial e que imensas massas humanas se debatem ainda com os problemas primordiais da sobrevivência, bem como do seu espinhoso e problemático acesso à categoria de cidadãos (de que são exemplos o que acontece na China, hoje o grande produtor de mercadorias baratas para todo o mundo, ou a forma como o regime político da Síria reprime militarmente as manifestações de protesto dos seus opositores, que já sofreram mais de 4 mil mortos por balas nas ruas, ao longo dos últimos meses).
JF / 17.Dez.2011
Não foi um inédito mas trata-se de um documento notável onde, em 30 singelos artigos, se diz o fundamental sobre os princípios que deveriam guiar a vida das colectividades humanas na nossa época. Notável, sobretudo, por ter sido produzido num tempo em que já se estava instalando a divisão do mundo em dois blocos inconciliáveis e à beira da emancipação política dos povos colonizados.
Depois disso, a afirmação e o exercício dos ‘direitos’ progrediu extraordinariamente, a par de uma maior e melhor informação disponibilizada pelos novos meios de comunicação social. A pena de morte e as torturas e tratamentos (prisionais mas também policiais, militares ou familiares) qualificados de cruéis, degradantes ou desumanos sofreram um enorme recuo. Aos direitos civis e políticos básicos (que têm essencialmente a ver com a liberdade individual e a dignidade da pessoa) foram acrescentados outros, de natureza económica, social e cultural. Surgiram depois os direitos reivindicados por grupos sociais mais específicos, como as mulheres e as “minorias” (crianças, idosos e outros), de preservação do ambiente natural, dos animais, etc.
Porém, é também legítimo perguntar se tal reivindicação de direitos não leva, por vezes, a resultados opostos aos pretendidos, no conhecido processo dos efeitos perversos. Isto é, se, para as novas gerações que encontram uma sociedade plena de direitos, de “objectos de desejo” e de fracos impedimentos para as transgressões – ao mesmo tempo que uma cultura altamente estimulante para o “sair de si”, a negação, a experienciação, a re-criação, o espectacular e a violência (veja-se o caso dos filmes e da música) – isto não é um convite a que se destruam equilíbrios fundamentais entre a realidade e o projecto, os recursos e a acção, a integração e as mudanças, os direitos e os deveres.
É certo que existem hoje ameaças reais suscitadas pelo uso de tecnologias sofisticadas que justificam uma atenção constante dos cidadãos para que, sob a aparência de gadgets modernistas, se não comprimam as liberdades individuais e colectivas, submetidas a poderes fácticos ou mesmo legitimados pela opinião da maioria.
Mas sabe-se que nenhum sistema social razoavelmente justo, restrito ou amplo, funciona sem um equilíbrio de direitos e deveres dos participantes. Está, pois, talvez na altura de se procurar um balanceamento mais equitativo entre as supracitadas afirmações de direitos, liberdades e garantias – sem dúvida importantes, em si mesmos, e aferidores de uma superior qualidade da existência humana – e as correspondentes contribuições que indivíduos e comunidades particulares devem dar em prol do bem comum. Sobretudo quando se sabe que o universalismo que se atribuíram os redactores da Declaração, apesar de toda a sua boa-vontade, incide apenas sobre uma fatia parcial da população mundial e que imensas massas humanas se debatem ainda com os problemas primordiais da sobrevivência, bem como do seu espinhoso e problemático acesso à categoria de cidadãos (de que são exemplos o que acontece na China, hoje o grande produtor de mercadorias baratas para todo o mundo, ou a forma como o regime político da Síria reprime militarmente as manifestações de protesto dos seus opositores, que já sofreram mais de 4 mil mortos por balas nas ruas, ao longo dos últimos meses).
JF / 17.Dez.2011
sábado, 10 de dezembro de 2011
Cataclismos, acidentes, epidemias, fomes, guerras, revoluções e crises
Estes são talvez os fenómenos colectivos mais desgraçados a que está sujeita a espécie humana.
Os cataclismos naturais são inevitáveis e fazem parte da nossa condição geo-biológica terrestre. Grandes cheias, tremores-de-terra, erupções vulcânicas, tsunamis ou tufões provocam geralmente enormes estragos e vítimas. Contra isto, é inútil apaziguar os deuses com oferendas. Apenas podemos, hoje, estar alerta e ter planos de prevenção para acudir com os melhores socorros quando tal acontece. Mas tais fenómenos também nos ajudam a situar melhor a nossa existência no universo natural a que pertencemos.
Os acidentes têm uma escala diferente, mais à nossa dimensão individual e ocorrem geralmente por falhas ou descontrolos dos humanos. Numa análise científica do fenómeno, podemos dizer que eles são incompressíveis, isto é, que nunca se podem evitar completamente. Contudo, no plano da responsabilidade pessoal e social, é possível e desejável fazer mais que lograr regredir sempre a sua incidência, através da educação e formação, de uma prevenção passiva e activa, etc. Os valores e as atitudes sociais são aqui determinantes e não vale confiar apenas nos especialistas do assunto nem nos sistemas existentes de reparação dos danos (medicina de reabilitação, seguros, etc.).
As epidemias pareciam estar registadas sobretudo no nosso passado histórico ou nas condições de miséria de populações muito atrasadas. Porém, o derrube de fronteiras nacionais e morais voltaram a trazer-nos novas ameaças deste tipo, da Sida à “doença das vacas loucas”, do Ebola à “gripe das aves”, das estirpes virais resistentes à bactéria E.coli. Estas, são “doenças de civilização”.
Julgar-se-ia igualmente que as fomes seriam eliminadas com os progressos da técnica e o desenvolvimento económico. Embora muito se tenha progredido no mundo, a rarefacção dos sustentáculos agrícolas locais tornou certas populações mais dependentes de trocas externas ou de políticas governamentais. África é ainda um país onde se morre de fome e a subnutrição estigmatiza profundamente certas populações, tal como acontece em algumas regiões da Ásia e mesmo da América Latina. E aqui o dedo acusador deve provavelmente ser apontado ao modelo de desenvolvimento económico e de direcção política que rege a nossa modernidade.
Felizmente, o fenómeno da guerra tem vindo a tornar-se mais raro e breve, depois da última hecatombe do século XX. A guerra é um dos mais antigos fenómenos da história humana e daqueles que mais dramas tem provocado, mas trata-se de um caso em que é fácil identificar agentes responsáveis: são as lideranças políticas e estatais, respectivamente para as guerras civis e entre nações. Há contudo guerras defensivas e justas, mas a maioria delas é desencadeada devido a dinâmicas conflituais lançadas por aquelas elites que, quando não são deliberadas, a certa altura se tornam imparáveis, o que em nada desculpa os seus provocadores.
Sobre as revoluções, um outro fenómeno violento que abriu as portas e marcou a Idade Moderna, têm de fazer-se juízos contraditórios: lastimá-las, pelos sofrimentos que causam e as injustiças que permitem; mas compreendê-las e justificá-las, quando elas constituem a saída inevitável para uma situação de opressão colectiva. Contudo, quando (e enquanto) tal é (ainda) possível, é sempre preferível a “evolução” ou as “reformas”, antes que rebente o dique do sofrimento da maioria ou se incendeiem as achas preparadas pelos incendiários. Até porque as revoluções geram quase sempre reacções violentas opostas, ou contra-revoluções.
Finalmente, no meio de tais convulsões, as crises de natureza económica ou financeira que de tempos a tempos abalam as sociedades contemporâneas até parecem coisas de somenos ou benignas. Na realidade, pelo desemprego e perda de rendimentos que geram, frustração de expectativas, efeitos de marginalização ou de revolta, etc., as crises são fenómenos sérios e graves. Mas também têm virtualidades, quando – sem se chegar a guerras ou a revoluções – se podem rectificar orientações, corrigir erros, mudar processos ou inovar de forma humanamente positiva o que tendia a perpetuar-se. Esperemos que isso aconteça desta vez.
JF / 10.Dez.2011
Os cataclismos naturais são inevitáveis e fazem parte da nossa condição geo-biológica terrestre. Grandes cheias, tremores-de-terra, erupções vulcânicas, tsunamis ou tufões provocam geralmente enormes estragos e vítimas. Contra isto, é inútil apaziguar os deuses com oferendas. Apenas podemos, hoje, estar alerta e ter planos de prevenção para acudir com os melhores socorros quando tal acontece. Mas tais fenómenos também nos ajudam a situar melhor a nossa existência no universo natural a que pertencemos.
Os acidentes têm uma escala diferente, mais à nossa dimensão individual e ocorrem geralmente por falhas ou descontrolos dos humanos. Numa análise científica do fenómeno, podemos dizer que eles são incompressíveis, isto é, que nunca se podem evitar completamente. Contudo, no plano da responsabilidade pessoal e social, é possível e desejável fazer mais que lograr regredir sempre a sua incidência, através da educação e formação, de uma prevenção passiva e activa, etc. Os valores e as atitudes sociais são aqui determinantes e não vale confiar apenas nos especialistas do assunto nem nos sistemas existentes de reparação dos danos (medicina de reabilitação, seguros, etc.).
As epidemias pareciam estar registadas sobretudo no nosso passado histórico ou nas condições de miséria de populações muito atrasadas. Porém, o derrube de fronteiras nacionais e morais voltaram a trazer-nos novas ameaças deste tipo, da Sida à “doença das vacas loucas”, do Ebola à “gripe das aves”, das estirpes virais resistentes à bactéria E.coli. Estas, são “doenças de civilização”.
Julgar-se-ia igualmente que as fomes seriam eliminadas com os progressos da técnica e o desenvolvimento económico. Embora muito se tenha progredido no mundo, a rarefacção dos sustentáculos agrícolas locais tornou certas populações mais dependentes de trocas externas ou de políticas governamentais. África é ainda um país onde se morre de fome e a subnutrição estigmatiza profundamente certas populações, tal como acontece em algumas regiões da Ásia e mesmo da América Latina. E aqui o dedo acusador deve provavelmente ser apontado ao modelo de desenvolvimento económico e de direcção política que rege a nossa modernidade.
Felizmente, o fenómeno da guerra tem vindo a tornar-se mais raro e breve, depois da última hecatombe do século XX. A guerra é um dos mais antigos fenómenos da história humana e daqueles que mais dramas tem provocado, mas trata-se de um caso em que é fácil identificar agentes responsáveis: são as lideranças políticas e estatais, respectivamente para as guerras civis e entre nações. Há contudo guerras defensivas e justas, mas a maioria delas é desencadeada devido a dinâmicas conflituais lançadas por aquelas elites que, quando não são deliberadas, a certa altura se tornam imparáveis, o que em nada desculpa os seus provocadores.
Sobre as revoluções, um outro fenómeno violento que abriu as portas e marcou a Idade Moderna, têm de fazer-se juízos contraditórios: lastimá-las, pelos sofrimentos que causam e as injustiças que permitem; mas compreendê-las e justificá-las, quando elas constituem a saída inevitável para uma situação de opressão colectiva. Contudo, quando (e enquanto) tal é (ainda) possível, é sempre preferível a “evolução” ou as “reformas”, antes que rebente o dique do sofrimento da maioria ou se incendeiem as achas preparadas pelos incendiários. Até porque as revoluções geram quase sempre reacções violentas opostas, ou contra-revoluções.
Finalmente, no meio de tais convulsões, as crises de natureza económica ou financeira que de tempos a tempos abalam as sociedades contemporâneas até parecem coisas de somenos ou benignas. Na realidade, pelo desemprego e perda de rendimentos que geram, frustração de expectativas, efeitos de marginalização ou de revolta, etc., as crises são fenómenos sérios e graves. Mas também têm virtualidades, quando – sem se chegar a guerras ou a revoluções – se podem rectificar orientações, corrigir erros, mudar processos ou inovar de forma humanamente positiva o que tendia a perpetuar-se. Esperemos que isso aconteça desta vez.
JF / 10.Dez.2011
sexta-feira, 2 de dezembro de 2011
Vamos acabar com as gorjetas?
As gorjetas são uma sobrevivência de práticas sociais antigas de subserviência e de miséria, e um resquício dos micro-fenómenos da corrupção económica.
Assim como o “bodo” (aos pobres) pretendia ser um gesto inspirado na misericórdia divina, também os ‘grandes da terra’ se armavam em generosos e distribuíam migalhas (de carne ou metal) à populaça em dias de festa. Estas dádivas eram evidentemente sempre bem-vindas pelos miseráveis e até por vezes disputadas com fricção, que os senhores mais sádicos se compraziam em presenciar. No final, ficava reforçada a ordem social das diferenças de classe e de estirpe, a despeito do rancor que tais factos deixavam no íntimo de alguns dos assistidos mas que só raramente se traduzia num gesto criminoso ou em acessos de loucura.
Em pleno século XIX a burguesia em ascensão prolongou o sentido de tais práticas ao enraizar o hábito de responder com a oferta de pequenas moedas às súplicas dos inúmeros pedintes que se lhe cruzavam nos passeios ou à saída das igrejas, quando a polícia não reprimia esta mendicidade. Enquanto uns mitigavam a fome, outros acreditavam santificar as suas almas.
Daqui se alargou a prática benemérita para o dar-sem-ser-solicitado: a gorjeta. O desempenho pessoal inerente aos actos comerciais de compra-e-venda de certos bens, à obtenção de um favor ou informação ou ainda o modo delicado como se era “atendido” na prestação de um qualquer serviço passaram a ser remunerados pelo gesto discreto da moeda esgueirada de mão para mão e nunca recusada pelo beneficiado.
Tal como nos bodos, quem dá, afirma a sua superioridade (agora, de base essencialmente económica); quem recebe, reconhece o seu lugar (muito) mais baixo na escala da consideração social – sobretudo se esta “transacção” se efectua à vista de terceiros. Mas, mesmo quando privada, ela interioriza e reforça em cada uma das personagens essas diferenças de estatuto.
Não obstante isto, para além da retribuição de um cuidado ou atenção a que o “inferior” não estava obrigado pelo estrito cumprimento da sua função, a teoria-da-troca também encontra aqui alguma sustentação, na medida em que, a partir de certos hábitos socialmente rotinizados, muitas vezes o “superior” é mal atendido se não “dá gorjeta” ou sujeita-se a futuras retaliações por parte do servidor ou trabalhador com quem vai ter de continuar a lidar, o qual não esquecerá que “aquele” infringiu um ritual que toda a gente cumpre.
Assim se chegou à actualidade, onde tais hábitos subsistem, embora variem consideravelmente de país para país, de actividade para actividade. O serviço de mesa em restaurantes e cafés, os táxis, o pessoal dos hotéis ou dos navios de cruzeiro são dos que, nos países ocidentais, mais frequentemente esperam uma gorjeta dos clientes que atendem. Mas ninguém acha que, por exemplo, um polícia ou um dentista, mesmo em clínica privada, aceitem gorjeta por uma informação de trânsito prestada ou por maior delicadeza posta no tratamento de uma cárie. Porventura, o mesmo se não dirá num país do nosso próximo Magrebe.
É certo que se fala imenso nos dinheiros-por-baixo-da-mesa dados a fiscais públicos, intermediários ou na efectivação de grandes negócios. Isso é já corrupção, criminalizada por lei, embora raramente provada e punida. Há quem faça a ligação entre os dois fenómenos mas é difícil definir rigorosamente em que termos ela funciona.
Em todo o caso, pese embora a sempre maior perda das relações interpessoais em favor de relações mais formais, juridicamente traduzíveis e conformadas (o que também provoca uma burocratização dos processos de interacção humana, muitas vezes de efeitos negativos), parece de todo desejável que se caminhe para uma abolição destas práticas pouco racionais e que dão abrigo a muita arbitrariedade, devendo certamente a evolução fazer-se pela via de uma maior profissionalização dos actos dos trabalhadores e de uma tarifação explícita e completa do contrato comercial em causa. Se há um “serviço” a pagar ao empregado do restaurante que nos traz os pratos, então que ele apareça expresso na factura! É bom saber que em Portugal, nos idos de 1924, o sindicato dos empregados de hotéis, cafés e restaurantes fez uma greve reclamando a abolição das gorjetas e o pagamento de uma percentagem fixa sobre as vendas.
Entretanto, a conjuntura de crise que vivemos pode ajudar a que todos compreendam melhor o anacronismo da gorjeta. Porque também já ninguém pensa ajudar os desempregados aceitando que eles recorram à mendicidade.
Por isso, seria bom que todos os “consumidores” enveredassem pela cessação de pagar gorjetas e que os tais prestadores de serviços que a isso estão habituados passassem a pressionar as suas entidades patronais para que estas modernizassem os seus sistemas de remuneração do trabalho.
JF / 3.Dez.2011
Assim como o “bodo” (aos pobres) pretendia ser um gesto inspirado na misericórdia divina, também os ‘grandes da terra’ se armavam em generosos e distribuíam migalhas (de carne ou metal) à populaça em dias de festa. Estas dádivas eram evidentemente sempre bem-vindas pelos miseráveis e até por vezes disputadas com fricção, que os senhores mais sádicos se compraziam em presenciar. No final, ficava reforçada a ordem social das diferenças de classe e de estirpe, a despeito do rancor que tais factos deixavam no íntimo de alguns dos assistidos mas que só raramente se traduzia num gesto criminoso ou em acessos de loucura.
Em pleno século XIX a burguesia em ascensão prolongou o sentido de tais práticas ao enraizar o hábito de responder com a oferta de pequenas moedas às súplicas dos inúmeros pedintes que se lhe cruzavam nos passeios ou à saída das igrejas, quando a polícia não reprimia esta mendicidade. Enquanto uns mitigavam a fome, outros acreditavam santificar as suas almas.
Daqui se alargou a prática benemérita para o dar-sem-ser-solicitado: a gorjeta. O desempenho pessoal inerente aos actos comerciais de compra-e-venda de certos bens, à obtenção de um favor ou informação ou ainda o modo delicado como se era “atendido” na prestação de um qualquer serviço passaram a ser remunerados pelo gesto discreto da moeda esgueirada de mão para mão e nunca recusada pelo beneficiado.
Tal como nos bodos, quem dá, afirma a sua superioridade (agora, de base essencialmente económica); quem recebe, reconhece o seu lugar (muito) mais baixo na escala da consideração social – sobretudo se esta “transacção” se efectua à vista de terceiros. Mas, mesmo quando privada, ela interioriza e reforça em cada uma das personagens essas diferenças de estatuto.
Não obstante isto, para além da retribuição de um cuidado ou atenção a que o “inferior” não estava obrigado pelo estrito cumprimento da sua função, a teoria-da-troca também encontra aqui alguma sustentação, na medida em que, a partir de certos hábitos socialmente rotinizados, muitas vezes o “superior” é mal atendido se não “dá gorjeta” ou sujeita-se a futuras retaliações por parte do servidor ou trabalhador com quem vai ter de continuar a lidar, o qual não esquecerá que “aquele” infringiu um ritual que toda a gente cumpre.
Assim se chegou à actualidade, onde tais hábitos subsistem, embora variem consideravelmente de país para país, de actividade para actividade. O serviço de mesa em restaurantes e cafés, os táxis, o pessoal dos hotéis ou dos navios de cruzeiro são dos que, nos países ocidentais, mais frequentemente esperam uma gorjeta dos clientes que atendem. Mas ninguém acha que, por exemplo, um polícia ou um dentista, mesmo em clínica privada, aceitem gorjeta por uma informação de trânsito prestada ou por maior delicadeza posta no tratamento de uma cárie. Porventura, o mesmo se não dirá num país do nosso próximo Magrebe.
É certo que se fala imenso nos dinheiros-por-baixo-da-mesa dados a fiscais públicos, intermediários ou na efectivação de grandes negócios. Isso é já corrupção, criminalizada por lei, embora raramente provada e punida. Há quem faça a ligação entre os dois fenómenos mas é difícil definir rigorosamente em que termos ela funciona.
Em todo o caso, pese embora a sempre maior perda das relações interpessoais em favor de relações mais formais, juridicamente traduzíveis e conformadas (o que também provoca uma burocratização dos processos de interacção humana, muitas vezes de efeitos negativos), parece de todo desejável que se caminhe para uma abolição destas práticas pouco racionais e que dão abrigo a muita arbitrariedade, devendo certamente a evolução fazer-se pela via de uma maior profissionalização dos actos dos trabalhadores e de uma tarifação explícita e completa do contrato comercial em causa. Se há um “serviço” a pagar ao empregado do restaurante que nos traz os pratos, então que ele apareça expresso na factura! É bom saber que em Portugal, nos idos de 1924, o sindicato dos empregados de hotéis, cafés e restaurantes fez uma greve reclamando a abolição das gorjetas e o pagamento de uma percentagem fixa sobre as vendas.
Entretanto, a conjuntura de crise que vivemos pode ajudar a que todos compreendam melhor o anacronismo da gorjeta. Porque também já ninguém pensa ajudar os desempregados aceitando que eles recorram à mendicidade.
Por isso, seria bom que todos os “consumidores” enveredassem pela cessação de pagar gorjetas e que os tais prestadores de serviços que a isso estão habituados passassem a pressionar as suas entidades patronais para que estas modernizassem os seus sistemas de remuneração do trabalho.
JF / 3.Dez.2011
segunda-feira, 28 de novembro de 2011
Bilhete-postal a um jovem 'indignado'
Fizeram-te estudar anos a fio. Disseram-te que um curso “superior” era um passaporte para um bom emprego e uma vida feliz. No mínimo, garantiram-te que, com uma “formação”, podias sempre desenrascar-te melhor e até teres a tua própria empresa.
