Finalmente, está próximo de terminar o exercício governativo da coligação PSD-CDS liderada por Pedro Passos Coelho. Cumpriu-se o essencial dos preceitos de um governo de legislatura mas estes últimos quatro anos foram talvez os mais difíceis vividos pela generalidade da população em quatro décadas de regime democrático. Não porque faltasse a liberdade, houvesse catástrofes ou instabilidade mas porque o nível e o estilo de vida a que os portugueses se haviam habituado foram severamente afectados, os prejuízos repartidos mas percepcionados como de forma injusta, o estoicismo popular não se evidenciou e assistiu-se a uma exasperação dos grupos de oposição e daqueles com mais capacidade para se opor às medidas de travagem do consumo privado e da despesa pública (que afinal continuou a aumentar, travando a descida do défice e continuando a agravar a dívida).
Talvez um dia o país entenda de maneira mais compreensiva a orientação imprimida pelo ministro Vitor Gaspar (e prosseguida pela sua sucessora) para tentar reverter a situação de défice crónico e de endividamento galopante das finanças públicas. Ou talvez o mea culpa contido na sua carta de despedida de Julho de 2013 signifique, de facto, o reconhecimento explícito da ineficácia da estratégia seguida pela Europa e pela troika de instituições prestamistas, aplicadas com zelo pelo governo português, mas sem o discernimento necessário.
Neste sentido, e porque a situação criada em 2011 era, de facto, de quase-rotura, pode dizer-se que esta foi uma legislatura de sacrifício, antes de mais para as classes médias (activas e aposentadas) que viram os seus rendimentos diminuídos, para os trabalhadores que se transformaram em desempregados e para os jovens (relativamente qualificados) que iam desembarcando num mercado-de-emprego em rápida retracção, muitos dos quais tiveram que optar pela emigração. Mas também de sacrifício para a função governativa, pois nenhum governo “popular” gosta de aumentar impostos e aplicar medidas de austeridade em vez de se vangloriar com o “bacalhau a pataco”. É porém claro que, no plano motivacional, fizeram-no mais por “apetite de poder” do que por patriotismo.
Dentro deste quadro, deve reconhecer-se que a matriz ideológica liberal em que se filiava o primeiro-ministro Passos Coelho o levou certamente a aplicar com convicção certas políticas financeiras e orçamentais, bem como a “privatização” de empresas e sectores de actividade anteriormente no perímetro do Estado, incluindo entidades que lhe proporcionavam algum lucro. No entanto, é justo igualmente acentuar que as referências à social-democracia e à democracia-cristã presentes nesta coligação também marcaram muito nitidamente a política seguida: desde logo na forma “progressiva” como os impostos e os “cortes” nos rendimentos das pessoas foram aplicados, mas também, pelo menos, em algumas medidas da protecção social para os mais pobres e no domínio sectorial da saúde, com as taxas moderadoras a subirem de valor mas o universo dos isentos a alargar-se um pouco mais e com uma forte redução dos preços dos medicamentos, em prejuízo da indústria e do comércio farmacêuticos. É verdade que as poupanças e “racionalizações” atingiram também domínios da protecção social dos mais pobres e que a governação tecnocrática do ministro da saúde acabou por ser manchada pela “crise das urgências” do último Inverno. Mas quem (desapaixonadamente) não reconhecerá virtudes e continuidades nas gerências políticas de Correia de Campos e de Paulo Macedo à frente do serviço nacional de saúde?
Neste sentido, as críticas da esquerda de que o governo teria provocado deliberadamente lutas fratricidas que fenderiam o laço social – funcionários públicos contra os trabalhadores do sector privado, reformados contra activos, jovens contra idosos, etc. – foram essencialmente argumentos de luta política sem mais consistência do que isso, tal como a acusação dos “cortes cegos” que não distinguiriam os alvos das medidas de contenção e do aumento dos impostos (por exemplo, com o IVA).
