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domingo, 21 de junho de 2015

Bons ventos!

Encerramos por aqui esta segunda série de crónicas desassombradas e ensaios sócio-lógicos, que já leva dois anos e meio de análises e reflexões.

Muitos dos textos inseridos referem-se à vida política, em particular na forma como ela vai sendo modelada em Portugal. Não se trata de uma fixação particular do autor neste tema, nem ele é geralmente muito agradável de tratar, mas apenas porque, numa perspectiva de cidadania e da polis como responsabilidade de todos e de cada um, a política sobrepõe-se, em última instância, a todos os outros aspectos das nossas vidas. Note-se, porém, que esta percepção só se tornou possível com a progressiva instalação da Modernidade (e do Estado-nação) pois que até então a política era, não só (como hoje) uma actividade exclusiva de uns poucos – os que detinham o poder e dominavam a sociedade, e os que procuravam conquistar tal posição –, como de facto a grande maioria das pessoas se concebia, pensava e agia fora de tais preocupações, dedicando-se antes a assegurar a sua sobrevivência material, a usufruir da felicidade possível, a tratar dos interesses e dos negócios, ou a cuidar da salvação da sua alma.
O mundo mudou imenso neste último meio-século, geralmente para melhor, mas também com aspectos negativos, que não podem ser ignorados e que é importante conhecer e combater. 
Não sei se estas crónicas e análises irão ainda prosseguir. Dependerá das circunstâncias e da minha relação com elas. E também é certo que detesto repetir-me.
Parto da minha auto-análise. Olho para trás, para o que fiz, para o que pensei. O que é que isto pode revelar a respeito de mim próprio? Se não estou a ser demasiado auto-complacente, talvez uma hierarquia de três características o possa resumir. Primo: A orientação valorativa mais profunda, mais determinante, terá sido sempre a procura de respostas e de comportamentos pessoais éticos, isto é, que conseguissem distinguir o bem do mal, o melhor do menos bom, o princípio estruturante da mera circunstância, etc.; e de, assim clarificado o terreno, procurar em seguida um lugar e um caminho próprios (não será isto arrogância? soberba?), mesmo contra interesses pessoais vistos como legítimos pelos demais, ou pagando algum isolamento dentro do grupo de pertença face à necessidade de denúncia dos seus “pecados”. Sempre me marcou a frase de um histórico: “de mal com el-rei por amor dos homens, e de mal com os homens por amor d’el-rei”. Neste sentido, tal não pode deixar de tomar-se se não como um idealismo, quer isso tenha assumido temporariamente a forma de Deus, da pátria, de uma instituição, da liberdade, da Ciência ou da humanidade. Secundo: Posso talvez identificar a busca, sem interditos, de explicações racionais, lógicas, comprováveis, para tudo aquilo que nos rodeia, sobretudo no Homem e na Sociedade. Daí o interesse que, desde miúdo, nutri pela disciplina da História, a insatisfação para com o conhecimento consolidado enquanto verdade indiscutível partilhada com auto-satisfação por uma dada comunidade (a nação, a classe social, os colegas, a família). Foi talvez aquilo que Foucault chamou a “vontade de saber”. Mas sempre implicando uma atitude crítica para com o “instituído” e também uma necessária modéstia acerca do nosso saber face à imensidão do que desconhecemos. Tertio: Enfim, uma postura activa, de esforço pessoal e cooperativo – em suma: de trabalho –, não apenas como fonte de experiência directa mas talvez sobretudo como “transacção cultural”, que salda as dívidas de injustiças externas (a desigual distribuição da inteligência, da riqueza, da beleza, etc.) e de benefícios usufruídos imerecidamente (a educação recebida, uma carreira profissional bafejada pelas circunstâncias, etc.) com esta “postura de trabalhador”, que daí tira o seu principal orgulho.
Há sempre ventos, inesperados e cortantes, que vêm perturbar a calmaria em que nos instalamos ou as previsões mais pessimistas. Oxalá os próximos permitam a renovação das melhores esperanças que persistentemente têm alimentado a aventura humana.

João Freire / 21.Jun.2015

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Doze mil palavras acerca da Modernidade: apogeu e crise do Estado-nação; o advento da “mundialidade” – 2ª Parte: Século XX

O Ocidente entrou no séc. XX cheio de belas expectativas. As Grandes Exposições, surgidas nas últimas cinco décadas, constituem as novas Festividades pagãs que se vão substituindo aos marcos dos calendários religiosos tradicionais: organizadas pelas elites, mas com usufruto estendido às cada vez mais extensas populações urbanas. E o turismo, inicialmente apenas aristocrático, burguês e aventureiro, acabará por estender-se às classes populares a partir de meados do século, quando começam a esboçar-se as formas de uma democracia social. O desporto, o espectáculo desportivo e a “compensação naturalística” têm também aqui um papel primordial.
Quase todas as modalidades desportivas modernas foram codificadas em Inglaterra, mas o seu impacto foi muito forte e rápido nos países ocidentais e, progressivamente, no mundo inteiro. Denotando as intenções cavalheirescas e as origens aristocráticas dos seus fundadores, os Jogos Olímpicos forjaram em poucos anos uma mitologia de superação humana, de lealdade e convívio internacional absolutamente surpreendentes. No mesmo espírito, embora mais rude e estimulante do envolvimento das classes populares, o futebol tornou-se uma prática distractiva universal. E outras actividades físicas seguiram o mesmo trilho: o atletismo, a ginástica, as lutas, o ciclismo, etc.   
Igualmente os movimentos juvenis, e em particular o escutismo, constituem novidades do séc. XX. Num ambiente urbano que cada vez mais ignorava o mundo natural que o rodeava, bons educadores tiveram a ideia de ocupar e ensinar os jovens no conhecimento sensível desse meio biológico indispensável e, simultaneamente, no desenvolvimento de valores de altruísmo e solidariedade, independentemente de raças, religiões, nacionalidades ou classes sociais. Como é lógico, as Igrejas viram aqui uma possibilidade de proselitismo; e as ideologias totalitárias (fascismo, comunismo, nazismo, fundamentalismo islâmico) vieram a apostar a fundo neste domínio. Mas os movimentos sociais da juventude (inicialmente separados segundo o sexo) tomaram muitas feições, políticas e sociais, e não podem ser simplificadamente descritos como vinculados a tal ou tal ideologia. Representam, sim, uma procura de emancipação social, malgrado o facto de se tratar de uma condição ou identidade apenas transitória na linha da vida de cada indivíduo.
