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sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Uma tese discutível (de "Sciences Po")

Tal como Pacheco Pereira, não quis pronunciar-me antes de ler o livro do ex-primeiro-ministro José Sócrates. 
A primeira impressão que retirei da sua leitura foi a de que estava perante um livro bem escrito, que mostra a inteligência e tenacidade do autor e a excelência formal da instituição escolar no quadro da qual foi pensado e produzido.
Mas, como qualquer outra tese de mérito, tem pontos que merecem ser discutidos e até contestados.
O primeiro é o do rumor (correndo sobretudo em certos meios políticos e universitários) de que se trataria de uma “grande tese”. Na realidade, hoje, uma tese de mestrado é uma dissertação de alcance e valor limitados, destinada a demonstrar o desembaraço e a capacidade do estudante que concluiu um primeiro ciclo de três ou quatro anos de escolaridade para realizar alguma investigação bibliográfica, manusear conceitos teóricos e saber estruturar devidamente um texto académico, e ainda de o saber defender oralmente perante alguém (um pequeno júri de professores) que sabe mais do que ele. No caso presente, a formação em engenharia (a dois tempo) do autor terá sido de efeito praticamente nulo, nem sequer pelos hábitos de socialização adquiridos por uma vivência em instituição universitária. Em contrapartida, temos a extraordinária experiência política desenvolvida e capitalizada ao longo de mais de uma década na governação do país e nos meandros da luta partidária, ao mais alto nível. Com a disponibilidade integral do seu tempo e a tranquilidade proporcionada pela distância à pátria, José Sócrates teve as condições ideais para a reflexão e a escrita. Com inteligência, não se meteu em temas relacionados directamente com a sua controversa governação nem em recriminações ou críticas aos seus sucessores. Preferiu um assunto que, abrindo todas as oportunidades para afirmar a sua visão política, lhe conferisse sobretudo um reconhecimento intelectual e académico.
Para uma personalidade deste calibre – mesmo de um país periférico como Portugal –, a instituição parisiense da Rue Saint Guillaume seria sempre suficientemente astuta e avisada para lhe acolher o projecto. E se desde a fundação (privada) e os tempos áureos de Jean Touchard ou René Rémond a ciência política foi o objecto central do seu estudo, nenhum obstáculo difícil de transpor impediria que uma reflexão de filosofia política pudesse ali ser desenvolvida, embora um pouco a contra-corrente das orientações predominantemente “positivistas”, quantitativas e comparativas da produção científica da casa.
Neste aspecto, com toda a sua argúcia mental, Sócrates assimilou o suficiente da cultura da instituição para elaborar um texto bem integrado nos cânones académicos, com bibliografia citada relativamente ampla, referências históricas e documentais precisas, e mesmo laivos de erudição, quando recorre a filósofos clássicos como Kant ou Voltaire. Não seria com a bagagem cultural da engenharia que alguém conseguiria fazê-lo! Mas, qualquer que tenha sido o teor da avaliação final que este trabalho mereceu aos professores de Sciences Po., não tenho dúvidas em afirmar (pelo que conheço dos seus hábitos) que ele deveria sempre ser classificado com uma “boa nota”, embora não, naturalmente, com os encómios que o ex-presidente do Brasil (e anteriormente líder sindical e do Partido dos Trabalhadores) Lula da Silva lhe dedica no prefácio da edição portuguesa, e os que decerto lhe foram conferidos pelos intervenientes na sessão de apresentação em Lisboa… – mas essa é matéria de luta política e de acção partidária, de que não desejo aqui ocupar-me.
Vamos então ao escrito!
Como se de uma discussão de dissertação universitária se tratasse, eu dividiria as minhas observações em três momentos: os aspectos formais do texto; as suas contribuições mais positivas para o avanço do debate e do conhecimento no espaço académico; e os pontos susceptíveis de crítica. 