Mas, atenção! Ao lado de medidas de austeridade orçamental inevitáveis – e veremos agora como agirá um próximo governo – houve desempenhos ministeriais francamente lamentáveis, à frente dos quais se situará o departamento da educação e da ciência. Este responsável que, como geralmente acontece, fez o seu caminho de contestação preparatória (à sua ascensão ao Gabinete) nos anos do “socratismo”, distinguiu-se dos demais por hesitações, erros e confusões administrativas sem fim, sempre com um sorriso indefinível nos lábios, apesar de durante muito tempo ter contado com uma oposição sindical bem mais suave do que alguns dos seus antecessores recentes. Mereceria quase certamente um “chumbo” se a sua prestação fosse sujeita a um exame rigoroso e exigente, como ele gosta de afirmar que devem ser sancionados todos os alunos com quem a sociedade gasta uma parte substancial dos seus recursos e não respondem com resultados suficientes.
Noutros casos – como nas forças armadas e, em parte, nas de segurança –, as poupanças conseguidas fizeram-se unicamente nas “despesas correntes” por falta de coragem ou condições para mexidas na estrutura institucional, que foi aparentemente preservada, mas cuja eficiência e prontidão terão descido para limites mínimos.
Há ainda os casos da “reforma do Estado” onde este governo usou tocar, mas o fez de forma excessivamente limitada ou com imperícia. Num e noutro caso levantou as iras das oposições e não é certo que tenha conseguido operar uma mudança “para ficar”. Foi o que aconteceu com o poder local onde, ao reajustamento da quadrícula administrativa das freguesias à realidade demográfica e geográfica (que provavelmente vai subsistir), se não seguiu o mínimo retoque na demarcação territorial dos municípios, que registam há muito casos clamorosos a necessitar de correcção como, por exemplo, Vila do Conde-Póvoa de Varzim, Torres Novas-Entroncamento, Alcoutim-Vila Real de Santo António e outras agregações hoje tornadas mais possíveis e racionais. E foi o que aconteceu com a reestruturação do mapa das comarcas judiciais, que logo foi manchada e obstruída mediaticamente com a trombose que, pela mesma altura, afectou o sistema informático deste ministério. Perante este encravanço, a ministra, que tinha do seu lado o essencial das magistraturas, acabou por se embrulhar em iniciativas e explicações mal-alinhavadas que fizeram ruir muito da sua aparente coragem política.
A proximidade (ou promiscuidade) entre estes agentes políticos e os interesses económicos de grandes empresas não foi uma novidade deste governo, longe disso. Mas foi sob a sua égide que os capitais chineses tomaram uma posição importante na EDP e os franceses na ANA, que a PT se embrulhou em negócios perdedores no Brasil, que “rebentou a bolha” do grupo financeiro Espírito Santo (com as consequência que ainda estão para vir), que se não esclareceram todas as dúvidas acerca de alguns negócios suspeitos envolvendo Angola ou das causas da insolvência e do processo de sub-concessão dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, e tardam em se concretizar as anunciadas orientações de privatização para os portos, as endividadas empresas do transporte urbano e ferroviário ou da própria TAP. Para além dos “encaixes” imediatos que momentaneamente confortam a balança das contas públicas, só mais adiante perceberemos se estas alienações e alteração dos “centros de decisão” foram realmente necessárias e vantajosas. E resta saber se as renegociações das PPP, a revisão dos subsídios às Fundações e as exigências colocadas inicialmente ao governo regional da Madeira (e a certos municípios, embora de modo suave) foram levadas até ao fim, até onde exigia o interesse público em período de emergência.
Numa coisa pode confiar-se: é que não foi ainda este governo que travou a requisição de assessores e a contratação de estudos muito bem pagos a gabinetes jurídicos e outras entidades privadas da sua confiança, antes pelo contrário, reforçando assim uma tendência que vem de longe. E que também não mostrou qualquer vontade de querer dar o exemplo nos sacrifícios económicos que estava a impor à população, cortando em especial e relativamente mais fundo nas condições remuneratórias e de privilégios dos mais altos magistrados do Estado. O caso do “ministro da lambreta”, que devia ser respeitado, acabou por passar por anedótico; e do despretensiosismo do “Álvaro” só resta o sucesso da campanha do pastel-de-nata – o que também diz algo acerca da qualidade da nossa comunicação social.