Perto destas iniciativas experimentadas pelas populações urbanas, de um momentâneo “regresso à natureza”, situam-se também as práticas naturistas, que desabrocham com grande vivacidade entre algumas minorias no início de Novecentos: o vegetarianismo, o nudismo solar ou o campismo. Em núcleos muito mais reduzidos e com outras implicações mais complexas, divulgam-se também práticas libertinas ou libertárias como a liberdade sexual ou a vida em comunidade.
O feminismo conhece por esta época a sua primeira vaga de afirmação internacional, em particular com as reivindicações “sufragistas”, reclamando o direito de voto para todas as mulheres, independentemente do estado civil, condição social, rendimentos ou literacia, nos países onde os governos eram já ditados pelas urnas eleitorais. Mas também na literatura e nas artes, na progressão escolar, na afirmação profissional em determinadas actividades (professorado, saúde, etc.) e no protesto contra as principais formas de subordinação da mulher ao homem (na lei e nos costumes, incluindo a prostituição), o movimento de emancipação social das mulheres inicia aqui a sua grande marcha, que prosseguirá por etapas até aos nossos dias.
Com o alargamento da escolaridade e da literacia, aumenta o número de leitores da imprensa e das obras literárias; os grandes romancistas são facilmente traduzidos em várias línguas. Nas ciências físicas, é a descoberta das radiações e da composição íntima da matéria, mais a formulação da teoria da relatividade por Einstein, que marcam decisivamente a aventura do novo século. Os Prémios Nobel (produto da riqueza e provável “má-consciência” do sueco inventor da dinamite) vêm consagrar e divulgar estas principais figuras da ciência e da cultura. Ao mesmo tempo que a febre da competição estimula e celebra as proezas (e alguns desastres) dos aventureiros-descobridores dos últimos recantos da Terra até então inacessíveis aos humanos – os pólos e os principais cumes montanhosos – e se lança na aventura da conquista dos ares.
De facto, abandonando pouco a pouco a experiência do balonismo, o motor de explosão e um melhor conhecimento da física dos fluidos permite a invenção e rápida divulgação do avião, logo aproveitado como arma de guerra, mas que se irá estender para o transporte civil de passageiros de forma cada vez mais abrangente, maciça e irreversível. E, paralelamente, o automóvel substitui progressivamente quase todos os anteriores meios de transporte terrestre, transformando a vida das cidades, as mobilidades de pessoas e mercadorias, impulsionando o turismo. Entrávamos numa civilização marcada pelos equipamentos mecânicos, não apenas na esfera da produção, mas também na cidade e no próprio espaço doméstico. A partir daqui, o carvão vai sendo substituído pelos derivados do petróleo como fonte energética principal, directamente e para responder à procura crescente de electricidade.
Por outro lado, as artes aumentam o seu impacto sobre a sociedade. O teatro – que sempre é uma representação viva de fragmentos da vida – conquista novos públicos, mais populares. E emergem novas disciplinas artísticas já tributárias dos desenvolvimentos da pequena mecânica, da óptica e da química: a fotografia e o cinema são as artes do séc. XX, aptas a influírem sobre as novas “sociedades de massas”, urbanas e desenraizadas, a primeira sobretudo através da propaganda e da publicidade, a segunda percutindo profundamente os imaginários individuais e colectivos. A música também acompanha este movimento, ao deixar à parte o concerto instrumental ou sinfónico e o canto lírico, de um lado, e a música folk tradicional (rural) de outro, para fluir em novas tonalidades de raiz urbana – por vezes dançável – mas especializada segundo os meios sociais específicos onde se foi gerando: os blues, o fado, o tango, o jazz, a java, o charlston, o samba, a rumba, o rock, a pop, etc. A dança clássica atinge um cume mas vai ceder progressivamente o seu lugar ao “ballet contemporâneo”. Porém, no plano estético, as grandes rupturas trazidas pelo novo século situaram-se na pintura e na música erudita, com a chegada das telas não-figurativas e abstractas (mais tarde ultrapassadas pelo surrealismo) e com a invenção de formas de música não-melódica: uma e outra traduzem decerto as perplexidades existenciais do indivíduo no mundo Moderno, mas são também porventura um modo de evitar confrontos directos com obras-primas já criadas e talvez insuperáveis, empurrando os criadores para a descoberta de novas pistas e linguagens. 
Partindo dos balbuciamentos da psicologia, com Freud e a psicanálise inaugura-se um continente novo da esfera do saber: a exploração do inconsciente em cada um de nós, com aplicações terapêuticas e efeitos colaterais em várias das ciências humanas em construção (a linguística, a antropologia, etc.).
Na escultura e sobretudo na arquitectura, operam-se também importantes rupturas, com os criadores a decretarem a certidão de óbito de estilos como o vitoriano ou o neo-clássico e a terem clientes disponíveis para pagar o experimentalismo de novas formas de edificar e compor o espaço urbano.
Mas, para além da art nouveau e do “modernismo”, da Bahaus ou Le Corbusier na arquitectura, e das frivolidades da belle époque, o séc. XX inaugura-se também com a hecatombe da chamada Grande Guerra. E aqui se gera um fenómeno de choque existencial, de estilhaçamento de todas as anteriores representações “unitárias” da condição humana de que ainda andamos hoje a procurar “apanhar os cacos”. Sem o recurso a uma explicação religiosa; conhecendo as mais promissoras vantagens do mundo da técnica; tendo atingido a maioridade em termos de progresso humano ao se decretar a liberdade e a igualdade como valores essenciais para a dignidade de todos os Homens – como foi possível que este século tenha começado por se destruir num conflito bélico que vitimou milhões de pessoas? Como foi possível que, na sua imediata decorrência, se tivessem posto de pé, com farto aplauso popular e também de certas elites pensantes, dois sistemas políticos ditatoriais (o nazi-fascismo na Alemanha e na Itália e o comunismo na Rússia) em que o chefe e o Estado eram tudo e os cidadãos eram nada? Como foi possível pensar-se e executar-se o holocausto de milhões de judeus e outras minorias “não-arianas”? Como foi possível cair-se em nova guerra mundial com ainda mais milhões de mortos? E ter-se recorrido à bomba atómica – com os efeitos devastadores que se sabem – para evitar o prolongamento da catástrofe? Foi destes desconcertos que mais tarde Orwell deu conta literariamente e que outros da mesma geração e sensibilidade puderam escrever, em plena “guerra fria”, desafiando toda a lógica então esmagadoramente dominante: “o mundo livre, de facto, não é livre; e o mundo comunista, realmente, não é comunista”. 
