Depois de algumas evasões no libérrimo espaço do
imaginário, favorecidas pelos vapores estivais, caímos noutra realidade: a dos
números brutos, inevitáveis para continuar a falar da sociedade contemporânea, sobretudo
no dia em que os nossos representantes parlamentares vão começar a discutir o
orçamento do estado português para 2017.
Escrevemos há tempos acerca de uma economia citar
sem números, para que o cidadão comum pudesse perceber melhor a evolução da
sociedade em que está integrado, sob este ponto de vista tão estruturante.
Agora, tentamos fornecer alguns dados que nos transmitam “ordens de grandeza”
de variáveis económicas decisivas para a nossa vida colectiva e de que nem
sempre temos uma noção, sequer aproximada. Fazemos este exercício sempre em
termos de evolução histórica e de comparação internacional. (As fontes
utilizadas foram sobretudo: César das Neves; Lains & Silva; World Bank;
OIT; OCDE, Eurostat; Banco de Portugal; INE; Pordata: Observatório das
Desigualdades; Wikipédia.) Naturalmente, os números aqui avançados são
grosseiros e arredondados mas poderão ser verificados (e porventura
rectificados) por economistas. Mas não são eles os destinatários do presente post. A pertinência destes dados em
termos de análise económica é que será talvez nula, visto terem sido coligidos
por um simples cidadão que de economia pouco mais conhece do que aquilo que vai
saindo nos jornais.
Comecemos então por alguns dados demográficos das
populações, que constituem sempre os consumidores,
destinatários finais do ciclo produtivo da economia. A população portuguesa
ronda agora os 10 milhões de pessoas, um número equiparável à Hungria, à
Grécia, à Áustria, à Suécia, à Bélgica, à Suíça ou à República Checa, mas bem
abaixo dos grandes países da Europa, que são a Alemanha (80 milhões), a França,
o Reino Unido e a Itália (na casa dos 60 milhões), ou mesmo a Espanha (46) e a
Polónia (38). Mas há países pequenos, como a Dinamarca ou a Noruega (com cerca
de 5 milhões cada) bem mais desenvolvidos e ricos do que nós (e até mesmo a
Irlanda, no mesmo patamar dimensional). No total, os 28 países da União
Europeia perfazem um pouco mais de 500 milhões de habitantes-consumidores,
acima dos 321 milhões dos Estados Unidos e dos 144 da Rússia mas bem longe da
China e da Índia, cada qual com mais de 1.300 milhões. Outras potências
demográficas assinaláveis são a Indonésia (257), a Nigéria (182) ou o Japão
(126). Comparados com estes, Angola (com 25 milhões) ou mesmo a África do Sul
(55) parecem países menores mas, no seu contexto regional, a Turquia (75), o
Irão (79) e o Egipto (91) fazem figura de grandes potências. No total, a
população mundial ascende a mais de 7 mil milhões de almas. Mas a sua muito
desigual distribuição por países, cada qual administrado por um governo (mais
ou menos correspondente a uma sua escolha colectiva), coloca problemas de
gestão delicados para se atingirem melhores níveis de bem-estar, com mais
rápido crescimento das regiões atrasadas e sem prejudicar ainda mais os
equilíbrios ambientais, já tão afectados pela indústria, a mecanização do
transporte, a vida urbana e a exploração dos recursos naturais quase sem regras
ou limites. A potência da população (volume e dinamismo) é, pois, um dado de
primeira grandeza para a análise económica, embora nem sempre seja vista
enquanto tal. A “bomba demográfica” é também um capital, uma variável quase
incontrolável, um dado geoestratégico e uma arma política.
Em Portugal (metropolitano), éramos 6 milhões em
1911 e menos de 9 milhões em 1960, quando já estávamos com um crescimento
demográfico “moderno” (i.e., escasso) mas entretanto a esperança de vida
aumentou muito significativamente, passando de 67 anos em 1970 para 80 anos em
2014, devido às melhorias observadas na higiene, saúde, trabalho e ao aumento
do rendimento económico nas famílias.
