O Ocidente entrou no séc. XX cheio de belas expectativas. As Grandes Exposições, surgidas nas últimas cinco décadas, constituem as novas Festividades pagãs que se vão substituindo aos marcos dos calendários religiosos tradicionais: organizadas pelas elites, mas com usufruto estendido às cada vez mais extensas populações urbanas. E o turismo, inicialmente apenas aristocrático, burguês e aventureiro, acabará por estender-se às classes populares a partir de meados do século, quando começam a esboçar-se as formas de uma democracia social. O desporto, o espectáculo desportivo e a “compensação naturalística” têm também aqui um papel primordial.
Quase todas as modalidades desportivas modernas foram codificadas em Inglaterra, mas o seu impacto foi muito forte e rápido nos países ocidentais e, progressivamente, no mundo inteiro. Denotando as intenções cavalheirescas e as origens aristocráticas dos seus fundadores, os Jogos Olímpicos forjaram em poucos anos uma mitologia de superação humana, de lealdade e convívio internacional absolutamente surpreendentes. No mesmo espírito, embora mais rude e estimulante do envolvimento das classes populares, o futebol tornou-se uma prática distractiva universal. E outras actividades físicas seguiram o mesmo trilho: o atletismo, a ginástica, as lutas, o ciclismo, etc.
Igualmente os movimentos juvenis, e em particular o escutismo, constituem novidades do séc. XX. Num ambiente urbano que cada vez mais ignorava o mundo natural que o rodeava, bons educadores tiveram a ideia de ocupar e ensinar os jovens no conhecimento sensível desse meio biológico indispensável e, simultaneamente, no desenvolvimento de valores de altruísmo e solidariedade, independentemente de raças, religiões, nacionalidades ou classes sociais. Como é lógico, as Igrejas viram aqui uma possibilidade de proselitismo; e as ideologias totalitárias (fascismo, comunismo, nazismo, fundamentalismo islâmico) vieram a apostar a fundo neste domínio. Mas os movimentos sociais da juventude (inicialmente separados segundo o sexo) tomaram muitas feições, políticas e sociais, e não podem ser simplificadamente descritos como vinculados a tal ou tal ideologia. Representam, sim, uma procura de emancipação social, malgrado o facto de se tratar de uma condição ou identidade apenas transitória na linha da vida de cada indivíduo.
Perto destas iniciativas experimentadas pelas populações urbanas, de um momentâneo “regresso à natureza”, situam-se também as práticas naturistas, que desabrocham com grande vivacidade entre algumas minorias no início de Novecentos: o vegetarianismo, o nudismo solar ou o campismo. Em núcleos muito mais reduzidos e com outras implicações mais complexas, divulgam-se também práticas libertinas ou libertárias como a liberdade sexual ou a vida em comunidade.
O feminismo conhece por esta época a sua primeira vaga de afirmação internacional, em particular com as reivindicações “sufragistas”, reclamando o direito de voto para todas as mulheres, independentemente do estado civil, condição social, rendimentos ou literacia, nos países onde os governos eram já ditados pelas urnas eleitorais. Mas também na literatura e nas artes, na progressão escolar, na afirmação profissional em determinadas actividades (professorado, saúde, etc.) e no protesto contra as principais formas de subordinação da mulher ao homem (na lei e nos costumes, incluindo a prostituição), o movimento de emancipação social das mulheres inicia aqui a sua grande marcha, que prosseguirá por etapas até aos nossos dias.
Com o alargamento da escolaridade e da literacia, aumenta o número de leitores da imprensa e das obras literárias; os grandes romancistas são facilmente traduzidos em várias línguas. Nas ciências físicas, é a descoberta das radiações e da composição íntima da matéria, mais a formulação da teoria da relatividade por Einstein, que marcam decisivamente a aventura do novo século. Os Prémios Nobel (produto da riqueza e provável “má-consciência” do sueco inventor da dinamite) vêm consagrar e divulgar estas principais figuras da ciência e da cultura. Ao mesmo tempo que a febre da competição estimula e celebra as proezas (e alguns desastres) dos aventureiros-descobridores dos últimos recantos da Terra até então inacessíveis aos humanos – os pólos e os principais cumes montanhosos – e se lança na aventura da conquista dos ares.
De facto, abandonando pouco a pouco a experiência do balonismo, o motor de explosão e um melhor conhecimento da física dos fluidos permite a invenção e rápida divulgação do avião, logo aproveitado como arma de guerra, mas que se irá estender para o transporte civil de passageiros de forma cada vez mais abrangente, maciça e irreversível. E, paralelamente, o automóvel substitui progressivamente quase todos os anteriores meios de transporte terrestre, transformando a vida das cidades, as mobilidades de pessoas e mercadorias, impulsionando o turismo. Entrávamos numa civilização marcada pelos equipamentos mecânicos, não apenas na esfera da produção, mas também na cidade e no próprio espaço doméstico. A partir daqui, o carvão vai sendo substituído pelos derivados do petróleo como fonte energética principal, directamente e para responder à procura crescente de electricidade.