A História está cheia destas descoincidências: neste caso, a Rússia socialista (1917-1991) ficou conhecida, formalmente, como “União Soviética”, quando nunca foi nem União, nem soviética. Não constituiu uma União porque esta é uma agregação contratual de unidades políticas com identidade e autonomia próprias, como a actual União Europeia, que aliás melhor seria designada por Confederação Europeia, mas cujo desígnio era (é?), no olhar de Delors, Soares e consortes, de facto o de caminhar em direcção a uma verdadeira federação, como a dos EUA. E jamais foi efectivamente “soviética” pois o Estado construído pelos marxistas bolcheviks após a tomada do poder central da Rússia perseguiu implacavelmente os sovietes (conselhos), que eram os órgãos de deliberação colectiva local dos “deputados operários, camponeses, soldados e marinheiros” eleitos pelos seus pares nas estruturas de base, neste caso, produtivas e militares.
Mas, cortando cerce os entusiasmos ideológicos de um punhado de “conselhistas” que permaneceram fiéis a esta ideia generosa da revolução da Rússia, também se diga que esta fórmula de “democracia proletária” escondia a tese marxista da “ditadura do proletariado”. Segundo esta concepção, além da expropriação das riquezas privadas (bens de raiz, fábricas, negócios), a burguesia devia ser privada de direitos políticos (concretamente, o direito de voto, para sustentar o poder do Estado) durante a fase de transição da sociedade para o “comunismo”. Este último conceito queria significar a materialização da ideia utópica do fim da “divisão-do-trabalho”, da abolição das classes sociais e da dissolução do Estado, o qual era interpretado como o instrumento de opressão de uma classe social sobre outras, segundo as ideias propagadas pelas escolas de pensamento socialista do séc. XIX. Por outro lado, estes sovietes, surgidos mais ou menos espontaneamente nos levantamentos populares de 1905, também concretizaram em 1917-21 a “aliança operária-camponesa” de concepção leninista, conjuntamente com o oportunismo táctico do próprio Lénine, que a associou às expectativas dos milhares de filhos do povo que tinham sido mobilizados para a guerra e que, estando em armas e muito descontentes, poderiam ser o instrumento decisivo para deitar abaixo o czarismo. Algo que nós conhecemos em Portugal com a “aliança povo-MFA” em 1974-75.
A guerra que rebentou em 1914 teve causas hoje inteiramente compreensíveis à luz da nefasta combinação de factores como foram as rivalidades entre as potências europeias que disputavam entre si um lugar predominante na economia mundial, a sede de lucro dos industriais do armamento, o espírito nacionalista imbuído em largas massas das populações, o ethos belicista dos comandos militares e aquele tipo de “reacções-em-cadeia” que, sem premeditação, acabam por conduzir ao desastre. Terá sido o que aconteceu com o sistema de alianças entre nações que devia prevenir ou travar um conflito no espaço europeu. Mas seria realmente previsível uma tal catástrofe (que, em tal caso, condenaria em absoluto os responsáveis políticos nacionais)?
Como se sabe, a guerra teve um papel decisivo no rápido desenvolvimento de novas tecnologias. Isso verificou-se com a aviação, tal como aconteceu também relativamente ao submarino e a outras armas sub-aquáticas. No conflito que ensanguentou a Europa entre 1914 e 1918 assistiu-se à pesarosa conjugação de concepções militares tácticas exercitadas desde um passado remoto (fortíssima densidade de combatentes lutando face-a-face por cada “palmo de terreno”) com a novidade de armas de destruição muito mais poderosas (a metralhadora, a artilharia pesada, os gases, as bombas de aviação e os “tanques”) e de meios de deslocação e comunicação mais rápidos: os referidos aviões (no reconhecimento do terreno e do inimigo, e no seu bombardeamento); os camiões para transporte de homens e abastecimentos, bem como para a evacuação de feridos; as bicicletas e motocicletas, os telefones e a TSF para a transmissão de ordens e informações – com o declínio correspondente do cavalo e de todo o instrumental e saberes ligados ao seu uso militar.
Esta guerra também acelerou os ensaios já em curso de uma nova organização do trabalho industrial, em grande série. A racionalização “taylorista” dividiu ao máximo as tarefas do operário, simplificando-as, à custa de maior monotonia, mas tornando-as acessíveis a qualquer um, sem formação prévia. Deste modo puderam entrar na fábrica mulheres, camponeses, imigrantes e outros até então estranhos ao universo mecânico da indústria. E o mesmo se fez em breve na Rússia dos bolcheviks. Em paralelo avançou a mecanização da agricultura, rentável em planícies e para produção em grande escala. E no mundo dos escritórios instalou-se uma burocracia administrativa procedimental mais rígida, hierárquica e rigorosa, embora propícia ao encorajamento de diversos “vícios”, em proveito “do sistema” e não especialmente dos objectivos oficialmente perseguidos. No sector do comércio, o “grande armazém” de vendas a retalho (por departamentos de famílias de produtos) já tinha aparecido no século anterior; mas enquanto este resistiu às crises provocadas pela guerra e o pós-guerra, a pequena loja de comércio foi muito atingida pelas novas condições económicas, o mesmo acontecendo com inúmeras oficinas de artesãos. Daí uma “proletarização” acelerada da pequena-burguesia.
Como consequências de grande magnitude desta Iª Guerra Mundial (que, contudo, se focou essencialmente no espaço europeu) podem evidenciar-se as seguintes: -primeira experiência de revolução e de construção de uma sociedade socialista estatal (a URSS); -reacções nacionalistas autoritárias em Itália e na Alemanha, mas também na Hungria, na Roménia, em Espanha, Portugal, Brasil ou Argentina, devido às humilhações sofridas com a guerra, ao descrédito do parlamentarismo liberal e a uma virulenta rejeição anti-comunista; -envolvimento de muitos soldados dos territórios coloniais das potências europeias nesta guerra, com milhares de mortos e estropiados e sem qualquer proveito para os seus países-natais (lição que eles não irão esquecer); -criação de uma estrutura supra-nacional de manutenção da paz (a Sociedade das Nações, com sede em Genebra), que se mostrou completamente ineficaz, com excepção do seu “departamento social”, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) que, apesar das dificuldades de entendimento social e político, pôde contribuir para a melhoria da condição universal dos trabalhadores assalariados; -crise económica e financeira de grande profundidade nos anos 20/30, que inclusivamente obriga a uma intervenção estatal na economia nos Estados Unidos e leva os governos das principais potências a nova corrida armamentista como meio de absorverem o desemprego e se precaverem contra uma eventual desforra da Alemanha.
