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quarta-feira, 31 de julho de 2013

Legislando para os outros: Discursos, larachas & votações...

Era exactamente este o título de uma crónica regularmente inserida nos anos 20 no jornal A Batalha, “diário da manhã - porta-voz da organização operária portuguesa”, dando conta dos debates parlamentares de S. Bento.
Quase um século depois, em vez de discussão de ideias ou debate de opiniões, de novo voltamos a ter no mesmo hemiciclo idênticos comportamentos partidários aberrantes, de mera chicana política, que só desprestigiam os deputados aos olhos da maioria dos portugueses. Os governantes sucedem-se na tribuna, as mais das vezes fazendo afirmações capciosas ou torneando as reais dificuldades nacionais, aplaudidos pela bancada da maioria sempre que conseguem alguma tirada de maior efeito retórico. E as oposições revezam-se no papel de encontrar sempre novas justificações para “deitar abaixo” a acção governativa, vá esta numa determinada direcção ou na direcção oposta. Como no futebol, as picardias e caneladas estão sempre presentes, por vezes até entre fracções rivais do mesmo partido. Pergunta-se, como prova de teste: quantos diplomas terão sido aprovados por unanimidade ou quase-unanimidade da câmara? Adivinha-se que bem poucos. Quantas votações terão sido decididas por um maior número de votos de consciência individual fragmentando a disciplina partidária? Decerto um escasso número. Deverá servir a Assembleia apenas como arena de pugna partidária?
É verdade que o parlamento é um lugar de confronto de correntes de opinião estruturadas existentes no conjunto da sociedade e, nesse sentido, uma instituição insubstituível. Tal como os partidos políticos são a agregação racionalizadora e polarizada do somatório das “ideias” e aspirações existentes entre os seus concidadãos. Mas também acontece que as instituições se deixem apodrecer, bloqueadas numa lógica interna auto-destruidora, e que as intermediações partidárias, blindadas por regras que as favorecem, percam o sentido da representação popular que as originou.
Numa altura de evidente angústia do país perante as condições económico-financeiras em que vivemos, parecem deploráveis alguns dos comportamentos exibidos ultimamente pelos actores políticos. Três exemplos, apenas. O primeiro, do lado da coligação governamental, ao sujeitar pessoas como Vítor Gaspar, Álvaro Santos Pereira, Rui Machete, Maria Luís Albuquerque, sobretudo Paulo Portas, e ainda o próprio Passos Coelho, aos gestos públicos a que todos nós assistimos, com apoucamento pessoal e desprestígio para a função. O segundo diz respeito ao maior partido da oposição: com aquela nota-à-imprensa saída a meio da tarde de uma quarta-feira negocial acerca da “intransigência” do governo, corrigida horas depois no comunicado conjunto; com a inacreditável mobilização de Mário Soares e dos seus amigos sobre o “líder”; com os termos do seu “Compromisso de salvação nacional” divulgados na sexta-feira do rompimento, que parecia mais um caderno reivindicativo sindical do que um (demagógico) programa eleitoral; e com o rápido “esquecimento” da derrota da sua estratégia de “eleições já”, substituída agora pelos ataques pessoais à “incompetência” do primeiro-ministro e pelas acusações de “mentira” feitas aos mais frágeis membros deste governo – tudo isto leva os cidadãos a não acreditarem minimamente no PS como real alternativa para suceder à coligação PSD-CDS, restando-nos aguardar pelos resultados eleitorais quando chegar a hora. E o terceiro exemplo de desfaçatez é-nos dado pela dinâmica já em curso quanto às próximas eleições autárquicas. Já não bastava a caricata situação jurídica criada pela lei de limitação de mandatos e o espectáculo indecoroso de alguns “dinossauros” locais em manobras de prosseguimento de “obra” em novos territórios; ainda subsistem dúvidas quanto aos resultados das acções judiciais interpostas por certas autarquias relativamente à sua fusão ou recomposição, que podem vir a perturbar o escrutínio; e já estamos a ter de “gramar” com três meses de antecedência a propaganda eleitoralista dos partidos e candidatos locais (com gastos pagos sabe-se lá por quem), ávidos por esse pequeno naco de poder, ao mesmo tempo que os jornalistas vão alimentando as quezílias e comentadores e especialistas vão afinando as suas análises acerca da “leitura política nacional” que será possível fazer dos resultados desta consulta. Quando chegará a hora de fazer descoincidir no tempo este tipo de eleições, para que elas tenham apenas o impacto local que devem ter?