Por outro lado, as artes aumentam o seu impacto sobre a sociedade. O teatro – que sempre é uma representação viva de fragmentos da vida – conquista novos públicos, mais populares. E emergem novas disciplinas artísticas já tributárias dos desenvolvimentos da pequena mecânica, da óptica e da química: a fotografia e o cinema são as artes do séc. XX, aptas a influírem sobre as novas “sociedades de massas”, urbanas e desenraizadas, a primeira sobretudo através da propaganda e da publicidade, a segunda percutindo profundamente os imaginários individuais e colectivos. A música também acompanha este movimento, ao deixar à parte o concerto instrumental ou sinfónico e o canto lírico, de um lado, e a música folk tradicional (rural) de outro, para fluir em novas tonalidades de raiz urbana – por vezes dançável – mas especializada segundo os meios sociais específicos onde se foi gerando: os blues, o fado, o tango, o jazz, a java, o charlston, o samba, a rumba, o rock, a pop, etc. A dança clássica atinge um cume mas vai ceder progressivamente o seu lugar ao “ballet contemporâneo”. Porém, no plano estético, as grandes rupturas trazidas pelo novo século situaram-se na pintura e na música erudita, com a chegada das telas não-figurativas e abstractas (mais tarde ultrapassadas pelo surrealismo) e com a invenção de formas de música não-melódica: uma e outra traduzem decerto as perplexidades existenciais do indivíduo no mundo Moderno, mas são também porventura um modo de evitar confrontos directos com obras-primas já criadas e talvez insuperáveis, empurrando os criadores para a descoberta de novas pistas e linguagens.
Partindo dos balbuciamentos da psicologia, com Freud e a psicanálise inaugura-se um continente novo da esfera do saber: a exploração do inconsciente em cada um de nós, com aplicações terapêuticas e efeitos colaterais em várias das ciências humanas em construção (a linguística, a antropologia, etc.).
Na escultura e sobretudo na arquitectura, operam-se também importantes rupturas, com os criadores a decretarem a certidão de óbito de estilos como o vitoriano ou o neo-clássico e a terem clientes disponíveis para pagar o experimentalismo de novas formas de edificar e compor o espaço urbano.
Mas, para além da art nouveau e do “modernismo”, da Bahaus ou Le Corbusier na arquitectura, e das frivolidades da belle époque, o séc. XX inaugura-se também com a hecatombe da chamada Grande Guerra. E aqui se gera um fenómeno de choque existencial, de estilhaçamento de todas as anteriores representações “unitárias” da condição humana de que ainda andamos hoje a procurar “apanhar os cacos”. Sem o recurso a uma explicação religiosa; conhecendo as mais promissoras vantagens do mundo da técnica; tendo atingido a maioridade em termos de progresso humano ao se decretar a liberdade e a igualdade como valores essenciais para a dignidade de todos os Homens – como foi possível que este século tenha começado por se destruir num conflito bélico que vitimou milhões de pessoas? Como foi possível que, na sua imediata decorrência, se tivessem posto de pé, com farto aplauso popular e também de certas elites pensantes, dois sistemas políticos ditatoriais (o nazi-fascismo na Alemanha e na Itália e o comunismo na Rússia) em que o chefe e o Estado eram tudo e os cidadãos eram nada? Como foi possível pensar-se e executar-se o holocausto de milhões de judeus e outras minorias “não-arianas”? Como foi possível cair-se em nova guerra mundial com ainda mais milhões de mortos? E ter-se recorrido à bomba atómica – com os efeitos devastadores que se sabem – para evitar o prolongamento da catástrofe? Foi destes desconcertos que mais tarde Orwell deu conta literariamente e que outros da mesma geração e sensibilidade puderam escrever, em plena “guerra fria”, desafiando toda a lógica então esmagadoramente dominante: “o mundo livre, de facto, não é livre; e o mundo comunista, realmente, não é comunista”.
A História está cheia destas descoincidências: neste caso, a Rússia socialista (1917-1991) ficou conhecida, formalmente, como “União Soviética”, quando nunca foi nem União, nem soviética. Não constituiu uma União porque esta é uma agregação contratual de unidades políticas com identidade e autonomia próprias, como a actual União Europeia, que aliás melhor seria designada por Confederação Europeia, mas cujo desígnio era (é?), no olhar de Delors, Soares e consortes, de facto o de caminhar em direcção a uma verdadeira federação, como a dos EUA. E jamais foi efectivamente “soviética” pois o Estado construído pelos marxistas bolcheviks após a tomada do poder central da Rússia perseguiu implacavelmente os sovietes (conselhos), que eram os órgãos de deliberação colectiva local dos “deputados operários, camponeses, soldados e marinheiros” eleitos pelos seus pares nas estruturas de base, neste caso, produtivas e militares.