Com efeito, a sedução das massas por um fanático como Hitler relançou em poucos anos o “III Reich” numa rota imparável de mobilização, propaganda, violência, expansionismo e ânsia de domínio do espaço europeu e mesmo mundial. Tendo usado a desgraçada guerra civil de Espanha (1936-39) como campo de manobras para as suas novas tácticas militares (panzers e “guerra-relâmpago”, bombardeamentos aéreos maciços, combates de “caças”, etc.), negociado um tratado vergonhoso (para os comunistas) com a vizinha URSS sobre as costas do povo polaco e encontrado nos judeus o “bode expiatório” que ele acabou por levar à loucura do Holocausto, o Fuhrer julgou-se suficientemente forte para desencadear uma nova guerra, extremamente mortífera, contra as democracias ocidentais em Setembro de 1939 e, em Junho de 1941, também contra a URSS. A seu lado esteve a Itália e as forças que conseguiu mobilizar nos países que ocupou (voluntariamente ou à força); e a partir de 1942 contou também estrategicamente com o Japão que abriu guerra no Extremo-Oriente, oceano Pacífico e Sueste Asiático contra os aliados ocidentais, que se apresentavam como defensores da democracia, da liberdade e dos direitos humanos: estes foram, essencialmente, os ingleses (e países do Commonwealth) e os americanos, a que se juntaram os franceses que não aceitaram a rendição do seu governo em 1940 e outros resistentes de países ocupados pelos alemães; pela força das circunstâncias, também a URSS deu um importante contributo a esta aliança contra-natura com os países demo-liberais.  
A IIª Guerra Mundial foi ainda mais devastadora do que a primeira. Mas a resiliência defensiva dos russos, a indomável combatividade dos britânicos e a capacidade produtiva e escala de mobilização humana da nação americana foram suficientes para parar na Europa os avanços germânicos e os levar à derrota militar, na qual ficou também patente a sua falta de poder naval, a despeito da encarniçada guerra submarina em que se haviam de novo lançado. No Pacífico, a resistência militar dos japoneses ao contra-ataque americano foi mais eficaz, pelas condições geográficas desse teatro de operações e sobretudo pelo espírito guerreiro e patriótico da casta militar nipónica, tendo o governo dos Estados Unidos acabado por decidir o emprego da ainda experimental bomba atómica em Agosto de 1945 para abreviar o fim do conflito. O Japão, a quem faltavam fontes energéticas básicas e matérias-primas para a sua indústria, tinha-se tornado uma potência expansionista e agressiva que ocupara militarmente a Manchúria (1932) e levara depois a guerra à China (1937), e finalmente ao ataque-surpresa a Pearl Harbor (Dezembro de 1941), à Indochina, às Filipinas e às colónias inglesas e holandesas da região. Mas aquela polémica decisão – que muitos vêem como a vontade dos americanos mostrarem ao mundo a sua superioridade militar – acabou por marcar o início da “era atómica” e lançar uma nova corrida armamentista, agora entre os Estados Unidos e a URSS, dois dos aliados vencedores da IIª Guerra Mundial, mas com sistemas políticos e económico-sociais bem diferenciados e mutuamente hostis.
Desta vez, a derrota militar do “eixo” não levou à humilhação externa dos vencidos, em vez disso bastando o castigo exemplar dos principais chefes, uma auto-infligida culpa moral assumida pelas populações e a imposição cautelar de determinadas condições de regime político (democrático) e de forças armadas (defensivas). Pelo contrário, os americanos ajudaram economicamente a reconstrução desses países, assentando neles uma boa parte da sua posição dominante no meio século que se seguiu.
O pós-guerra, com a criação da Organização das Nações Unidas, os acordos de Bretton-Woods, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e um longo período de recuperação e crescimento das economias ocidentais com base na reposição das cidades destruídas (para as indústrias de bens de equipamento) e no alargamento do mercado interno (para a produção de bens de consumo duráveis, como os electrodomésticos e o automóvel), não foi contudo isento de conflitos internacionais, bem longe disso. Apenas deixaram de ser guerras formalmente declaradas e formalmente encerradas com tratados de paz entre os beligerantes, assumindo geralmente o carácter de conflitos localizados ou específicos. Tudo isto se passou no quadro da “guerra fria” entre o bloco socialista liderado pelos russos e o chamado mundo livre, sob a tutela dos americanos, com a organização militar da NATO como guarda avançada. E começou com a ocupação pelas tropas do Exército Vermelho de quase todos os países da Europa central e oriental na sua ofensiva final sobre a Alemanha, a que se seguiu a imposição de regimes políticos de “democracia popular” da sua cor, sem liberdades cívicas ou políticas, com a divisão da própria Alemanha e o estabelecimento de uma “cortina de ferro” entre o Leste e o Ocidente. 
Esta divisão ideológica e militar-estratégica rapidamente tomou contornos globais. Estáline, que dominava sem qualquer oposição interna, viu o seu bloco europeu reforçado em 1949 com a vitória dos comunistas chineses na guerra civil que se reacendeu no país após a derrota do Japão, não hesitou em ajudar a facção “vermelha” na guerra da Coreia (1950-53, mas que deixou o país dividido até hoje), perdeu a guerra civil na Grécia (1946-49) mas encorajou os fortes partidos comunistas de França e de Itália a ocuparem o máximo possível de posições de poder aproveitando o prestígio da sua mais recente condição de resistentes contra os alemães, mesmo depois de terem deixado de fazer parte dos governos saídos das respectivas libertações nacionais. Mas ambos os blocos tinham contradições interiores, ou que os atravessavam a ambos. A URSS defrontou-se com a dissidência dos comunistas jugoslavos chefiados por Tito (1948) e teve de reprimir pela força insurreições de húngaros em 1956 e de checoslovacos em 1968. Por seu lado, em 1948 Israel proclama a sua independência e logo rebenta uma primeira guerra com os árabes da região; apesar da simpatia geral do movimento socialista para com a causa hebraica, o conflito de soberanias israelo-árabe que aqui se origina vai dividir as principais potências, com o Ocidente (e sobretudo os americanos) a apoiarem os judeus e o bloco de Leste a apostar na causa dos árabes. E Portugal, governado desde 1926 por uma ditadura com fortes simpatias nazi-fascistas mas que mantinha a sua aliança com a Inglaterra, cedera bases nos Açores aos aliados (1943-44) e preservava importantes colónias africanas, acabou por entrar como membro fundador da NATO (1949), graças à sua posição geo-estratégica e à firme determinação anti-comunista do seu governo (gozando também da fama de ser uma “ditadura branda”). 