Também não passa um mês, quiçá semanas, sem que surjam na comunicação social notícias de novos “buracos” que comprometem as finanças públicas. Já perdemos a conta aos milhões; já só registamos cifras de milhares de milhões (de Euros) – seja de contratos swap “entoxicados” feitos por empresas do Estado, seja de Parcerias Público-Privadas mal orçamentadas, seja de “rendas excessivas” pagas a sectores protegidos, ou ainda descontrolos observados nas Entidades e Fundos Autónomos ou na Administração Regional e Local. Embora tudo isto seja matéria cuja complexidade de manuseamento exige conhecimentos de especialistas, a ideia que sobra para os simples cidadãos é a de que, desde há muitos anos, a gestão-da-coisa-pública tem andado sempre mal-tratada ou em mãos de gente que se move por outros interesses que não os do “bem comum”. A suspeita de corrupção é sempre injusta e nefasta quando se aplica a toda uma categoria social mas a impunidade dos compadrios (político-económico-judiciais) deixa pairar as mais sérias reservas, em cada vez maior número de pessoas, sobre a credibilidade dos discursos políticos que nos são servidos. Por exemplo: não há dúvida que, com a benevolência do Presidente, o governo conseguiu a pirueta de transformar um quase-esfacelamento num aparente revigoramento para prosseguir a legislatura. Mas toda a gente se pergunta como irá sobreviver à próxima avaliação da troika, ao próximo orçamento do Estado, ao desemprego do próximo Outono-Inverno e ao financiamento das despesas do Estado em 2014, face a tamanhas dificuldades internas e a tantas incógnitas no plano externo.
Estes descaminhos das finanças públicas não se devem unicamente à cupidez dos políticos e ao predomínio dos interesses partidários. As três últimas décadas foram marcadas no mundo inteiro por uma aventura financeirista sem precedentes. Não emprego o termo “neo-liberalismo” porque o mesmo tem sido usado à exaustação como bandeira de combate político do estatismo de esquerda que sempre sonha impor à sociedade as suas concepções iluminadas ou vanguardistas (aproveitando também sorrateiramente para desacreditar a ideia de autonomia contida no termo liberal…). Mas é verdade que, com a globalização tecnológica e económica, e na ausência de graves conflitos mundiais (pós-descolonização, pós-guerra fria), se abriram novos e enormes espaços de negócio assentes em duas premissas fundamentais: o consumismo de massas (estimulado pelo marketing e a publicidade) e o crédito exagerado.
Os políticos aproveitaram a oportunidade para “cavalgar a onda” e estreitaram rapidamente laços de interesses venais com os homens-de-negócios, cada qual ao seu nível: governamental, com administradores bancários e grandes empresários; regional ou local, com gerentes de agências e as “forças vivas” da terra. Foi óptimo encher-se o país de auto-estradas e nelas rolarem potentes automóveis e motos a 180 à hora! Dá gosto ver as piscinas e pavilhões modernos nos mais pequenos municípios de província! Mas as contas dessas obras estão agora por pagar. E, tirando algum incómodo provocado pelas campanhas investigatórias da imprensa livre (mas nem sempre isenta) e uns raros casos-de-justiça, nenhuma sanção parece recair sobre quem, ao longo do tempo, foi tomando decisões que agora provocam pesados custos e sacrifícios aos contribuintes e à maioria da população. Por tais decisões, “ces gens là” – a que Wright Mills hoje chamaria provavelmente “complexo político-negocial” e que outros mais canónicos prefeririam designar por classe dirigente (que deve ter correspondência aproximada com os cem mil detentores dos mais elevados rendimentos, num país de dez milhões como Portugal) –, essa gente, dizíamos, deveria agora ser “chamada à pedra” para pagar pelas suas responsabilidades no festim.