Como em todos os países mais desenvolvidos, a “terciarização” da economia e do emprego
deu-se também em Portugal. As pessoas activas das profissões industriais
aumentaram até aos anos 80, em termos absolutos e relativos, mas a partir daí a
“desindustrialização” começou a actuar, passando aquelas de 41% do total em
1981 para 35% em 2011. No mesmo lapso de tempo, os vários profissionais do
comércio e serviços (incluindo os funcionários públicos) passaram de 40 para
63% e os agricultores e pescadores de 19 para apenas 2% do total (eles, que
representavam 44% da mão-de-obra em 1960!). A integração europeia (apesar dos
dez anos de prazo de transição), a concorrência dos produtos industriais
fabricados no Oriente e o desenvolvimento do comércio mundial (também nas
prestações de serviços além-fronteiras e no turismo) bateram o toque-de-finados
de uma indústria pouco qualificada como era a nossa. O “mundo operário” (e os
seus imaginários, que seduziram várias gerações) pertence agora ao passado. Em
contrapartida, as mulheres estão hoje inteiramente integradas no mercado de
trabalho (embora pior do que “eles”): em cada 100 trabalhadores (H+M), 52 são
mulheres (ou seja: em paridade com a fracção que representam na população
total). E a escolarização progrediu acentuadamente, permitindo alguma
mobilidade social ascendente (quantas vezes ilusória): a percentagem da
população com formação superior subiu de 7 para 17% entre 2001 e 2014 – o que
tende a aproximar Portugal dos seus vizinhos, com a consequência inevitável de
um apelo aos “terceiro-mundistas” para que venham progressivamente substituir
os portugueses de origem nos trabalhos mais duros e mal pagos, numa iníqua
“divisão étnica do trabalho” que, no entanto, pode ir compensando a quebra
demográfica dos nacionais. Mas os pensionistas portugueses representam hoje 41%
da população, quando eram apenas 25% em 1981.
Quanto à riqueza
socialmente produzida pelo sistema económico vigente – agora unificado em
todo o planeta –, ela cresceu exponencialmente nas últimas décadas mercê dos
avanços da ciência e das técnicas, do aproveitamento de novas formas de
energia, do desenvolvimento empresarial, do crescimento dos mercados, mas
também provavelmente devido a um acréscimo financeiro algo aventureirista,
sector em que se deixaram de observar regras prudenciais que os negócios
bancários anteriormente cumpriam. Sem preconcebermos os efeitos destes
mecanismos, registemos contudo que as diferenças de rendimento entre grupos
sociais no interior dos países e entre países e regiões do planeta se mantêm
extremamente acentuadas – e ressentidas como injustas, sobretudo numa época em
que a informação e o conhecimento se tornaram muito mais acessíveis a largas
camadas populacionais.
Sabendo embora que mais correcto seria medir estas
comparações internacionais em “paridades de poder de compra”, é mesmo assim
elucidativo conhecer que, sendo o PIB per
capita mundial de quase 10 mil dólares US (para o ano de 2015), ele atinge
na União Europeia um valor superior a 31 mil, na América do Norte 54 mil, na
América Latina e Caraíbas 8 mil, no Médio Oriente e Norte de África 4 mil
(excluindo os países ricos da região) e na África sub-saariana somente 1.500
dólares. Referindo agora alguns países isoladamente: Estados Unidos, mais de 55
mil; Suécia, 50 mil; Alemanha, 41 mil; Portugal, 19 mil; na Rússia (e Turquia)
registam-se 9 mil; e em Moçambique apenas 525 dólares por habitante. E note-se ainda
que, no caso português, esta medida do produto resultante do desempenho do
sistema económico terá aproximadamente duplicado o seu valor desde 1990 até
agora, apesar da recessão e da fraca retoma dos últimos anos.