Afinal, os anos têm passado e vês que tudo isso é uma miragem. A crise serve de justificação para todas as alterações mas o certo é que é cada vez maior o número dos teus amigos a queixarem-se dos trabalhos precários uns atrás dos outros, e dos biscates a baixo preço. Mesmo da malta com estudos, só os betos têm bons empregos, e muitos só se safam em call centers ou em supermercados, onde não fazem nada do que andaram a aprender.
Por isso, vês que o pessoal da tua geração anda todo chateado e diz que o melhor é esquecer e aproveitar a noite, numa de copos e música, e o que der…
Mas agora, por todo o lado, até na América, há malta indignada, que armam tendas frente aos municípios ou parlamentos para protestar, exigir empregos e segurança social. Têm sido manifestações porreiras. O pessoal diverte-se à farta. E quando a bófia exagera, o pessoal resiste. Eles que não se metam… Fintamos os tipos, convocando por telemóvel para locais inesperados… E a malta grita que os políticos vão roubar para outro lado. Democracia é o povo a mandar! Vejam o que fizeram no Egito…
Estas, são bocas que ouves cada vez mais.
Se for caso disso, “acampa” também com os teus amigos, discutam e protestem contra estas coisas. Mas isolem os excitados que vos apelam a ir “partir esta merda toda” e desconfia dos que observas estarem visivelmente a gostar de ser líderes ou porta-vozes destes movimentos de protesto: geralmente estão a preparar-se para “acampar” para o resto da vida nessa função (mais tarde devidamente recompensada…)
Pensa, porém, que nada cai do céu (a não ser a chuva) e que a vida em jovem dos teus pais foi bem mais dura do que a tua; e da dos teus avós nem é bom falar...
Ainda bem que possas ter computador e telemóvel, mas talvez devas começar a habituar-te à ideia de que não vai haver motas e carros para todos. Sobretudo quando milhões de chineses e indianos, africanos e brasileiros ainda passam mesmo muito mal, sem o mínimo.
Nem imaginas o que era dantes viver aperreado, com os chúis a prender na rua por tudo e por nada – e isto ainda se passa em muitos lados. Agora, podemos experimentar o sexo e entregarmo-nos ao outro. Mas cautela com as imprevidências! Fazer um filho, é a maior responsabilidade que se pode ter na vida! E educá-lo, claro! É uma obrigação, a que só fogem os fracos e os cobardes. Além disso, procurem guardar a vossa intimidade. O amor não é o deboche. E podes crer que um dia acharás idiota e foleiro o tipo de espectáculos de exibicionismo e “voyeurismo” que hoje talvez te fascinem na TV ou nos filmes.
A música, pode ser óptima para se ouvir. Mas em excesso provoca-nos a surdez, tal como o álcool e as drogas levam sempre à destruição de cada um de nós: física e da nossa dignidade.
Por isso, no fim do divertimento, da discoteca ou do futebol, tira os auscultadores e pensa também no que pode ser a tua vida daqui a dez anos: o trabalho que melhor te poderá servir; a relação íntima que desejas com alguém; o mundo que mais te agradaria partilhar. Talvez valha a pena.
JF / 28.Nov.2011
Afinal, os anos têm passado e vês que tudo isso é uma miragem. A crise serve de justificação para todas as alterações mas o certo é que é cada vez maior o número dos teus amigos a queixarem-se dos trabalhos precários uns atrás dos outros, e dos biscates a baixo preço. Mesmo da malta com estudos, só os betos têm bons empregos, e muitos só se safam em call centers ou em supermercados, onde não fazem nada do que andaram a aprender.
Por isso, vês que o pessoal da tua geração anda todo chateado e diz que o melhor é esquecer e aproveitar a noite, numa de copos e música, e o que der…
Mas agora, por todo o lado, até na América, há malta indignada, que armam tendas frente aos municípios ou parlamentos para protestar, exigir empregos e segurança social. Têm sido manifestações porreiras. O pessoal diverte-se à farta. E quando a bófia exagera, o pessoal resiste. Eles que não se metam… Fintamos os tipos, convocando por telemóvel para locais inesperados… E a malta grita que os políticos vão roubar para outro lado. Democracia é o povo a mandar! Vejam o que fizeram no Egito…
Estas, são bocas que ouves cada vez mais.
Se for caso disso, “acampa” também com os teus amigos, discutam e protestem contra estas coisas. Mas isolem os excitados que vos apelam a ir “partir esta merda toda” e desconfia dos que observas estarem visivelmente a gostar de ser líderes ou porta-vozes destes movimentos de protesto: geralmente estão a preparar-se para “acampar” para o resto da vida nessa função (mais tarde devidamente recompensada…)
Pensa, porém, que nada cai do céu (a não ser a chuva) e que a vida em jovem dos teus pais foi bem mais dura do que a tua; e da dos teus avós nem é bom falar...
Ainda bem que possas ter computador e telemóvel, mas talvez devas começar a habituar-te à ideia de que não vai haver motas e carros para todos. Sobretudo quando milhões de chineses e indianos, africanos e brasileiros ainda passam mesmo muito mal, sem o mínimo.
Nem imaginas o que era dantes viver aperreado, com os chúis a prender na rua por tudo e por nada – e isto ainda se passa em muitos lados. Agora, podemos experimentar o sexo e entregarmo-nos ao outro. Mas cautela com as imprevidências! Fazer um filho, é a maior responsabilidade que se pode ter na vida! E educá-lo, claro! É uma obrigação, a que só fogem os fracos e os cobardes. Além disso, procurem guardar a vossa intimidade. O amor não é o deboche. E podes crer que um dia acharás idiota e foleiro o tipo de espectáculos de exibicionismo e “voyeurismo” que hoje talvez te fascinem na TV ou nos filmes.
A música, pode ser óptima para se ouvir. Mas em excesso provoca-nos a surdez, tal como o álcool e as drogas levam sempre à destruição de cada um de nós: física e da nossa dignidade.
Por isso, no fim do divertimento, da discoteca ou do futebol, tira os auscultadores e pensa também no que pode ser a tua vida daqui a dez anos: o trabalho que melhor te poderá servir; a relação íntima que desejas com alguém; o mundo que mais te agradaria partilhar. Talvez valha a pena.
JF / 28.Nov.2011
sábado, 19 de novembro de 2011
Os militares e a ordem política
Os militares (sobretudo os seus reformados) andam de novo descontentes, fazendo reuniões numerosas e manifestações de rua.
Compreende-se perfeitamente que se sintam maltratados e ultrajados por uma ‘classe política’ (particularmente os partidos da governação) que os despreza e que levou o país à situação actual. Mas não basta dizer que há “outros” que também deviam pagar, em tempo de sacrifícios – como é geralmente, a reacção de cada qual: Not in my backyard! Provavelmente, nas Forças Armadas há lugares de oficiais-generais a mais, baixa produtividade em muitos serviços de apoio não-combatentes e carreiras insuficientemente selectivas (apesar da pirâmide) que levam quase todos a chegar aos postos de coronel ou de sargento-ajudante: são aspectos onde os “cortes” poderiam até ser potenciadores de maior rigor e eficiência para a organização. Noutras áreas mais fundamentais, é possível que a redução de meios exigida pela escassez orçamental se deva não apenas a uma reavaliação das missões e a evitar sobreposições e restos de tensões inter-corporativas mas também ao anti-militarismo larvar existente na sociedade portuguesa actual. Contudo, aí devem actuar os responsáveis do alto-comando, face ao governo.
Há, porém, comportamentos que são dificilmente aceitáveis em militares, que sempre abraçaram voluntariamente essa especial condição e conhecem desde o início as abdicações e servidões a que estão sujeitos. O associativismo reivindicativo (de tipo sindical-corporativo) pode servir os fins agitatórios perseguidos por minorias políticas organizadas, mas constitui sempre um risco, quer para a disciplina e coesão das instituições militares, quer sobretudo para não avivar as lembranças das intervenções armadas na governação que pontuaram a história dos últimos dois séculos.
Imagine-se o que seria, num país destroçado pela crise, o regresso dos “pronunciamentos”, com as forças militares e de segurança fragmentadas entre “constitucionalistas” e “regeneradoras”, e a Europa, estupefacta, a dar luz verde a que o exército mais próximo e mais capaz – obviamente, o de Espanha – viesse finalmente pôr ordem nisto!...
Os militares têm tanta razão de descontentamento com a situação económica actual como todos os outros funcionários públicos e os pensionistas, e menos do que as famílias de desempregados e os quatro ou cinco milhões de portugueses que vivem com rendimentos inferiores a mil Euros mensais. Como cidadãos, em igualdade com quaisquer outros, podem votar para ajudar a mudar um governo. Mas a subliminar evocação das armas, que só eles podem usar, é ilegítima. Por exemplo, ninguém aceitaria que os juízes não aplicassem uma lei penal que lhes desagradasse.
Por estas razões cruciais, é preciso ter uma extrema cautela com todo o tipo de manifestações colectivas públicas de militares, mesmo desfardados ou pela “interposta pessoa” dos reformados. E as reacções de algumas figuras históricas do MFA podem até ser compreensíveis enquanto desabafos pessoais, em privado, mas tornam-se perigosas – e desqualificadoras para a própria ‘classe castrense’ – quando produzidas publicamente e destinadas a servir de alerta e de meio de pressão para a opinião pública e responsáveis políticos.
JF/ 19.Nov.2011
Compreende-se perfeitamente que se sintam maltratados e ultrajados por uma ‘classe política’ (particularmente os partidos da governação) que os despreza e que levou o país à situação actual. Mas não basta dizer que há “outros” que também deviam pagar, em tempo de sacrifícios – como é geralmente, a reacção de cada qual: Not in my backyard! Provavelmente, nas Forças Armadas há lugares de oficiais-generais a mais, baixa produtividade em muitos serviços de apoio não-combatentes e carreiras insuficientemente selectivas (apesar da pirâmide) que levam quase todos a chegar aos postos de coronel ou de sargento-ajudante: são aspectos onde os “cortes” poderiam até ser potenciadores de maior rigor e eficiência para a organização. Noutras áreas mais fundamentais, é possível que a redução de meios exigida pela escassez orçamental se deva não apenas a uma reavaliação das missões e a evitar sobreposições e restos de tensões inter-corporativas mas também ao anti-militarismo larvar existente na sociedade portuguesa actual. Contudo, aí devem actuar os responsáveis do alto-comando, face ao governo.
Há, porém, comportamentos que são dificilmente aceitáveis em militares, que sempre abraçaram voluntariamente essa especial condição e conhecem desde o início as abdicações e servidões a que estão sujeitos. O associativismo reivindicativo (de tipo sindical-corporativo) pode servir os fins agitatórios perseguidos por minorias políticas organizadas, mas constitui sempre um risco, quer para a disciplina e coesão das instituições militares, quer sobretudo para não avivar as lembranças das intervenções armadas na governação que pontuaram a história dos últimos dois séculos.
Imagine-se o que seria, num país destroçado pela crise, o regresso dos “pronunciamentos”, com as forças militares e de segurança fragmentadas entre “constitucionalistas” e “regeneradoras”, e a Europa, estupefacta, a dar luz verde a que o exército mais próximo e mais capaz – obviamente, o de Espanha – viesse finalmente pôr ordem nisto!...
Os militares têm tanta razão de descontentamento com a situação económica actual como todos os outros funcionários públicos e os pensionistas, e menos do que as famílias de desempregados e os quatro ou cinco milhões de portugueses que vivem com rendimentos inferiores a mil Euros mensais. Como cidadãos, em igualdade com quaisquer outros, podem votar para ajudar a mudar um governo. Mas a subliminar evocação das armas, que só eles podem usar, é ilegítima. Por exemplo, ninguém aceitaria que os juízes não aplicassem uma lei penal que lhes desagradasse.
Por estas razões cruciais, é preciso ter uma extrema cautela com todo o tipo de manifestações colectivas públicas de militares, mesmo desfardados ou pela “interposta pessoa” dos reformados. E as reacções de algumas figuras históricas do MFA podem até ser compreensíveis enquanto desabafos pessoais, em privado, mas tornam-se perigosas – e desqualificadoras para a própria ‘classe castrense’ – quando produzidas publicamente e destinadas a servir de alerta e de meio de pressão para a opinião pública e responsáveis políticos.
JF/ 19.Nov.2011
quarta-feira, 16 de novembro de 2011
O sorriso da caixeira
Verão e Inverno, ao longo dos anos, a rapariga caixeira de supermercado tem-se mantido com uma atractividade física irresistível. Já não é uma miúda mas permanece com um corpo invejável, o rosto, as mãos e o cabelo sempre impecavelmente cuidados.
É claro que atrai a clientela masculina para o seu “canal”, mais do qualquer outra das suas colegas, mesmo as mais gentis e despachadas.
Mas simpatia também é coisa que não lhe falta a ela. Os profissionais que lhe deram formação deviam sentir-se orgulhosos da eficácia dos resultados. Porém, é pouco provável que ela daí retire algum ganho suplementar. Até talvez atice a inveja de outras.
O atendimento é forçosamente maquinal: o tapete a rolar, os produtos a exibirem o seu código-de-barras face à janela de leitura óptica, as operações de ensacamento… mas com aquele sorriso luminoso que completa alguma frase brevemente enunciada, sobre a afluência da hora ou o apetite da praia. O machola grosseiro avança com mais conversa, sem tino. Mas uma curta troca de palavras e o sorriso também não são negados às mulheres ou aos idosos.
Quando as suas unhas longas roçam a mão do cliente no momento do “troco”, um arrepio percorre o corpo deste e – que deleite! – ela se despede com mais um sorriso, enquanto já se vira para a pessoa seguinte dizendo “bom dia”.
Desistam os “marketistas” das suas campanhas publicitárias ou técnicas de desconto! O que atrai e fideliza o cliente-homem a uma determinada loja é o sorriso da caixeira. E a sua imagem pode alimentar, em alguns, imaginários mas saborosos sonhos orgásticos.
Eis como o rosto de uma rapariga simples de supermercado pode bem ter a sedução e o mistério de uma Monalisa dos tempos actuais.
JF /15.Nov.2011
É claro que atrai a clientela masculina para o seu “canal”, mais do qualquer outra das suas colegas, mesmo as mais gentis e despachadas.
Mas simpatia também é coisa que não lhe falta a ela. Os profissionais que lhe deram formação deviam sentir-se orgulhosos da eficácia dos resultados. Porém, é pouco provável que ela daí retire algum ganho suplementar. Até talvez atice a inveja de outras.
O atendimento é forçosamente maquinal: o tapete a rolar, os produtos a exibirem o seu código-de-barras face à janela de leitura óptica, as operações de ensacamento… mas com aquele sorriso luminoso que completa alguma frase brevemente enunciada, sobre a afluência da hora ou o apetite da praia. O machola grosseiro avança com mais conversa, sem tino. Mas uma curta troca de palavras e o sorriso também não são negados às mulheres ou aos idosos.
Quando as suas unhas longas roçam a mão do cliente no momento do “troco”, um arrepio percorre o corpo deste e – que deleite! – ela se despede com mais um sorriso, enquanto já se vira para a pessoa seguinte dizendo “bom dia”.
Desistam os “marketistas” das suas campanhas publicitárias ou técnicas de desconto! O que atrai e fideliza o cliente-homem a uma determinada loja é o sorriso da caixeira. E a sua imagem pode alimentar, em alguns, imaginários mas saborosos sonhos orgásticos.
Eis como o rosto de uma rapariga simples de supermercado pode bem ter a sedução e o mistério de uma Monalisa dos tempos actuais.
JF /15.Nov.2011
sexta-feira, 11 de novembro de 2011
Um Estado sem Governo
A Bélgica está há mais de um ano com o governo demissionário, em mera gestão dos assuntos correntes, e mesmo o princípio de acordo a que chegaram os partidos no parlamento ainda não se traduziu na constituição de um novo governo efectivo. E, no entanto, o país parece não ter parado nem ficado pior do que estava antes!
Meio a brincar, dizem alguns que, afinal, o governo parece ser uma instituição dispensável. E até um colunista na moda escreveu sobre “A vingança do anarquista” (R. Tavares, Público, 21.Set.2011).
Teria então alguma razão a filosofia política anarquista defendida por certas minorias activas de há um século que acreditavam que se podia viver melhor em sociedade sem a existência de um governo? Não é certo – e parecerá mesmo completamente impossível à esmagadora maioria das pessoas, que tendem a basear-se num princípio de realidade. Então no mundo de hoje, em que, por exemplo, nos queixamos das dificuldades em que vive a União Europeia por falta de uma governação mais adequada à integração económica e monetária atingida, parece surrealista pensar numa ausência, ou mesmo num enfraquecimento, dessa instância de decisão política. Como sobreviveria agora a Grécia sem governo? Mas também é certo que muito da sua péssima situação actual deriva do “desgoverno” a que a sujeitaram sucessivos governantes.
Numa discussão mais desprendida das ansiedades do momento, pode sustentar-se que nas formas de governo hoje conhecidas desaguam três problemas de diferente natureza. Por um lado, os governos nacionais actuais são os herdeiros (democratizados já na maioria dos países) do poder político confiscado por certos grupos ou minorias que, desde há séculos, se assenhorearam pela força (guerras, conspirações, revoluções) das instituições e dos instrumentos de domínio sobre uma determinada população e território. Dai a persistência de certos “tiques” autocráticos ou de manobras insidiosas praticadas pelos governantes actuais para se manterem nos cargos, ou dos seus competidores para desalojar os que lá se encontram.
Por outro lado, é verdade que todas as comunidades nacionais, com uma história e cultura consolidadas, carecem de uma instância central em que se reconheçam, que lhes possa dar sinais de orientação colectiva e que as represente externamente perante outras similares. Os reis personificaram durante muito tempo esta função, mas caíram quando a tensão entre o sentimento colectivo do povo e os interesses particulares da família reinante atingiu um ponto de rotura. Hoje, neste aspecto, estando o risco de tirania relativamente esconjurado, o problema principal parece ser o de como conseguir um controlo do poder governativo pelos cidadãos que evite destemperos e corrupções (o que se chama democracia) mas que, ao mesmo tempo, assegure eficácia funcional e não descambe na manipulação afectiva ou eleitoralista (ou seja, a demagogia).
Finalmente, existem problemas próprios da nossa época que a humanidade enfrenta pela primeira vez, de forma titubeante e contraditória: os impactos negativos das indústrias e das cidades sobre o meio ambiente natural; a instantaneidade e massificação da comunicação; a imbricação e integração mundial das economias – tudo isto coexistindo com a presença de 200 estados nacionais, que são fruto das contingências históricas e extremamente desiguais entre si, com instituições de auto-governo pensadas no Séc. XVIII para substituir as realezas absolutistas caducas, e com uma ordem internacional negociada pelos mais fortes mas hoje com a preocupação de evitar as guerras brutais do passado (sobretudo tendo em conta o potencial de destruição existente). Por exemplo, os padrões éticos de comportamento, laicos ou religiosos, estão a ser fonte de grande angústia, ditada quer pela ausência de normas educativas, quer pelo choque entre crenças culturais profundamente enraizadas e princípios legais que se pretendem universais. E – sobretudo nos tempos que correm – é a actividade económica e financeira que manifesta dificuldades em se estabilizar, entre a capacidade de realização das macro-empresas, o apetite ao consumo de massas populacionais crescentes e a desigual autonomia e meios de controlo das entidades políticas nacionais.
Hoje, a crise é económico-financeira, mas também dos sistemas de representação política. Tem razão o sociólogo Gustavo Cardoso ao referir as condições de socialização dos jovens de hoje e ao escrever que “quando surgem fortes barreiras à mobilidade social e à intervenção política é quando a indignação sai à rua”, avisando ainda que “os líderes das democracias que não souberem ouvir de forma diferente e mudar a sua forma de pensar estarão condenados a um ciclo vicioso de derrota, de quem estiver no poder, e de vitória de quem estiver na oposição” (Público, 9.Nov.2011) – o que, convenhamos, não é uma perspectiva encorajadora.
A Bélgica – sobretudo porque é uma nação artificial – até poderia viver bem sempre com “governos de gestão corrente” (como a Suíça, por razões opostas), não fora o contexto externo em que está inserida: ontem, tendo que encarar as decisões sobre as invasões militares que lhe penetraram pela terra dentro; hoje, tendo de cuidar seriamente do sistema bancário ali sedeado e das derrapagens orçamentais, onde a emigração e o sistema de segurança social constituem duas variáveis-chave (vista a demografia do país), a pedirem decisões corajosas, que talvez não possam ser referendadas.
O “Estado sem governo” pode ser uma belíssima ideia, mas ainda não está propriamente na ordem-do-dia.
JF / 11.Nov.2011
Meio a brincar, dizem alguns que, afinal, o governo parece ser uma instituição dispensável. E até um colunista na moda escreveu sobre “A vingança do anarquista” (R. Tavares, Público, 21.Set.2011).