De facto, no auge da “guerra fria” a política externa americana não olhou a meios para tentar evitar que novos países caíssem sob a influência da URSS. Por exemplo, logo nos anos 50 celebrou um tratado de cooperação militar com o regime ditatorial do general Franco para a instalação de bases aéreas em Espanha. E apoiou os governos saídos de golpes militares em diversos países que se posicionavam contra a “subversão comunista”, incluindo os casos do Brasil em 1964, da Grécia em 1967, do Chile em 1973 e da Argentina em 1976 (onde os generais quiseram afastar o que restava do regime populista-direitista, mas nacionalista e anti-americano, de Perón). A perda de Cuba para o “outro lado” em 1959 levou Washington a sustentar, militar e financeiramente, na América Latina vários regimes deploráveis, do ponto de vista dos direitos humanos.
Neste período de expansão económica do pós-guerra, os países de cultura ocidental experimentaram evoluções sensíveis nas suas condições de vida, com os sindicatos de trabalhadores, bem implantados nas empresas e com forte poder de pressão e negociação, a conseguirem aumentos de salários sustentáveis e outras melhorias, embora por vezes também se prestassem a servir de alavanca para ideologias e objectivos políticos. E o movimento feminista conheceu uma segunda vaga de reivindicação internacional, denunciando o papel subordinado da mulher na sociedade e nas leis, praticando o birth control (de que o planeamento familiar acabou por ser a forma mais inócua) e reivindicando o acesso a todas as profissões bem como a paridade salarial em relação aos homens com a mesma qualificação. Um incremento muito notável nos níveis de escolarização dos jovens, a laicização da vida pública, o apagamento do mundo rural e o desenvolvimento das actividades de lazer na esfera urbana marcaram também decisivamente esta segunda metade do séc. XX.  
Mas, naquela época do pós-guerra, o quadro de afrontamento Leste-Oeste mais significativo ocorreu “por interposta pessoa” no âmbito do processo de descolonização, em África e no Sueste Asiático, antes e depois da “crise de Suez” (1956), antes e depois da aguda “crise dos mísseis” em Cuba no Outono de 1962, em que o mundo terá estado à beira de uma guerra nuclear – o que, diga-se de passagem, relançou o movimento pacifista internacional que, de certa maneira, foi o sinal anunciador da revolta libertária da juventude que culminou no movimento de Maio de 1968 em França.
Com efeito, tirando as lições do sacrifício da vida dos seus filhos aos interesses das potências coloniais na anterior guerra mundial, os movimentos nacionalistas ou emancipadores dos povos sob tutela europeia souberam neste segundo pós-guerra impor a condição da obtenção das suas independências nacionais para as ajudar no novo conflito. E, à parte as guerrilhas no Kénia e na Malásia, a Inglaterra compreendeu que soara a hora dessa alforria concedendo logo em 1947 a independência à Índia (que então se separou litigiosamente do Paquistão), e nas décadas de 50/60 às suas colónias africanas, sem mais efusão de sangue. E até a União Sul-Africana (“branca”) e a República da Irlanda acabaram por cortar os seus laços com Londres nesta decorrência emancipatória. Idêntico caminho seguiram a Holanda e a Bélgica. Mas não a França, que procurou defender militarmente as suas colónias indo-chinesas e acabou derrotada em Dien-Bien-Phu em 1954; e que sustentou uma difícil e complicada campanha na Argélia que só terminou com a concessão da independência em 1962, à custa da subida ao poder do general de Gaule e do estabelecimento de uma nova constituição, “semi-presidencialista”, bem talhada à sua medida (a Vª República, que se mantém em vigor). As suas restantes colónias beneficiaram desta luta e na década de 60 todas elas se tinham tornado estados independentes.
O movimento de descolonização revelou-se como uma etapa histórica inevitável. Herdou as abnegadas campanhas de desobediência civil de Gandhi na Índia e alguns contributos dos idealistas movimentos pan-africanos e pan-arábicos; mas também deu vazão aos apetites de poder das novas classes dirigentes locais, fosse na versão de burguesias proprietárias dos instrumentos de riqueza deixados pelos colonizadores brancos, fosse enquanto profissionais qualificados e burocratas de Estado com capacidade de mando. Em ambos os casos, assenhorearam-se de boa parte do produto nacional em prejuízo da esmagadora maioria da população, que continuou muitas vezes miserável, e puseram-se como intermediários externos dos países de que ainda dependiam, económica ou politicamente.
De facto, a conferência de Bandung (1955), que parecia ser o momento fundador de um genuíno “não-alinhamento” das nações recém-descolonizadas com qualquer dos dois blocos rivais da “guerra fria”, acabou por se revelar mais um embuste político, com os governos dos países signatários a deixarem-se cada vez mais instrumentalizar pelas orientações políticas do Kremlin, tanto nas suas relações económicas ou militares como nas votações nas Nações Unidas e em outros areópagos internacionais. Mas, verdade seja que a partir da década de 60 a coesão do bloco de Leste foi quebrada por um insanável conflito ideológico surgido entre russos e chineses no seio do movimento comunista mundial – o que obviamente favoreceu o bloco oposto. A unidade entre as novas nações também não resistiu a alguns conflitos económicos, de religião ou ideologia política: veja-se a separação litigiosa do Bangladesh relativamente ao Paquistão ocidental (1971), a guerra Irão-Iraque (1980-88) ou a invasão do Kuait pelo Iraque (1991). Finalmente, a conjugação de interesses entre o “3º mundo” e o bloco socialista sofreu um rude golpe quando a URSS invadiu e se lançou numa guerra sem glória no Afeganistão (1979-89).
E os Estados Unidos, que sempre tinham apoiado a causa da emancipação dos africanos, na lógica de contrariar o avanço do bloco de Leste, acabaram por se envolver no Vietnam numa guerra para a qual não tinham as armas adequadas nem a vontade dos seus jovens, e que acabaram por perder em 1975; como exactamente na mesma altura viram cair a resistência que o governo português opunha em África à independência das suas colónias, assistindo a mais um alargamento do espaço de influência de Moscovo.
Por outro lado, a resistência do “poder branco” (sobretudo de franceses, portugueses, americanos; e sul-africanos ou israelitas) em abandonar as suas posições imperiais ou de defesa do seu “último reduto” teve um outro efeito muito negativo: o de estimular o desenvolvimento das técnicas de guerra subversiva e, mais tarde, do chamado terrorismo internacional. São modelos de conflito “assimétricos”, em que à fraqueza militar de uma das partes se contrapõe o recurso a formas de actuação consideradas ilegítimas (moral ou legalmente) pela outra parte, que assim fica inibida de as combater no mesmo terreno. As técnicas psicológicas da propaganda para “conquistar as massas” são aqui usadas com tanta eficácia como as técnicas bélicas da guerrilha, do terrorismo, da tortura ou das “lavagens de cérebro”. E o resultado destas “guerras subversivas” – que sempre acabaram por sair vencedoras no terreno – foi o de uma descodificação e desregulação do direito da guerra (que o séc. XIX tinha laboriosamente posto de pé) que desmoralizou ambos os contendores. E, a prazo mais ou menos curto, levou à instauração de novos regimes opressores nos países libertados, ou então de guerras civis entre suas facções, tribos ou regiões.