A questão das desigualdades
sociais é muito controversa e atravessada por insondáveis preconceitos
ideológicos. Em todo o caso, subsistindo no mundo e em Portugal bolsas de
pobreza profunda e dado que a riqueza social continua a aumentar, é provável
que a distância entre os mais pobres e os mais ricos se acentue, a despeito da
atenuação que as “políticas sociais” possam conseguir. Segundo um estudo de
Carlos Farinha Rodrigues com base em dados do Eurostat, Portugal seria o
segundo país com maior grau de desigualdade económica da Europa; acima do valor
médio deste conjunto de países situam-se também nações como o Reino Unido ou a
Itália, mas abaixo desse mesmo patamar (isto é, menos inigualitárias) estão a
Alemanha, a Dinamarca, a Suécia e várias outras. A Suécia é frequentemente
referida como “case study” de sucesso:
escolarização avançada (e precoce, desde 1840); eficácia de um Estado
democrático forte, com integração do movimento operário; neutralidade externa
(mas armada); abertura nas trocas económicas internacionais; e, talvez sobretudo,
a capacidade de ter criado e sustentado uma indústria forte e autónoma (na
mecânica, electricidade, etc.), que foi capaz de suportar a forte concorrência
alemã – sendo sobre tais bases que está sendo capaz de conservar a sua
invejável riqueza: tudo, uma história bem diversa da portuguesa.
É muitas vezes referida a baixa produtividade da nossa economia (produtividade do trabalho, horária,
per capita, eficiência do capital
investido, etc.). Este problema é sempre evidenciado pelos números das trocas
externas. Em décadas passadas, o crónico défice da balança comercial era
compensado pelas remessas dos emigrantes (do Brasil no século XIX). Nos últimos
anos, a evolução dos saldos da balança externa de bens e serviços mostra
valores sempre negativos: entre 1995 e 2011 este défice oscilou entre 5 e 17
mil milhões de Euros; e apenas no contexto austeritário de 2013-2015 se
verificou um anémico surplus das
nossas exportações sobre aquilo que adquirimos ao estrangeiro.
Tentemos referir agora a dinâmica do crescimento económico e não tanto os dados da sua
estrutura. Um aumento da riqueza produzida pela economia contemporânea de 3 a
4% ao ano proporciona geralmente uma pequena melhoria do nível de vida da
população, uma criação de novos empregos que supera aqueles que desaparecem
(por força da modernização tecnológica, alguma recessão sectorial, etc.) e uma
disposição optimista que estimula o investimento produtivo. É desta ordem de
grandeza a previsão do FMI do crescimento da economia mundial para o ano de
2017. Taxas de crescimento do produto de 10% ao ano – que permitiriam duplicar
a riqueza social numa década –, como há pouco tempo se verificavam em Angola,
no Brasil ou na China (ou na URSS em certas épocas, mesmo descontando a
manipulação das contas, habituais nesses regimes), são situações
extraordinárias, só possíveis em especiais circunstâncias e que em geral trazem
consigo outros fenómenos gravosos, que só mais tarde se tornam perceptíveis
(êxodos populacionais, urbanizações apressadas, agressões ao meio ambiente,
etc.). Mas subidas anuais do PIB de 1 ou 2%, como se tem vindo a registar em
Portugal no século actual, correspondem a uma quase estagnação que pode ter
efeitos diferenciados em função de outras variáveis.
Por exemplo, a desvalorização do poder aquisitivo da
moeda vai erodindo (ou, às vezes,
laminando brutalmente) os rendimentos nominais auferidos, sobretudo os mais
fixos, como as pensões ou as rendas. A “espiral de preços e salários” foi uma
das suas manifestações mais conhecidas no último meio-século. Por exemplo, as
intervenções do FMI em Portugal depois da revolução de 74-75 incidiram
principalmente sobre a “desvalorização interna” (com taxas de inflação da ordem
dos 20% que “comeram” os aumentos salariais que haviam sido concedidos),
combinada com a “desvalorização externa” do Escudo para favorecer um pouco as
exportações para o estrangeiro, expediente que aliás se manteve ainda nos
primeiros anos da nossa adesão à CEE com a chamada “desvalorização deslizante”.