Teria então alguma razão a filosofia política anarquista defendida por certas minorias activas de há um século que acreditavam que se podia viver melhor em sociedade sem a existência de um governo? Não é certo – e parecerá mesmo completamente impossível à esmagadora maioria das pessoas, que tendem a basear-se num princípio de realidade. Então no mundo de hoje, em que, por exemplo, nos queixamos das dificuldades em que vive a União Europeia por falta de uma governação mais adequada à integração económica e monetária atingida, parece surrealista pensar numa ausência, ou mesmo num enfraquecimento, dessa instância de decisão política. Como sobreviveria agora a Grécia sem governo? Mas também é certo que muito da sua péssima situação actual deriva do “desgoverno” a que a sujeitaram sucessivos governantes.
Numa discussão mais desprendida das ansiedades do momento, pode sustentar-se que nas formas de governo hoje conhecidas desaguam três problemas de diferente natureza. Por um lado, os governos nacionais actuais são os herdeiros (democratizados já na maioria dos países) do poder político confiscado por certos grupos ou minorias que, desde há séculos, se assenhorearam pela força (guerras, conspirações, revoluções) das instituições e dos instrumentos de domínio sobre uma determinada população e território. Dai a persistência de certos “tiques” autocráticos ou de manobras insidiosas praticadas pelos governantes actuais para se manterem nos cargos, ou dos seus competidores para desalojar os que lá se encontram.
Por outro lado, é verdade que todas as comunidades nacionais, com uma história e cultura consolidadas, carecem de uma instância central em que se reconheçam, que lhes possa dar sinais de orientação colectiva e que as represente externamente perante outras similares. Os reis personificaram durante muito tempo esta função, mas caíram quando a tensão entre o sentimento colectivo do povo e os interesses particulares da família reinante atingiu um ponto de rotura. Hoje, neste aspecto, estando o risco de tirania relativamente esconjurado, o problema principal parece ser o de como conseguir um controlo do poder governativo pelos cidadãos que evite destemperos e corrupções (o que se chama democracia) mas que, ao mesmo tempo, assegure eficácia funcional e não descambe na manipulação afectiva ou eleitoralista (ou seja, a demagogia).
Finalmente, existem problemas próprios da nossa época que a humanidade enfrenta pela primeira vez, de forma titubeante e contraditória: os impactos negativos das indústrias e das cidades sobre o meio ambiente natural; a instantaneidade e massificação da comunicação; a imbricação e integração mundial das economias – tudo isto coexistindo com a presença de 200 estados nacionais, que são fruto das contingências históricas e extremamente desiguais entre si, com instituições de auto-governo pensadas no Séc. XVIII para substituir as realezas absolutistas caducas, e com uma ordem internacional negociada pelos mais fortes mas hoje com a preocupação de evitar as guerras brutais do passado (sobretudo tendo em conta o potencial de destruição existente). Por exemplo, os padrões éticos de comportamento, laicos ou religiosos, estão a ser fonte de grande angústia, ditada quer pela ausência de normas educativas, quer pelo choque entre crenças culturais profundamente enraizadas e princípios legais que se pretendem universais. E – sobretudo nos tempos que correm – é a actividade económica e financeira que manifesta dificuldades em se estabilizar, entre a capacidade de realização das macro-empresas, o apetite ao consumo de massas populacionais crescentes e a desigual autonomia e meios de controlo das entidades políticas nacionais.
Hoje, a crise é económico-financeira, mas também dos sistemas de representação política. Tem razão o sociólogo Gustavo Cardoso ao referir as condições de socialização dos jovens de hoje e ao escrever que “quando surgem fortes barreiras à mobilidade social e à intervenção política é quando a indignação sai à rua”, avisando ainda que “os líderes das democracias que não souberem ouvir de forma diferente e mudar a sua forma de pensar estarão condenados a um ciclo vicioso de derrota, de quem estiver no poder, e de vitória de quem estiver na oposição” (Público, 9.Nov.2011) – o que, convenhamos, não é uma perspectiva encorajadora.
A Bélgica – sobretudo porque é uma nação artificial – até poderia viver bem sempre com “governos de gestão corrente” (como a Suíça, por razões opostas), não fora o contexto externo em que está inserida: ontem, tendo que encarar as decisões sobre as invasões militares que lhe penetraram pela terra dentro; hoje, tendo de cuidar seriamente do sistema bancário ali sedeado e das derrapagens orçamentais, onde a emigração e o sistema de segurança social constituem duas variáveis-chave (vista a demografia do país), a pedirem decisões corajosas, que talvez não possam ser referendadas.
O “Estado sem governo” pode ser uma belíssima ideia, mas ainda não está propriamente na ordem-do-dia.
JF / 11.Nov.2011
terça-feira, 8 de novembro de 2011
Berlusconi: finalmente, desaparece de cena uma figura detestável
A crise financeira faz muitas vítimas mas também tem efeitos de saudável depuração. O afastamento do chefe do governo italiano Sílvio Berluscini é um deles.
A Itália vai entrar também em grandes dificuldades e todos os outros países sofrerão com isso. Mas as alterações políticas competem fundamentalmente aos cidadãos italianos, que saberão, ou não, encontrar soluções melhores.
O que, porém, diz respeito a todos nós é a indignidade com que um político como Berlusconi pôde estar à frente dessa grande nação durante tantos anos.
A sua trajectória é bem ilustrativa do arrivismo de negócios e do populismo televisivo que hoje são capazes de tomar conta da cabeça de um Estado: futebol-de-massas, RAIuno, grandes operações empresariais, criação do partido ForzaItalia (sobre os escombros de um espectro partidário corrompido e gasto), escândalos de costumes, manobras políticas para se eximir a vários casos judiciais, mau gosto e boçalidades, etc. – eis marcos que não deveriam voltar a ser percorridos.
A história da Itália política já é pródiga em figuras-bufas deste género. Mas isso não autoriza que as aceitemos simplesmente como o resultado das escolhas dos italianos.
O que é mau e rasca, deve ser denunciado.
JF / 8.Nov.2011
A Itália vai entrar também em grandes dificuldades e todos os outros países sofrerão com isso. Mas as alterações políticas competem fundamentalmente aos cidadãos italianos, que saberão, ou não, encontrar soluções melhores.
O que, porém, diz respeito a todos nós é a indignidade com que um político como Berlusconi pôde estar à frente dessa grande nação durante tantos anos.
A sua trajectória é bem ilustrativa do arrivismo de negócios e do populismo televisivo que hoje são capazes de tomar conta da cabeça de um Estado: futebol-de-massas, RAIuno, grandes operações empresariais, criação do partido ForzaItalia (sobre os escombros de um espectro partidário corrompido e gasto), escândalos de costumes, manobras políticas para se eximir a vários casos judiciais, mau gosto e boçalidades, etc. – eis marcos que não deveriam voltar a ser percorridos.
A história da Itália política já é pródiga em figuras-bufas deste género. Mas isso não autoriza que as aceitemos simplesmente como o resultado das escolhas dos italianos.
O que é mau e rasca, deve ser denunciado.
JF / 8.Nov.2011
sábado, 5 de novembro de 2011
A tremura dos 'setenta'
Atingir-se a vizinhança das setenta primaveras significa hoje, geralmente, ser passado à categoria dos reformados, inactivos ou aposentados.
Vá lá que ainda guardam o direito de voto, mesmo quando a lucidez se foi e o viver se torna uma espera do fim. (Deve ser para não enfrentar a dificuldade de definir juridicamente o que é a liberdade de consciência…)
É certo que a experiência e os distanciamentos são também uma condição do saber científico – como antecipou o dito renascentista sobre “la madre de todalas cosas”. Mas essa sabedoria, que alguns alcançam no declinar das suas vidas, já não tem hoje qualquer valor que possa aproveitar à sociedade, talvez com a excepção da socialização dos pequenotes, ainda assim de forma muito parcial.
Em termos demográficos e geracionais, as “sociedades de classes médias” de hoje são dirigidas por elites de média-idade que parecem orientar-se prioritariamente pelo propósito de seduzir as camadas jovens e vão suportando os pensionistas porque estes, cada vez mais, pesam nos pleitos eleitorais.
Contudo, como se observou entre nós com o interessante “balão de ensaios” do Partido de Solidariedade Nacional do doutor Manuel Sérgio, os idosos não demonstram ter as condições anímicas e a identidade social necessárias para constituir uma força política autónoma.
Limitam-se, assim, a exercer um certo papel social – sobretudo, o de baby sitters dos netos, e também os de animadores e utentes de “actividades de terceira idade”, como sejam formas várias de voluntariado, universidades seniores ou “depositários da memória” para os cientistas sociais exercitarem as suas competências –, ao lado de um papel económico já significativo, dada a expressão numérica que corporizam:
-a grande maioria, com pequenas ou insuficientes pensões, justificando a cada vez maior quantidade de trabalhadores sociais (públicos, empresariais e do “3º sector”) que deles se ocupam e que alguém paga (os impostos do Estado, os próprios beneficiários ou a solidariedade social);
-os mais abonados ou afortunados, reciclando parte das poupanças das suas vidas em favor dos filhos – os jovens adultos, mesmo bem qualificados, que enfrentam grandes dificuldades de integração na vida activa – e gerindo o que resta dos seus rendimentos entre o usufruto de alguns prazeres há muito sonhados (uma viagem, um espectáculo, etc.) e os cálculos arriscados de quanto irão ter para acabar as suas vidas.
Quando o corpo já pesa, o dominó e o banco-de-jardim são a escapatória possível para os mais desmunidos.
O corte abrupto entre uma actividade de trabalho, remunerada, e a desocupação, há muito que se sabe ser penoso e perturbador, mas, por isso mesmo, já hoje respondido de muitas maneiras, segundo os gostos e possibilidades de cada qual. O que já é quase sempre uma novidade é a reaprendizagem psicológica do casal de reformados, agora levados a conviver 24 horas por dia, coisa que nunca tinha acontecido nas suas vidas, salvo os momentos absolutamente excepcionais de uma longínqua paixão amorosa ou os pequenos intermezzi de algumas férias.
Pior é, mais cedo ou mais tarde, a inevitável experiência do “ficar só”, marcada pelo irremediável da morte ou por uma sucessão de conflitos internos ou de personalidade que levam à rotura. O quase-forçado exercício de reflexão e auto-análise deste isolamento pode conduzir a descobertas pessoais até decisivas para o sentido-da-vida de cada um, mas é quase sempre tarde demais para um desejo correctivo com efeitos práticos. O mesmo se diga dos cada vez mais fugazes impulsos sexuais, perante a beleza irresistível de um corpo jovem e a improbabilidade de o tocar.
A nostalgia é então, muitas vezes, uma saída carinhosa para os próprios – seja vivida individualmente ou entre iguais –, porém tremendamente aborrecida para terceiros. Ainda mais incómoda para estes é a caquexia ou outros desarranjos físico-mentais que tantas vezes antecedem o falecimento, provocando então verdadeira tristeza nos próximos que o conheceram e amaram vivo-vivo. E patética é a tentativa desesperada de alguns para contrariar o natural envelhecimento, pela maquillage ou a persistência em estilos-de-vida a destempo.
Analistas reconhecidos (Filomena Mónica, Villaverde Cabral) procuram dar conta disto pelo escrito ou pela acção investigativa-institucional, e não faltam actualmente especialistas e políticos para se ocuparem do “testamento vital”, mas surpreende que pareçam só agora descobrir o problema (Adiaram-no, certamente, e terão feito bem!).
Mas talvez todos pudéssemos aprender com a maioria desta gente da “terceira idade” uma qualidade que não abunda por aí: a da serenidade.
JF / 4.Nov.2011
Vá lá que ainda guardam o direito de voto, mesmo quando a lucidez se foi e o viver se torna uma espera do fim. (Deve ser para não enfrentar a dificuldade de definir juridicamente o que é a liberdade de consciência…)
É certo que a experiência e os distanciamentos são também uma condição do saber científico – como antecipou o dito renascentista sobre “la madre de todalas cosas”. Mas essa sabedoria, que alguns alcançam no declinar das suas vidas, já não tem hoje qualquer valor que possa aproveitar à sociedade, talvez com a excepção da socialização dos pequenotes, ainda assim de forma muito parcial.
Em termos demográficos e geracionais, as “sociedades de classes médias” de hoje são dirigidas por elites de média-idade que parecem orientar-se prioritariamente pelo propósito de seduzir as camadas jovens e vão suportando os pensionistas porque estes, cada vez mais, pesam nos pleitos eleitorais.
Contudo, como se observou entre nós com o interessante “balão de ensaios” do Partido de Solidariedade Nacional do doutor Manuel Sérgio, os idosos não demonstram ter as condições anímicas e a identidade social necessárias para constituir uma força política autónoma.
Limitam-se, assim, a exercer um certo papel social – sobretudo, o de baby sitters dos netos, e também os de animadores e utentes de “actividades de terceira idade”, como sejam formas várias de voluntariado, universidades seniores ou “depositários da memória” para os cientistas sociais exercitarem as suas competências –, ao lado de um papel económico já significativo, dada a expressão numérica que corporizam:
-a grande maioria, com pequenas ou insuficientes pensões, justificando a cada vez maior quantidade de trabalhadores sociais (públicos, empresariais e do “3º sector”) que deles se ocupam e que alguém paga (os impostos do Estado, os próprios beneficiários ou a solidariedade social);
-os mais abonados ou afortunados, reciclando parte das poupanças das suas vidas em favor dos filhos – os jovens adultos, mesmo bem qualificados, que enfrentam grandes dificuldades de integração na vida activa – e gerindo o que resta dos seus rendimentos entre o usufruto de alguns prazeres há muito sonhados (uma viagem, um espectáculo, etc.) e os cálculos arriscados de quanto irão ter para acabar as suas vidas.
Quando o corpo já pesa, o dominó e o banco-de-jardim são a escapatória possível para os mais desmunidos.
O corte abrupto entre uma actividade de trabalho, remunerada, e a desocupação, há muito que se sabe ser penoso e perturbador, mas, por isso mesmo, já hoje respondido de muitas maneiras, segundo os gostos e possibilidades de cada qual. O que já é quase sempre uma novidade é a reaprendizagem psicológica do casal de reformados, agora levados a conviver 24 horas por dia, coisa que nunca tinha acontecido nas suas vidas, salvo os momentos absolutamente excepcionais de uma longínqua paixão amorosa ou os pequenos intermezzi de algumas férias.
Pior é, mais cedo ou mais tarde, a inevitável experiência do “ficar só”, marcada pelo irremediável da morte ou por uma sucessão de conflitos internos ou de personalidade que levam à rotura. O quase-forçado exercício de reflexão e auto-análise deste isolamento pode conduzir a descobertas pessoais até decisivas para o sentido-da-vida de cada um, mas é quase sempre tarde demais para um desejo correctivo com efeitos práticos. O mesmo se diga dos cada vez mais fugazes impulsos sexuais, perante a beleza irresistível de um corpo jovem e a improbabilidade de o tocar.
A nostalgia é então, muitas vezes, uma saída carinhosa para os próprios – seja vivida individualmente ou entre iguais –, porém tremendamente aborrecida para terceiros. Ainda mais incómoda para estes é a caquexia ou outros desarranjos físico-mentais que tantas vezes antecedem o falecimento, provocando então verdadeira tristeza nos próximos que o conheceram e amaram vivo-vivo. E patética é a tentativa desesperada de alguns para contrariar o natural envelhecimento, pela maquillage ou a persistência em estilos-de-vida a destempo.
Analistas reconhecidos (Filomena Mónica, Villaverde Cabral) procuram dar conta disto pelo escrito ou pela acção investigativa-institucional, e não faltam actualmente especialistas e políticos para se ocuparem do “testamento vital”, mas surpreende que pareçam só agora descobrir o problema (Adiaram-no, certamente, e terão feito bem!).
Mas talvez todos pudéssemos aprender com a maioria desta gente da “terceira idade” uma qualidade que não abunda por aí: a da serenidade.
JF / 4.Nov.2011
sábado, 29 de outubro de 2011
Entre o universalismo de esquerda e o assistencialismo de direita
Para além dos modernos sistemas de solidariedade e previdência social (em que todos contribuem para aqueles que são atingidos pelo desemprego, a doença ou o acidente de trabalho e, por outro lado, se garante uma pensão aos idosos e incapazes), boa parte da chamada “acção social do Estado” tem dado origem ao cavar de fosso entre duas perspectivas principais, entre as actuais forças políticas de direita e de esquerda.
As “esquerdas”, geralmente conotadas com a defesa dos interesses e direitos dos mais fracos e numerosos, tenderam a estabelecer direitos universalmente usufruíveis (gratuitos, se possível), pagos pelo orçamento do Estado que, por sua vez, através dos impostos, deveria penalizar fortemente os mais ricos e assim corrigir as desigualdades económicas existentes na sociedade (e que estão longe de ser apenas fruto do capitalismo). Com isto, operaram alguma distribuição de rendimentos mas fizeram crescer enormemente uma burocracia de funcionários públicos, ainda por cima geralmente pouco eficiente, criando também novos lugares de decisão, ao alcance da sua intelligentsia, mais bem preparada intelectualmente. E recordo-me de, no início dos anos 70, um notável sociólogo da Europa do norte ter chamado a atenção para uma provável “revolta dos contribuintes”, tal o nível aí atingido pela fiscalidade para fazer face à despesa pública crescente, ainda antes da aceleração da circulação do dinheiro e do triunfo das engenharias financeiras, com os riscos de “descoberto” que agora se vêem.
As “direitas”, evoluíram mais rápida e notoriamente: vieram do conservadorismo classista que considerava as populações operárias e camponesas como desprezíveis; integraram parte do estatismo e do populismo das ideologias autoritárias europeias da primeira metade do século XX; absorveram o sentido cristão da caridade ou da solidariedade; mantiveram o apego aos valores da propriedade, do mercado e da livre iniciativa; souberam passar do proteccionismo ao livre-cambismo e à concorrência cada vez mais aberta; e, last but not the least, deixaram de se apresentar como guardiões do statu quo e passaram igualmente a defensores da “mudança”.
No plano aqui em discussão, têm porém visões bem diferentes da esquerda sobre o que deve ser o “Estado social”. Por exemplo, defendem geralmente o princípio do “utilizador-pagador” (de uma auto-estrada ou outro equipamento colectivo), em vez da gratuitidade; não só propõem “taxas moderadoras” na saúde (e outros serviços públicos, para evitar o seu uso não justificado) como acham mesmo que, quem mais tem, mais deve pagar no uso que faz daqueles caríssimos recursos; na educação, propõem o “cheque-ensino”, para permitir a livre escolha dos melhores estabelecimentos de ensino e sustentar a oferta privada no sector; avançam com “plafonamentos” dos descontos obrigatórios para a segurança social para aliviar o Estado do ónus da evolução demográfica e interessar os seguros de capitalização; julgam que muitos serviços públicos (transportes, correios, energia, águas ou televisão) podem ser privatizados, com vantagem para os cidadãos, menores custos para o Estado e oportunidades de negócio para a iniciativa privada; etc.
Presa no seu imobilismo ideológico, a esquerda tem cedido, pouco a pouco, em diversos pontos deste programa. Em compensação, inovou no capítulo dos “novos direitos” para responder a reivindicações de minorias (na sexualidade, relações inter-étnicas, fruição cultural, direito civil, etc.).
Entre estas duas visões dominantes, pouco espaço resta para uma alternativa se afirmar. No entanto, ela existe já, e especialmente apta para lidar com “problemas sociais” deste tipo: encontra-se no “3º sector” e é constituída por uma apreciável rede de instituições locais de entreajuda e solidariedade social (mutualidades, misericórdias, associações, ONG’s). Aqui, não existem objectivos lucrativos (como nas empresas), há maior sensibilidade humana e relações de proximidade (ao contrário das instituições públicas), dá-se oportunidade de uma acção socialmente útil a um significativo número de colaboradores voluntários (não remunerados) e ainda se contribui para o emprego de uns largos milhares de trabalhadores, muitos deles de parcas qualificações profissionais. É verdade que, entre nós, a maioria destas instituições é de inspiração católica e serve também os seus intuitos proselitistas, mas esse é um desafio que outras orientações espirituais, éticas ou políticas já deveriam ter resgatado há muito tempo, fazendo igual ou melhor no mesmo campo.
O que falta então? Faltam “empreendedores sociais” mais imaginativos e responsáveis e, em especial, os financiamentos para construir e manter tais equipamentos, uma vez que quase não se pode contar com as contribuições dos beneficiários. O Estado subsidia (e bem) estas actividades, mas aí se criou também uma excessiva dependência, que só pode ter efeitos nefastos. Seria, pois, muito desejável que, na base do altruísmo, se desenvolvessem os mecanismos de “recolha de fundos” no seio da sociedade civil (como acontece em países anglo-saxónicos), logicamente apelando sobretudo aos níveis mais elevados de rendimentos, para que o “3º sector” pudesse ganhar uma outra auto-sustentação.
JF / 28.Nov.2011
As “esquerdas”, geralmente conotadas com a defesa dos interesses e direitos dos mais fracos e numerosos, tenderam a estabelecer direitos universalmente usufruíveis (gratuitos, se possível), pagos pelo orçamento do Estado que, por sua vez, através dos impostos, deveria penalizar fortemente os mais ricos e assim corrigir as desigualdades económicas existentes na sociedade (e que estão longe de ser apenas fruto do capitalismo). Com isto, operaram alguma distribuição de rendimentos mas fizeram crescer enormemente uma burocracia de funcionários públicos, ainda por cima geralmente pouco eficiente, criando também novos lugares de decisão, ao alcance da sua intelligentsia, mais bem preparada intelectualmente. E recordo-me de, no início dos anos 70, um notável sociólogo da Europa do norte ter chamado a atenção para uma provável “revolta dos contribuintes”, tal o nível aí atingido pela fiscalidade para fazer face à despesa pública crescente, ainda antes da aceleração da circulação do dinheiro e do triunfo das engenharias financeiras, com os riscos de “descoberto” que agora se vêem.