Sabe-se, naturalmente, que também existe a “finança internacional” – que porém (não o esqueçamos), há de incluir parte do aforro dos portugueses, em busca de melhor remuneração – e que estados economicamente poderosos impõem sempre as suas condições aos mais fracos. Mais uma razão para o povo português exigir dos seus representantes, em doses elevadas, competência, inteligência e probidade. E não vale a desculpa de que apenas são “o espelho da nação”. Afinal, não são eles os nossos eleitos, isto é, supostamente, os melhores?
Os políticos vão agora de férias. Mais valia que por lá ficassem… (desde que a política começasse a ser feita, um bocadinho, por todos nós).
JF / 31.Jul.2013

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Abalos políticos

Estava esta crónica já escrita, à espera da posse dos ministros remodelados pela proposta Passos-Portas de reentendimento da coligação, quando – como todos os comentadores e agentes políticos – fomos surpreendidos pela comunicação ao país de 10 de Julho do Presidente da República. Mas vamos por partes.
Como fenómeno observável por comentadores e analistas, o tropeção ocorrido na vida política portuguesa nos primeiros dias de Julho foi um case study. A carta de despedida do ministro Gaspar é uma notável peça, reveladora da maneira como funciona um governo e de como um tecnocrata como ele, que não é um político profissional, sai vencido pelas insídias de colegas, pelas resistências institucionais opostas a qualquer mudança mais profunda que se tente fazer e, finalmente, pela própria consciência dos limites das suas capacidades face aos insucessos obtidos em vários domínios decorrentes da actuação tida (sobretudo na economia e no emprego). As cenas da tomada de posse da sua substituta (com um caso de swaps à perna), da “irrevogável” demissão de Paulo Portas, da subsequente declaração ao país de Passos Coelho (“não me demito”) e do atabalhoado processo que se seguiu levou muitos observadores a falarem de “garotices”. Mas, como pertinentemente reagiu o novo colunista do Público João Miguel Tavares, é um erro tratar dessa forma tais comportamentos. Também – a nosso ver – não se trata de “irresponsabilidades”, pois cada uma das declarações e gestos destes principais actores políticos nos encalorados primeiros dias de Julho corresponderam a actos deliberados e racionais no campo de possibilidades de decisão que esses agentes individuais têm à sua disposição. O problema é que essa lógica e essa racionalidade se definem em relação aos interesses de poder próprios de cada um desses actores – sejam individuais, de “grupo” ou partidários – e não, de maneira nenhuma, em relação a um qualquer tipo de “superior interesse nacional”, chavão discursivo com que, não obstante, somos por eles bombardeados a cada passo.
De facto, nessas acções: as informações da conjuntura internacional (económica, diplomática, europeia, etc.) estão presentes “como contexto”; os dados que vão sendo divulgados sobre o andamento da vida económica e financeira do país estão igualmente presentes “como contexto”; as barreiras legais que o Tribunal Constitucional e outras instâncias judiciárias vão erguendo a determinadas medidas decretadas pelo governo são encaradas como “constrangimentos do contexto”; as negociações da “concertação social”, as tomadas de posição dos “parceiros sociais” e os pronunciamentos do Conselho Económico e Social ou do Provedor de Justiça são ainda tomados em conta no quadro da “análise política de situação”; idêntico tratamento é dado aos scores das sondagens de opinião e aos movimentos de protesto nas ruas (cujos líderes decerto estarão sob vigilância dos “serviços de informação” e serão objecto dos seus relatórios secretos); e as tomadas públicas de posição das forças partidárias da oposição são igualmente consideradas como “elementos de análise da situação”, o mesmo acontecendo com as posições, públicas ou ditas com reserva, do Presidente da República. Porém, tendo tudo isto em consideração, as decisões e a argumentação daqueles principais actores políticos são em última instância determinadas pelas exigências momentâneas da luta que travam entre si – e, simultaneamente, contra outros actores que cobiçam ou querem condicionar a sua acção na principal instância de poder de Estado –, com o mínimo de desgaste para a sua sobrevivência futura.