Mas o bloqueio férreo de preços e salários, à maneira do dr. Salazar, também
tem custos tremendos no longo prazo, pelo fechamento e isolamento do exterior a
que condena as sociedades. Diga-se, num parêntesis, que os regimes socialistas
estatais só puderam subsistir durante várias décadas numa autarcia deste tipo
devido à grande escala de uma URSS ou de uma China e ao enorme atraso que
registavam em relação aos países industrializados do seu tempo. (E recorde-se o
caso de Cuba ou da Coreia do Norte, sem dimensão interna para seguirem o mesmo
modelo.) Também parece que um excesso de circulação monetária anuncia a
inflação a prazo relativamente breve. Mas dizem os entendidos que uma pequena
dose de inflação monetária (da ordem dos 1 a 2% ao ano) é finalmente mais
funcional ao crescimento económico do que seria uma inflação nula, com riscos
de entrada no fenómeno inverso e ainda mais nefasto da deflação.
A fixação da paridade
cambial das várias moedas entre si tem sido até agora uma prerrogativa dos
governos nacionais embora, naturalmente, ela esteja em última análise
dependente da força ou da fraqueza das economias nacionais e das reservas
monetárias existentes. Esta é uma variável que permite alguma margem de manobra
para a pilotagem das economias a este nível mas a sua utilização também se
presta a manobras especulativas, tão ou mais acentuadas do que o “jogo
bolsista” ou nos mercados de matérias-primas. Uma das dificuldades estruturais
da actual “zona Euro” é haver um banco central (o BCE) que conduz a política
monetária – taxa de juro de referência, taxa de câmbio, regulação do crédito
bancário e massa monetária em circulação (ou seja, a impressão de “papel”) – mas
não tem os instrumentos de política económica habituais de um governo: controlo
das despesas públicas, do défice orçamental e da dívida, ou capacidade para lançar
novos impostos. Pelo seu grau de integração interna, a economia da UE é “uma
unidade” face às outras potências mundiais; mas não funciona internamente como
elas, outrossim como um conglomerado de interesses diversos e frequentemente
opostos entre si. Costuma dizer-se nestes casos: um gigante económico, mas um
anão político.
E quanto a ganhos ou lucros? As margens de benefício dos agentes económicos variam
bastante consoante o sector de actividade mas não são ilimitadas. Vejamos
alguns exemplos: no sector do livro, era habitual o autor ficar com 10% do
valor final das vendas, o distribuidor com 20%, o livreiro com 30% e o editor
com 40% – sendo este último verdadeiramente o empresário de tal negócio, já que
era ele que custeava a edição e pagava todos os encargos de tipografia, etc. Se
a obra era um flop, ninguém ganhava,
mas era ele quem perdia o investimento e ficava com o stock de “monos”!
Em outros ramos do comércio de retalho era frequente
os clientes pedirem “um descontozinho”, ficando na expectativa de uns 5 ou 10%
“para amigo” (o que hoje tomou a forma de “promoções”, “saldos” e outros
“preços de oportunidade”). Tendo em conta as despesas fixas (de instalações, de
pessoal, encargos financeiros, etc.) e o valor da mercadoria recebida (sob
vários regimes de responsabilidade ou titularidade), pode pensar-se que um
plano de negócios nesta área seria sustentável com margens de lucro realistas
da ordem dos 30% do total da facturação prevista ou registada.
Na indústria, com a exigência de vultosos
investimentos iniciais na maquinaria, é possível que um retorno anual de 20% do
valor investido (recuperando a “mise”
em um quinquénio) fosse já convidativo – isto, desde que houvesse boas
expectativas de venda do produto final. E na exploração agrícola ou no negócio
imobiliário talvez o rendimento anual possa ser ainda menor. Não é com 10% das
disponibilidades próprias (o “dízimo”) que certas seitas religiosas prometem
aos fiéis o ganho da vida eterna?
Mas a partir de que nível lucrativo se poderá
considerar especulativa a aquisição
monetária obtida numa só operação? O cristianismo condenou o “preço do
dinheiro” – o juro – como pecado de agiotagem,
condenando pela mesma ocasião os judeus que o praticavam. E o Islão seguia o
mesmo preceito até há poucas décadas, antes das suas elites financeiras terem
descoberto as delícias dos petro-dólares.