As “direitas”, evoluíram mais rápida e notoriamente: vieram do conservadorismo classista que considerava as populações operárias e camponesas como desprezíveis; integraram parte do estatismo e do populismo das ideologias autoritárias europeias da primeira metade do século XX; absorveram o sentido cristão da caridade ou da solidariedade; mantiveram o apego aos valores da propriedade, do mercado e da livre iniciativa; souberam passar do proteccionismo ao livre-cambismo e à concorrência cada vez mais aberta; e, last but not the least, deixaram de se apresentar como guardiões do statu quo e passaram igualmente a defensores da “mudança”.
No plano aqui em discussão, têm porém visões bem diferentes da esquerda sobre o que deve ser o “Estado social”. Por exemplo, defendem geralmente o princípio do “utilizador-pagador” (de uma auto-estrada ou outro equipamento colectivo), em vez da gratuitidade; não só propõem “taxas moderadoras” na saúde (e outros serviços públicos, para evitar o seu uso não justificado) como acham mesmo que, quem mais tem, mais deve pagar no uso que faz daqueles caríssimos recursos; na educação, propõem o “cheque-ensino”, para permitir a livre escolha dos melhores estabelecimentos de ensino e sustentar a oferta privada no sector; avançam com “plafonamentos” dos descontos obrigatórios para a segurança social para aliviar o Estado do ónus da evolução demográfica e interessar os seguros de capitalização; julgam que muitos serviços públicos (transportes, correios, energia, águas ou televisão) podem ser privatizados, com vantagem para os cidadãos, menores custos para o Estado e oportunidades de negócio para a iniciativa privada; etc.
Presa no seu imobilismo ideológico, a esquerda tem cedido, pouco a pouco, em diversos pontos deste programa. Em compensação, inovou no capítulo dos “novos direitos” para responder a reivindicações de minorias (na sexualidade, relações inter-étnicas, fruição cultural, direito civil, etc.).
Entre estas duas visões dominantes, pouco espaço resta para uma alternativa se afirmar. No entanto, ela existe já, e especialmente apta para lidar com “problemas sociais” deste tipo: encontra-se no “3º sector” e é constituída por uma apreciável rede de instituições locais de entreajuda e solidariedade social (mutualidades, misericórdias, associações, ONG’s). Aqui, não existem objectivos lucrativos (como nas empresas), há maior sensibilidade humana e relações de proximidade (ao contrário das instituições públicas), dá-se oportunidade de uma acção socialmente útil a um significativo número de colaboradores voluntários (não remunerados) e ainda se contribui para o emprego de uns largos milhares de trabalhadores, muitos deles de parcas qualificações profissionais. É verdade que, entre nós, a maioria destas instituições é de inspiração católica e serve também os seus intuitos proselitistas, mas esse é um desafio que outras orientações espirituais, éticas ou políticas já deveriam ter resgatado há muito tempo, fazendo igual ou melhor no mesmo campo.
O que falta então? Faltam “empreendedores sociais” mais imaginativos e responsáveis e, em especial, os financiamentos para construir e manter tais equipamentos, uma vez que quase não se pode contar com as contribuições dos beneficiários. O Estado subsidia (e bem) estas actividades, mas aí se criou também uma excessiva dependência, que só pode ter efeitos nefastos. Seria, pois, muito desejável que, na base do altruísmo, se desenvolvessem os mecanismos de “recolha de fundos” no seio da sociedade civil (como acontece em países anglo-saxónicos), logicamente apelando sobretudo aos níveis mais elevados de rendimentos, para que o “3º sector” pudesse ganhar uma outra auto-sustentação.
JF / 28.Nov.2011
quinta-feira, 27 de outubro de 2011
E lá vão dois anos já
Foi há dois anos que iniciámos uma colaboração que se tornou regular, de base semanal, neste blogue ‘A Ideia Livre’. Não havia tal intenção à partida, embora fosse previsível.
Estava o mundo em plena crise financeira e económica e os eleitores portugueses acabavam de renovar o mandato do governo PS de José Sócrates, já marcado por muita desconfiança e críticas crescentes. E surgiam novos passos em causas fracturantes na “frente de esquerda dos costumes”.
Entretanto, os sinais de crise económica mudaram de aspecto e chicotearam nações desatentas como a Grécia e Portugal, enquanto continuaram a crescer notoriamente (economicamente e não só) grandes países do “3º mundo” como a China, a Índia, o Brasil, a África do Sul ou a Turquia, e com a Rússia a reocupar o lugar a que aspira. Os soldados do “bloco americano” foram-se progressivamente desencastrando dos cenários do Médio-Oriente e surgiram as insurreições da “rua árabe” para apear os seus regimes autoritários. Estamos, de facto, em época de grandes mudanças.
Veremos como andará daqui a um ano o globo, e o país, se cá estivermos.
JF / 25.Out.2011
Estava o mundo em plena crise financeira e económica e os eleitores portugueses acabavam de renovar o mandato do governo PS de José Sócrates, já marcado por muita desconfiança e críticas crescentes. E surgiam novos passos em causas fracturantes na “frente de esquerda dos costumes”.
Entretanto, os sinais de crise económica mudaram de aspecto e chicotearam nações desatentas como a Grécia e Portugal, enquanto continuaram a crescer notoriamente (economicamente e não só) grandes países do “3º mundo” como a China, a Índia, o Brasil, a África do Sul ou a Turquia, e com a Rússia a reocupar o lugar a que aspira. Os soldados do “bloco americano” foram-se progressivamente desencastrando dos cenários do Médio-Oriente e surgiram as insurreições da “rua árabe” para apear os seus regimes autoritários. Estamos, de facto, em época de grandes mudanças.
Veremos como andará daqui a um ano o globo, e o país, se cá estivermos.
JF / 25.Out.2011
sábado, 22 de outubro de 2011
Give peace a chance!
“Dêem uma oportunidade à paz!” O apelo parece apropriado no momento em que o ditador Kadafi tombou varado por balas na batalha de Kirte e em que, por casualidade, o que resta da ETA guerrilheira afirma renunciar à luta armada.
No primeiro caso – a supor que esta vitória dos insurrectos apoiados pela NATO dará finalmente ao CNT o controlo militar e de segurança do país –, resta saber se este modo manu militare de abater um regime não vai prolongar-se em campanhas vingativas ou lutas armadas entre tribos ou facções, e se forças radicais islamistas não tentarão apropriar-se de mecanismos importantes de dominação social (educação, solidariedade) ou política (exército, justiça, comunicação), que irão certamente ser agora levantados até com ajuda de dinheiros externos, ou aproveitarão oportunidades futuras para afirmar o posicionamento da Líbia no seu “indefectível apoio à causa palestiniana” ou contra a “ingerência imperialista nos seus assuntos internos”.
Em geral, as revoluções tendem a engendrar processos contra-revolucionários, que podem afundar as sociedades em conflitos intermináveis. As “boas revoluções” são as que encontram uma ampla base de apoio/compreensão social para a remoção do estado-de-coisas anterior, que se eternizara, e que se distinguem pelo uso excepcional da força, de muito curta duração. Neste caso, o facto da iniciativa da revolta (em Bengazi) ter provindo em larga medida do mesmo de tipo de “coligação-de-rua” que protagonizou as mudanças na Tunísia e no Egipto – isto é, jovens de classe média ocidentalizados, quadros dissidentes e povo urbano sofredor –, a discreta ajuda militar e política obtida de França, Inglaterra e Estados Unidos, a circunstância da Líbia ter recursos económicos (petróleo, relevante para os ocidentais) com que pagar os custos económicos da reconstrução e o próprio contexto “progressista-democrático” destas actuais “revoluções árabes” permite alimentar algumas esperanças quanto a uma evolução razoavelmente bem sucedida. Também parece positiva a maneira como a vida urbana tem sido retomada e reorganizada nas cidades sucessivamente ganhas aos “kadafistas”. Mas, é claro que têm razão os analistas que apontam a incógnita de como vai ser possível gerir este processo e construir uma legitimidade democrática para o novo poder onde não existem instituições de Estado que permaneçam (administração pública, justiça, segurança, etc.) e onde as forças políticas partirão do zero. Sairá antes um poder de Estado assente numa negociação com as tribos tradicionais (parecido com o de Karzai no Afeganistão)?
No que toca à nossa vizinha Espanha, o passo agora dado – parece que com o “conselho” dos ex-guerrilheiros irlandeses – significará o fim do “abcesso de fixação serôdio” que constituía este recurso à acção terrorista por parte de nacionalistas bascos, num país que goza de ampla liberdade de expressão e actuação cidadã, bem como de instituições legitimadas pelo voto das populações. Bem entendido, a questão política da integração da nação basca no Estado espanhol vai permanecer – como bem mostra o caso da Catalunha –, porém noutras plataformas e com outras conjunturas e processos. Oxalá a inevitável “resistência” dos mais impetuosos e dos “sacrificados” a esta nova fase seja breve e mínima, para que também cesse, efectivamente, a insuportável “violência de baixa intensidade” dos jovens nacionalistas arruaceiros, corajosamente denunciada por um filósofo libertário como é Fernando Savater.
JF / 22.Out.2011
No primeiro caso – a supor que esta vitória dos insurrectos apoiados pela NATO dará finalmente ao CNT o controlo militar e de segurança do país –, resta saber se este modo manu militare de abater um regime não vai prolongar-se em campanhas vingativas ou lutas armadas entre tribos ou facções, e se forças radicais islamistas não tentarão apropriar-se de mecanismos importantes de dominação social (educação, solidariedade) ou política (exército, justiça, comunicação), que irão certamente ser agora levantados até com ajuda de dinheiros externos, ou aproveitarão oportunidades futuras para afirmar o posicionamento da Líbia no seu “indefectível apoio à causa palestiniana” ou contra a “ingerência imperialista nos seus assuntos internos”.
Em geral, as revoluções tendem a engendrar processos contra-revolucionários, que podem afundar as sociedades em conflitos intermináveis. As “boas revoluções” são as que encontram uma ampla base de apoio/compreensão social para a remoção do estado-de-coisas anterior, que se eternizara, e que se distinguem pelo uso excepcional da força, de muito curta duração. Neste caso, o facto da iniciativa da revolta (em Bengazi) ter provindo em larga medida do mesmo de tipo de “coligação-de-rua” que protagonizou as mudanças na Tunísia e no Egipto – isto é, jovens de classe média ocidentalizados, quadros dissidentes e povo urbano sofredor –, a discreta ajuda militar e política obtida de França, Inglaterra e Estados Unidos, a circunstância da Líbia ter recursos económicos (petróleo, relevante para os ocidentais) com que pagar os custos económicos da reconstrução e o próprio contexto “progressista-democrático” destas actuais “revoluções árabes” permite alimentar algumas esperanças quanto a uma evolução razoavelmente bem sucedida. Também parece positiva a maneira como a vida urbana tem sido retomada e reorganizada nas cidades sucessivamente ganhas aos “kadafistas”. Mas, é claro que têm razão os analistas que apontam a incógnita de como vai ser possível gerir este processo e construir uma legitimidade democrática para o novo poder onde não existem instituições de Estado que permaneçam (administração pública, justiça, segurança, etc.) e onde as forças políticas partirão do zero. Sairá antes um poder de Estado assente numa negociação com as tribos tradicionais (parecido com o de Karzai no Afeganistão)?
No que toca à nossa vizinha Espanha, o passo agora dado – parece que com o “conselho” dos ex-guerrilheiros irlandeses – significará o fim do “abcesso de fixação serôdio” que constituía este recurso à acção terrorista por parte de nacionalistas bascos, num país que goza de ampla liberdade de expressão e actuação cidadã, bem como de instituições legitimadas pelo voto das populações. Bem entendido, a questão política da integração da nação basca no Estado espanhol vai permanecer – como bem mostra o caso da Catalunha –, porém noutras plataformas e com outras conjunturas e processos. Oxalá a inevitável “resistência” dos mais impetuosos e dos “sacrificados” a esta nova fase seja breve e mínima, para que também cesse, efectivamente, a insuportável “violência de baixa intensidade” dos jovens nacionalistas arruaceiros, corajosamente denunciada por um filósofo libertário como é Fernando Savater.
JF / 22.Out.2011
domingo, 16 de outubro de 2011
Em Portugal, agora vai doer... mas o protesto é global
“Anestesiados” com este estio prolongado, aí estão as medidas duras que se já previam para o Orçamento do Estado de 2012!
Como o Estado representa metade da nossa economia e se deixou endividar mais do que podia, agora é toda a sociedade que tem de arcar com os prejuízos.
“Toda”, não é bem assim, pois se no consumo há algumas excepções que aliviam bens alimentares essenciais, despesas de saúde, educação, etc., pareceria justo que o IVA pudesse ser sobrecarregado nos artigos de luxo. Por seu lado, no IRS sabe-se que a maioria dos portugueses nada paga, seja porque os seus rendimentos são muito baixos, seja porque, não sendo assalariados, dele conseguem fugir. E na propriedade e nos negócios há situações excessivamente contrastantes: prédios rústicos ridiculamente taxados devido a um cadastro caduco versus as “artes” e matreirices em que os poderosos são exímios.
Diz já o jornalista económico Nicolau Santos que o fim do 13º e 14º meses é para ficar e para estender ao sector privado (como seria lógico do ponto de vista da equidade e do embaratecimento dos custos do trabalho, mais do que o alongamento do horário), embora isso provoque um rombo na procura interna. As subidas do IVA e das tarifas dos transportes e da energia agravarão a competitividade das empresas e atacam a carteira dos cidadãos, tal como os custos da saúde. Mais créditos particulares (sobretudo na habitação) ficarão por honrar. E não se vislumbra maneira de o emprego voltar a crescer, antes pelo contrário. Perguntar-se-á mesmo até quando os funcionários públicos manterão o seu estatuto protegido. Mas deve reconhecer-se o esforço para que tudo isto só atinja de raspão os dois ou três milhões de pessoas com mais baixos rendimentos.
Em todo o caso, no aumento dos preços e dos impostos, nos cortes aos salários e na recessão da economia, é a sociedade no seu conjunto que empobrece e se torna mais azeda; e é o volume dos declaradamente pobres e assistidos que vai aumentar ainda mais, com o correspondente agravamento do desequilíbrio da segurança social (embora seja questionável que esta seja considerada, por inteiro, uma despesa do Estado).
Simplesmente, é ilusório atirar pedras. Já sabemos hoje demais para que se acredite piamente que a culpa é dos ricos, da banca, dos americanos, da Alemanha ou dos “mercados”. Ou até que culpemos os políticos que “nos roubam” – mas que foram eleitos pela maioria dos cidadãos que se exprimiu nas urnas.
Agora, estando os portugueses na péssima situação em que estão (e os gregos ainda pior), o que também não há dúvidas é que vivemos actualmente uma fase de grande indeterminação no espaço europeu e na economia global. Incertezas nos mercados monetários e financeiros, crises de dívida soberana e de solvabilidades bancárias, tendo como pano de fundo o ascenso de poder económico das novas potências – tudo isso nos pinta um quadro de grande perplexidade. E se em Portugal a situação é de emergência nacional, na Europa, face ao mundo, evidencia-se o desajustamento entre a urgência das decisões económicas e a lentidão e contradições do processo de decisão política da UE. É claro que é quase ofensivo o modo como os líderes da dupla franco-alemã têm tentado avançar. Mas que dizer da coerência de 27 representantes de interesses nacionais distintos sentados à volta da grande mesa do “conselho” ou nas bancadas do parlamento europeu? Poderá a crise actual superar-se com uma maior integração das nações da Europa?
As manifestações de rua de 15 de Outubro, um pouco por todo o mundo desenvolvido, foram aquilo que podiam ser: um protesto, um sinal de dissensão e de desespero das populações jovens e urbanas face a este agravamento das suas perspectivas de vida. Têm boas razões para tal. Como sempre, os organizadores políticos das ditas tentam capitalizar este descontentamento para as suas respectivas ideologias ou objectivos instrumentais. Mas todos sabemos que não dispõem de qualquer solução alternativa e melhor para contrapor a este nosso declínio.
Tentemos ser lúcidos no meio da confusão, e não acrescentá-la.
JF / 16.Out.2011
Como o Estado representa metade da nossa economia e se deixou endividar mais do que podia, agora é toda a sociedade que tem de arcar com os prejuízos.
“Toda”, não é bem assim, pois se no consumo há algumas excepções que aliviam bens alimentares essenciais, despesas de saúde, educação, etc., pareceria justo que o IVA pudesse ser sobrecarregado nos artigos de luxo. Por seu lado, no IRS sabe-se que a maioria dos portugueses nada paga, seja porque os seus rendimentos são muito baixos, seja porque, não sendo assalariados, dele conseguem fugir. E na propriedade e nos negócios há situações excessivamente contrastantes: prédios rústicos ridiculamente taxados devido a um cadastro caduco versus as “artes” e matreirices em que os poderosos são exímios.
Diz já o jornalista económico Nicolau Santos que o fim do 13º e 14º meses é para ficar e para estender ao sector privado (como seria lógico do ponto de vista da equidade e do embaratecimento dos custos do trabalho, mais do que o alongamento do horário), embora isso provoque um rombo na procura interna. As subidas do IVA e das tarifas dos transportes e da energia agravarão a competitividade das empresas e atacam a carteira dos cidadãos, tal como os custos da saúde. Mais créditos particulares (sobretudo na habitação) ficarão por honrar. E não se vislumbra maneira de o emprego voltar a crescer, antes pelo contrário. Perguntar-se-á mesmo até quando os funcionários públicos manterão o seu estatuto protegido. Mas deve reconhecer-se o esforço para que tudo isto só atinja de raspão os dois ou três milhões de pessoas com mais baixos rendimentos.
Em todo o caso, no aumento dos preços e dos impostos, nos cortes aos salários e na recessão da economia, é a sociedade no seu conjunto que empobrece e se torna mais azeda; e é o volume dos declaradamente pobres e assistidos que vai aumentar ainda mais, com o correspondente agravamento do desequilíbrio da segurança social (embora seja questionável que esta seja considerada, por inteiro, uma despesa do Estado).
Simplesmente, é ilusório atirar pedras. Já sabemos hoje demais para que se acredite piamente que a culpa é dos ricos, da banca, dos americanos, da Alemanha ou dos “mercados”. Ou até que culpemos os políticos que “nos roubam” – mas que foram eleitos pela maioria dos cidadãos que se exprimiu nas urnas.
Agora, estando os portugueses na péssima situação em que estão (e os gregos ainda pior), o que também não há dúvidas é que vivemos actualmente uma fase de grande indeterminação no espaço europeu e na economia global. Incertezas nos mercados monetários e financeiros, crises de dívida soberana e de solvabilidades bancárias, tendo como pano de fundo o ascenso de poder económico das novas potências – tudo isso nos pinta um quadro de grande perplexidade. E se em Portugal a situação é de emergência nacional, na Europa, face ao mundo, evidencia-se o desajustamento entre a urgência das decisões económicas e a lentidão e contradições do processo de decisão política da UE. É claro que é quase ofensivo o modo como os líderes da dupla franco-alemã têm tentado avançar. Mas que dizer da coerência de 27 representantes de interesses nacionais distintos sentados à volta da grande mesa do “conselho” ou nas bancadas do parlamento europeu? Poderá a crise actual superar-se com uma maior integração das nações da Europa?
As manifestações de rua de 15 de Outubro, um pouco por todo o mundo desenvolvido, foram aquilo que podiam ser: um protesto, um sinal de dissensão e de desespero das populações jovens e urbanas face a este agravamento das suas perspectivas de vida. Têm boas razões para tal. Como sempre, os organizadores políticos das ditas tentam capitalizar este descontentamento para as suas respectivas ideologias ou objectivos instrumentais. Mas todos sabemos que não dispõem de qualquer solução alternativa e melhor para contrapor a este nosso declínio.
Tentemos ser lúcidos no meio da confusão, e não acrescentá-la.
JF / 16.Out.2011
sábado, 8 de outubro de 2011
Obesidade e subnutrição
Ambas são patologias médicas, mas quase sempre com causas sociais por trás.
Para além dos fenómenos de carência psico-afectiva, a obesidade é uma doença de (países) ricos, associada a excessos alimentares vários e à sedentariedade e falta de exercício físico, provocando por sua vez maiores incidências de hipertensão, cardiopatias, diabetes, gota, etc.