Mas, cortando cerce os entusiasmos ideológicos de um punhado de “conselhistas” que permaneceram fiéis a esta ideia generosa da revolução da Rússia, também se diga que esta fórmula de “democracia proletária” escondia a tese marxista da “ditadura do proletariado”. Segundo esta concepção, além da expropriação das riquezas privadas (bens de raiz, fábricas, negócios), a burguesia devia ser privada de direitos políticos (concretamente, o direito de voto, para sustentar o poder do Estado) durante a fase de transição da sociedade para o “comunismo”. Este último conceito queria significar a materialização da ideia utópica do fim da “divisão-do-trabalho”, da abolição das classes sociais e da dissolução do Estado, o qual era interpretado como o instrumento de opressão de uma classe social sobre outras, segundo as ideias propagadas pelas escolas de pensamento socialista do séc. XIX. Por outro lado, estes sovietes, surgidos mais ou menos espontaneamente nos levantamentos populares de 1905, também concretizaram em 1917-21 a “aliança operária-camponesa” de concepção leninista, conjuntamente com o oportunismo táctico do próprio Lénine, que a associou às expectativas dos milhares de filhos do povo que tinham sido mobilizados para a guerra e que, estando em armas e muito descontentes, poderiam ser o instrumento decisivo para deitar abaixo o czarismo. Algo que nós conhecemos em Portugal com a “aliança povo-MFA” em 1974-75.
A guerra que rebentou em 1914 teve causas hoje inteiramente compreensíveis à luz da nefasta combinação de factores como foram as rivalidades entre as potências europeias que disputavam entre si um lugar predominante na economia mundial, a sede de lucro dos industriais do armamento, o espírito nacionalista imbuído em largas massas das populações, o ethos belicista dos comandos militares e aquele tipo de “reacções-em-cadeia” que, sem premeditação, acabam por conduzir ao desastre. Terá sido o que aconteceu com o sistema de alianças entre nações que devia prevenir ou travar um conflito no espaço europeu. Mas seria realmente previsível uma tal catástrofe (que, em tal caso, condenaria em absoluto os responsáveis políticos nacionais)?
Como se sabe, a guerra teve um papel decisivo no rápido desenvolvimento de novas tecnologias. Isso verificou-se com a aviação, tal como aconteceu também relativamente ao submarino e a outras armas sub-aquáticas. No conflito que ensanguentou a Europa entre 1914 e 1918 assistiu-se à pesarosa conjugação de concepções militares tácticas exercitadas desde um passado remoto (fortíssima densidade de combatentes lutando face-a-face por cada “palmo de terreno”) com a novidade de armas de destruição muito mais poderosas (a metralhadora, a artilharia pesada, os gases, as bombas de aviação e os “tanques”) e de meios de deslocação e comunicação mais rápidos: os referidos aviões (no reconhecimento do terreno e do inimigo, e no seu bombardeamento); os camiões para transporte de homens e abastecimentos, bem como para a evacuação de feridos; as bicicletas e motocicletas, os telefones e a TSF para a transmissão de ordens e informações – com o declínio correspondente do cavalo e de todo o instrumental e saberes ligados ao seu uso militar.
Esta guerra também acelerou os ensaios já em curso de uma nova organização do trabalho industrial, em grande série. A racionalização “taylorista” dividiu ao máximo as tarefas do operário, simplificando-as, à custa de maior monotonia, mas tornando-as acessíveis a qualquer um, sem formação prévia. Deste modo puderam entrar na fábrica mulheres, camponeses, imigrantes e outros até então estranhos ao universo mecânico da indústria. E o mesmo se fez em breve na Rússia dos bolcheviks. Em paralelo avançou a mecanização da agricultura, rentável em planícies e para produção em grande escala. E no mundo dos escritórios instalou-se uma burocracia administrativa procedimental mais rígida, hierárquica e rigorosa, embora propícia ao encorajamento de diversos “vícios”, em proveito “do sistema” e não especialmente dos objectivos oficialmente perseguidos. No sector do comércio, o “grande armazém” de vendas a retalho (por departamentos de famílias de produtos) já tinha aparecido no século anterior; mas enquanto este resistiu às crises provocadas pela guerra e o pós-guerra, a pequena loja de comércio foi muito atingida pelas novas condições económicas, o mesmo acontecendo com inúmeras oficinas de artesãos. Daí uma “proletarização” acelerada da pequena-burguesia.