Os negócios de compra-e-venda (de propriedades,
empresas, obras raras, invenções, direitos, etc.) são os que geralmente
proporcionam alguns “lucros fabulosos” com percentagens de ganho sobre o valor
investido de várias dezenas de pontos percentuais. Mas quando se entra na casa
das centenas, é já de desconfiar que se trate de “negócios-da-China”. Esta
expressão popular continha tanto de alusão aos mercadores europeus
(portugueses, antes de outros) que exploraram esse comércio marítimo de longa
distância – mais económico do que o das rotas das caravanas e sem o risco dos
salteadores árabes ou afegãos – como à piratagem que então pululava por aqueles
mares. Em qualquer dos casos, o saque era acto corrente; como provavelmente
hoje acontece à volta dos “off shores”
e nas diversas modalidades de “branqueamento” ou “lavagem” de dinheiros
arrebanhados de forma ilegal que, segundo alguns, atingirá a astronómica cifra
de vários triliões de dólares. E num mundo financeiramente globalizado é por
vezes muito ténue a diferença entre concorrência fiscal (procurando atrair
investimentos externos para o seu país ou cidade) e “paraísos fiscais” (onde
não se pergunta de onde vem o dinheiro e quem são os verdadeiros mandantes).
Tocamos aqui a questão dos impostos cobrados pela máquina do Estado para financiar as suas
actividade e o sustento dos seus funcionários, gestores e governantes. Há dois
anos, Adriano Moreira produziu uma declaração com ondas de choque afirmando que
o país se encontrava sob “fadiga fiscal”. De facto, a carga fiscal em Portugal
corresponde hoje a qualquer coisa como 25% do PIB, quando era de 22% em 2010.
Isto apesar das receitas do Estado estarem sempre aquém das suas despesas.
O imposto sobre o trabalho foi uma novidade trazida
pela nossa Modernidade. Uma das razões que logo indispôs o movimento operário
contra os novos líderes da República foi, além de uma liberal lei da-greve-e-do-lock out e da fuzilaria de Setúbal, a
tentativa de criar uma contribuição industrial que também incidia sobre os
salários dos trabalhadores. Até então, o grosso das receitas do Estado provinha
da taxação da propriedade, do consumo e das alfândegas. Agora, segundo números
da OCDE, Portugal tributaria o trabalho (rendimentos dos trabalhadores e
encargos dos empregadores) a um nível de 42% do PIB, mesmo assim abaixo dos 49%
da Alemanha e dos 55% da Bélgica mas muito longe dos 17% da Nova Zelândia e dos
7% do Chile. Com tais diferenciais de custos, adivinha-se como isso poderá
afectar as decisões de investimento em empresas de mão-de-obra intensiva no
mundo globalizado em que vivemos.
Mas falemos então das nossas contas públicas, recuando no tempo para termos uma perspectiva
histórica do fenómeno. Entre 1851 e 1910 o valor da dívida pública anual em percentagem do PIB oscilou entre 37% e um
máximo de 89% (no ano de 1893, na sequência de grave crise), com um valor médio
de 67%. Durante o período da República parlamentar, o valor médio fixou-se em
73% do PIB com um mínimo de 59% em 1920 e um máximo de 87% três anos depois.
Sob a Ditadura Militar e o Estado Novo e com o pulso-de-ferro de Salazar o
valor médio para esse quase meio-século foi apenas de 32%, tendo começado com
74% em 1927 e encerrando com 18% em 1974, apesar da guerra colonial. Com a
Democracia, os valores voltaram a subir: média anual de 42% até à entrada da
CEE; em 2001 atingiu os 111% e agora anda perto dos 130%. Como se vê, o
endividamento público é uma constante portuguesa desde a transição para a
Modernidade, embora muito mais acentuada nas décadas mais recentes depois de
ter estado fortemente atenuada sob a ditadura. Mas, nesses tempos, sempre ouvi
os desafectos ao salazarismo afirmarem que não era crime ter dívidas; crime,
era não ter condições para as pagar, o que parece ser agora o caso, tal o
volume adquirido pelo fenómeno. Por alguma razão a União Europeia estabeleceu o
tecto de 60% do PIB, e grave é Portugal estar agora em mais do dobro desse
valor, embora alguns críticos (os de sempre?) afirmem que a culpa foi dos
credores.