Em todo o caso, nos territórios colonizados pelos ingleses e que não viveram este tipo de guerras de libertação nacional, como a Índia, a África do Sul ou a Namíbia, os progressos económicos e sociais foram sensíveis para os respectivos povos e os seus nacionalismos geralmente menos agressivos para com terceiros. Nestes (e noutros) casos, as independências constituíram-se como modos de consolidação de uma consciência de nação – capaz de se apresentar ao mundo enquanto tal, com cultura e identidade próprias –, que até então era ténue ou mesmo inexistente.
Entretanto, a partir de 1974, surge uma nova dinâmica promotora dos regimes políticos democráticos, com a queda da ditadura em Portugal, depois na Grécia, em Espanha, no Brasil e em outros países da América Latina. E uma segunda vaga acontece a partir de 1989 nos países do centro e leste da Europa, após a destruição pacífica do “muro de Berlim”.
Deve acentuar-se que a segunda metade do séc. XX conheceu processos de aceleração e mudança extraordinários, em quase todos os planos.
No domínio da ciência e da tecnologia, a utilização pacífica da energia nuclear constituiu desde logo uma alternativa para a produção eléctrica, embora com elevados níveis de risco, que já afloraram em acidentes graves nos Estados Unidos, na antiga URSS ou mais recentemente no Japão e que foram uma das motivações fortes para o surgimento de um novo movimento social (transnacional), dito ecologista, que desde há meio-século pugna, através de meios essencialmente não-violentos, por um maior respeito pela natureza, a conservação da biodiversidade, a redução das poluições e dos desperdícios, com um urbanismo e uma actividade agrícola, extractiva e industrial menos agressivos para o ambiente.
Mas a electrónica, uma mecânica muito mais elaborada e precisa, a química e a disponibilização de novos materiais (plásticos, fibras artificiais, carbonos, etc.) modificaram grande parte dos artefactos e produtos de uso corrente, da maquinaria e outros equipamentos, tornando-os mais baratos e reduzindo muito o uso da lã, do algodão, da borracha, da madeira ou do aço. A indústria espacial tornou-se uma realidade – apenas ao alcance de três ou quatro grandes potências. Mais barata e interessante para quem pretende modelar os comportamentos humanos foi a evolução experimentada pelos mass media. Se a rádio tinha sido um instrumento privilegiado de influenciação das massas pelos totalitarismos antecedentes, a televisão tornou mais fascinante e subtil tal possibilidade de condicionamento, tanto com objectivos lucrativos (sobretudo através da publicidade) como com intuitos políticos ou de luta pelo poder com legitimação democrática. E nos últimos anos do século iniciou-se uma nova era, com a difusão mundial da informática e das telecomunicações electrónicas potenciadas pelos satélites, agora ao alcance de qualquer cidadão, desde que já minimamente “letrado” nestas novas linguagens e formas de comunicação, essencialmente áudio-visuais. Segundo os conceitos sociológicos vigentes, o mundo tem vindo cada vez mais a funcionar “em rede”. E a transferência de grandes volumes de trabalho da agricultura e da indústria para o “terciário” teve consequências insuspeitadas: nestas sociedades, as pessoas têm agora as mãos mais higiénicas e cuidadas para poderem entregar-se a gestos mais finos e delicados.
A bio-química e a medicina conheceram nestes anos progressos espectaculares, permitindo o aumento da esperança de vida e mesmo desafiando convicções humanas seculares. Sobre esta base material e técnica, a vontade libertadora e de conquista humana agora potenciada pela melhoria do bem-estar e pelo clima de liberdades cívicas e consignação de direitos presentes nas democracias liberais evoluiu paulatinamente para um modelo civilizacional de afirmação individualista, hedonista e violador de todo e qualquer tabu socialmente estabelecido. A sexualidade foi um terreno de excelência para a propagação de novos comportamentos. A criação cultural e artística, um motor da sua difusão mais alargada e legitimada. Os espectáculos de massas, uma sua privilegiada manifestação colectiva.   
Embora por vezes travado por crises, o sistema económico catapultou-se em ritmos de crescimento económico elevados, mas beneficiando muito desigualmente os diversos actores sociais e os diversos países e regiões do globo. O abaixamento das barreiras alfandegárias e a concorrência, cada vez mais ampla, tendeu à criação de uma economia muito baseada no consumo das populações e no crédito. E foi este processo que, no fundo, ditou o colapso final das economias socialistas do Leste, incapazes de acompanhar o dinamismo dos mercados no Ocidente, alicerçados na liberdade individual e no reconhecimento amplo de direitos, num tempo em que a escolaridade e a informação permitiam a cada um ter uma visão do mundo mais e mais abrangente. Mas a evolução social e política destes países de Leste ainda não está completamente clarificada, entre as expectativas de enriquecimento do padrão de vida ocidental e as suas desilusões, ou as nostalgias do seu “Estado-social” e da sua influência política mundial. Também as “vanguardas” políticas e culturais no Ocidente que seguiam, mais ou menos fielmente, tal modelo de “socialismo realizado” ainda não digeriram completamente esta reviravolta histórica.
A “queda do comunismo” na Rússia e países vizinhos processou-se por “implosão”, da qual a China pôde fugir devido ao facto de, com antecipação (a partir dos anos 70), ter corrigido drasticamente a sua trajectória e ter “inventado” uma progressiva mas avassaladora entrada na economia capitalista de mercado – interna e externamente –, ao mesmo tempo que conservava com mão férrea a concepção marxista-leninista-maoista do partido único e da restrição das liberdades individuais ou sociais. Hoje, é vista como a grande potência em ascensão, fazendo centrar sobre o Pacífico a área geo-política mais decisiva do próximo futuro e, de certa maneira, liderando o conjunto de grandes países que conseguiram entretanto progressos de desenvolvimento assinalável, como a Índia, a África do Sul, o Brasil e outros. 
Nos últimos anos do século XX temeu-se o “império” (económico, militar e cultural) da única super-potência sobrevivente (os EUA), a hegemonia de um “pensamento único” ou, pelo contrário, acreditou-se numa vitória final e definitiva da democracia. Mas foram ilusões rapidamente erodidas pela realidade. O mundo árabe-islâmico afirmou-se na cena internacional por diversos modos, e sempre em posição de desafio ao Ocidente: com o controlo das suas riquezas petrolíferas; com um invejado uso capitalista da economia dos petrodólares; com uma demografia vigorosa e uma juventude muito mobilizável; com uma integração cultural que já desapareceu no Ocidente (e mesmo no espaço ex-socialista do Leste); e com minorias politicamente fanáticas, prontas a vingar um contencioso histórico de séculos, que se julgaria já resolvido pela Modernização.