Em primeiro lugar, detenhamo-nos inicialmente sobre o objecto de estudo seleccionado pelo estudante José Sócrates Pinto de Sousa em Paris. O título escolhido, provavelmente após “tacteamento” de vários outros temas possíveis, foi o de A Confiança no Mundo: sobre a tortura em democracia. Não sei até que ponto a questão da confiança se presta especialmente a ser abordada a propósito da prática da tortura nos regimes democráticos, já que ela deveria estar presente em muitos outros aspectos do funcionamento desses regimes, a começar pelos próprios mecanismos da representação política e da responsabilidade dos governos representativos, e, para além do sistema político, nos dispositivos jurídicos e de inter-relacionamento existentes no seio de uma sociedade complexa. Mas a questão da tortura no mundo, que tem sido proclamada como inaceitável em vários textos declarativos e tratados internacionais e faz mesmo objecto, desde 1984, de uma específica Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, tem certamente relevância social e lugar adequado no campo da ciência política para merecer o seu tratamento numa tese académica.
Também a sistemática que organiza o texto corresponde inteiramente ao recomendado desde as primeiras aulas pelos docentes da casa, provavelmente ainda por habituação ou importação das faculdades de direito da vizinhança. Neste caso, temos três partes: a tortura, sob o ponto de vista proporcionado por uma abordagem histórica (onde, a uma rápida referência ao passado, se segue uma particular focagem à tortura aplicada por militares franceses na guerra da Argélia e outra às formas mais soft desenvolvidas pelos americanos durante a guerra fria); a tortura na perspectiva da moral, tratando principalmente das figuras do torturador e da vítima, do debate filo-filosófico (digo assim porque não sei o suficiente para o qualificar de filosófico) entre “deontologistas” (que se centram na observância rigorosa de um dado Bem; mais sobre os meios do que sobre os fins) e “consequencialistas” (que consideram os efeitos do acto ou da sua ausência; mais sobre os fins do que sobre os meios), além de um conjunto de questões de natureza utilitarista relativas à sua eficácia e à crítica dos defensores de uma sua utilização condicionada; e, por último, os efeitos da admissão de práticas de tortura sobre os regimes democráticos que, por excepção, os toleram.
Quanto à bibliografia que é usada e discutida na tese, além de suficiente, ela é muito internacional (o que agradaria às gerações mais modernas dos intelectuais de França) e quase toda de publicação extremamente recente: das 84 obras referidas, 60 são posteriores ao ano 2000 – o que mostra que o tema está “na berra” em certas esferas académicas e não foi propriamente uma “descoberta” do lusitano. Mas é bom registar que nos livros editados em França, à parte as obras de referência, que são da responsabilidade de editoras consagradas (Gallimard, PUF, Seuil, Minuit, etc.), a maioria trazem a chancela de La Découverte, que tem uma linha editorial “à gauche” bem conhecida. Apenas me surpreendeu a ausência do clássico Surveiller et punir: Naissance de la prison, de Michel Foucault, que lhe poderia ter sido útil se o mestrando quisesse ter dado uma outra orientação ao seu estudo, ou talvez porque este autor já tenha saído de moda na cena parisiense. 
A linguagem utilizada é muito viva, precisa e mesmo entusiasmante, por momentos, para quem se deixar embalar pela verve discursiva do ex-primeiro-ministro. Mas sujeita ao crivo crítico que adiante se verá. E a revisão do texto não foi perfeita: há gralhas, traduções deficientes (quadrillage por recenseamento), algum autor significativo referido no texto (por indicação de terceiros) não incluído na bibliografia – coisas menores.
No segundo ponto a considerar, desejo evidenciar aqueles que me parecem ser os contributos mais importantes deste trabalho.
Antes de mais, enfatizo o óbvio: sendo a tortura (e, em especial, a “tortura de Estado”) uma prática absolutamente nefasta, o autor coloca esta sua tese ao serviço da condenação do seu uso por parte dos regimes democráticos (já que nos regimes ditatoriais ela lhe parece mais coerentemente inserida num conjunto de disposições, todas elas insuportáveis para um espírito contemporâneo).
O reconhecimento, várias vezes relembrado, de que em tempos históricos recentes as democracias recorreram ao uso da tortura (os ingleses na Irlanda, mas sobretudo os franceses na Argélia e os americanos no Vietnam, exportando depois as suas técnicas “suaves” para outras frentes do anti-comunismo) constitui uma mostra de coragem e de capacidade (auto-)crítica para um homem que é também um político de esquerda.