É claro que a dívida pública é o resultado dos défices anuais acumulados, com os
governantes a recorrerem aos empréstimos por não lhes chegarem os quantitativos
cobrados em impostos e outras receitas. Só para citar números recentes, diga-se
que entre 2000 e 2003 e em 2006-2008 o excesso das despesas do Estado sobre as
suas receitas oscilaram sempre entre os 2 e os 4% do PIB; mas em 2004-2005
saltaram para os 6% e em 2009-2010 para os 8% – com alternância de governos de
esquerda e de direita. E sob a “receita da troika”,
o défice público foi caindo mas, como se sabe, ainda não abaixo dos 3%.
O procedimento de recorrer à emissão de dívida para
custear estes insuficientes desempenhos do Estado será racional quando se trate
de verbas para investimento e bens públicos com efeitos duradouros sobre a
qualidade de vida das populações (infraestruturas, saúde, educação, socorro
social). Mas se, para além dos custos de soberania (justiça, diplomacia, defesa
e segurança, funcionamento dos órgãos nacionais), reiteradamente, for sobretudo
para alimentar a burocracia do Estado e as corporações que medram à sua sombra
ou, ainda pior, para pagar os favores com que a “classe no poder” assegura a
sua manutenção, então já podemos considerar desnecessário, nefasto e vicioso o
processo de endividamento público. A dimensão do fenómeno crescerá, os seus
efeitos perversos acentuam-se e sobrecarregam-se injustamente os vindouros ou,
como agora se diz, “empurra-se o problema com a barriga” (antes era: “quem vier
depois, que se amanhe”). Não sendo especialistas, não sabemos dizer qual o
nível de endividamento público aceitável (para não lhe chamar “virtuoso”). Mas
podemos apostar que não deverá ser muito além do tal referencial de 60% do PIB
que nos exige a UE.
A doença do excesso de endividamento atinge também
as famílias, as empresas e os bancos. As primeiras têm vindo a pagar as suas
consequências com a perda de rendimentos resultante do abrandamento do
crescimento económico, a entrega das residências que haviam adquirido a crédito
e a quebra de confiança no país, reagindo com a saída para o estrangeiro dos
que podem fazê-lo, a reclamação de socorros ao “Estado social” ou entregando-se
ao desespero. As empresas comuns desinvestem (salvo quando conseguem algum
subsídio público), comprimem gastos com o pessoal ou fecham as suas portas,
apenas subsistindo e prosperando aquelas aptas e capazes de inserção na “nova
economia”, que são poucas e, sobretudo, criam pouco emprego (com a excepção do
turismo). Mas é particularmente pelas actividades em que a escala empresarial –
de produção e distribuição – é determinante (além da tecnologia e inovação) que
Portugal apresenta o maior défice de desenvolvimento económico. E os bancos
mostram agora – da Itália a Portugal, do Barclays
ao Deutsche Bank, do BES à “Caixa” –
a nossa ilusão sobre a firmeza das bases em que tem assentado a sua suposta
riqueza. Mas até quando poderá o Banco Central Europeu (que financia os bancos
nacionais) continuar a sustentar dívidas externas como a nossa? O turismo tem
vindo a dar uma ajuda aos portugueses, mas todos sabemos das suas fragilidades
intrínsecas, sobretudo na actualidade.
Perante
tudo isto, apetece voltar aos clássicos: «Neither
a borrower nor a lender be. For loan oft loses both itself and friend. And
borrowing dulls the edge of husbandry». Ou seja: “Não peças emprestado, nem
emprestes. Emprestar, é muitas vezes perder o dinheiro e o amigo. Pedir
emprestado, enfraquece o espírito de poupança.” (Shakspeare, Hamlet, Acto I, Cena III)
JF / 15.Out. 2016