Como consequências de grande magnitude desta Iª Guerra Mundial (que, contudo, se focou essencialmente no espaço europeu) podem evidenciar-se as seguintes: -primeira experiência de revolução e de construção de uma sociedade socialista estatal (a URSS); -reacções nacionalistas autoritárias em Itália e na Alemanha, mas também na Hungria, na Roménia, em Espanha, Portugal, Brasil ou Argentina, devido às humilhações sofridas com a guerra, ao descrédito do parlamentarismo liberal e a uma virulenta rejeição anti-comunista; -envolvimento de muitos soldados dos territórios coloniais das potências europeias nesta guerra, com milhares de mortos e estropiados e sem qualquer proveito para os seus países-natais (lição que eles não irão esquecer); -criação de uma estrutura supra-nacional de manutenção da paz (a Sociedade das Nações, com sede em Genebra), que se mostrou completamente ineficaz, com excepção do seu “departamento social”, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) que, apesar das dificuldades de entendimento social e político, pôde contribuir para a melhoria da condição universal dos trabalhadores assalariados; -crise económica e financeira de grande profundidade nos anos 20/30, que inclusivamente obriga a uma intervenção estatal na economia nos Estados Unidos e leva os governos das principais potências a nova corrida armamentista como meio de absorverem o desemprego e se precaverem contra uma eventual desforra da Alemanha.
Com efeito, a sedução das massas por um fanático como Hitler relançou em poucos anos o “III Reich” numa rota imparável de mobilização, propaganda, violência, expansionismo e ânsia de domínio do espaço europeu e mesmo mundial. Tendo usado a desgraçada guerra civil de Espanha (1936-39) como campo de manobras para as suas novas tácticas militares (panzers e “guerra-relâmpago”, bombardeamentos aéreos maciços, combates de “caças”, etc.), negociado um tratado vergonhoso (para os comunistas) com a vizinha URSS sobre as costas do povo polaco e encontrado nos judeus o “bode expiatório” que ele acabou por levar à loucura do Holocausto, o Fuhrer julgou-se suficientemente forte para desencadear uma nova guerra, extremamente mortífera, contra as democracias ocidentais em Setembro de 1939 e, em Junho de 1941, também contra a URSS. A seu lado esteve a Itália e as forças que conseguiu mobilizar nos países que ocupou (voluntariamente ou à força); e a partir de 1942 contou também estrategicamente com o Japão que abriu guerra no Extremo-Oriente, oceano Pacífico e Sueste Asiático contra os aliados ocidentais, que se apresentavam como defensores da democracia, da liberdade e dos direitos humanos: estes foram, essencialmente, os ingleses (e países do Commonwealth) e os americanos, a que se juntaram os franceses que não aceitaram a rendição do seu governo em 1940 e outros resistentes de países ocupados pelos alemães; pela força das circunstâncias, também a URSS deu um importante contributo a esta aliança contra-natura com os países demo-liberais.
A IIª Guerra Mundial foi ainda mais devastadora do que a primeira. Mas a resiliência defensiva dos russos, a indomável combatividade dos britânicos e a capacidade produtiva e escala de mobilização humana da nação americana foram suficientes para parar na Europa os avanços germânicos e os levar à derrota militar, na qual ficou também patente a sua falta de poder naval, a despeito da encarniçada guerra submarina em que se haviam de novo lançado. No Pacífico, a resistência militar dos japoneses ao contra-ataque americano foi mais eficaz, pelas condições geográficas desse teatro de operações e sobretudo pelo espírito guerreiro e patriótico da casta militar nipónica, tendo o governo dos Estados Unidos acabado por decidir o emprego da ainda experimental bomba atómica em Agosto de 1945 para abreviar o fim do conflito. O Japão, a quem faltavam fontes energéticas básicas e matérias-primas para a sua indústria, tinha-se tornado uma potência expansionista e agressiva que ocupara militarmente a Manchúria (1932) e levara depois a guerra à China (1937), e finalmente ao ataque-surpresa a Pearl Harbor (Dezembro de 1941), à Indochina, às Filipinas e às colónias inglesas e holandesas da região. Mas aquela polémica decisão – que muitos vêem como a vontade dos americanos mostrarem ao mundo a sua superioridade militar – acabou por marcar o início da “era atómica” e lançar uma nova corrida armamentista, agora entre os Estados Unidos e a URSS, dois dos aliados vencedores da IIª Guerra Mundial, mas com sistemas políticos e económico-sociais bem diferenciados e mutuamente hostis.
Desta vez, a derrota militar do “eixo” não levou à humilhação externa dos vencidos, em vez disso bastando o castigo exemplar dos principais chefes, uma auto-infligida culpa moral assumida pelas populações e a imposição cautelar de determinadas condições de regime político (democrático) e de forças armadas (defensivas). Pelo contrário, os americanos ajudaram economicamente a reconstrução desses países, assentando neles uma boa parte da sua posição dominante no meio século que se seguiu.