Depois, o autor assume claramente como sua posição pessoal o campo dos “deontologistas”, no confronto moral com os “consequencialistas”, o que também não deixa de ser leal para com o leitor e mais esclarecedor para um exame crítico da sua “démarche”.
Finalmente, tem algum interesse a rápida revisão feita de certos textos constitucionais em vigor sobre o modo de decretar o “estado de excepção” e a maneira como esboça, no final, pese embora a sua problemática efectivação, algumas orientações de checks-and-balances – nomeadamente: publicidade e controlo judicial; «processo especial urgente» (o que quererá isto dizer?) sempre que existam suspeitas contra pessoas; e acesso das «instituições sociais» (imprensa, etc.) a «instalações, pessoas e documentos associados às práticas administrativas de exceção» – para evitar derrapagens liberticidas, mais fáceis de ocorrer em tais circunstâncias.
Um meu terceiro ponto de comentário crítico ao texto de José Sócrates iniciar-se-ia pela metodologia argumentativa por ele usada ao longo do seu trabalho.O “Eu” (autor) evidencia-se desmesuradamente neste texto como arguente de uma lógica implacável, construindo como que uma obstinada “narrativa” (como ele parece gostar de apostrofar terceiros) que tem como alvo determinadas posições e argumentos e também determinados sujeitos políticos, aliás expressamente nomeados. Não é habitual a discussão científica assumir hoje tais contornos, ao menos no campo das ciências sociais, parecendo mais um argumentário jurídico ou uma controvérsia dos antigos cenáculos, argumento contra argumento, silogismo contra silogismo. O recurso a factos incontestáveis (ou evidências empíricas, da história ou da legislação) é apenas feito para apoiar ou catapultar a posição sustentada e nunca como “teste de prova” da verdade teórica enunciada. E porque estamos laborando num universo de conceitos filosóficos, embora sem termos qualificações para tal, não nos inibimos de afirmar que nos parece fazer o autor largo recurso a técnicas de argumentação sofistas. Para situar este termo (que um dicionário corrente dirá consistir no uso de premissas falsas com aparência de verdadeiras para chegar à conclusão desejada) recorro à Wikipedia, tão referida na saborosa troca epistolar entre o Comendador Marques de Correia e José Sócrates nas edições do Expresso de 2 e 9 de Novembro passado: «Os principais e mais conhecidos sofistas foram Protágoras de Abdera (c. 490-421 AC), […] Pródico que teria sido mestre de Sócrates […], embora tenham existido muitos outros dos quais conhecemos pouco mais do que os nomes. Protágoras foi um dos professores mais conhecidos e bem-sucedidos. Ele ensinou aos seus alunos as habilidades e os conhecimentos necessários para uma vida bem sucedida, especialmente na política, ao invés de filosofia […]».
Neste sentido, na segunda parte da tese, a escolha de centrar a sua análise moral exclusivamente no campo adversário (o dos “consequencialistas”) parece-me elucidativa. Já lhe louvei a clareza do seu posicionamento pessoal. Mas o procedimento tem outras consequências de natureza metodológica, ou mesmo epistemológica. Ao “assestar baterias” sobre os diversos autores (não tantos quanto isso e sobretudo agrupados numa mesma obra de referência bibliográfica: Levinson, 2004) e sucessivos problemas equacionados pelos defensores da tortura em casos excepcionais (o «cenário da bomba-relógio», a legítima defesa, a “teoria das mãos sujas”, etc.) e ao concluir pela fraqueza ou fragilidade dos argumentos em que se baseiam, o autor poupa-se de fazer um simétrico exame aos argumentos do campo “deontologista” em que ele próprio se insere. Eu sei que esta é também uma prática corrente em ciências sociais, geralmente derivada do custo, dificuldade ou impossibilidade de empregar idêntico esforço para também tentar provar o contrário da tese de queremos sustentar e só nessas circunstâncias a considerarmos válida. Mas, no caso em apreço, esta espécie de “contra-prova” nem era especialmente difícil: bastava sujeitar os argumentos e efeitos práticos das posições “deontologistas” ao mesmo tipo de questionamentos que foram desencadeados para o campo oposto.