Isto aplica-se ao PSD e ao CDS que há dois anos assumiram a governação, mas igualmente ao PS, como putativo aspirante a tomar parte no próximo governo, que nem esse tempo demorou a considerar esquecidas as responsabilidades do consulado de Sócrates no avolumar da crise e a cortar a hipótese de uma solução de “salvação nacional” com a sua imprudente declaração (mas reveladora do que o move) de que só regressaria ao governo após novas eleições. Este foi um erro de palmatória só explicável pela fragilidade do líder e pelas pressões internas para voltar ao poder a qualquer preço e o mais rapidamente possível, sem o mínimo “exame de consciência” das suas responsabilidades pelas práticas políticas desenvolvidas desde há longos anos. Mas mesmo fora de uma emergência em que só uma “grande coligação” poderia ser resposta, as dificuldades das finanças públicas portugueses exigiriam certamente um pacto entre estas principais forças políticas com validade para duas legislaturas, pelo menos, em que se prosseguissem políticas coerentes em certos domínios-chave como a justiça, os impostos, a segurança social, os serviços públicos, a gestão da dívida ou os equilíbrios orçamentais, cujas leis estruturantes deveriam merecer o consenso partidário, independentemente de quem estivesse no governo ou na oposição.  
As reacções bolsistas e “dos mercados” a esta mini-crise governativa de Julho mostraram talvez a muita gente o que se seguirá à convocação de eleições antecipadas, com o inerente adiamento da próxima avaliação da “troika” e congelamento do respectivo cheque, da inevitável “reforma do Estado”, da execução e da preparação do orçamento, de um prolongado governo-de-gestão com as datas do resgate de vultuosos empréstimos a aproximarem-se, etc. – sabendo nós ainda por cima que, de novas eleições (já, ou mais adiante) só sairá uma legitimidade governativa mais abalada devido a uma ainda mais fraca participação eleitoral (modo que resta aos cidadãos para expressarem a sua crítica aos principais partidos políticos), e de novo uma complicada negociação inter-partidária para a formação de um governo e a fixação de um qualquer programa de actuação, que nunca poderá ser muito diferente do actual, vista a envolvente externa.
A “saída democrática” que todos dizem ser o modo de resolução de um impasse político – as eleições –, sabemo-lo de antemão que nada resolve enquanto tivermos este sistema partidário, que é um dos principais responsáveis pela crise actual e tem até agora mostrado ser incapaz de se auto-reformar.
A extrema-esquerda e os sindicatos cumprem o seu papel de crítica e denúncia do agravamento da situação económica em que vivem as categorias mais afectadas pela crise, mas são também responsáveis por muitos bloqueamentos e micro-corporativismos em que é ainda fértil a sociedade portuguesa. De certa maneira, enquadram e canalizam o protesto popular “anti-políticos” que, por exemplo, no Brasil se exprimiu nas manifestações inorgânicas monstras de Junho passado e em outros países europeus tem sido capitalizado por partidos populistas ou de extrema-direita. Mas as soluções para que apontam (como, de resto, em parte, o próprio PS, enquanto partido de oposição) nada ajudam a perceber qual seria a “outra política” que poderia reverter a crise actual – a menos que fosse o empobrecimento radical resultante de uma saída abrupta do Euro, transformando-nos numa espécie de Albânia da Europa ocidental (que aliás já constituiu um modelo ideal para alguns dos ex-maoistas que agora nos governam). Como escreveu Paulo Trigo Pereira (no Público de 7.Julho.2013), julgamos que “Portugal não tem, nem terá proximamente, crescimento económico que sustente simultaneamente o Estado social tal como hoje existe, a regionalização e municipalização no figurino actual, os juros da dívida pública, os encargos com as parcerias publico-privadas e um sector público empresarial que se mantém deficitário”.
Agora, após a intervenção-trombose do Presidente da República, eis-nos numa nova situação de imbróglio político, em patamar superior. De uma assentada, o Presidente Cavaco “entalou” os líderes de três forças políticas que contam para o governo – o que tanto pode ter sido uma acção vingativa de humilhações antigas como uma resposta à presumível larga maioria do país-não-político que já não tem paciência para suportar estas quezílias partidárias e geme sob os efeitos da crise económica. Mas é uma jogada de alto risco, para a qual se podem prever duas saídas, ambas com pesados custos para a população.