O pós-guerra, com a criação da Organização das Nações Unidas, os acordos de Bretton-Woods, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e um longo período de recuperação e crescimento das economias ocidentais com base na reposição das cidades destruídas (para as indústrias de bens de equipamento) e no alargamento do mercado interno (para a produção de bens de consumo duráveis, como os electrodomésticos e o automóvel), não foi contudo isento de conflitos internacionais, bem longe disso. Apenas deixaram de ser guerras formalmente declaradas e formalmente encerradas com tratados de paz entre os beligerantes, assumindo geralmente o carácter de conflitos localizados ou específicos. Tudo isto se passou no quadro da “guerra fria” entre o bloco socialista liderado pelos russos e o chamado mundo livre, sob a tutela dos americanos, com a organização militar da NATO como guarda avançada. E começou com a ocupação pelas tropas do Exército Vermelho de quase todos os países da Europa central e oriental na sua ofensiva final sobre a Alemanha, a que se seguiu a imposição de regimes políticos de “democracia popular” da sua cor, sem liberdades cívicas ou políticas, com a divisão da própria Alemanha e o estabelecimento de uma “cortina de ferro” entre o Leste e o Ocidente.
Esta divisão ideológica e militar-estratégica rapidamente tomou contornos globais. Estáline, que dominava sem qualquer oposição interna, viu o seu bloco europeu reforçado em 1949 com a vitória dos comunistas chineses na guerra civil que se reacendeu no país após a derrota do Japão, não hesitou em ajudar a facção “vermelha” na guerra da Coreia (1950-53, mas que deixou o país dividido até hoje), perdeu a guerra civil na Grécia (1946-49) mas encorajou os fortes partidos comunistas de França e de Itália a ocuparem o máximo possível de posições de poder aproveitando o prestígio da sua mais recente condição de resistentes contra os alemães, mesmo depois de terem deixado de fazer parte dos governos saídos das respectivas libertações nacionais. Mas ambos os blocos tinham contradições interiores, ou que os atravessavam a ambos. A URSS defrontou-se com a dissidência dos comunistas jugoslavos chefiados por Tito (1948) e teve de reprimir pela força insurreições de húngaros em 1956 e de checoslovacos em 1968. Por seu lado, em 1948 Israel proclama a sua independência e logo rebenta uma primeira guerra com os árabes da região; apesar da simpatia geral do movimento socialista para com a causa hebraica, o conflito de soberanias israelo-árabe que aqui se origina vai dividir as principais potências, com o Ocidente (e sobretudo os americanos) a apoiarem os judeus e o bloco de Leste a apostar na causa dos árabes. E Portugal, governado desde 1926 por uma ditadura com fortes simpatias nazi-fascistas mas que mantinha a sua aliança com a Inglaterra, cedera bases nos Açores aos aliados (1943-44) e preservava importantes colónias africanas, acabou por entrar como membro fundador da NATO (1949), graças à sua posição geo-estratégica e à firme determinação anti-comunista do seu governo (gozando também da fama de ser uma “ditadura branda”).
De facto, no auge da “guerra fria” a política externa americana não olhou a meios para tentar evitar que novos países caíssem sob a influência da URSS. Por exemplo, logo nos anos 50 celebrou um tratado de cooperação militar com o regime ditatorial do general Franco para a instalação de bases aéreas em Espanha. E apoiou os governos saídos de golpes militares em diversos países que se posicionavam contra a “subversão comunista”, incluindo os casos do Brasil em 1964, da Grécia em 1967, do Chile em 1973 e da Argentina em 1976 (onde os generais quiseram afastar o que restava do regime populista-direitista, mas nacionalista e anti-americano, de Perón). A perda de Cuba para o “outro lado” em 1959 levou Washington a sustentar, militar e financeiramente, na América Latina vários regimes deploráveis, do ponto de vista dos direitos humanos.
Neste período de expansão económica do pós-guerra, os países de cultura ocidental experimentaram evoluções sensíveis nas suas condições de vida, com os sindicatos de trabalhadores, bem implantados nas empresas e com forte poder de pressão e negociação, a conseguirem aumentos de salários sustentáveis e outras melhorias, embora por vezes também se prestassem a servir de alavanca para ideologias e objectivos políticos. E o movimento feminista conheceu uma segunda vaga de reivindicação internacional, denunciando o papel subordinado da mulher na sociedade e nas leis, praticando o birth control (de que o planeamento familiar acabou por ser a forma mais inócua) e reivindicando o acesso a todas as profissões bem como a paridade salarial em relação aos homens com a mesma qualificação. Um incremento muito notável nos níveis de escolarização dos jovens, a laicização da vida pública, o apagamento do mundo rural e o desenvolvimento das actividades de lazer na esfera urbana marcaram também decisivamente esta segunda metade do séc. XX.