Para além do efeito da gula por parte das cozinhas e confeitarias tradicionais – sempre muito apetecíveis –, esta tendência é hoje particularmente estimulada junto de crianças e jovens por uma publicidade e uma oferta omnipresente e “agressiva”/sedutora de produtos tais como: açucares e chocolates doces, carnes e batatas fritas, pastilhas de mascar, refrigerantes e alcoóis. As respectivas indústrias agro-alimentares têm óbvios interesses neste crescimento do consumo mas são sobretudo as técnicas comerciais do marketing e da publicidade que directamente impulsionam formas de experimentação, de consumo, habituação, excesso e mesmo de compulsão ou dependência pessoal de tais ingredientes. Neste ponto, a função informativa dessas práticas comerciais e a concorrência que leva à diversificação estão aqui muito esmagadas pela pressão do lucro e a manutenção/disputa de posições nos mercados. No final da cadeia, os múltiplos agentes da restauração e venda-a-retalho (que constituem sempre um segmento importante para a vida social) não dispõem geralmente dos conhecimentos profissionais suficientes para articular o compreensível interesse da venda com o desejável cuidado relativo à qualidade do produto. E os pais – cada vez mais oriundos de estratos sociais carenciados – são levados intuitivamente a “compensar” nos regimes alimentares dos filhos (para além de brinquedos, artigos de vestuário e outros artefactos) as suas próprias frustrações de infância, descurando informar-se devidamente sobre aquilo que melhor lhes conviria.
Por seu lado, a subnutrição é um flagelo antigo que todavia persiste no planeta, agora de uma maneira mais chocante, tendo em conta as potencialidades económicas e técnicas existentes, que já deveriam ter conseguido a sua erradicação. Concentra-se hoje quase exclusivamente em grandes zonas de África e, muito mais limitadamente, na Ásia, Próximo-Oriente ou América latina, associada à pobreza e, de modo mais conjuntural, a fenómenos de perturbações climáticas (secas, cheias, etc.), depressão económica ou exclusão social, situações de isolamento ou migrações urgentes provocadas por guerras, genocídios ou outros actos humanos.
No entanto, a fronteira entre pobreza e “fome” não é fácil de estabelecer e a interdependência circular de vários factores (recursos naturais, estrutura social e tradições, infraestruturas materiais, tecnologias e fundos financeiros disponíveis, educação, estado sanitário, meios de intervenção, poder político, segurança, etc.) dificulta muito a tipificação de estratégias de acção eficazes e de efeitos duráveis.
Mas, de entre os processos mais pertinazes das situações não-catastróficas da fome e subnutrição que atingem esses povos, há talvez dois que mereçam uma especial referência. O primeiro é o da rarefacção da base económica natural que garantiu a sua sobrevivência ao longo de séculos: terrenos aráveis capazes de permitir alguma agricultura de subsistência (ou pastagens suficientes, para povos vivendo dos seus rebanhos; ou ainda condições viáveis de pesca local/costeira) e comunidades bem integradas do ponto de vista sócio-cultural – que agora poderiam ser apoiadas por políticas sócio-económicas adequadas promovidas pelos seus governos centrais, com ajudas recebidas do mundo desenvolvido, no sentido de se poderem progressivamente modernizar sem ter que abandonar os seus espaços de ocupação territorial tradicionais, ou já suficientemente estabilizados, na paisagem rural. Na realidade, não parece que esta tenha sido uma preocupação dos decisores, locais, nacionais ou extra-nacionais. E quando a terra se lhes mingua ou propõem trabalhos-a-salário que implicam deslocações, é quase certo que se rompem equilíbrios essenciais. (Nesse aspecto, as migrações são quase sempre um drama.)
O segundo processo de criação de condições propícias à miséria e à subnutrição (e de aculturação mais ou menos violenta) é justamente o do êxodo dessas populações rurais que vão “suburbanizar-se” para as periferias das gigantescas cidades do “3º mundo”. Cairo, Lagos, Kinshasa, Joannesburg, Maputo ou Luanda (para não sairmos de África) tornaram-se metrópoles pobres onde a sobrevivência passa, para a maioria da população, por lutas diárias interpessoais para angariar sustento, a evitação de perigos vários, desarticulação social e desprotecção contra as novas patologias insidiosas (sida e outras) ou os apelos para caminhos de marginalização e violência (droga, banditismo, etc.).
São, de facto, dois programas grandiosos para os homens e mulheres do século XXI: redescobrir uma economia rural sustentável para estes povos; e tornar efectivamente urbanas as populações hoje amontoadas nos subúrbios das suas metrópoles. O equilíbrio numérico mundial hoje atingido entre estes dois meios de vida contrastantes – o rural e o urbano – deveria dar lugar a uma relação mais equitativa da riqueza e do bem-estar produzidos num e noutro (e necessariamente no interior da cidade).
JF / 8.Out.2011
Para além dos fenómenos de carência psico-afectiva, a obesidade é uma doença de (países) ricos, associada a excessos alimentares vários e à sedentariedade e falta de exercício físico, provocando por sua vez maiores incidências de hipertensão, cardiopatias, diabetes, gota, etc.
Para além do efeito da gula por parte das cozinhas e confeitarias tradicionais – sempre muito apetecíveis –, esta tendência é hoje particularmente estimulada junto de crianças e jovens por uma publicidade e uma oferta omnipresente e “agressiva”/sedutora de produtos tais como: açucares e chocolates doces, carnes e batatas fritas, pastilhas de mascar, refrigerantes e alcoóis. As respectivas indústrias agro-alimentares têm óbvios interesses neste crescimento do consumo mas são sobretudo as técnicas comerciais do marketing e da publicidade que directamente impulsionam formas de experimentação, de consumo, habituação, excesso e mesmo de compulsão ou dependência pessoal de tais ingredientes. Neste ponto, a função informativa dessas práticas comerciais e a concorrência que leva à diversificação estão aqui muito esmagadas pela pressão do lucro e a manutenção/disputa de posições nos mercados. No final da cadeia, os múltiplos agentes da restauração e venda-a-retalho (que constituem sempre um segmento importante para a vida social) não dispõem geralmente dos conhecimentos profissionais suficientes para articular o compreensível interesse da venda com o desejável cuidado relativo à qualidade do produto. E os pais – cada vez mais oriundos de estratos sociais carenciados – são levados intuitivamente a “compensar” nos regimes alimentares dos filhos (para além de brinquedos, artigos de vestuário e outros artefactos) as suas próprias frustrações de infância, descurando informar-se devidamente sobre aquilo que melhor lhes conviria.
Por seu lado, a subnutrição é um flagelo antigo que todavia persiste no planeta, agora de uma maneira mais chocante, tendo em conta as potencialidades económicas e técnicas existentes, que já deveriam ter conseguido a sua erradicação. Concentra-se hoje quase exclusivamente em grandes zonas de África e, muito mais limitadamente, na Ásia, Próximo-Oriente ou América latina, associada à pobreza e, de modo mais conjuntural, a fenómenos de perturbações climáticas (secas, cheias, etc.), depressão económica ou exclusão social, situações de isolamento ou migrações urgentes provocadas por guerras, genocídios ou outros actos humanos.
No entanto, a fronteira entre pobreza e “fome” não é fácil de estabelecer e a interdependência circular de vários factores (recursos naturais, estrutura social e tradições, infraestruturas materiais, tecnologias e fundos financeiros disponíveis, educação, estado sanitário, meios de intervenção, poder político, segurança, etc.) dificulta muito a tipificação de estratégias de acção eficazes e de efeitos duráveis.
Mas, de entre os processos mais pertinazes das situações não-catastróficas da fome e subnutrição que atingem esses povos, há talvez dois que mereçam uma especial referência. O primeiro é o da rarefacção da base económica natural que garantiu a sua sobrevivência ao longo de séculos: terrenos aráveis capazes de permitir alguma agricultura de subsistência (ou pastagens suficientes, para povos vivendo dos seus rebanhos; ou ainda condições viáveis de pesca local/costeira) e comunidades bem integradas do ponto de vista sócio-cultural – que agora poderiam ser apoiadas por políticas sócio-económicas adequadas promovidas pelos seus governos centrais, com ajudas recebidas do mundo desenvolvido, no sentido de se poderem progressivamente modernizar sem ter que abandonar os seus espaços de ocupação territorial tradicionais, ou já suficientemente estabilizados, na paisagem rural. Na realidade, não parece que esta tenha sido uma preocupação dos decisores, locais, nacionais ou extra-nacionais. E quando a terra se lhes mingua ou propõem trabalhos-a-salário que implicam deslocações, é quase certo que se rompem equilíbrios essenciais. (Nesse aspecto, as migrações são quase sempre um drama.)
O segundo processo de criação de condições propícias à miséria e à subnutrição (e de aculturação mais ou menos violenta) é justamente o do êxodo dessas populações rurais que vão “suburbanizar-se” para as periferias das gigantescas cidades do “3º mundo”. Cairo, Lagos, Kinshasa, Joannesburg, Maputo ou Luanda (para não sairmos de África) tornaram-se metrópoles pobres onde a sobrevivência passa, para a maioria da população, por lutas diárias interpessoais para angariar sustento, a evitação de perigos vários, desarticulação social e desprotecção contra as novas patologias insidiosas (sida e outras) ou os apelos para caminhos de marginalização e violência (droga, banditismo, etc.).
São, de facto, dois programas grandiosos para os homens e mulheres do século XXI: redescobrir uma economia rural sustentável para estes povos; e tornar efectivamente urbanas as populações hoje amontoadas nos subúrbios das suas metrópoles. O equilíbrio numérico mundial hoje atingido entre estes dois meios de vida contrastantes – o rural e o urbano – deveria dar lugar a uma relação mais equitativa da riqueza e do bem-estar produzidos num e noutro (e necessariamente no interior da cidade).
JF / 8.Out.2011
sexta-feira, 30 de setembro de 2011
O imbróglio da Palestina continua, num Próximo-Oriente em mudança
A Autoridade Palestiniana (para-estatal) concretizou a intenção de apresentar nas Nações Unidas um projecto de declaração de independência plena do território. O Conselho de Segurança vai bloquear a iniciativa, pelo menos com o voto negativo dos “permanentes” Estados Unidos e com a tentativa de relançamento de uma negociação por parte dos europeus, incluindo Portugal. Mas, politicamente, o governo conservador-direitista de Israel ficou mais isolado e os que apoiam ou compreendem a sua posição em situação mais incómoda.
A aposta deste governo no adiamento permanente e na reacção olho-por-olho às violências dos palestinianos mais radicalmente anti-semitas tem uma eficácia limitada. Sobretudo quando a situação económica em Israel se degrada e põe na rua milhares de cidadãos pedindo apoios públicos para os mais desprotegidos e quando, externamente, toda a região vive um clima de mudanças que ameaça regimes árabes autoritários estabelecidos há décadas mas que ninguém sabe se, e como, irão estabilizar de novo.
É compreensível que qualquer poder em Israel (vide o presidente Peres), e a sua própria opinião pública, tenha uma atitude de prudência face a tais transformações na envolvente (em particular no Egipto que lhe faz fronteira e com quem está em paz desde há 30 anos) e perante a reaproximação entre os pró-iranianos do Hamas que mandam na faixa de Gaza e o governo do Fatah assente na Cisjordânia. Também se sabe que só com dirigentes de ambos os lados lúcidos e corajosos, e com apoios internos e externos capazes de marginalizar os extremismos, será possível realizar o trade-off indispensável para solucionar os pontos mais controversos do contencioso existente, com os israelitas a recuarem na sua política dos setlements em território palestiniano em troca do abandono dos “direitos de regresso” dos exilados árabes, uma definição consensual das fronteiras e das relações transfronteiriças, e um estatuto especial para Jerusalém.
Mas uma saída pacífica, negociada e duradoura para este longo conflito (que é nacional, cultural e religioso) não deverá ser possível num Próximo-Oriente em turbilhão, ou talvez só o seja na sequência de nova estabilização no mundo árabe – esperemos que de sentido mais democrático do que o que tínhamos –, ou até por necessidade desta evolução.
Depois da Tunísia, do Egipto e da Líbia, é agora a Síria o país mais dramaticamente confrontado entre um poder civil laico mas ditatorial e a corajosa contestação popular que dura há meses nas ruas de Ohms, Deraa e outras cidades, e já conta seguramente mais de dois milhares de mortos por intervenção das forças policiais e militares do regime de Assad. Parece finalmente que a ONU, a Europa e mesmo a Turquia começam a tomar medidas mais firmes para pressionar económica e diplomaticamente o governo de Damasco. Mas será que este, que conta com um apoio do Irão, irá ser o próximo “dominó” a cair?
O Líbano é sempre um país instável, muito dependente do que se passa na Síria. Serão os seus frágeis equilíbrios políticos entre cristãos, druzos e árabes (nos quais está implantado o importante partido Hezbolah, pró-iraniano), mais os palestinianos ali residentes, abalados por uma mudança no país vizinho?
No Iémen, as coisas mantêm-se complicadas a despeito do afastamento – e agora do regresso – do presidente Saleh, pois a contestação nas ruas parece ser muito animada pela facção chiita, que não hesita no uso dos atentados bombistas e é uma potencial aliada de Teherão.
As monarquias da Jordânia e de Marrocos têm procurado dar alguns passos reformistas para ceifar a palha antes que lhe cheguem o fogo. Será suficiente? Já as do Golfo e da Arábia parecem continuar imunes, porque são países “sem população”, apenas assentes na sua riqueza petrolífera e no poder financeiro que já dispõem no mundo.
Mas na Argélia a situação pode vir a ser mais rapidamente explosiva: tem uma memória de violência política (guerra de independência, golpes-de-estado); demografia pujante e juventude sem trabalho; um regime sempre muito autoritário; uma oposição islamista forte e que pratica a acção terrorista com facilidade; um país ex-colonizador fértil em posições contraditórias que, por via da imigração, lhe serve de rectaguarda sócio-económica. Há que estar atento ao que aí se passa.
Na Turquia, assistiu-se a um braço-de-ferro entre o partido islamista-doce no poder e as Forças Armadas. A adesão à UE estará remetida para as calendas mas tal facto poderá também exacerbar as tendências islamizadoras, ao mesmo tempo que este grande país será tentado a jogar o papel de nova potência regional liderante do Próximo-Oriente árabe, sobretudo face ao apagamento egípcio.
Finalmente, neste quadro, o jogo estratégico das relações entre a Turquia e o Irão poderá ser a chave determinante para o futuro de toda esta enorme e nevrálgica região nos próximos anos. Se estes países se polarizarem em zonas de influência repartidas (à custa dos curdos e do próprio Iraque, etc.) ou em tensão mútua, eventualmente temporizando com o poder económico estabelecido no Golfo e península arábica, poderemos todos beneficiar de alguma estabilização. Se, porém, eles se desentenderem ou os regimes dos petrodólares colapsarem, é provável que ali ocorram grandes e perigosas convulsões regionais. Finalmente, se os dois se aliassem contra a Europa ou o Ocidente (porventura devido a cataclismos étnicos inimagináveis ocorridos no espaço europeu ou por causa de Israel), teríamos então uma ameaça directa sobre a Europa, numa época de enfraquecimento e divisão interna desta.
JF/ 30.Set.2011
A aposta deste governo no adiamento permanente e na reacção olho-por-olho às violências dos palestinianos mais radicalmente anti-semitas tem uma eficácia limitada. Sobretudo quando a situação económica em Israel se degrada e põe na rua milhares de cidadãos pedindo apoios públicos para os mais desprotegidos e quando, externamente, toda a região vive um clima de mudanças que ameaça regimes árabes autoritários estabelecidos há décadas mas que ninguém sabe se, e como, irão estabilizar de novo.
É compreensível que qualquer poder em Israel (vide o presidente Peres), e a sua própria opinião pública, tenha uma atitude de prudência face a tais transformações na envolvente (em particular no Egipto que lhe faz fronteira e com quem está em paz desde há 30 anos) e perante a reaproximação entre os pró-iranianos do Hamas que mandam na faixa de Gaza e o governo do Fatah assente na Cisjordânia. Também se sabe que só com dirigentes de ambos os lados lúcidos e corajosos, e com apoios internos e externos capazes de marginalizar os extremismos, será possível realizar o trade-off indispensável para solucionar os pontos mais controversos do contencioso existente, com os israelitas a recuarem na sua política dos setlements em território palestiniano em troca do abandono dos “direitos de regresso” dos exilados árabes, uma definição consensual das fronteiras e das relações transfronteiriças, e um estatuto especial para Jerusalém.
Mas uma saída pacífica, negociada e duradoura para este longo conflito (que é nacional, cultural e religioso) não deverá ser possível num Próximo-Oriente em turbilhão, ou talvez só o seja na sequência de nova estabilização no mundo árabe – esperemos que de sentido mais democrático do que o que tínhamos –, ou até por necessidade desta evolução.
Depois da Tunísia, do Egipto e da Líbia, é agora a Síria o país mais dramaticamente confrontado entre um poder civil laico mas ditatorial e a corajosa contestação popular que dura há meses nas ruas de Ohms, Deraa e outras cidades, e já conta seguramente mais de dois milhares de mortos por intervenção das forças policiais e militares do regime de Assad. Parece finalmente que a ONU, a Europa e mesmo a Turquia começam a tomar medidas mais firmes para pressionar económica e diplomaticamente o governo de Damasco. Mas será que este, que conta com um apoio do Irão, irá ser o próximo “dominó” a cair?
O Líbano é sempre um país instável, muito dependente do que se passa na Síria. Serão os seus frágeis equilíbrios políticos entre cristãos, druzos e árabes (nos quais está implantado o importante partido Hezbolah, pró-iraniano), mais os palestinianos ali residentes, abalados por uma mudança no país vizinho?
No Iémen, as coisas mantêm-se complicadas a despeito do afastamento – e agora do regresso – do presidente Saleh, pois a contestação nas ruas parece ser muito animada pela facção chiita, que não hesita no uso dos atentados bombistas e é uma potencial aliada de Teherão.
As monarquias da Jordânia e de Marrocos têm procurado dar alguns passos reformistas para ceifar a palha antes que lhe cheguem o fogo. Será suficiente? Já as do Golfo e da Arábia parecem continuar imunes, porque são países “sem população”, apenas assentes na sua riqueza petrolífera e no poder financeiro que já dispõem no mundo.
Mas na Argélia a situação pode vir a ser mais rapidamente explosiva: tem uma memória de violência política (guerra de independência, golpes-de-estado); demografia pujante e juventude sem trabalho; um regime sempre muito autoritário; uma oposição islamista forte e que pratica a acção terrorista com facilidade; um país ex-colonizador fértil em posições contraditórias que, por via da imigração, lhe serve de rectaguarda sócio-económica. Há que estar atento ao que aí se passa.
Na Turquia, assistiu-se a um braço-de-ferro entre o partido islamista-doce no poder e as Forças Armadas. A adesão à UE estará remetida para as calendas mas tal facto poderá também exacerbar as tendências islamizadoras, ao mesmo tempo que este grande país será tentado a jogar o papel de nova potência regional liderante do Próximo-Oriente árabe, sobretudo face ao apagamento egípcio.
Finalmente, neste quadro, o jogo estratégico das relações entre a Turquia e o Irão poderá ser a chave determinante para o futuro de toda esta enorme e nevrálgica região nos próximos anos. Se estes países se polarizarem em zonas de influência repartidas (à custa dos curdos e do próprio Iraque, etc.) ou em tensão mútua, eventualmente temporizando com o poder económico estabelecido no Golfo e península arábica, poderemos todos beneficiar de alguma estabilização. Se, porém, eles se desentenderem ou os regimes dos petrodólares colapsarem, é provável que ali ocorram grandes e perigosas convulsões regionais. Finalmente, se os dois se aliassem contra a Europa ou o Ocidente (porventura devido a cataclismos étnicos inimagináveis ocorridos no espaço europeu ou por causa de Israel), teríamos então uma ameaça directa sobre a Europa, numa época de enfraquecimento e divisão interna desta.
JF/ 30.Set.2011
sexta-feira, 23 de setembro de 2011
As contradições dos políticos
Passaram os “cem dias” deste governo de coligação de centro-direita, talvez a última fórmula partidária possível antes da “salvação nacional”.
A gravidade e urgência da situação das finanças públicas têm justificado todas as medidas tomadas, mas a crise económica está para durar.
É claro que os “do contra” arranjam sempre matéria e casos para se “indignarem”.
Mas os dirigentes políticos (neste caso os do PSD e CDS) dão-lhes grandes ajudas quando, como se tem observado:
- Afinal, sempre vão descobrindo “buracos” financeiros e “situações escondidas” cuja responsabilidade atiram para o governo precedente (o que é certamente verdade, mas igualmente foi para Sócrates em 2005);
- Afinal, também tomam medidas de agravamento de impostos antes de conseguirem os sempre anunciados “cortes na despesa” do Estado (que agora serão mesmo efectivos, embora insuficientes e ineficazes no curto prazo, porque ainda tocam pouco na saúde, no funcionalismo e nas pensões, que são os “pesos pesados” da despesa corrente);
- Afinal, continuam a nomear para a direcção de grandes instituições públicas, chorudamente remuneradas (como a CGD), as pessoas conhecidas da elite em quem têm confiança, de quem precisam ou que querem beneficiar – tal como o PS e quaisquer outros em idênticas circunstâncias (mas, por piedade, poderiam poupar-nos o discurso moralista);
- Afinal, também são lestos a decidir entre poucos e a pôr na rua medidas prontas, sem alongadas discussões (o aumento dos transportes e do IVA na energia, o encerramento de escolas, as quotas na avaliação dos professores, o imposto extraordinário de meio-subsídio de natal…), o que era apontado como uma das características “autistas” do anterior primeiro-ministro mas é provavelmente uma boa qualidade para qualquer governante;
- Afinal, os factores externos (ataque ao Euro, ambiguidades na direcção política da UE, fragilidade da retoma económica internacional, etc.) também são agora reconhecidos como igualmente determinantes (sem prejuízo dos muitos erros próprios) na má postura das nossas finanças públicas – ao contrário do que sempre quiseram fazer crer;
-Afinal, a suspensão das “grandes obras” (vide TGV) não é assim tão simples e linear como apregoavam;
-Afinal, o “despesismo público PS” de Lisboa não terá sido pior, proporcionalmente, que o “despesismo público PSD” do Funchal;
- Etc.