Os desenvolvimentos feitos sobre a «metástase» ou a «perversão institucional» (em que, começando-se por um emprego limitado a casos especiais, se passa necessariamente para um alargamento “como mancha de óleo” que acaba por corromper instituições e sociedades) são afirmações com insuficiente prova factual. Os exemplos alinhados poderiam porventura ser neutralizados por um conjunto equivalente de factos em sentido contrário. De resto, o próprio Sócrates se descuida nisso ao reconhecer, referindo-se aos Estados Unidos, que «no final da Guerra Fria há, sem dúvida, um abrandamento na utilização da tortura», o que significaria que, cessada a necessidade, o “mal menor” teria sido interrompido. Porém, o autor assinala que aquele país manteve «a preocupação de proteger as técnicas de tortura lite, por forma a assegurar que estas técnicas permaneciam disponíveis e passíveis de serem utilizadas no futuro», o que veio a acontecer, sob forma política mais explícita, após o 11 de Setembro de 2001.
Na primeira parte do livro – dedicada à história recente da tortura em democracia – trata-se sobretudo do uso escondido destas práticas no quadro de situações de conflito bélico aberto ou latente. Este quadro careceria de uma outra abordagem, pois o autor limita-se aqui a historiar o processo de “massificação” e banalização da tortura pelos militares franceses na Argélia e o apuramento dos métodos de “tortura científica” dos americanos durante a Guerra Fria e no Vietnam, com um outro desenvolvimento (já no derradeiro capítulo) para a evolução verificada durante a «guerra contra o terror».
A guerra e a tortura são dois fenómenos (de escala muito diferente) negadores da humanidade, mas produto das suas crenças e interesses. Não obstante isto, depois das carnificinas mais recentes, um esforço tem sido feito pela comunidade internacional para reduzir e impedir tais práticas, o que deve certamente ser encorajado e prosseguido. Mas, do ponto de vista da compreensão histórica, é excessivamente sumária a explicação dada por José Sócrates para o reaparecimento da tortura contemporânea em Estados democráticos. E pouco correcta a confusão que estabelece entre tortura e execuções sumárias pelos militares em campanha. Aqui, o autor terá cedido ao ambiente parisiense dos debates intelectuais sobre os principais fantasmas da história de França. Interessante é, contudo, a rápida interpretação dada ao caso português da guerra colonial sobre o qual o autor refere que terá sido a «concentração das actividades de tortura na polícia política portuguesa, ao contrário do que sucedeu com o exército francês na Argélia, que impediu o contágio e a corrupção institucional do exército português, o que pode talvez explicar o seu papel na revolução democrática de 1974».
Mais unilaterais são as críticas cerradas (sobretudo na terceira parte do livro) feitas à actuação da administração Bush-filho com o pretexto da «guerra contra o terror», com orientações já contidas nas reservas com que Reagan acolhera a Convenção da ONU de 1984, mas sem uma palavra sobre as políticas de Obama (a não ser a sua revogação dos ‘torture memos’) quanto ao não cumprimento da sua promessa eleitoral de desmantelar a prisão de Guantánamo, quanto é certo que o autor incluiu referências empíricas ocorridas até ao Outono de 2012, isto é, cobrindo todo oprimeiro mandato deste simpático presidente norte-americano.
É problemática – em termos jurídico-políticos – a colocação da “linha vermelha” de defesa de democracia contra si própria no patamar do respeito pela «dignidade humana». Sendo com certeza um valor absolutamente fundamental no mundo moderno, para o qual concorreram tanto alguns contributos trazidos por diversas religiões como a (então) corajosa defesa da laicidade e dos princípios republicanos e libertários, é todavia um daqueles “fourre-tout” onde cabe quase tudo o que lá se lhe quiser meter.
Nenhuma observação crítica também se regista quanto à natureza assimétrica da violência e da chantagem terrorista, que aliás se filiam e se desenvolvem a partir das guerras revolucionárias do século XX (recuperando a experiência muito mais antiga das guerrilhas), em que todos os actores do conflito contornaram o direito-da-guerra laboriosamente posto de pé no dealbar desse mesmo século, uns por estratégia, outros por recurso. E ainda menos se encontra uma qualquer abordagem qualificativa quanto à prática da tortura por forças anti-ocidentais no quadro da Guerra Fria e das suas guerras de libertação nacional, sendo certo que aí se terá originado o uso das técnicas de “lavagem de cérebro”, a que de resto o autor faz referência quando situa a génese da “tortura limpa” dos americanos. Tem razão a Amnistia Internacional quando vem confrontar o presidente Obama quanto à manutenção de Gantánamo (ver o jornal Público de 22 p.p.), mas este caso também ilustra as dificuldades da compatibilização do direito com as práticas de guerra actuais.