Mas, naquela época do pós-guerra, o quadro de afrontamento Leste-Oeste mais significativo ocorreu “por interposta pessoa” no âmbito do processo de descolonização, em África e no Sueste Asiático, antes e depois da “crise de Suez” (1956), antes e depois da aguda “crise dos mísseis” em Cuba no Outono de 1962, em que o mundo terá estado à beira de uma guerra nuclear – o que, diga-se de passagem, relançou o movimento pacifista internacional que, de certa maneira, foi o sinal anunciador da revolta libertária da juventude que culminou no movimento de Maio de 1968 em França.
Com efeito, tirando as lições do sacrifício da vida dos seus filhos aos interesses das potências coloniais na anterior guerra mundial, os movimentos nacionalistas ou emancipadores dos povos sob tutela europeia souberam neste segundo pós-guerra impor a condição da obtenção das suas independências nacionais para as ajudar no novo conflito. E, à parte as guerrilhas no Kénia e na Malásia, a Inglaterra compreendeu que soara a hora dessa alforria concedendo logo em 1947 a independência à Índia (que então se separou litigiosamente do Paquistão), e nas décadas de 50/60 às suas colónias africanas, sem mais efusão de sangue. E até a União Sul-Africana (“branca”) e a República da Irlanda acabaram por cortar os seus laços com Londres nesta decorrência emancipatória. Idêntico caminho seguiram a Holanda e a Bélgica. Mas não a França, que procurou defender militarmente as suas colónias indo-chinesas e acabou derrotada em Dien-Bien-Phu em 1954; e que sustentou uma difícil e complicada campanha na Argélia que só terminou com a concessão da independência em 1962, à custa da subida ao poder do general de Gaule e do estabelecimento de uma nova constituição, “semi-presidencialista”, bem talhada à sua medida (a Vª República, que se mantém em vigor). As suas restantes colónias beneficiaram desta luta e na década de 60 todas elas se tinham tornado estados independentes.
O movimento de descolonização revelou-se como uma etapa histórica inevitável. Herdou as abnegadas campanhas de desobediência civil de Gandhi na Índia e alguns contributos dos idealistas movimentos pan-africanos e pan-arábicos; mas também deu vazão aos apetites de poder das novas classes dirigentes locais, fosse na versão de burguesias proprietárias dos instrumentos de riqueza deixados pelos colonizadores brancos, fosse enquanto profissionais qualificados e burocratas de Estado com capacidade de mando. Em ambos os casos, assenhorearam-se de boa parte do produto nacional em prejuízo da esmagadora maioria da população, que continuou muitas vezes miserável, e puseram-se como intermediários externos dos países de que ainda dependiam, económica ou politicamente.
De facto, a conferência de Bandung (1955), que parecia ser o momento fundador de um genuíno “não-alinhamento” das nações recém-descolonizadas com qualquer dos dois blocos rivais da “guerra fria”, acabou por se revelar mais um embuste político, com os governos dos países signatários a deixarem-se cada vez mais instrumentalizar pelas orientações políticas do Kremlin, tanto nas suas relações económicas ou militares como nas votações nas Nações Unidas e em outros areópagos internacionais. Mas, verdade seja que a partir da década de 60 a coesão do bloco de Leste foi quebrada por um insanável conflito ideológico surgido entre russos e chineses no seio do movimento comunista mundial – o que obviamente favoreceu o bloco oposto. A unidade entre as novas nações também não resistiu a alguns conflitos económicos, de religião ou ideologia política: veja-se a separação litigiosa do Bangladesh relativamente ao Paquistão ocidental (1971), a guerra Irão-Iraque (1980-88) ou a invasão do Kuait pelo Iraque (1991). Finalmente, a conjugação de interesses entre o “3º mundo” e o bloco socialista sofreu um rude golpe quando a URSS invadiu e se lançou numa guerra sem glória no Afeganistão (1979-89).
E os Estados Unidos, que sempre tinham apoiado a causa da emancipação dos africanos, na lógica de contrariar o avanço do bloco de Leste, acabaram por se envolver no Vietnam numa guerra para a qual não tinham as armas adequadas nem a vontade dos seus jovens, e que acabaram por perder em 1975; como exactamente na mesma altura viram cair a resistência que o governo português opunha em África à independência das suas colónias, assistindo a mais um alargamento do espaço de influência de Moscovo.