Conclusão: 1ª, é já insuportável esta duplicidade de posições, conforme se está na oposição ou no governo; 2ª, ao contrário do que poderia julgar-se por esta amostra, os partidos não são todos iguais, apesar de agirem de modo semelhante e serem movidos pelo mesmo tipo de interesses. Divide-os, porém, a maior parte das medidas de política que preconizam e aplicam, porque se esforçam de as diferenciar das dos adversários, mesmo naquelas áreas onde seria altamente desejável haver consensos e entendimentos: além da política externa e de defesa, também na justiça e na segurança interna, na valorização do património cultural e ainda nas linhas estruturantes de longo prazo da educação, da saúde, das políticas de população, do funcionalismo público e da previdência social. (Enfim, em quase tudo… embora ainda restasse muito mais para afirmar o indispensável pluralismo das opiniões.)
JF / 23.Set.2011
A gravidade e urgência da situação das finanças públicas têm justificado todas as medidas tomadas, mas a crise económica está para durar.
É claro que os “do contra” arranjam sempre matéria e casos para se “indignarem”.
Mas os dirigentes políticos (neste caso os do PSD e CDS) dão-lhes grandes ajudas quando, como se tem observado:
- Afinal, sempre vão descobrindo “buracos” financeiros e “situações escondidas” cuja responsabilidade atiram para o governo precedente (o que é certamente verdade, mas igualmente foi para Sócrates em 2005);
- Afinal, também tomam medidas de agravamento de impostos antes de conseguirem os sempre anunciados “cortes na despesa” do Estado (que agora serão mesmo efectivos, embora insuficientes e ineficazes no curto prazo, porque ainda tocam pouco na saúde, no funcionalismo e nas pensões, que são os “pesos pesados” da despesa corrente);
- Afinal, continuam a nomear para a direcção de grandes instituições públicas, chorudamente remuneradas (como a CGD), as pessoas conhecidas da elite em quem têm confiança, de quem precisam ou que querem beneficiar – tal como o PS e quaisquer outros em idênticas circunstâncias (mas, por piedade, poderiam poupar-nos o discurso moralista);
- Afinal, também são lestos a decidir entre poucos e a pôr na rua medidas prontas, sem alongadas discussões (o aumento dos transportes e do IVA na energia, o encerramento de escolas, as quotas na avaliação dos professores, o imposto extraordinário de meio-subsídio de natal…), o que era apontado como uma das características “autistas” do anterior primeiro-ministro mas é provavelmente uma boa qualidade para qualquer governante;
- Afinal, os factores externos (ataque ao Euro, ambiguidades na direcção política da UE, fragilidade da retoma económica internacional, etc.) também são agora reconhecidos como igualmente determinantes (sem prejuízo dos muitos erros próprios) na má postura das nossas finanças públicas – ao contrário do que sempre quiseram fazer crer;
-Afinal, a suspensão das “grandes obras” (vide TGV) não é assim tão simples e linear como apregoavam;
-Afinal, o “despesismo público PS” de Lisboa não terá sido pior, proporcionalmente, que o “despesismo público PSD” do Funchal;
- Etc.
Conclusão: 1ª, é já insuportável esta duplicidade de posições, conforme se está na oposição ou no governo; 2ª, ao contrário do que poderia julgar-se por esta amostra, os partidos não são todos iguais, apesar de agirem de modo semelhante e serem movidos pelo mesmo tipo de interesses. Divide-os, porém, a maior parte das medidas de política que preconizam e aplicam, porque se esforçam de as diferenciar das dos adversários, mesmo naquelas áreas onde seria altamente desejável haver consensos e entendimentos: além da política externa e de defesa, também na justiça e na segurança interna, na valorização do património cultural e ainda nas linhas estruturantes de longo prazo da educação, da saúde, das políticas de população, do funcionalismo público e da previdência social. (Enfim, em quase tudo… embora ainda restasse muito mais para afirmar o indispensável pluralismo das opiniões.)
JF / 23.Set.2011
sexta-feira, 16 de setembro de 2011
Empresas de comunicação e vigilância social
Escrevi há dias sobre os sistemas financeiros, no contexto da actual economia mundializada. Mas se o próprio negócio bancário e segurador gera lucros e riqueza, em contraste com tantas actividades produtivas úteis, é bom não esquecer alguns outros segmentos económicos onde se acumulam investimentos e obtêm resultados de grande magnitude e onde necessariamente também se desenvolvem operações financeiras de risco, a que só acedem os estados, grandes grupos económicos privados ou empresas multinacionais. Eis uma enumeração possível das principais áreas de negócio mundial: o sector da investigação, da tecnologia, da indústria construtora e do transporte aero-espacial; o sector da fabricação e comércio do automóvel; o sector das ciências e indústrias bioquímicas (onde se destacam os enormes mercados da saúde e da farmacêutica e as fantásticas potencialidades das biotecnologias); o sector da produção e distribuição de energia (a montante de tudo o resto e, por isso, crucial); o sector da microelectrónica e informática (hoje transversal a todos os outros); e, finalmente, o sector da comunicação social.
Sobre este último, vale a pena acrescentar mais alguma coisa.
O recente escândalo das escutas ilegais em Inglaterra que envolveu o sr. Murdock, as badaladas prepotências de Berlusconi que se serviu do seu “império comunicativo” para chegar e se manter no topo do poder político italiano ou até alguns casos que têm agitado a nossa praça – as acusações contra as interferências de Sócrates, o chefe da “secreta” directamente passado à On-Going, que teria feito reagir o grupo concorrente de Balsemão, etc. – ilustram como neste sector se concentram e disputam hoje grandes interesses privados, em confronto com o direito público à informação e com as próprias condições de exercício da cidadania, já que não apenas a liberdade de imprensa (agora alargada a todos os outros meios audiovisuais e informáticos) é um elemento característico dos regimes democráticos, como se tornou mesmo uma condição essencial de vida nas sociedades contemporâneas.
Aqui se cruzam também tendências e riscos de ordem diversa. Por exemplo: a liberdade de comunicação horizontal e em rede proporcionada pela Internet e os telemóveis, pela sua novidade, transporta consigo perigos graves para pessoas mais desprotegidas nos planos cognitivo e emocional; ou certas informações sigilosas, pessoais ou institucionais, passaram a ficar mais ao alcance de piratas, hackers com intuitos diversos. O que mostra a necessidade de algum tipo de polícia e disciplina administrativa (e mesmo criminal) neste campo, como aquela que teve de se inventar quando a circulação automóvel começou a enxamear as nossas ruas e estradas.
Outro risco, percepcionado há bem mais tempo já, é o da manipulação informativa pelos mass media, que tem justificado entre nós a manutenção da presença estatal na televisão mas que toda a gente desconfia servir sempre mais os governantes do que quem lhe não é afecto. Aqui, as ameaças vêm de sentidos opostos: que o governo em funções crie a sua máquina de propaganda para se manter no poder; e que algum tipo de oposição minoritária nos pleitos eleitorais desenvolva campanhas de “intoxicação” da opinião pública que acabem por abater um governo legitimado pela maioria da população. Não é fácil propor soluções seguras e já não basta apontar o velho exemplo de independência da BBC, mas um factor que deveria poder moderar o efeito de tais apetites seria a existência de uma classe jornalística que se não deixasse perverter pela miragem dos “furos” (sucessos) e antes assentasse a sua ética profissional na independência, equilíbrio e rigor da informação produzida. Neste aspecto, as escolas superiores de jornalismo e os órgãos associativos da classe têm uma responsabilidade indeclinável.
Mas, além destas ameaças, ocorre pensar também que os actuais grandes grupos de comunicação social procurem não apenas dispor de jornais e estações de rádio e televisão mas igualmente almejem entrar nos domínios da produção massificada de conteúdos, no entretenimento e nas “séries”, na música e no cinema, na edição impressa e no software informático, não porque persigam uma qualquer estratégia de domínio cultural mundial mas simplesmente devido à contiguidade e interdependência funcional de todas estas áreas, e ao seu natural desejo de lucro (ou apenas de lograr resultados capazes de compensar os enormes investimentos feitos).
O pior é que, se não houver a vigilância social conveniente, pode chegar-se a um tal grau de concentração empresarial que ponha em risco a diversidade cultural própria da humanidade.
JF / 16.Set.2011
Sobre este último, vale a pena acrescentar mais alguma coisa.
O recente escândalo das escutas ilegais em Inglaterra que envolveu o sr. Murdock, as badaladas prepotências de Berlusconi que se serviu do seu “império comunicativo” para chegar e se manter no topo do poder político italiano ou até alguns casos que têm agitado a nossa praça – as acusações contra as interferências de Sócrates, o chefe da “secreta” directamente passado à On-Going, que teria feito reagir o grupo concorrente de Balsemão, etc. – ilustram como neste sector se concentram e disputam hoje grandes interesses privados, em confronto com o direito público à informação e com as próprias condições de exercício da cidadania, já que não apenas a liberdade de imprensa (agora alargada a todos os outros meios audiovisuais e informáticos) é um elemento característico dos regimes democráticos, como se tornou mesmo uma condição essencial de vida nas sociedades contemporâneas.
Aqui se cruzam também tendências e riscos de ordem diversa. Por exemplo: a liberdade de comunicação horizontal e em rede proporcionada pela Internet e os telemóveis, pela sua novidade, transporta consigo perigos graves para pessoas mais desprotegidas nos planos cognitivo e emocional; ou certas informações sigilosas, pessoais ou institucionais, passaram a ficar mais ao alcance de piratas, hackers com intuitos diversos. O que mostra a necessidade de algum tipo de polícia e disciplina administrativa (e mesmo criminal) neste campo, como aquela que teve de se inventar quando a circulação automóvel começou a enxamear as nossas ruas e estradas.
Outro risco, percepcionado há bem mais tempo já, é o da manipulação informativa pelos mass media, que tem justificado entre nós a manutenção da presença estatal na televisão mas que toda a gente desconfia servir sempre mais os governantes do que quem lhe não é afecto. Aqui, as ameaças vêm de sentidos opostos: que o governo em funções crie a sua máquina de propaganda para se manter no poder; e que algum tipo de oposição minoritária nos pleitos eleitorais desenvolva campanhas de “intoxicação” da opinião pública que acabem por abater um governo legitimado pela maioria da população. Não é fácil propor soluções seguras e já não basta apontar o velho exemplo de independência da BBC, mas um factor que deveria poder moderar o efeito de tais apetites seria a existência de uma classe jornalística que se não deixasse perverter pela miragem dos “furos” (sucessos) e antes assentasse a sua ética profissional na independência, equilíbrio e rigor da informação produzida. Neste aspecto, as escolas superiores de jornalismo e os órgãos associativos da classe têm uma responsabilidade indeclinável.
Mas, além destas ameaças, ocorre pensar também que os actuais grandes grupos de comunicação social procurem não apenas dispor de jornais e estações de rádio e televisão mas igualmente almejem entrar nos domínios da produção massificada de conteúdos, no entretenimento e nas “séries”, na música e no cinema, na edição impressa e no software informático, não porque persigam uma qualquer estratégia de domínio cultural mundial mas simplesmente devido à contiguidade e interdependência funcional de todas estas áreas, e ao seu natural desejo de lucro (ou apenas de lograr resultados capazes de compensar os enormes investimentos feitos).
O pior é que, se não houver a vigilância social conveniente, pode chegar-se a um tal grau de concentração empresarial que ponha em risco a diversidade cultural própria da humanidade.
JF / 16.Set.2011
quinta-feira, 8 de setembro de 2011
Onze de Setembro
Recupero aqui fragmentos do que escrevi há dez anos.
“Os sentimentos que os atentados terroristas de Nova Iorque e Washington de Setembro último terão mais frequentemente provocado foram os de horror, espanto pelos factos, impotência, receio face ao futuro. […]
A consequência mais imediata foi a acção militar desencadeada sobre o Afeganistão […]. Mas a medida efectiva deste sucesso só será dada, no médio prazo, pela forma como a ajuda humanitária e económica puderem efectivamente auxiliar a construção de uma nação minimamente estável e viável, a custos suportáveis para o exterior. […]
Uma segunda dinâmica negativa […] tem a ver com a corrida aos armamentos […] custos económicos fantásticos […].
O mundo cultural islâmico tem vindo a ser mobilizado contra o Ocidente pelas versões mais virulentas dos chamados fundamentalistas, apelando simultaneamente às referências religiosas anti-cristas e anti-judaicas, à crítica ao nosso modo de vida materialista e à organização económica e social que o sustenta […].
Um abrandamento geral da economia pode suscitar conjunturas bem difíceis de gerir e superar, cujas principais vítimas serão sempre os mais frágeis, sejam pessoas, sejam países. […]
Os protagonistas do terrorismo agem sobretudo por «razões subjectivas» (humilhação, vingança, auto-destruição, etc.) e, graças à sua postura «assimétrica», adquirem geralmente vantagem em relação ao adversário, a despeito dos meios tecnológicos empregues, por vezes rudimentares. Neste plano, é quase certo que, amanhã, o pirata informático ou o terrorista tecnológico levem a melhor sobre os meios de segurança instalados, quaisquer que eles sejam. Numa sociedade que, entretanto, terá perdido a alma e o valor da liberdade. […]” (A Ideia, 57)
JF / 11.Set.2011
“Os sentimentos que os atentados terroristas de Nova Iorque e Washington de Setembro último terão mais frequentemente provocado foram os de horror, espanto pelos factos, impotência, receio face ao futuro. […]
A consequência mais imediata foi a acção militar desencadeada sobre o Afeganistão […]. Mas a medida efectiva deste sucesso só será dada, no médio prazo, pela forma como a ajuda humanitária e económica puderem efectivamente auxiliar a construção de uma nação minimamente estável e viável, a custos suportáveis para o exterior. […]
Uma segunda dinâmica negativa […] tem a ver com a corrida aos armamentos […] custos económicos fantásticos […].
O mundo cultural islâmico tem vindo a ser mobilizado contra o Ocidente pelas versões mais virulentas dos chamados fundamentalistas, apelando simultaneamente às referências religiosas anti-cristas e anti-judaicas, à crítica ao nosso modo de vida materialista e à organização económica e social que o sustenta […].
Um abrandamento geral da economia pode suscitar conjunturas bem difíceis de gerir e superar, cujas principais vítimas serão sempre os mais frágeis, sejam pessoas, sejam países. […]
Os protagonistas do terrorismo agem sobretudo por «razões subjectivas» (humilhação, vingança, auto-destruição, etc.) e, graças à sua postura «assimétrica», adquirem geralmente vantagem em relação ao adversário, a despeito dos meios tecnológicos empregues, por vezes rudimentares. Neste plano, é quase certo que, amanhã, o pirata informático ou o terrorista tecnológico levem a melhor sobre os meios de segurança instalados, quaisquer que eles sejam. Numa sociedade que, entretanto, terá perdido a alma e o valor da liberdade. […]” (A Ideia, 57)
JF / 11.Set.2011
quarta-feira, 7 de setembro de 2011
Finança e poder económico
Há muita gente que exagera e mitifica o ‘poder económico’ nas sociedades contemporâneas onde vigoram regimes de propriedade privada e economias de livre iniciativa e concorrência. O pensamento de esquerda, socialista, tem interesse nisso, porque sobre esse conceito construiu a sua doutrina, contrapondo-lhe o poder político estatal (com excepção da corrente anarquista, mais por sensibilidade do que por alguma grande teoria alternativa). Por seu lado, o vulgo gosta dos enredos conspirativos e dos poderes ocultos: o termo “os mercados” (financeiros) serve-lhe às mil maravilhas para exorcizar os fantasmas de tenebrosos capitalistas sem rosto que na sombra planeariam a desgraça de classes, povos e nações.
Na realidade, a ciência explica razoavelmente o funcionamento destes sistemas económicos e a história tem analisado o essencial do que aconteceu no decurso do último século, incluindo grandes fenómenos como as guerras mundiais, a construção e ocaso do bloco socialista, as crises e os períodos de crescimento, o apogeu do colonialismo e a descolonização, os nacionalismos e as tendências à agregação internacional, a supremacia global da América e a actual mundialização económica, tecnológica e cultural. Fora das ortodoxias ideológicas, nada disto se explica fundamentalmente a partir do tal ‘poder económico’, embora os interesses económicos e financeiros se contem entre os principais factores que impulsionam as dinâmicas e as mudanças no mundo contemporâneo.
Desde a Antiguidade se sabe que, quem tem muito dinheiro, pode comprar quase tudo o que quiser: coisas e pessoas. É evidente também que, no quadro da empresa, as figuras do investidor, do proprietário ou do administrador beneficiam de um poder sócio-económico incomparavelmente maior do que o do assalariado que ali se emprega (e que, aliás, dominam em muitas circunstâncias). Mas, num plano ampliado e no médio-prazo, é a situação do mercado de procura-e-oferta de trabalho que essencialmente determina o nível de salários e outras condições laborais, embora o Estado exerça um importante papel através da legislação e haja ainda que contar com o poder social mobilizado para pressionar a distribuição dos rendimentos mais em favor do trabalho – como historicamente foi feito pelos sindicatos –, num dado quadro nacional ou regional (um exemplo deste último é o chamado ‘modelo social europeu’). Aqui chegados, o ‘poder económico’ apenas se manifestará pela influência (ou corrupção, chantagem, etc.) que possa exercer junto dos órgãos políticos governamentais, ou então por um abuso de poder derivado de posições monopolistas. O regime de concorrência, que tende a beneficiar o consumidor (embora também torne mais rudes as relações entre as pessoas em competição), constitui igualmente um travão contra tais práticas.
O mundo financeiro é um alvo predilecto para a vivaz manutenção da imagem sinistra do ‘poder económico’: vejam-se os capitalistas “fautores de guerras” que desesperavam os pacifistas de há um século atrás, a “plutocracia judaica” odiada pelos nazis ou talvez ainda os actuais cartéis discretos da “economia subterrânea”. De facto, a própria natureza abstracta-simbólica do dinheiro (próxima do pecado e da avidez), a sumptuosidade das suas maiores edificações, a ostentação de vida dos “banqueiros”, a manipulação contabilística em que se funda o seu negócio, a regra-de-ouro do sigilo bancário e alguns dos acontecimentos mais dramáticos a que tem dado lugar (usura, especulação, desfalques, falências, crachs bolsistas, desvalorizações, “branqueamento” de capitais, etc.) concorrem para uma deslegitimação da finança na consideração das populações e mesmo no concerto das actividades económicas. Toda a gente sabe que a pessoas não comem dinheiro, mas precisam da “economia real” para sobreviver!
Et pourtant… o sistema financeiro constitui um elemento essencial da economia desde há pelo menos um milénio, talvez mesmo a sua parte matematicamente mais elaborada e exigente. Assim, como tudo o que tem uma importância decisiva para a vida em sociedade – diz-se que a guerra é demasiado grave para ser deixada apenas aos militares… –, os sistemas bancários e seguradores também carecem de alguma forma de controlo social. A partir do séc. XIX, pensou-se na sua “mutualização”, depois na sua “nacionalização” (pelo Estado), ao menos parcial para impedir derrapagens. Agora fala-se em “regulação”, por entidades independentes credíveis (porque os governantes já não dão garantias suficientes), e, sempre, em esquemas de regras e controlos mais rigorosos do que em qualquer outro ramo de indústria. É também essa a razão principal porque geralmente beneficiam de impostos mais suaves e em tempos de crise são tratados com especiais precauções, devido aos “efeitos sistémicos” que a sua queda provocaria em todo o sistema económico e na confiança dos depositantes.
É certo que, nas últimas décadas, a actividade financeira se multiplicou, em parte porque o sistema económico da produção, circulação e consumo se mundializou muito mais intensamente, mas principalmente porque se alargou imenso o volume de pessoas que acederam a maiores rendimentos, ao crédito e ao supérfluo. Os adversários socialisantes (e também alguns nacionalistas) deliciam-se em chamar a isto “neo-liberalismo” – já que não conseguiram ver vencer os seus modelos estatisantes preferidos… –, acumulando-o de todos os defeitos e prejuízos imagináveis. Mas não há dúvida que os especialistas financeiros precisam de rever todos os seus cálculos e voltar a equilíbrios mais seguros no jogo do crédito, talvez aqueles que vigoravam há vinte ou trinta anos atrás no negócio bancário e que passaram a ser desprezados pelos yupies, por demasiado prudentes e conservadores. Como quer que seja, a extraordinária concentração de massas monetárias em poucas entidades (bancos, fundos de investimentos e de pensões, seguros, etc.), juntamente com a não menos extraordinária velocidade de circulação do capital que se atingiu graças às actuais tecnologias de informação, constitui sem dúvida uma nova forma de dominação económica, mas que ninguém realmente controla.