Quanto à pessoa do primeiro-ministro, as suas ligações a pessoas como o “mentor” Ângelo Correia ou o “insaciável” (e indecoroso licenciado) Miguel Relvas já não auguravam nada de muito promissor mas a sua postura super-controlada e de pessoa bem-educada pareciam constituir um penhor de boas intenções (que chegou a impressionar o dr. Mário Soares). Ademais, com o afastamento do citado ministro e a rápida e eficaz reacção ao manobreirismo politiqueiro de Paulo Portas no Verão de 2013, Passos Coelho ganhou um pouco mais de força e auto-confiança e terá assumido talvez mesmo que as eleições de 2015 não fossem para o seu partido um lance antecipadamente perdido “a bem do país”. Eis se não quando volta à actualidade política e mediática o suspeitoso passado da sua ligação profissional a uma empresa-fantasma e a uma ONGD pouco menos que enganosa. Mesmo não tão explorado mediaticamente como outros casos (vide Sócrates), o comportamento pessoal do primeiro-ministro voltou à arena já em ano eleitoral com as revelações acerca do seu “esquecimento” em pagar os descontos obrigatórios para a segurança social. Esta estocada feriu de morte a sua imagem, mesmo junto dos seus apoiantes, e constituiu um revés de que não já não poderá recompor-se (e que só se agravou no plano externo quando qualificou de “brincadeira de crianças” a plataforma eleitoral ganhadora na Grécia). Vieram, além disso, os casos de corrupção dos “vistos gold”, do ingurgitamento das urgências hospitalares, da blindagem do sigilo dos registos fiscais de certos VIP e o que ainda poderá aparecer de escandaloso até às eleições.
Por outro lado, os acórdãos sobre a inconstitucionalidade de várias leis (com as anulações, reposições e decisões alternativas tornadas necessárias), bem como os repetidos engasgues no anúncio-teste-recuo-rectificação-aprovação de diversas medidas governamentais, criaram uma instabilidade só antes experimentada no tempo de Santana Lopes, que irritou os sectores mais cordatos da população e desalentou mesmo os que acreditavam na indispensabilidade destas “purgas”. Assim, não foi difícil à oposição política, aos grupos e corporações afectados nos seus interesses e aos mass media interventores explorarem o sentimento geral de desânimo ou resignação para o converter em vontade de que rapidamente terminasse este consulado governativo.
A luta disputa interna no PS e o embaraçoso “casos de justiça” do ex-primeiro-ministro José Sócrates que irrompeu em 2014, uma ténue recuperação da economia e as subtis medidas do executivo visando os resultados eleitorais de 2015 vieram dar alguma esperança à coligação governante. Mas nem a esquerda se pôde minimamente entender ou dar sinais de significativa regeneração, nem o doutor Cavaco Silva conseguiu dar uma ajuda mais efectiva ao bloco ideológico a que pertence. Resta a “gestão do silêncio” a que se remeteu o socialista António Costa (que já desiludiu alguns dos que o apoiaram contra Seguro e é mau no “estilo comicieiro”), e o pouco que poderá trazer de inovador (além da sua conhecida capacidade negocial). Quanto ao desempenho pessoal de Paulo Portas, é ajustado o “requiem” por ele pronunciado aqui há tempos pelo jornalista Manuel Carvalho a propósito do despacho de arquivamento do caso das compras militares na Alemanha quando escreve que «quem fez o que fez no caso dos submarinos, já não tem nada a fazer no país» (Público, 28.Dez.2014). E confiemos que a “descabelada” Ana Gomes consiga ainda levar à justiça todos os que prevaricaram neste caso.