Por outro lado, a resistência do “poder branco” (sobretudo de franceses, portugueses, americanos; e sul-africanos ou israelitas) em abandonar as suas posições imperiais ou de defesa do seu “último reduto” teve um outro efeito muito negativo: o de estimular o desenvolvimento das técnicas de guerra subversiva e, mais tarde, do chamado terrorismo internacional. São modelos de conflito “assimétricos”, em que à fraqueza militar de uma das partes se contrapõe o recurso a formas de actuação consideradas ilegítimas (moral ou legalmente) pela outra parte, que assim fica inibida de as combater no mesmo terreno. As técnicas psicológicas da propaganda para “conquistar as massas” são aqui usadas com tanta eficácia como as técnicas bélicas da guerrilha, do terrorismo, da tortura ou das “lavagens de cérebro”. E o resultado destas “guerras subversivas” – que sempre acabaram por sair vencedoras no terreno – foi o de uma descodificação e desregulação do direito da guerra (que o séc. XIX tinha laboriosamente posto de pé) que desmoralizou ambos os contendores. E, a prazo mais ou menos curto, levou à instauração de novos regimes opressores nos países libertados, ou então de guerras civis entre suas facções, tribos ou regiões.
Em todo o caso, nos territórios colonizados pelos ingleses e que não viveram este tipo de guerras de libertação nacional, como a Índia, a África do Sul ou a Namíbia, os progressos económicos e sociais foram sensíveis para os respectivos povos e os seus nacionalismos geralmente menos agressivos para com terceiros. Nestes (e noutros) casos, as independências constituíram-se como modos de consolidação de uma consciência de nação – capaz de se apresentar ao mundo enquanto tal, com cultura e identidade próprias –, que até então era ténue ou mesmo inexistente.
Entretanto, a partir de 1974, surge uma nova dinâmica promotora dos regimes políticos democráticos, com a queda da ditadura em Portugal, depois na Grécia, em Espanha, no Brasil e em outros países da América Latina. E uma segunda vaga acontece a partir de 1989 nos países do centro e leste da Europa, após a destruição pacífica do “muro de Berlim”.
Deve acentuar-se que a segunda metade do séc. XX conheceu processos de aceleração e mudança extraordinários, em quase todos os planos.
No domínio da ciência e da tecnologia, a utilização pacífica da energia nuclear constituiu desde logo uma alternativa para a produção eléctrica, embora com elevados níveis de risco, que já afloraram em acidentes graves nos Estados Unidos, na antiga URSS ou mais recentemente no Japão e que foram uma das motivações fortes para o surgimento de um novo movimento social (transnacional), dito ecologista, que desde há meio-século pugna, através de meios essencialmente não-violentos, por um maior respeito pela natureza, a conservação da biodiversidade, a redução das poluições e dos desperdícios, com um urbanismo e uma actividade agrícola, extractiva e industrial menos agressivos para o ambiente.
Mas a electrónica, uma mecânica muito mais elaborada e precisa, a química e a disponibilização de novos materiais (plásticos, fibras artificiais, carbonos, etc.) modificaram grande parte dos artefactos e produtos de uso corrente, da maquinaria e outros equipamentos, tornando-os mais baratos e reduzindo muito o uso da lã, do algodão, da borracha, da madeira ou do aço. A indústria espacial tornou-se uma realidade – apenas ao alcance de três ou quatro grandes potências. Mais barata e interessante para quem pretende modelar os comportamentos humanos foi a evolução experimentada pelos mass media. Se a rádio tinha sido um instrumento privilegiado de influenciação das massas pelos totalitarismos antecedentes, a televisão tornou mais fascinante e subtil tal possibilidade de condicionamento, tanto com objectivos lucrativos (sobretudo através da publicidade) como com intuitos políticos ou de luta pelo poder com legitimação democrática. E nos últimos anos do século iniciou-se uma nova era, com a difusão mundial da informática e das telecomunicações electrónicas potenciadas pelos satélites, agora ao alcance de qualquer cidadão, desde que já minimamente “letrado” nestas novas linguagens e formas de comunicação, essencialmente áudio-visuais. Segundo os conceitos sociológicos vigentes, o mundo tem vindo cada vez mais a funcionar “em rede”. E a transferência de grandes volumes de trabalho da agricultura e da indústria para o “terciário” teve consequências insuspeitadas: nestas sociedades, as pessoas têm agora as mãos mais higiénicas e cuidadas para poderem entregar-se a gestos mais finos e delicados.
A bio-química e a medicina conheceram nestes anos progressos espectaculares, permitindo o aumento da esperança de vida e mesmo desafiando convicções humanas seculares. Sobre esta base material e técnica, a vontade libertadora e de conquista humana agora potenciada pela melhoria do bem-estar e pelo clima de liberdades cívicas e consignação de direitos presentes nas democracias liberais evoluiu paulatinamente para um modelo civilizacional de afirmação individualista, hedonista e violador de todo e qualquer tabu socialmente estabelecido. A sexualidade foi um terreno de excelência para a propagação de novos comportamentos. A criação cultural e artística, um motor da sua difusão mais alargada e legitimada. Os espectáculos de massas, uma sua privilegiada manifestação colectiva.