Isto é bom e é mau. Bom, porque seria desafiar a natureza humana entregar a quem quer que fosse – santos ou demónios, sábios ou talentosos – um tal poder mundial, e é bem preferível um sistema assim auto-regulado. Mau, porque as dinâmicas incontroladas dos valores nos mercados, ou a escala monetária ao dispor dos interesses de certos agentes é de tal ordem, que sempre podem provocar danos em alguns milhões de pessoas.
Daí, o apelo que vem sendo formulado para uma maior intervenção dos governos nacionais (melhor dizendo, de alguns grandes países, cuja acção é crucial para todos os outros, além do caso especial da UE), quer nas suas competências de política económica interna (taxas de câmbio, preço do dinheiro, investimentos do orçamento público, etc.), quer na forma de melhor se coordenarem para impor algumas regras mais eficientes na ordem financeira e comercial do planeta. Nesta fase, é esse talvez um poder regulador indispensável. Porém, sob duas condições, que se impõem aos governantes: colocar os equilíbrios gerais dos sistemas sócio-económicos acima dos estritos interesses nacionais; e, mantendo a confiança das suas populações autóctones, ser imunes tanto às seduções eleitoralistas como aos perigosos conúbios entre “público-e-privado”.
JF / 8.Set.2011
Na realidade, a ciência explica razoavelmente o funcionamento destes sistemas económicos e a história tem analisado o essencial do que aconteceu no decurso do último século, incluindo grandes fenómenos como as guerras mundiais, a construção e ocaso do bloco socialista, as crises e os períodos de crescimento, o apogeu do colonialismo e a descolonização, os nacionalismos e as tendências à agregação internacional, a supremacia global da América e a actual mundialização económica, tecnológica e cultural. Fora das ortodoxias ideológicas, nada disto se explica fundamentalmente a partir do tal ‘poder económico’, embora os interesses económicos e financeiros se contem entre os principais factores que impulsionam as dinâmicas e as mudanças no mundo contemporâneo.
Desde a Antiguidade se sabe que, quem tem muito dinheiro, pode comprar quase tudo o que quiser: coisas e pessoas. É evidente também que, no quadro da empresa, as figuras do investidor, do proprietário ou do administrador beneficiam de um poder sócio-económico incomparavelmente maior do que o do assalariado que ali se emprega (e que, aliás, dominam em muitas circunstâncias). Mas, num plano ampliado e no médio-prazo, é a situação do mercado de procura-e-oferta de trabalho que essencialmente determina o nível de salários e outras condições laborais, embora o Estado exerça um importante papel através da legislação e haja ainda que contar com o poder social mobilizado para pressionar a distribuição dos rendimentos mais em favor do trabalho – como historicamente foi feito pelos sindicatos –, num dado quadro nacional ou regional (um exemplo deste último é o chamado ‘modelo social europeu’). Aqui chegados, o ‘poder económico’ apenas se manifestará pela influência (ou corrupção, chantagem, etc.) que possa exercer junto dos órgãos políticos governamentais, ou então por um abuso de poder derivado de posições monopolistas. O regime de concorrência, que tende a beneficiar o consumidor (embora também torne mais rudes as relações entre as pessoas em competição), constitui igualmente um travão contra tais práticas.
O mundo financeiro é um alvo predilecto para a vivaz manutenção da imagem sinistra do ‘poder económico’: vejam-se os capitalistas “fautores de guerras” que desesperavam os pacifistas de há um século atrás, a “plutocracia judaica” odiada pelos nazis ou talvez ainda os actuais cartéis discretos da “economia subterrânea”. De facto, a própria natureza abstracta-simbólica do dinheiro (próxima do pecado e da avidez), a sumptuosidade das suas maiores edificações, a ostentação de vida dos “banqueiros”, a manipulação contabilística em que se funda o seu negócio, a regra-de-ouro do sigilo bancário e alguns dos acontecimentos mais dramáticos a que tem dado lugar (usura, especulação, desfalques, falências, crachs bolsistas, desvalorizações, “branqueamento” de capitais, etc.) concorrem para uma deslegitimação da finança na consideração das populações e mesmo no concerto das actividades económicas. Toda a gente sabe que a pessoas não comem dinheiro, mas precisam da “economia real” para sobreviver!
Et pourtant… o sistema financeiro constitui um elemento essencial da economia desde há pelo menos um milénio, talvez mesmo a sua parte matematicamente mais elaborada e exigente. Assim, como tudo o que tem uma importância decisiva para a vida em sociedade – diz-se que a guerra é demasiado grave para ser deixada apenas aos militares… –, os sistemas bancários e seguradores também carecem de alguma forma de controlo social. A partir do séc. XIX, pensou-se na sua “mutualização”, depois na sua “nacionalização” (pelo Estado), ao menos parcial para impedir derrapagens. Agora fala-se em “regulação”, por entidades independentes credíveis (porque os governantes já não dão garantias suficientes), e, sempre, em esquemas de regras e controlos mais rigorosos do que em qualquer outro ramo de indústria. É também essa a razão principal porque geralmente beneficiam de impostos mais suaves e em tempos de crise são tratados com especiais precauções, devido aos “efeitos sistémicos” que a sua queda provocaria em todo o sistema económico e na confiança dos depositantes.
É certo que, nas últimas décadas, a actividade financeira se multiplicou, em parte porque o sistema económico da produção, circulação e consumo se mundializou muito mais intensamente, mas principalmente porque se alargou imenso o volume de pessoas que acederam a maiores rendimentos, ao crédito e ao supérfluo. Os adversários socialisantes (e também alguns nacionalistas) deliciam-se em chamar a isto “neo-liberalismo” – já que não conseguiram ver vencer os seus modelos estatisantes preferidos… –, acumulando-o de todos os defeitos e prejuízos imagináveis. Mas não há dúvida que os especialistas financeiros precisam de rever todos os seus cálculos e voltar a equilíbrios mais seguros no jogo do crédito, talvez aqueles que vigoravam há vinte ou trinta anos atrás no negócio bancário e que passaram a ser desprezados pelos yupies, por demasiado prudentes e conservadores. Como quer que seja, a extraordinária concentração de massas monetárias em poucas entidades (bancos, fundos de investimentos e de pensões, seguros, etc.), juntamente com a não menos extraordinária velocidade de circulação do capital que se atingiu graças às actuais tecnologias de informação, constitui sem dúvida uma nova forma de dominação económica, mas que ninguém realmente controla.
Isto é bom e é mau. Bom, porque seria desafiar a natureza humana entregar a quem quer que fosse – santos ou demónios, sábios ou talentosos – um tal poder mundial, e é bem preferível um sistema assim auto-regulado. Mau, porque as dinâmicas incontroladas dos valores nos mercados, ou a escala monetária ao dispor dos interesses de certos agentes é de tal ordem, que sempre podem provocar danos em alguns milhões de pessoas.
Daí, o apelo que vem sendo formulado para uma maior intervenção dos governos nacionais (melhor dizendo, de alguns grandes países, cuja acção é crucial para todos os outros, além do caso especial da UE), quer nas suas competências de política económica interna (taxas de câmbio, preço do dinheiro, investimentos do orçamento público, etc.), quer na forma de melhor se coordenarem para impor algumas regras mais eficientes na ordem financeira e comercial do planeta. Nesta fase, é esse talvez um poder regulador indispensável. Porém, sob duas condições, que se impõem aos governantes: colocar os equilíbrios gerais dos sistemas sócio-económicos acima dos estritos interesses nacionais; e, mantendo a confiança das suas populações autóctones, ser imunes tanto às seduções eleitoralistas como aos perigosos conúbios entre “público-e-privado”.
JF / 8.Set.2011
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
Os ricos e os impostos
O tema anda na baila, aqui e lá fora. Como se não tivessem já projecção mediática suficiente, até aparecem agora notícias em que alguns dos multi-milionários conhecidos se oferecem para pagar mais para a comunidade, em nome da “justiça social”!
O colunista J.V.Malheiros (Público, 30.Ago.2011) tem razão em denunciar esta “operação de marketing” e ao dizer que “regras fiscais mais justas não visam acabar com a riqueza. Visam acabar com a batota” mas parece-me que incorre largamente no preconceito fácil quando escreve que os ricos “estão habituados a ser tratados com mimos, a ser beneficiados nos negócios, a ser privilegiados pelos governos, obedecidos pelos legisladores, perdoados pelos tribunais, a comprar mais barato que os pobres, a comprar os favores que não lhes são oferecidos, a pagar menos impostos, a que lhes ofereçam os terrenos públicos para construir as suas empresas, a que lhes perdoem a dívidas, que lhes facilitem uns concursos públicos, que se abram excepções na lei para lhes permitir enriquecer ainda mais, que lhes urbanizem uns terrenos rurais, que lhes facilitem uns trâmites.” Uf! Mesmo descontando o efeito hiperbólico da frase, se isto fosse tudo verdade significaria que estaríamos na idade média ou dos absolutismos, não no mundo aberto e livre em larga dose – embora muito desigual e desequilibrado – em que vivemos.
Porém, na mesma fonte de imprensa publicam-se também os rendimentos declarados em 2010 pelos membros do actual governo português. É útil esta possibilidade de escrutínio público, como mecanismo de cidadania. Por ele se fica a saber que, dos 46 governantes considerados, a média dos seus rendimentos é cerca de 140 mil Euros. Destacam-se sete acima dos 200 mil; e doze abaixo dos 65 mil, que podemos tomar como uma referência simbólica por ser o rendimento auferido no topo de uma excelente carreira pública (professor catedrático de universidade). Note-se que estamos aqui a citar somas provenientes de remunerações de trabalho, pensões, rendas, lucros empresariais auferidos, rendimentos de produtos financeiros, direitos autorais, venda de bens, etc., e não do património físico ou financeiro acumulado. Trata-se, portanto, de rendimentos rotineiramente angariados por meros tecnocratas, alguns profissionais independentes e mais uns tantos que têm feito carreira na política e nos partidos, ganhando acima e bem acima (em média, mais do dobro) daquele marco de referência. Como se vê, é “gente rica” aquela que se dedica actualmente à governação.
Podemos então extrair uma primeira conclusão: a de que existe uma fortíssima imbricação entre a oligarquia partidária e a oligarquia económica.
Quanto aos impostos a pagar por esta classe de pessoas (donde saem os que nos governam), fora da demagogia d’ “os ricos que paguem a crise” ou das questões de ordem técnica mas ao contrário do que a ainda recente discussão da “taxa única” podia fazer crer, parece aqui justificar-se o princípio do imposto progressivo (taxas maiores para os mais altos rendimentos), não para equilibrar as finanças públicas (que terão de assentar em bases diferentes do que vem acontecendo) nem essencialmente para subsidiar os mais pobres ou a gratuitidade de certos benefícios, mas sobretudo para repor alguma justiça e equidade no funcionamento do sistema económico.
Quanto às taxas que tributam os rendimentos do capital (juros, dividendos, transacções e mais-valias bolsistas, etc.) e os resultados das empresas – e respectivas isenções –, apesar de se tratar de uma realidade diversa dos rendimentos individuais, é possível que as acusações do colunista Malheiros tenham fundamento. Mas é também verdade que a “competição fiscal” internacional existe, como existem os “paraísos fiscais”, e que a unilateralidade patriótica nesta matéria pode resultar em rotundos fracassos. A cooperação internacional revela-se, pois, cada vez mais necessária, embora muito difícil.
Mas, entre nós, o que talvez seja mais gritante é a forma impune como parte dos profissionais independentes e dos empresários consegue fugir ao fisco apresentando resultados irrisórios ou fazendo uma confusão imaginativa entre bens e serviços da empresa e os seus próprios. Em parte, é culpa do “sistema”. Mas é também o espelho da falta de moralidade e de probidade que por aí campeia.
JF / 3.Set.2011
O colunista J.V.Malheiros (Público, 30.Ago.2011) tem razão em denunciar esta “operação de marketing” e ao dizer que “regras fiscais mais justas não visam acabar com a riqueza. Visam acabar com a batota” mas parece-me que incorre largamente no preconceito fácil quando escreve que os ricos “estão habituados a ser tratados com mimos, a ser beneficiados nos negócios, a ser privilegiados pelos governos, obedecidos pelos legisladores, perdoados pelos tribunais, a comprar mais barato que os pobres, a comprar os favores que não lhes são oferecidos, a pagar menos impostos, a que lhes ofereçam os terrenos públicos para construir as suas empresas, a que lhes perdoem a dívidas, que lhes facilitem uns concursos públicos, que se abram excepções na lei para lhes permitir enriquecer ainda mais, que lhes urbanizem uns terrenos rurais, que lhes facilitem uns trâmites.” Uf! Mesmo descontando o efeito hiperbólico da frase, se isto fosse tudo verdade significaria que estaríamos na idade média ou dos absolutismos, não no mundo aberto e livre em larga dose – embora muito desigual e desequilibrado – em que vivemos.
Porém, na mesma fonte de imprensa publicam-se também os rendimentos declarados em 2010 pelos membros do actual governo português. É útil esta possibilidade de escrutínio público, como mecanismo de cidadania. Por ele se fica a saber que, dos 46 governantes considerados, a média dos seus rendimentos é cerca de 140 mil Euros. Destacam-se sete acima dos 200 mil; e doze abaixo dos 65 mil, que podemos tomar como uma referência simbólica por ser o rendimento auferido no topo de uma excelente carreira pública (professor catedrático de universidade). Note-se que estamos aqui a citar somas provenientes de remunerações de trabalho, pensões, rendas, lucros empresariais auferidos, rendimentos de produtos financeiros, direitos autorais, venda de bens, etc., e não do património físico ou financeiro acumulado. Trata-se, portanto, de rendimentos rotineiramente angariados por meros tecnocratas, alguns profissionais independentes e mais uns tantos que têm feito carreira na política e nos partidos, ganhando acima e bem acima (em média, mais do dobro) daquele marco de referência. Como se vê, é “gente rica” aquela que se dedica actualmente à governação.
Podemos então extrair uma primeira conclusão: a de que existe uma fortíssima imbricação entre a oligarquia partidária e a oligarquia económica.
Quanto aos impostos a pagar por esta classe de pessoas (donde saem os que nos governam), fora da demagogia d’ “os ricos que paguem a crise” ou das questões de ordem técnica mas ao contrário do que a ainda recente discussão da “taxa única” podia fazer crer, parece aqui justificar-se o princípio do imposto progressivo (taxas maiores para os mais altos rendimentos), não para equilibrar as finanças públicas (que terão de assentar em bases diferentes do que vem acontecendo) nem essencialmente para subsidiar os mais pobres ou a gratuitidade de certos benefícios, mas sobretudo para repor alguma justiça e equidade no funcionamento do sistema económico.
Quanto às taxas que tributam os rendimentos do capital (juros, dividendos, transacções e mais-valias bolsistas, etc.) e os resultados das empresas – e respectivas isenções –, apesar de se tratar de uma realidade diversa dos rendimentos individuais, é possível que as acusações do colunista Malheiros tenham fundamento. Mas é também verdade que a “competição fiscal” internacional existe, como existem os “paraísos fiscais”, e que a unilateralidade patriótica nesta matéria pode resultar em rotundos fracassos. A cooperação internacional revela-se, pois, cada vez mais necessária, embora muito difícil.
Mas, entre nós, o que talvez seja mais gritante é a forma impune como parte dos profissionais independentes e dos empresários consegue fugir ao fisco apresentando resultados irrisórios ou fazendo uma confusão imaginativa entre bens e serviços da empresa e os seus próprios. Em parte, é culpa do “sistema”. Mas é também o espelho da falta de moralidade e de probidade que por aí campeia.
JF / 3.Set.2011
terça-feira, 30 de agosto de 2011
Escrever como falamos?
Bem sei que o novo acordo ortográfico ainda não vai tão longe. Mas é essa a tendência que se desenha.
Que cada um escreva com a ortografia de que mais gosta, até pode ser uma liberdade literária ou um direito da pessoa. Mas a forma como se publica num jornal ou como se redige o Diário da República já não é só isto, é também um modo colectivo de lidar com uma língua milenar, que sofreu a sua própria evolução ao longo dos tempos mas cuja antiguidade e património literário impõem certas responsabilidades culturais.
Mais importante ainda será talvez a questão de como ensinar as crianças e os jovens a apreenderem e interiorizarem uma língua-mãe (neste caso, o português). É claro que as crianças começam por adquirir uma linguagem oral e só pelo esforço da aprendizagem escolar ascendem à leitura e à escrita, melhorando então também consideravelmente a sua expressão oral.
A tendência actual para levar a ortografia para a forma orializada empregue na linguagem corrente apresenta decerto benefícios de rapidez e facilidade de ensino. Mas julgo que empobrece a bagagem cultural dos sujeitos que, ao aprenderem a origem etimológica das palavras, pelo mesmo processo alargam consideravelmente os seus conhecimentos histórico-culturais e a sua visão do mundo.
Como ‘comunicação’, o novo acordo ortográfico e a tendência linguística em que se inscreve têm certamente vantagens para populações pouco instruídas e será “atrativa” para os países africanos de expressão portuguesa ou mesmo para o Brasil. Porém, como ‘saber’, as futuras gerações ficarão provavelmente todas mais pobres de linguagem e de entendimento.
Mas este é talvez um “teisto reacsionário”, escrito por um idoso que já tem dificuldade em acompanhar os novos tempos... E fica feita a declaração do autor de que, não só irá continuar a escrever no português pré-acordo ortográfico, como deseja continuar a pensar fundamentalmente na mesma língua.
JF / 30.Ago.2011
Que cada um escreva com a ortografia de que mais gosta, até pode ser uma liberdade literária ou um direito da pessoa. Mas a forma como se publica num jornal ou como se redige o Diário da República já não é só isto, é também um modo colectivo de lidar com uma língua milenar, que sofreu a sua própria evolução ao longo dos tempos mas cuja antiguidade e património literário impõem certas responsabilidades culturais.
Mais importante ainda será talvez a questão de como ensinar as crianças e os jovens a apreenderem e interiorizarem uma língua-mãe (neste caso, o português). É claro que as crianças começam por adquirir uma linguagem oral e só pelo esforço da aprendizagem escolar ascendem à leitura e à escrita, melhorando então também consideravelmente a sua expressão oral.
A tendência actual para levar a ortografia para a forma orializada empregue na linguagem corrente apresenta decerto benefícios de rapidez e facilidade de ensino. Mas julgo que empobrece a bagagem cultural dos sujeitos que, ao aprenderem a origem etimológica das palavras, pelo mesmo processo alargam consideravelmente os seus conhecimentos histórico-culturais e a sua visão do mundo.
Como ‘comunicação’, o novo acordo ortográfico e a tendência linguística em que se inscreve têm certamente vantagens para populações pouco instruídas e será “atrativa” para os países africanos de expressão portuguesa ou mesmo para o Brasil. Porém, como ‘saber’, as futuras gerações ficarão provavelmente todas mais pobres de linguagem e de entendimento.
Mas este é talvez um “teisto reacsionário”, escrito por um idoso que já tem dificuldade em acompanhar os novos tempos... E fica feita a declaração do autor de que, não só irá continuar a escrever no português pré-acordo ortográfico, como deseja continuar a pensar fundamentalmente na mesma língua.
JF / 30.Ago.2011
sábado, 27 de agosto de 2011
Polícias reclamantes e médicos pusilânimes
Aqui há tempos, foi no Algarve. Mais recentemente, deu-se em Lisboa. Começa a parecer “normal” que os agentes da PSP de um determinado sector se metam todos simultaneamente de baixa médica, como forma de protesto, por isto ou por aquilo.
É um acto gravíssimo de que os próprios se não darão conta, a que a sociedade não liga, que a comunicação social meramente veiculou e que as chefias próprias parecem também incapazes de reprimir.
É que se trata de agentes públicos armados, cuja posse exige especiais responsabilidades, no sentido de que as mesmas sejam exclusivamente utilizadas para o serviço da segurança pública. Já bastam os incidentes e as faltas estatisticamente inevitáveis, quanto mais a conquista e legitimação de hábitos que minam a ética e a disciplina hierárquica de um corpo que detém um exclusivo do emprego da violência, em nome do combate ao crime e da confiança (de podermos ser livres) de cada um de nós!
Por estas razões, o direito que lhes foi concedido de constituírem associações sindicais não incluiu o exercício da greve, mas deveria prevenir também estas formas substitutas de acção que os activistas nunca se cansarão de procurar inventar. Têm geralmente os favores da comunicação social. Ajudados por advogados, estão a aprender a explorar em seu proveito os meandros das vias judiciais. E agora aparecem a aproveitar a fraqueza ou a pusilanimidade dos médicos!
Em relação a estes últimos, dir-se-á que um clínico nunca pode recusar dar a “baixa” a alguém que afirma sentir-se enfermo; que não tem meios para, em definitivo, dizer a um queixoso que ele não está doente. Mas quando há justificações em catadupa para faltas de alunos às provas escolares, as inspecções da Segurança Social registam perto de 30% de doenças injustificadas ou quando são secções inteiras de polícias que “entram de baixa”, é inaceitável que a Ordem dos Médicos, os Comandos da PSP ou mesmo a Procuradoria-Geral da República, conforme os casos, não se mobilizem imediatamente para investigar as causas de semelhantes comportamentos e castigar as faltas profissionais incorridas!