Vamos, pois, entrar num novo período político, no país e na Europa, que está agora também praticamente a estrear uma outra representação parlamentar e um novo executivo. A conjuntura mundial não é famosa, com várias ameaças no horizonte e onde a Europa é hoje mais frequentemente acusada pelo mal que fez ao mundo, do que pelo bem que também lhe proporcionou. Pode ser ingratidão, mas tais sentimentos não cabem no léxico das relações internacionais. Apesar das novas incertezas trazidas à Europa pelo caso da Grécia – interessante de observar como fenómeno político, se não fosse o dramatismo social que atinge uma parte da sua população –, não será optimismo esperar que um maior controlo e regulação venham a efectivar-se no médio prazo sobre os sistemas financeiros, no âmbito da UE, de onde provieram tantas das nossas actuais dificuldades. Porém, a Europa é um “caso único” – de suficiente integração sócio-cultural, de excessiva integração económica, e de insuficiente integração política – que agora está a pagar a factura desses desajustamentos. E conseguir um melhor controlo e coordenação financeira neste espaço internacional (mas não-federal) não chega para atalhar à insuficiência de crescimento económico que mantém no desemprego mais de vinte milhões de pessoas, o que é um dado socialmente relevantíssimo, mas também com eventuais implicações políticas não menosprezáveis, de que o crescimento eleitoral dos extremismos populistas de direita é o sinal mais preocupante. E com os problemas de fronteiras a Leste, as identidades nacionais sub-estatais em efervescência, a instabilidade e a violência a Sul e Sueste, uma consulta referendária no horizonte em Inglaterra sobre a sua continuação na União Europeia e uma economia mundial pouco segura do seu desenvolvimento – aí temos um quadro menos generoso e propício a que a Europa dê uma atenção particular ao pequeno país que é Portugal. Mas também pode acontecer que estes “periféricos” (a Grécia e nós) venham a beneficiar de uma drástica revisão dos compromissos externos a que o incumprimento de alguns grandes países (França, Itália, Espanha) possa obrigar.
Vêm aí novas eleições em Portugal e sempre se abre para muitos a esperança de uma mudança. Porém, para um número cada vez maior essa esperança é ilusória, como se deverá confirmar com a taxa de abstenções e com o score que poderá registar a força “anti-sistema” que pela primeira vez se apresenta sob o discurso “republicano” de Marinho e Pinto (todavia vulnerável a muitos oportunismos pessoais…).
As mudanças de liderança dos partidos tradicionalmente dominantes (sobretudo PS e PSD) poderão dar algum alento e renovação àquelas formações, mas não conseguirão regenerar práticas e culturas fundamente enraizadas como as do eleitoralismo, da arregimentação partidarística, do “aparelhismo”, do tráfico de influências ou do clientelismo (local ou dos grandes interesses). Neste aspecto, os comentadores da “Quadratura do Círculo” vão poder continuar a “tourner en rond”, com Pacheco Pereira a encarniçar-se contra os “neo-liberais” do seu próprio partido, Jorge Coelho a repetir graçolas e estribilhos estafados, Lobo Xavier a “apanhar os cacos” das inabilidades da coligação que apoia e o moderador a inventar perguntas supostamente embaraçosas para entreter a galeria. E as suas audiências vão fugindo para o “Governo Sombra” e o “Eixo do Mal”.
O espaço político da esquerda tem-se agitado mais do que o costume, mas não conseguirá quebrar o fio invisível ideológico que o amarra a uma história rica mas sem pregnância nas sociedades e nas economias do presente. Com um PC-âncora e inamovível e um Bloco de Esquerda esfacelado mas ainda de pé, não há hipóteses de surgimento de um movimento populista de esquerda como na Grécia ou em Espanha, onde o Podemos! ameaça fazer estragos no panorama eleitoral e no acesso ao poder. Mas atenção: “Ilusión” em castelhano significa expectativa, não imagem falsa, como lembra Louçã (Público, 19.Mar.2015) que, além da inteligência e do conhecimento, combina de maneira particularmente eficaz o incansável vanguardismo militante, a arrogância teórica e o modo fradesco. Ora, vê-se à distância que este populismo é liderado por uma linha esquerdista-marxista tradicional, cujos manuais nada dizem sobre como enfrentar os problemas actuais.
Vamos, pois, ter de aguardar mais algum tempo até que, de bom ou mau grado, o povo português possa encontrar um rumo político mais condizente com o que a sociedade, a economia e a cultura lhe podem hoje proporcionar, num mundo em mudança mas onde ele merece ter todo o seu lugar – e não mais do que isso (apesar da sua história, que é bem interessante de estudar e conhecer).
JF / 17.Abr.2015