Finalmente, uma última nota. Como “tortura de Estado”, estamos perante uma violência sobre o corpo e o espírito de indivíduos, a qual deveria ser alinhada com uma larga panóplia de instrumentos cruéis à disposição dos ocupantes do poder político nacional, que sempre dispõem da força; quase sempre da lei; e só às vezes da razão. A tortura (para massacrar a vítima, para confessar o que interessa às autoridades torturadoras ou para obter informações de que estas carecem) é decerto um dos mais horríveis desses instrumentos. Mas poderemos tratar dele sem fazer referência ao emprego da guerra entre povos e nações organizadas? Ou às técnicas policiais, judiciais e prisionais usadas para reprimir no plano interno as manifestações de oposição aos poderes constituídos que mobilam a maior parte da nossa história conhecida? Ou certas decorrências da “razão de Estado” como sejam as práticas de espionagem, hoje adocicadas sob o nome de “informações” ou “intelligence” mas sempre a coberto do segredo?
Porque não questiona os mecanismos do poder e do domínio, José Sócrates transpõe inteiramente a sua análise para o campo das políticas, isto é, em última análise, da luta política (esquerda contra direita, ou entre linhas de tendência no interior do campo do socialismo democrático e da social-democracia), onde o seu argumentativismo fascina e parece impor-se.   

JF / 31.Jan.2014

sábado, 18 de janeiro de 2014

A propósito das reformas em curso: Porque no meio desta crise aflitiva os cortes nas bolsas de doutoramento são assunto de interesse público?

A redução brutal no financiamento das bolsas de doutoramento e de pós-doutoramento, já esperada (mas não a esta escala!), abalou a comunidade académica e deixou-a justamente apreensiva relativamente ao futuro.
Uma visão superficial tenderá a ver nesta reacção um comportamento corporativo justificado. Se houver muito alarido, é natural que as pessoas se queixem, repetirá certamente alguém do governo diante das câmaras da televisão, como o fizeram durante e após as enormes manifestações cívicas contra as medidas governativas que lhes foram impostas. Afinal, no meio de tanto desemprego criado por esta crise da dívida (ou a pretexto dela), que têm os bolseiros e os “pós-doutorados” a mais do que os restantes funcionários públicos, empresários falidos e trabalhadores portugueses despedidos? Não têm o “direito” a sofrer com os cortes, como os outros?
Porém, se esgravatarmos um pouco mais, vemos emergir uma velha cisão na sociedade portuguesa sobre o papel das Ciências, das Artes, das Humanidades e das Tecnologias na criação de riqueza e no progresso social, em suma, da sua importância para um país que, até há bem pouco tempo, se encontrava imerso em pobreza e atraso. Curiosamente, isto acontece curiosamente no dia em que dois futebolistas excecionais são glorificados como heróis da pátria.  
Um parêntese talvez (im)pertinente:
No século XIX, as nações orgulhavam-se dos seus cientistas, dos seus músicos e dos seus artistas como expoentes de civilização. Há dias, nas redes sociais, alguém em Espanha fez o reparo que aquele país se orgulhava dos seus clubes de futebol, que estão no topo da excelência performativa futebolística, mas que era indiferente ao facto de nenhuma das universidades espanholas se encontrarem entre as 200 melhores do mundo.
Na verdade, a cultura, a ciência e as artes não vistas como problema a não ser pelos seus profissionais e mais algumas “aves raras” que as usam por gratificação pessoal. Tendem a ser consideradas como despesa líquida no orçamento, apesar das medições econométricas realizadas correntemente para “os países mais ricos”, apesar destes países pensarem e medirem o retorno económico desse capital. O problema é tanto mais grave quando informa uma visão de/para Portugal que não partilhamos, governado por feitores profissionais de ricos e oligarcas, bem sustentados por um exército e força pública convenientemente guarnecidos, que lá acalmam a sua consciência com religiões de vário tipo e obras de caridade, distribuindo pelas paróquias tachos e benesses, sempre escassos, por via das suas igrejas-partido.