A 1ª, mais transparente, seria a de forçar aqueles três partidos a aceitar por um ano um governo de tecnocratas, o qual tentaria alguma renegociação externa para aliviar a austeridade e relançar o crescimento, esperando pelo “milagre” de uma evolução das políticas da Alemanha e da União Europeia mais favoráveis aos países periféricos endividados mas que, ao mesmo tempo, faria o “trabalho sujo” dos novos cortes na despesa pública que aí vêm. Para além da aceitação do Tribunal Constitucional, esta solução precisaria antes de mais da “luz verde” da Assembleia, que só obteria se os maiores partidos entrevissem a possibilidade de “voltar à sua” daqui a um ano, remetendo o ónus das desgraças para esse governo patrocinado por Cavaco Silva. Em contrapartida, este esperaria que nesse prazo os partidos mais perturbados por esta sua intervenção pudessem renovar-se internamento elegendo novas lideranças.
A 2ª, e mais provável, é a que tal proposta seja recusada pelos três partidos do arco da governação e o governo de Passos Coelho peça a demissão, não se mostrando a Assembleia disponível para outras experiências governativas. Neste caso, haveria mesmo eleições a curto prazo, mas com Cavaco Silva em posição de força a responsabilizar os partidos pelos gravosos malefícios que já nos anunciou. Nesta, como na primeira hipótese, o Presidente jogará sobre os efeitos de implosão/renovação que esta crise possa causar no interior dos partidos políticos principais.
Por tudo isto, as previsões actuais terão de ser de pessimismo. A não ser que, por uma “iluminação” fantástica e surpreendente, a “classe política” cortasse 30% nos seus vencimentos e todos os benefícios-de-função, e reduzisse significativamente o número de deputados, vereadores, assessores e outros estipendiados pelo orçamento público, para que pudesse apresentar-se perante o povo com alguma credibilidade no pedido de sacrifícios.     
JF / 11.Jul.2013

segunda-feira, 8 de julho de 2013

A Primavera Árabe desembocou em tragédia interminável na Síria. E no Egipto...

Há dois anos, muitos se entusiasmaram com os levantamentos populares na Tunísia e no Egipto, que eram aparentemente obra das novas classes médias urbanas, jovens e escolarizadas, que se referiam mais à liberdade, à igualdade e à democracia, criticando os poderes corruptos há muito instalados, do que a querelas de facções religiosas ou a sentimentos anti-ocidentais. Já no Iémen, o poder cedeu a movimentos de massa chiitas, inscritos no âmbito de tensões e conflitos religiosos transnacionais. E na Líbia a revolta urbana contra Kadafi rapidamente evoluiu para uma guerra civil convencional, com apoios e influências externas, que acabou por exportar algum tipo de terrorismo islâmico mais para sul, abrindo-se uma procupante nova frente de luta nas regiões desérticas do Mali e do Niger com tendência a alastrar para a Nigéria, o Chade e o Sudão, talvez também para a Mauritânia.
Na Síria, apoiada pelo Irão e pela Rússia, a revolta começou de maneira idêntica, com corajosas manifestações de rua contra o poder discricionário do partido Baas e do clã da família Assad. Mas o complexo entrecruzamento de forças e interesses actuando no país, internos e externos, foram-no arrastando para situações de violência cada vez mais brutais. Do lado do governo, o emprego da aviação, de artilharia e parece que também de armas químicas há muito deitou por terra a argumentação oficial da necessidade de repor a ordem; do lado das forças de contestação, para além da coragem dos combatentes, os atentados bombistas, o uso de técnicas da guerra de ruas e as notícias da chegada de numerosos “voluntários” foram suficientes para se perceber que, a partir de certo momento, tal resistência implicava a existência de centros de treino e de apoios materiais e logísticos de tipo profissional que só podiam provir de importantes potências externas. Como resultado, que tende a eternizar-se, temos um novo conflito militar instalado numa zona altamente perigosa e o fenómeno dos milhares de refugiados a atravessarem a fronteira que lhes parece menos hostil.
Com a precária estabilização política que se seguiu à queda dos regimes autocráticos nos outros países, a esperançosa Primavera Árabe dos apelos à liberdade e a um verdadeiro governo do povo parece ter chegado a um impasse ou, quiçá, aos seus limites possíveis.