A finalizar o século XX, uma economia globalizada e o salto tecnológico e cultural que potenciou a “sociedade da informação” levantam tantos problemas quantas as perspectivas aliciantes que parecem abrir. Uma consciência universalista é hoje mais palpável e largamente perceptível em inúmeras fracções das classes médias urbanas, independentemente dos países em que vivem e de culturas que permanecem ancoradas a realidades sociais diversas, ou até mesmo de vivências espirituais muito fragmentadas. Mas as instituições internacionais (da ONU ou outras) há anos que parecem bloqueadas pelo sistema de relações inter-estatais existente e não está à vista qualquer tipo de “governo mundial”. Esta é talvez a contradição fundamental dos tempos actuais.  
No Ocidente, e particularmente na Europa, a experiência de uma sociedade de abundância e de um Estado-providência parece ter desgastado o discernimento e capacidade de afirmação dos povos com base nos seus melhores valores morais e culturais. A construção europeia surgia como um projecto aliciante para, respeitando as identidades de cada um, levantar um espaço amplo de cooperação que superasse as rivalidades do passado histórico e lograsse uma projecção externa multidimensional (e não, como habitualmente, exclusivamente fundada na economia e no poder militar). Porém, ela tem sofrido sucessivos solavancos, com saltos-para-diante porventura pouco acautelados (integração, alargamento) e algumas reacções negativas por parte dos poderes nacionais (o Reino Unido, a recusa da Noruega, a divisão conflitual dos Balcãs, a “inter-governamentalização”, o “directório” dos mais fortes, etc.), com aproveitamento dos benefícios por parte das populações mas também – devemos reconhecê-lo – com um seu inquietante alheamento perante as possibilidades que lhes estão franqueadas e as responsabilidades que lhes cabem, enquanto cidadãos.
JF / 12.Jun.2015

sexta-feira, 5 de junho de 2015

Doze mil palavras acerca da Modernidade: apogeu e crise do Estado-nação; o advento da “mundialidade” – 1ª Parte: Século XIX

Para o melhor e para o pior, a Revolução Francesa forçou o caminho da nossa Modernidade, da qual estamos agora a balbuciar os ensaios de uma ultrapassagem. Porquê este termo de Modernidade, cunhado principalmente por sociólogos, quando já estava enraizada uma divisão sistemática dos tempos organizada pelos historiadores, segundo os quais a Idade Moderna correspondia ao período iniciado pelo Renascimento (a cultura neo-clássica, mais o desabrochar da ciência e a descoberta do globo) e a Idade Contemporânea ao período que vinha desde a Revolução Francesa até aos dias actuais? Porquê? (Para além das querelas interdisciplinares…) Parece-nos que por três razões principais: para significar o declínio das religiões sobre o modo de organizar e fazer funcionar as sociedades humanas; para evidenciar os princípios de igual dignidade, de direitos fundamentais e de liberdade essencial de cada indivíduo; e para afirmar a primazia do Estado-nação, num determinado território e acerca de uma determinada população, sobre qualquer outra forma de organização do poder e do recurso à violência (por exemplo: o poder tribal ou religioso, a pirataria, etc.).
Todos devemos alguma coisa à Revolução Francesa, desde as repúblicas sul-americanas até ao nosso “5 de Outubro” e à Revolução Russa. Mas, na verdade, não foi realmente apenas a Revolução Francesa que deu ao mundo este “mundo moderno”. A constituição da nação americana, na sua luta de independência face ao poder do rei inglês, deu contributos ideológicos e pragmáticos essenciais, e talvez ainda mais consistentes e perenes. A própria Inglaterra, que tão empenhadamente combateu pelas armas a exportação dos princípios revolucionários e o expansionismo bonapartista, acabou, uma vez vencido este, por adoptar, com prudência e método, uma parte do seu ideário humanista. Mas, por detrás de tudo, no plano das ideias, estão os filósofos “iluministas”, tendo sido tão importantes os ateus ou individualistas franceses como os pragmáticos e utilitaristas (e também individualistas) britânicos; os primeiros, forneceram alimento para as futuras teorias da Revolução e do Estado como se fossem o nec plus ultra das realizações societárias e também para diversas ideias generosas sobre o “bom selvagem”; os segundos, geralmente mais pessimistas acerca da “verdadeira” natureza humana, empenharam-se sobretudo em moderar o poder dos fortes e em minorar a inconsciência ou inconstância dos pobres e das multidões através de meios como a promulgação de certas leis reformistas, o trabalho disciplinado, a instrução ou mesmo (ainda por pragmatismo) o temor dos castigos divinos. Godwin e Malthus são bons exemplos disto.
Com a Modernidade, o Estado-nação atingiu a sua época de maior esplendor. Neste período, os Impérios ainda subsistem, mas não conseguem ter longas durações históricas e mantêm-se por vezes à custa de transacções ou sob formas adulteradas. De facto, o império Otomano foi sendo, pouco a pouco, reduzido e a Grande Guerra (1914-18) pô-lo na dimensão actual, como república turca. O império Áustro-Húngaro foi um falso império desde que perdeu a Lombardia e a Venécia para a unificação italiana e com aqueles dois estados constituindo como que uma união real, só praticável no tempo em que as nações estavam na posse de monarquias hereditárias. Pelo contrário, independentemente do nome, a Rússia foi um império, não só pela extraordinária extensão do seu território (que lhe dá uma vantagem estratégica incomparável) mas sobretudo pela violência com que, ao longo de séculos, foi subjugando povos das suas periferias sem a mínima afinidade cultural com o seu cristianismo ortodoxo, nomeadamente no arco islâmico, e ainda logrou a transição para um regime social e económico inovador sem alterar muito o carácter autoritário e centralista do seu poder político e o modo como usa os seus instrumentos de força.
Quanto aos impérios coloniais, os de Portugal, Espanha e Holanda tinham raízes antigas e no séc. XIX procuraram salvaguardar o que lhes foi possível, enquanto a França, a Bélgica, a Alemanha e a Itália chegaram tarde a essa corrida mas, graças a políticas ofensivas, conseguiram ainda talhar em África pedaços significativos de tal espólio. Somente a Inglaterra, apoiada numa indústria vigorosa e um poder marítimo consistente, soube construir um verdadeiro império global, com direcção política unificada. Porém, ao fim de pouco mais de um século de exploração eficaz deste modelo económico, todos tiveram de baixar bandeira e recolher às suas origens, perante um novo surto de nacionalismos: no princípio do séc. XIX, este movimento havia emancipado (e estilhaçado) a América Latina, no que aliás apenas seguiam o exemplo do que anos antes haviam feito os norte-americanos; agora, a seguir à II Guerra Mundial, é a África e a cintura sul do continente asiático que expulsam os colonizadores europeus e fundam várias dezenas de novos estados, alguns deles ainda hoje à procura da sua identidade nacional.