Neste caso, os cortes no financiamento destas bolsas são apenas mais um sintoma de inversão de um caminho que o país tardiamente começara a trilhar: o do investimento na educação, na ciência e nas artes, beneficiando do espaço económico e político em que se decidira integrar. Apresenta-se como mais um episódio do subfinanciamento do ensino superior e da investigação científica dos últimos anos. A par disso, e como pano de fundo, temos programas deprimentes de apoio social escolar que convidam os mais pobres cada vez mais à desistência do estudo. Outros cidadãos, com maior poder económico, são tentados a ir estudar para universidades estrangeiras bem cotadas nessa bolsa mundial da educação-negócio que são os rankings.
Estes sintomas claros ocorrem na altura em que o governo lidera um processo de reestruturação de um ensino superior em crise de crescimento. A este respeito, um artigo que saiu recentemente no Público* revela a excelência intelectual do debate público em Portugal protagonizado pela chamada "classe política" e pelos seus fazedores de opinião.  Ficámos cientes de que "o ensino superior existe sobretudo para dar formação de qualidade aos estudantes, incentivar a inovação e dar à sociedade soluções para aumentar o seu desenvolvimento sustentável."
No cenário que nos é oferecido antecipadamente, o seu autor propõe que repensemos a missão da Universidade sob esta fórmula cativante (permitam-me que use uma expressão tão cara à tecnocracia do anterior regime). E são opiniões fundadas nos resultados de um estudo encomendado que, segundo parece, vem corroborar em muitos aspectos os factos e as crenças de um jovem que conheço e que, por sinal, conduz uma empilhadora numa empresa industrial.
Eu acreditava (é um voto de fé) que a Universidade deveria ser um centro de criação/produção de conhecimento científico, artístico, humanístico e técnico e que, por isso mesmo, a sociedade a encarregava da missão de formar os seus cidadãos ao longo da vida, atribuindo-lhes a faculdade de atribuir títulos académicos. E que esses títulos acreditavam publicamente ao longo da vida as exigentes competências adquiridas na academia. Ora, essas competências têm sido postas em causa diretamente pelo governo (veja-se o caso recente dos professores mais jovens) e pelos empresários (por exemplo, na área da saúde privada parece que preferem contratar médicos e enfermeiros estrangeiros; na assistência social, usam raparigas brasileiras para cuidar de idosos; na área dos serviços financeiros, contratam informáticos "brasileiros", etc., etc.) numa saudável lógica convenientemente (des)regulada. Leio nos estatutos da minha universidade: a "Universidade de Évora (...) é um centro de criação, transmissão e difusão da cultura, da ciência e da tecnologia, que, através da articulação do estudo, da docência e da investigação, se integra na vida da sociedade".
Em lado nenhum se diz que cabe às universidades criar emprego. O bom senso diria que cabe à sociedade criar riqueza e ao poder político criar condições para que isso aconteça.   
Ora, de acordo com a opinião daquele deputado do partido que se diz social-democrata, parece que "urge desenvolver reformas [no ensino superior] que aumentem a qualidade, a competitividade e a eficácia do sistema" tendo em conta o tecido empresarial português QUE EXISTE.  É fácil perceber que, atendendo ao nível de sofisticação científica e técnica das competências que são exigidas pelos empregadores nas ofertas públicas de emprego que têm existido na região e no país, bem como ao nível das remunerações que são atribuídas, que o modelo virtuoso do triângulo “qualidade, a competitividade e a eficácia” será algo parecido com o antigo colégio do Padre Alcobia de Ferreira do Alentejo. Era uma venerável instituição em que os professores eram bastante flexíveis, e bem supria as carências de formação daquele município até à “engorda do Estado” realizada depois de 1974.