De facto, olhando um pouco para trás, para a primeira metade do século XX, podemos lembrar-nos como o pan-arabismo apenas preparou o terreno para os povos do Norte de África e do Próximo Oriente derrubarem na primeira oportunidade os sultões, beis e monarcas que há muito tempo os governavam com mão-de-ferro, ao mesmo tempo que começaram a rejeitar o controlo político e o apossessamento das suas riquezas económicas (petróleo, antes de tudo) por parte das potências ocidentais (Inglaterra, França, Espanha, Itália e mesmo a Alemanha). Foi através deste processo e de algumas lutas ferozes (por exemplo, a comandada por Abd-el-K’rim no Marrocos) que as populações deste vasto arco mediterrânico (e mais além), de religião islâmica, terão tomado consciência da sua identidade colectiva, face aos ocidentais, mas também face aos eslavos (Rússia) e aos indús, que eram as grandes potências demográficas e culturais que geograficamente os constrangiam, já que nada receavam vindo da África negra, que desde há séculos eles se haviam habituado a dominar, progredindo ao longo das duas costas através do comércio (escravos incluídos) e da religião. Mas deste inicial pan-arabismo apenas restou um vaguíssimo “socialismo árabe”, corporizado nos partidos políticos Baas que conseguiram alcançar o poder em alguns países através de golpes e sedições e aí instauraram regimes laicos, todavia respeitadores do Corão e com alguma tolerância para as outras religiões. Porém, estas mudanças ocorridas por volta de meados do século já foram conseguidas com algum tipo de aliança ou fusão com uma corrente política diferente: a dos nacionalismos árabes.
De certa maneira, esta outra ideologia difundiu-se através do sucesso da revolução turca, na sequência da derrota deste terceiro “império central” na 1ª Guerra Mundial (ao lado da Alemanha e da Áustria-Hungria), da queda do sultão, da proclamação da República em 1922 e da ascensão de Kemal “Ataturk” (o “pai dos turcos”), oficial do exército e líder do movimento dos Jovens Turcos. Em 1952 os militares, com Naguib e logo depois Nasser, derrubam o rei do Egipto e algo de semelhante ocorre no Iraque em 1954. Na Síria, o partido Baas assume o poder por golpe-de-estado em 1963; e em 1969 são os militares que afastam o rei Idriss na Líbia. Em todos estes casos (e com influências menos bem-sucedidas em outros países), os militares profissionais têm um papel central, movidos por uma ideologia nacionalista, com laivos do antecedente pan-arabismo e sempre críticos para com o Ocidente.
Mas quem eram e o que queriam estes militares, e que futuro almejavam para os seus países? Do ponto de vista sociológico, parece tratar-se, em primeiro lugar, de um corpo profissional moderno, no contexto do arcaísmo social envolvente e a despeito de se assumirem como herdeiros do antigo espírito guerreiro dos defensores do Califado. De facto, são homens saídos do povo e das classes burguesas comerciantes, distantes das famílias aristocráticas ou das hierarquias religiosas, e com desejos de ascensão social pela via da política de Estado. Além disso, ao longo de décadas, estes homens foram sendo treinados militarmente segundo os conceitos de guerra e de disciplina ocidentais, marcados pela racionalidade das decisões, a eficácia e as recompensas da vitória após dolorosos sacrifícios. Este espírito, tê-lo-ão adquirido principalmente de ingleses ou franceses, como chefes ou como adversários, nos cenários das duas Guerras Mundiais ou nas punições sofridas aquando de revoltas ou levantamentos contra as potências Ocupantes ou “Protectoras” das suas monarquias.
E que programa politico se propuseram levar a cabo uma vez chegados ao poder? Decerto que, inicialmente (tal como pensavam os mais generosos da ala terceiro-mundista do nosso MFA), procuraram modernizar os seus países, nacionalizando os sectores-chave da economia (petróleo, canais de circulação internacional, empórios de inport-export, etc.), investindo em infraestruturas e na elevação do nível sanitário e educacional da população. Mas, perante as dificuldades, a lassidão do exercício do poder e os constrangimentos externos (tanto de adversários como de concorrentes e mesmo de “amigos”), rapidamente se consagraram sobretudo à tarefa de consolidar o poder próprio do líder e da sua clique através de benefícios concedidos à respectiva base social de apoio (forças armadas, partido único, etnia, tendência religiosa, zona geográfica de origem, etc.), e a perseguir os discordantes e opositores.          