Finalmente, voltando aos polícias, esta última acção colectiva que teve lugar em Lisboa foi desencadeada para protestar contra a condenação judicial de uns agentes, por violência praticada numa esquadra sobre um cidadão. Se os factos foram verdadeiros, têm obviamente de ser condenados: os polícias devem ser temíveis para os criminosos; mas a grande maioria dos cidadãos tem de ter confiança neles, e não temê-los. (Às vezes pergunto-me se o look americano e motorizado que eles agora exibem é mais securizante do que o velho “polícia de giro” e se, ao ser interpelado, devo perguntar se estou perante com um agente verdadeiro ou um impostor, um sindicalista ou um “caçador de multas”.)
E outro facto que não pode ficar impune é este da reacção corporativa face a uma sentença de tribunal. Os polícias podem até ter razão quando se queixam da brandura de certos juízes (e das nossas leis), que os coloca como os “maus da fita” e por pouco dinheiro. Mas não podem reagir colectivamente contra eles e contra elas. Isto já não é o “far-west”!
JF / 27.Ago.2011
É um acto gravíssimo de que os próprios se não darão conta, a que a sociedade não liga, que a comunicação social meramente veiculou e que as chefias próprias parecem também incapazes de reprimir.
É que se trata de agentes públicos armados, cuja posse exige especiais responsabilidades, no sentido de que as mesmas sejam exclusivamente utilizadas para o serviço da segurança pública. Já bastam os incidentes e as faltas estatisticamente inevitáveis, quanto mais a conquista e legitimação de hábitos que minam a ética e a disciplina hierárquica de um corpo que detém um exclusivo do emprego da violência, em nome do combate ao crime e da confiança (de podermos ser livres) de cada um de nós!
Por estas razões, o direito que lhes foi concedido de constituírem associações sindicais não incluiu o exercício da greve, mas deveria prevenir também estas formas substitutas de acção que os activistas nunca se cansarão de procurar inventar. Têm geralmente os favores da comunicação social. Ajudados por advogados, estão a aprender a explorar em seu proveito os meandros das vias judiciais. E agora aparecem a aproveitar a fraqueza ou a pusilanimidade dos médicos!
Em relação a estes últimos, dir-se-á que um clínico nunca pode recusar dar a “baixa” a alguém que afirma sentir-se enfermo; que não tem meios para, em definitivo, dizer a um queixoso que ele não está doente. Mas quando há justificações em catadupa para faltas de alunos às provas escolares, as inspecções da Segurança Social registam perto de 30% de doenças injustificadas ou quando são secções inteiras de polícias que “entram de baixa”, é inaceitável que a Ordem dos Médicos, os Comandos da PSP ou mesmo a Procuradoria-Geral da República, conforme os casos, não se mobilizem imediatamente para investigar as causas de semelhantes comportamentos e castigar as faltas profissionais incorridas!
Finalmente, voltando aos polícias, esta última acção colectiva que teve lugar em Lisboa foi desencadeada para protestar contra a condenação judicial de uns agentes, por violência praticada numa esquadra sobre um cidadão. Se os factos foram verdadeiros, têm obviamente de ser condenados: os polícias devem ser temíveis para os criminosos; mas a grande maioria dos cidadãos tem de ter confiança neles, e não temê-los. (Às vezes pergunto-me se o look americano e motorizado que eles agora exibem é mais securizante do que o velho “polícia de giro” e se, ao ser interpelado, devo perguntar se estou perante com um agente verdadeiro ou um impostor, um sindicalista ou um “caçador de multas”.)
E outro facto que não pode ficar impune é este da reacção corporativa face a uma sentença de tribunal. Os polícias podem até ter razão quando se queixam da brandura de certos juízes (e das nossas leis), que os coloca como os “maus da fita” e por pouco dinheiro. Mas não podem reagir colectivamente contra eles e contra elas. Isto já não é o “far-west”!
JF / 27.Ago.2011
quarta-feira, 24 de agosto de 2011
Caiu o regime tirânico de Kadafi mas o futuro é muito incerto
Com uma aceleração inesperada, os rebeldes líbios armados entraram em Tripoli, tomando de assalto o bunker e despedaçando a “tenda” do louco e sanguinário Kadafi, o que só pode merecer uma celebração. Mas tudo o resto são dúvidas e receios. Em primeiro lugar, sobre se a luta armada não vai prosseguir, agora sob a forma de resistência ou guerrilha, contra a qual a intervenção da NATO – crucial para o avanço dos homens de Bengazi – pouco serviria. Depois, porque os actuais vencedores são tudo menos um exército minimamente disciplinado e comandando, mais parecendo as milícias da guerra de Espanha ou os combatentes afegãos que correram com os tabilan do poder, e ao mais pequeno incidente podem começar a guerrear-se uns aos outros ou a fazer justiça pelas próprias mãos. E, terceiro, porque, se conseguir estabilizar a segurança física no país, resta saber com que composição de forças e programa político o actual CNT será capaz de gerar uma alternativa credível à “revolução verde” do coronel, interna e externamente, embora aqui o apoio recebido do “ocidente” possa vir a ser uma condicionante de peso.
Eis mais uma revolução da “rua árabe” nestes meses de 2011, muito diferente das suas predecessoras e certamente distinta das que se lhe podem seguir, a começar pela Síria, dramaticamente urgente.
JF / 24.Ago.2011
Eis mais uma revolução da “rua árabe” nestes meses de 2011, muito diferente das suas predecessoras e certamente distinta das que se lhe podem seguir, a começar pela Síria, dramaticamente urgente.
JF / 24.Ago.2011
sexta-feira, 19 de agosto de 2011
Crise e conflitos
Os sociólogos deram sempre grande importância à análise dos conflitos sociais – às vezes até talvez excessiva – para melhor compreenderem a natureza dos processos de estabilidade e de mudança que atravessam as sociedades modernas.
Mas não se peça a estes analistas que comentem os “acampados” de Espanha, os corajosos manifestantes da Síria, os protestos em Israel ou os tumultos de Inglaterra de maneira muito diferente de como o fazem jornalistas ou responsáveis da segurança nos mass media. Os sociólogos podem diagnosticar situações de tensão e de conflito latente, mas não prever quando elas se transformam em violência aberta; ou então, explicar retrospectivamente estas irrupções – mas não conseguem analisá-las cientificamente “em directo”.
Todos agora realçam a função das redes organizativas espontâneas e informais que as ligações horizontais inter-individuais do Facebook ou das mensagens SMS proporcionam e o papel dos jovens como protagonistas destas acções de rua que realmente não são comandadas nem controladas por ninguém. Ou ainda o efeito de “amplificação” que os poderosos meios de comunicação áudio-visuais produzem destes acontecimentos espectaculares. E quando neles não se vislumbram objectivos políticos de desgaste ou derrube do governo em exercício, tende-se a vê-los como consequências sociais das crises económico-financeiras que nos últimos anos têm abalado o mundo ocidental.
Em relação a este acontecimento que durante três dias encheu os ecrãs de televisão, convém saber que o fogo urbano e o motim foram sempre, desde a Idade Média, meios de exteriorização habituais das revoltas que, de longe em longe, sacudiam sectores das populações britânicas. É, por assim dizer, um traço cultural deste povo, tal como noutros se cortavam cabeças ou se enchia o espírito com os vapores do alcool ingerido. Mas, de facto, deverão existir razões sociais mais próximas que justifiquem o estado de ânimo, não apenas dos jovens incendiários e destruidores (onde evidentemente também alinharam malfeitores e cadastrados), mas igualmente de gente da “baixa-classe-média” que assistiu complacentemente aos distúrbios, ou mesmo se aproveitou deles para se apropriar de alguns bens úteis. As entrevistas feitas nos dias seguintes a alguns jovens de-cara-tapada (onde se misturavam o ressentimento e a avidez consumista) foram tão eloquentes quanto as atitudes de comunidades étnicas de origem asiática, africana, etc. que ajudaram a restabelecer a ordem nas ruas e a reparar os estragos produzidos.
A Inglaterra tem uma longa história de comportamentos racistas e sobranceria nacional mas também foi capaz de transmitir a outros povos elementos interessantes de uma cultura de refinamento e bom-gosto, dos rituais de corte à prática dos sports, da literatura ou da música à independência judicial. No entanto, o que se poderá esperar de uma juventude a quem constantemente se acena com novos bens de consumo para usar e deitar fora ainda em bom estado, a quem os pais deixaram de saber dizer “não!” e por isso julga que tudo lhe é permitido, que absorve maciçamente filmes, música e literatura que só lhe falam de prazer e violência, e que, por outro lado, se procura confinar em clans futebolísticos e bairros étnicos sempre mais degradados do que “os outros”, se obriga a permanecer na escola como se fosse castigo e, à falta de trabalho, se “ocupa” em “actividades” ou a quem se dão subsídios sociais, bem caros para a comunidade que os suporta mas sempre insuficientes (ou até “humilhantes”) para quem os recebe?
E, mutatis mutandis, é este o panorama geral do mundo desenvolvido actual.
Por isso, não é de estranhar que, quando os níveis de vida estagnam, o crédito se restringe, o desemprego alastra, a pobreza aumenta, os cortes nas depesas sociais atingem os mais necessitados, certas desigualdades económicas são vistas como escandalosas e as expectativas sobre o futuro se tornam mais sombrias, possam surgir fenómenos violentos deste tipo, ao lado de comportamentos depressivos, fugas para o álcool, etc. Não por acaso, Durkheim, um dos fundadores da sociologia, procurou investigar as relações entre o suicídio e as crises económicas.
É provável que alguns exultem com estes episódios explosivos – “eles bem o mereciam!” ou, mais cinicamente, “desde que não se chegue a mim…” – mas aqui já não é questão de sociologia ou sequer de política. É uma questão de sensibilidade e sobretudo de ética. Da mesma que está ausente na educação de cada vez mais crianças e que, com o declínio das religiões, as sociedades modernas não souberam ainda compensar com uma moral laica de cidadania e universalismo.
Por isso, é bem possível que o antigo bispo de Setúbal Manuel Martins tenha razão quando nos alerta para a gravidade da conjuntura actual (Expresso, 13.Ago.2011) e confessa: “Temo que deixemos de ser boa gente.”
JF / 20.Ago.2011
Mas não se peça a estes analistas que comentem os “acampados” de Espanha, os corajosos manifestantes da Síria, os protestos em Israel ou os tumultos de Inglaterra de maneira muito diferente de como o fazem jornalistas ou responsáveis da segurança nos mass media. Os sociólogos podem diagnosticar situações de tensão e de conflito latente, mas não prever quando elas se transformam em violência aberta; ou então, explicar retrospectivamente estas irrupções – mas não conseguem analisá-las cientificamente “em directo”.
Todos agora realçam a função das redes organizativas espontâneas e informais que as ligações horizontais inter-individuais do Facebook ou das mensagens SMS proporcionam e o papel dos jovens como protagonistas destas acções de rua que realmente não são comandadas nem controladas por ninguém. Ou ainda o efeito de “amplificação” que os poderosos meios de comunicação áudio-visuais produzem destes acontecimentos espectaculares. E quando neles não se vislumbram objectivos políticos de desgaste ou derrube do governo em exercício, tende-se a vê-los como consequências sociais das crises económico-financeiras que nos últimos anos têm abalado o mundo ocidental.
Em relação a este acontecimento que durante três dias encheu os ecrãs de televisão, convém saber que o fogo urbano e o motim foram sempre, desde a Idade Média, meios de exteriorização habituais das revoltas que, de longe em longe, sacudiam sectores das populações britânicas. É, por assim dizer, um traço cultural deste povo, tal como noutros se cortavam cabeças ou se enchia o espírito com os vapores do alcool ingerido. Mas, de facto, deverão existir razões sociais mais próximas que justifiquem o estado de ânimo, não apenas dos jovens incendiários e destruidores (onde evidentemente também alinharam malfeitores e cadastrados), mas igualmente de gente da “baixa-classe-média” que assistiu complacentemente aos distúrbios, ou mesmo se aproveitou deles para se apropriar de alguns bens úteis. As entrevistas feitas nos dias seguintes a alguns jovens de-cara-tapada (onde se misturavam o ressentimento e a avidez consumista) foram tão eloquentes quanto as atitudes de comunidades étnicas de origem asiática, africana, etc. que ajudaram a restabelecer a ordem nas ruas e a reparar os estragos produzidos.
A Inglaterra tem uma longa história de comportamentos racistas e sobranceria nacional mas também foi capaz de transmitir a outros povos elementos interessantes de uma cultura de refinamento e bom-gosto, dos rituais de corte à prática dos sports, da literatura ou da música à independência judicial. No entanto, o que se poderá esperar de uma juventude a quem constantemente se acena com novos bens de consumo para usar e deitar fora ainda em bom estado, a quem os pais deixaram de saber dizer “não!” e por isso julga que tudo lhe é permitido, que absorve maciçamente filmes, música e literatura que só lhe falam de prazer e violência, e que, por outro lado, se procura confinar em clans futebolísticos e bairros étnicos sempre mais degradados do que “os outros”, se obriga a permanecer na escola como se fosse castigo e, à falta de trabalho, se “ocupa” em “actividades” ou a quem se dão subsídios sociais, bem caros para a comunidade que os suporta mas sempre insuficientes (ou até “humilhantes”) para quem os recebe?
E, mutatis mutandis, é este o panorama geral do mundo desenvolvido actual.
Por isso, não é de estranhar que, quando os níveis de vida estagnam, o crédito se restringe, o desemprego alastra, a pobreza aumenta, os cortes nas depesas sociais atingem os mais necessitados, certas desigualdades económicas são vistas como escandalosas e as expectativas sobre o futuro se tornam mais sombrias, possam surgir fenómenos violentos deste tipo, ao lado de comportamentos depressivos, fugas para o álcool, etc. Não por acaso, Durkheim, um dos fundadores da sociologia, procurou investigar as relações entre o suicídio e as crises económicas.
É provável que alguns exultem com estes episódios explosivos – “eles bem o mereciam!” ou, mais cinicamente, “desde que não se chegue a mim…” – mas aqui já não é questão de sociologia ou sequer de política. É uma questão de sensibilidade e sobretudo de ética. Da mesma que está ausente na educação de cada vez mais crianças e que, com o declínio das religiões, as sociedades modernas não souberam ainda compensar com uma moral laica de cidadania e universalismo.
Por isso, é bem possível que o antigo bispo de Setúbal Manuel Martins tenha razão quando nos alerta para a gravidade da conjuntura actual (Expresso, 13.Ago.2011) e confessa: “Temo que deixemos de ser boa gente.”
JF / 20.Ago.2011
sexta-feira, 12 de agosto de 2011
E por onde anda a Islândia?
São menos de 400 mil os habitantes da Islândia, uma “terra de gelo” e vulcões onde os vikings terão chegado em 800 e tantos DC, e se criou um parlamento logo no séc. X mas que, tendo estado quase sempre integrada nos reinos nórdicos, só conheceu a sua independência em 1944, com um regime político republicano democrático. Os islandeses falam uma língua germânica próxima do norueguês antigo e são predominantemente cristãos luteranos.
Também muito integrada, escolarizada, participativa e liberal nos costumes, a sociedade islandesa é vista por alguns, a par da Suíça (e mesmo da monárquica Noruega!), como o melhor exemplo concreto de “social-libertarismo” actualmente existente (ver www.anarchy.no). E o país prescindiu praticamente das despesas com a defesa nacional, diplomaticamente assegurada por um sistema de alianças externas (Estados Unidos e NATO) que vem dos tempos da segunda guerra mundial.
A crise financeira americana de 2008 atingiu em cheio a população deste pequeno país que exibia índices de riqueza e bem-estar dos mais elevados do mundo: os níveis de consumo, a protecção social semelhante à proporcionada pela social-democracia nórdica e o endividamento privado tinham crescido mais do que deviam. A economia produtiva, tradicionalmente quase só limitada às pescas, alargara-se para alguma indústria moderna, turismo e novos serviços terciários e financeiros, muito abertos às trocas externas.
De repente, os títulos bancários passaram a nada valer e grande parte dos aforradores viu evaporarem-se as suas poupanças ou investimentos bolsistas, ao mesmo tempo que as falências bancárias arrastaram grave recessão da actividade económica, desemprego e punham em causa as contas públicas. A Islândia teve então de recorrer a um empréstimo do FMI.
A revolta popular foi pacífica mas expressiva e transmitiu-se imediatamente ao sistema político, levando à demissão do governo em Janeiro de 2009. Das eleições de Abril seguinte saiu um governo de coligação Social-Democrata/Verdes liderado pela senhora Johanna Siguroardóttir com ideias de integrar a Islândia na zona Euro e/ou a própria UE.
Mas aquilo que mais tem chamado a atenção de alguns observadores é o grau de consciência e participação cívica das pessoas comuns, procurando elas próprias intervir organizadamente nas grandes decisões que afectam toda a colectividade e controlando de perto as acções dos seus mandatários eleitorais, bem longe da ideia do “cheque em branco” passado aos políticos. Assim como pressionaram o parlamento a pôr o antigo primeiro-ministro em tribunal por negligência, também já rejeitaram por duas vezes em referendo que o tesouro islandês pague as indemnizações reclamadas por investidores estrangeiros (ingleses e holandeses) nos bancos que faliram, o que, se pode constituir um risco para a necessária confiança financeira internacional, também responde frontalmente àqueles que só buscam ganhos especulativos e gostam de apostar em “operações perigosas”, ignorando as eventuais consequências desses “jogos” sobre a vida de terceiros.
Além disto, os islandeses elegeram também uma comissão de 25 cidadãos sem filiação partidária para proporem os termos de uma revisão da actual Constituição.
Nesta altura, talvez a Islândia já não pense em ligar-se mais estreitamente à Europa ou esteja algo desorientada, à espera de que o ambiente financeiro mundial se clarifique. Mas a atitude activa e participativa de bom número dos seus cidadãos é um garante de que, como povo, serão capazes de superar novas dificuldades, porventura ainda maiores do que aquelas que já conheceram nos últimos anos.
Nestes tempos de motins urbanos na civilizada Inglaterra, de preocupação com as crises da “dívida soberana” de vários países (incluindo os Estados Unidos) e de temor de nova recessão, é bom saber do exemplo de povos que se não deixam facilmente abater.
JF / 13.Ago.2011
Também muito integrada, escolarizada, participativa e liberal nos costumes, a sociedade islandesa é vista por alguns, a par da Suíça (e mesmo da monárquica Noruega!), como o melhor exemplo concreto de “social-libertarismo” actualmente existente (ver www.anarchy.no). E o país prescindiu praticamente das despesas com a defesa nacional, diplomaticamente assegurada por um sistema de alianças externas (Estados Unidos e NATO) que vem dos tempos da segunda guerra mundial.
A crise financeira americana de 2008 atingiu em cheio a população deste pequeno país que exibia índices de riqueza e bem-estar dos mais elevados do mundo: os níveis de consumo, a protecção social semelhante à proporcionada pela social-democracia nórdica e o endividamento privado tinham crescido mais do que deviam. A economia produtiva, tradicionalmente quase só limitada às pescas, alargara-se para alguma indústria moderna, turismo e novos serviços terciários e financeiros, muito abertos às trocas externas.
De repente, os títulos bancários passaram a nada valer e grande parte dos aforradores viu evaporarem-se as suas poupanças ou investimentos bolsistas, ao mesmo tempo que as falências bancárias arrastaram grave recessão da actividade económica, desemprego e punham em causa as contas públicas. A Islândia teve então de recorrer a um empréstimo do FMI.
A revolta popular foi pacífica mas expressiva e transmitiu-se imediatamente ao sistema político, levando à demissão do governo em Janeiro de 2009. Das eleições de Abril seguinte saiu um governo de coligação Social-Democrata/Verdes liderado pela senhora Johanna Siguroardóttir com ideias de integrar a Islândia na zona Euro e/ou a própria UE.
Mas aquilo que mais tem chamado a atenção de alguns observadores é o grau de consciência e participação cívica das pessoas comuns, procurando elas próprias intervir organizadamente nas grandes decisões que afectam toda a colectividade e controlando de perto as acções dos seus mandatários eleitorais, bem longe da ideia do “cheque em branco” passado aos políticos. Assim como pressionaram o parlamento a pôr o antigo primeiro-ministro em tribunal por negligência, também já rejeitaram por duas vezes em referendo que o tesouro islandês pague as indemnizações reclamadas por investidores estrangeiros (ingleses e holandeses) nos bancos que faliram, o que, se pode constituir um risco para a necessária confiança financeira internacional, também responde frontalmente àqueles que só buscam ganhos especulativos e gostam de apostar em “operações perigosas”, ignorando as eventuais consequências desses “jogos” sobre a vida de terceiros.
Além disto, os islandeses elegeram também uma comissão de 25 cidadãos sem filiação partidária para proporem os termos de uma revisão da actual Constituição.
Nesta altura, talvez a Islândia já não pense em ligar-se mais estreitamente à Europa ou esteja algo desorientada, à espera de que o ambiente financeiro mundial se clarifique. Mas a atitude activa e participativa de bom número dos seus cidadãos é um garante de que, como povo, serão capazes de superar novas dificuldades, porventura ainda maiores do que aquelas que já conheceram nos últimos anos.
Nestes tempos de motins urbanos na civilizada Inglaterra, de preocupação com as crises da “dívida soberana” de vários países (incluindo os Estados Unidos) e de temor de nova recessão, é bom saber do exemplo de povos que se não deixam facilmente abater.
JF / 13.Ago.2011
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