Embora por vezes travado por crises, o sistema económico catapultou-se em ritmos de crescimento económico elevados, mas beneficiando muito desigualmente os diversos actores sociais e os diversos países e regiões do globo. O abaixamento das barreiras alfandegárias e a concorrência, cada vez mais ampla, tendeu à criação de uma economia muito baseada no consumo das populações e no crédito. E foi este processo que, no fundo, ditou o colapso final das economias socialistas do Leste, incapazes de acompanhar o dinamismo dos mercados no Ocidente, alicerçados na liberdade individual e no reconhecimento amplo de direitos, num tempo em que a escolaridade e a informação permitiam a cada um ter uma visão do mundo mais e mais abrangente. Mas a evolução social e política destes países de Leste ainda não está completamente clarificada, entre as expectativas de enriquecimento do padrão de vida ocidental e as suas desilusões, ou as nostalgias do seu “Estado-social” e da sua influência política mundial. Também as “vanguardas” políticas e culturais no Ocidente que seguiam, mais ou menos fielmente, tal modelo de “socialismo realizado” ainda não digeriram completamente esta reviravolta histórica.
A “queda do comunismo” na Rússia e países vizinhos processou-se por “implosão”, da qual a China pôde fugir devido ao facto de, com antecipação (a partir dos anos 70), ter corrigido drasticamente a sua trajectória e ter “inventado” uma progressiva mas avassaladora entrada na economia capitalista de mercado – interna e externamente –, ao mesmo tempo que conservava com mão férrea a concepção marxista-leninista-maoista do partido único e da restrição das liberdades individuais ou sociais. Hoje, é vista como a grande potência em ascensão, fazendo centrar sobre o Pacífico a área geo-política mais decisiva do próximo futuro e, de certa maneira, liderando o conjunto de grandes países que conseguiram entretanto progressos de desenvolvimento assinalável, como a Índia, a África do Sul, o Brasil e outros.
Nos últimos anos do século XX temeu-se o “império” (económico, militar e cultural) da única super-potência sobrevivente (os EUA), a hegemonia de um “pensamento único” ou, pelo contrário, acreditou-se numa vitória final e definitiva da democracia. Mas foram ilusões rapidamente erodidas pela realidade. O mundo árabe-islâmico afirmou-se na cena internacional por diversos modos, e sempre em posição de desafio ao Ocidente: com o controlo das suas riquezas petrolíferas; com um invejado uso capitalista da economia dos petrodólares; com uma demografia vigorosa e uma juventude muito mobilizável; com uma integração cultural que já desapareceu no Ocidente (e mesmo no espaço ex-socialista do Leste); e com minorias politicamente fanáticas, prontas a vingar um contencioso histórico de séculos, que se julgaria já resolvido pela Modernização.
A finalizar o século XX, uma economia globalizada e o salto tecnológico e cultural que potenciou a “sociedade da informação” levantam tantos problemas quantas as perspectivas aliciantes que parecem abrir. Uma consciência universalista é hoje mais palpável e largamente perceptível em inúmeras fracções das classes médias urbanas, independentemente dos países em que vivem e de culturas que permanecem ancoradas a realidades sociais diversas, ou até mesmo de vivências espirituais muito fragmentadas. Mas as instituições internacionais (da ONU ou outras) há anos que parecem bloqueadas pelo sistema de relações inter-estatais existente e não está à vista qualquer tipo de “governo mundial”. Esta é talvez a contradição fundamental dos tempos actuais.
No Ocidente, e particularmente na Europa, a experiência de uma sociedade de abundância e de um Estado-providência parece ter desgastado o discernimento e capacidade de afirmação dos povos com base nos seus melhores valores morais e culturais. A construção europeia surgia como um projecto aliciante para, respeitando as identidades de cada um, levantar um espaço amplo de cooperação que superasse as rivalidades do passado histórico e lograsse uma projecção externa multidimensional (e não, como habitualmente, exclusivamente fundada na economia e no poder militar). Porém, ela tem sofrido sucessivos solavancos, com saltos-para-diante porventura pouco acautelados (integração, alargamento) e algumas reacções negativas por parte dos poderes nacionais (o Reino Unido, a recusa da Noruega, a divisão conflitual dos Balcãs, a “inter-governamentalização”, o “directório” dos mais fortes, etc.), com aproveitamento dos benefícios por parte das populações mas também – devemos reconhecê-lo – com um seu inquietante alheamento perante as possibilidades que lhes estão franqueadas e as responsabilidades que lhes cabem, enquanto cidadãos.
JF / 12.Jun.2015