Sejamos claros: para que serve gastar rios de dinheiro a produzir mestres e licenciados, ainda por cima oriundos a maior parte oriundos da ralé, se depois "não sabem trabalhar" em "centros de atendimento telefónico", como caixas de hipermercado, guias turísticos, serventes de café e de hotelaria (um ofício em vias de extinção), centros de massagens, etc. por 500 euros / mês ? E para que serve aos nossos jovens investir na sua formação se os sinais que lhes dá o poder político não apontam para outros caminhos que não sejam esses... ou a emigração? E ainda por cima sem capacidade creditícia para recorrer ao generoso financiamento bancário para continuar a estudar?
Com a retórica adequada, com o bombardeamento insistente nos media, com as medidas governativas graduais adequadas, invocadas em nome de uma qualquer emergência nacional, estou convicto que lá chegaremos... No que respeita aos institutos instalados na província, basta descobrir as vocações das regiões (a do Alentejo era o trigo e a cortiça, não é verdade?) e promover o enquadramento adequado. E quem estiver mal nessa nova espécie de escola técnico-profissional do “ensino superior”, a ministrar " formação de qualidade aos estudantes", irá sair (por via da reforma ou da "mobilidade") ou adaptar-se certamente. Assim, depois de umas décadas a promover o "sucesso educativo" no ensino básico e secundário (e que já chegou à universidade!), os professores universitários irão promover a "formação de qualidade aos estudantes" (com a ciência e as artes caídas dos céus certamente, ou dos manuais ingleses vertidos na língua pátria, mais ou
menos adaptados e explicadinhos pela sua autoria lusa), incentivando a inovação (reduzida assim ao engenho dos curiosos e analfabetos funcionais e à retórica que os portugueses sempre souberam usar para construir a sua própria realidade mítica) e dando "à sociedade soluções para aumentar o seu desenvolvimento sustentável" (por via da redução das "despesas" com as reformas, por falta de sustentação económica, e com as gorduras do Estado que todos sabemos onde estão).
É o que se está a fazer. Voilá!

Paulo Guimarães
(16.Jan.2014)
*http://www.publico.pt/sociedade/noticia/ensino-superior-jovens-desconfiam-e-empresas-nao-acreditam-1619618?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+PublicoRSS+%28Publico.pt%29

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

É isto o povo português?

Depois do 25 de Abril, só três acontecimentos conseguiram elevar a um ponto significativo de emoção extensas camadas da população portuguesa: a independência de Timor-Leste, a morte de Amália Rodrigues e agora o desaparecimento de Eusébio.
Naturalmente, este foi um futebolista extraordinário no seu tempo, um rapaz simpático e um homem sempre humilde nas suas atitudes e comportamentos, que merece ser lembrado.
Mas (apesar de todo o peso oficialista-comunicativo dado ao evento), o que explica esta ultrapassagem de qualquer outra manifestação desportiva, política, cultural ou religiosa dos últimos tempos em Portugal?
Que ingredientes terão transformado esta figura humana no mito e símbolo nacional que agora se percebe ser?
A primeira interpretação possível é talvez a de uma nação à deriva que encontra uma oportunidade para assim exprimir o seu mal-estar.
Em segundo lugar, trata-se do fenómeno do futebol que, mais do que popular, se tornou num espaço inter-classista e inter-nacional de canalização de paixões, de constituição de comunidades-de-massa e de objectivação de um outro/adversário/inimigo que é necessário esconjurar. E, dentro deste fenómeno, o Benfica é provavelmente a mais típica e alargada destas “comunidades maciças” que temos em Portugal: desde os “vermelhos” (impossíveis de pronunciar)/encarnados, até à “catedral da luz” (num momento, “vale dos caídos” para os vizinhos espanhóis).
Eusébio também representa o bom africano português que, com a sorte pelo seu lado e a vontade firme de a aproveitar, não teve necessidade de pegar em armas nem de apostrofar a singular colonização que os lusitanos plantaram em África.
Finalmente, era homem (de carnes vigorosas, indomáveis) e do povo, com as qualidades que, com ou sem razão, as mais comuns representações sociais lhe atribuem: simplicidade, abnegação, bondade, homem-menino, que aceita ser orientado por outros mais sabedores ou experientes.
Disto, já há pouco. Talvez seja mesmo uma despedida, até que chegue outra coisa.

JF / 6.Jan.204

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