A URSS, que ainda no tempo de Lénine havia “metido na gaveta” o internacionalismo típico do movimento operário e passara a encarar os movimentos nacionalistas como potenciais aliados na luta contra o que chamavam de imperialismo capitalista, não perdeu a ocasião para encontrar novos aliados e apoios na região, mediante acordos diplomáticos, fornecimento de armamento e envio de técnicos. Na mesma jogada, colocou-se ao lado dos palestinianos na luta destes contra Israel, abandonando a simpatia que desde há décadas o movimento de retorno à Terra Prometida e a criação de comunidades agrárias (kibutz) suscitara entre o militantismo socialista internacional. Entretanto, entrara-se na “guerra fria” e, dialecticamente, graças também ao peso do lobby judaico americano, os EUA foram-se cada vez mais empenhando num apoio sem falhas a Israel, criando-se ali mais um teatro de confrontação estratégica Leste-Oeste, que já tinha elementos conflituais locais mais do que suficientes para (como aconteceu) o desencadear de sucessivas guerras convencionais – curtas, devido à superioridade sempre demonstrada pelos israelitas – e o avolumar de um contencioso de ódios e exclusões capazes de perdurar por várias gerações.
De facto, tais nacionalismos pouco ou nada trouxeram de benéfico para as populações desses países. Ao menos, com o “cimento” ideológico do anti-semitismo e do anti-ocidentalismo, esses regimes não se digladiaram entre si e os seus desencontros e conflitos puderam ser dirimidos por via de negociações e compromissos (por vezes, logo postos em causa) em que eles são mestres, no âmbito bilateral ou no quadro de instituições internacionais como a Liga Árabe ou a Conferência Islâmica.
Noutros casos – a Argélia, mais que todos –, o bloco de poder pós-colonial resultou de uma aliança, nem sempre estável, entre nacionalistas da burguesia e pequena-burguesia local, intelectuais (alguns residindo durante anos no exílio) e as chefias das forças guerrilheiras vencedoras, para além da representação das diversas identidades étnicas ou religiosas típicas das sociedades tradicionais.
Em qualquer dos casos, depois de se apropriar de uma parte mais ou menos significativa das propriedades e dos atributos simbólicos das anteriores classes dominantes, a nova elite dirigente desses países passou a controlar o fundamental das riquezas económicas geradas internamente e nos negócios com o exterior (por vezes, com os antigos colonizadores), mantendo o grosso do campesinato e do povo urbano entregue à sua sorte, pobreza e emigração. 
O fundamentalismo islâmico que, em anos mais recentes, incentiva à Jiahd (guerra santa) contra o Ocidente, seja em Teerão, no Líbano ou na Palestina, também reage contra este tipo de regimes apodrecidos e corrompidos por algumas décadas de poder sem partilha nem tolerância para qualquer oposição.
Escreveu um dia Bertrand de Jouvenel, creio, que “a História é um cemitério de aristocracias”. Esta frase retrata bem o último século vivido na região mas pode sugerir um caminho linear em direcção a um autêntico governo do povo. Sabemos bem que isso não é verdade e que, a repúblicas falhadas, podem seguir-se tiranias ou retornos a teocracias. Eis a ameaça que agora paira sobre as desilusões da Primavera Árabe!
É neste quadro que voltam a incendiar-se as massas humanas na praça Tarhir, no Cairo e outras cidades para apear o presidente Morsi (da ala política da Irmandade Muçulmana), eleito há menos de um ano, coisa que o exército – aparentemente o único corpo ainda integrado e eficiente da sociedade egípcia – realizou em 48 horas.
Estamos aqui perante a clivagem fundamental entre uma sociedade urbana, jovem e modernizada que aspira por liberdade e progresso material, por um lado, e uma maioritária sociedade tradicional, de base camponesa e miserável, que segue as orientações da tradição e as que lhe são ditadas pelo clero religioso, por outro – parecida, aliás, com a situação que também se vive actualmente na Turquia. Neste momento, o exército egípcio funciona como árbitro e mediador do conflito (com algum embaraçado alívio dos países ocidentais…). Mas ninguém pode antecipar como evoluirão as coisas e, em particular, as relações entre o campo político da Irmandade Muçulmana (apesar de tudo, relativamente moderada) e os movimentos guerrilheiros adeptos da Jihad (que não deixarão de contar com apoios externos). Como estaremos daqui a um ano?

JF / 8.Jul.2013

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