E o império Americano arrisca-se a durar menos do que isso: assente no vigor demográfico de uma nação nova, ainda em fase de integração e crescimento; com uma escala territorial suficiente e uma capacidade económica de grande dinamismo; e sobretudo com um poder militar insuperável (embora com certas fragilidades) – é contudo um “império virtual”, que ascendeu e se alimentou do conflito estratégico entre o Ocidente e o Leste do séc. XX, sob as bandeiras da liberdade capitalista e do socialismo-de-Estado, mas que subsiste hoje com dificuldades de afirmação em quase todos os terrenos. Finalmente, os impérios Chinês e Nipónico tiveram até agora características apenas regionais: são, por assim dizer, velhos e coesos estados nacionais que, de tempos a tempos, se têm disputado entre si no espaço apertado do Extremo-Oriente.
Deste modo, a história que se relança no início do séc. XIX, com os mundos africanos, muçulmanos e orientais ainda quase fechados, uma nação americana empenhada em construir-se, os impactos da Revolução Francesa e os efeitos da Conferência de Viena é, numa ideia definitiva, a história da afirmação dos estados-nação: internamente, contra os poderes que lhe foram antecedentes e que não lhes cederam o lugar “de-mão-beijada”, mas também contra os movimentos sociais da Modernidade que bem cedo começaram a questioná-los e que sempre têm sabido reinventar-se; externamente, contra os interesses e apetites de outros estados-nação rivais e, só muito recentemente, pela emergência de sinais e formas de uma consciência supra-nacional, mundialista, que os desafia e lhes corrói os alicerces.
Vejamos então com um pouco mais de detalhe alguns dos momentos-chave que marcaram a evolução desse séc. XIX que, em certa medida, encarreirou o que veio a acontecer no seguinte.
Nas décadas de 1820-1840 a indústria vai-se expandindo em países como a Inglaterra, a França e a Alemanha. A máquina-a-vapor começa a substituir a potência animal ou humana na produção manufactureira e aplica-se à novidade do caminho-de-ferro e mesmo à propulsão dos navios. Produzem-se então efeitos inesperados e virtuosos de “arrastamento económico”, com um boom na produção têxtil, na metalurgia e na exploração mineira do carvão e do ferro, e um acelerado crescimento da riqueza nacional, porém muito desigualmente distribuída: consumo sumptuário e re-investimento produtivo por parte das classes dominantes (aristocratas, novos-burgueses e alta burocracia de Estado); salários certos (o que era uma melhoria em relação à miséria do pequeno agricultor), mas baixos (pela abundância da mão-de-obra) e sem garantias nem protecções para a crescente classe trabalhadora.
Esta atracção pela grande indústria de massas consideráveis de populações que vegetavam nos campos traz consigo novos problemas de vida urbana e, esporadicamente, revoltas sociais. Na Grã-Bretanha ganham (má) fama os gestos clandestinos de destruição de máquinas (pela mão de um misterioso e imaginário “capitão Ludd”), as quais eram vistas como responsáveis pela depreciação dos salários e perda de empregos do operariado directamente afectado; enquanto em França ocorrem levantamentos maciços de trabalhadores como aconteceu com os tecelões de Lyon em 1831 (os “canuts”) – sempre com impiedosa repressão por parte dos poderes públicos e ao abrigo de leis que criminalizavam quaisquer “coligações” de interesses, que eram então consideradas como um atentado à liberdade individual (neste caso, a de procurar um emprego e de se conformar com as condições oferecidas) e, no fundo, como obstáculo a uma “fluidez” do mercado de trabalho, até então entravado e muito condicionado pelos múltiplos regulamentos de natureza corporativa-artesanal sobreviventes desde a Idade Média. Neste quadro, todas as respostas alternativas que surgiram no terreno, dispersamente, com o propósito de resolver a “questão social” ficaram apenas como tentativas vãs, mais ou menos interessantes e prenhes de reaproveitamentos futuros, mas incapazes de contrariar esta marcha inexorável do “progresso”: lembremos as experiências “associativas” do industrial e reformador social escocês Robert Owen, os “equitativos pioneiros” de Rochdale fundadores do cooperativismo de consumo, o relançamento dos “monte-pios” e outras associações populares de socorros mútuos ou os ateliers nationaux com que os primeiros socialistas franceses tentaram solucionar a crise de trabalho que sobreveio à queda da monarquia em 1848.
Às características deste novo mercantilismo capitalista – um modo tecnologicamente inovador e economicamente expansivo e transformador da criação de riqueza – vem somar-se um assinalável desenvolvimento dos negócios bancários e seguradores, a criação das sociedades anónimas e das bolsas de transacções financeiras, a normalização das moedas e dos pesos-e-medidas, a codificação jurídica dos processos civis e criminais, e uma forte afirmação dos direitos da propriedade privada, livremente transaccionável. Mais tarde vêm as aplicações das novas ciências, como a química e a electricidade, com o telégrafo e o cabo submarino a constituírem a primeira grande rede universal de rápida circulação de informações, e com os correios, a interconexão dos transportes marítimos e a prevenção de epidemias a gerarem as primeiras convenções inter-estatais de coordenação e cooperação para pôr o mundo um pouco mais integrado e mais protegido de ameaças involuntárias. Mais para o final do séc. XIX virá o animado debate ideológico entre proteccionismo e livre-cambismo mas, por agora, eram as grandes nações com economias dinâmicas que procuravam fazer estoirar os monopólios de soberania que impediam o comércio livre (embora sujeito a taxas alfandegárias e outras alcavalas): que o diga Portugal, por exemplo, que foi obrigado a subscrever tratados de comércio e navegação com quase todos esses países, incluindo neles a abertura dos portos das suas possessões ultramarinas. E a partir de meio do século a Inglaterra foi capaz de, pouco a pouco, fazer vingar a tese do livre-cambismo, com o abaixamento das suas próprias barreiras alfandegárias e o consequente aumento da circulação e da produção, e o embaratecimento dos preços dos produtos.
Mas os avanços no mundo e o enriquecimento das duas principais potências europeias não se desenrolaram sempre de forma pacífica e linear. No interior das suas próprias fronteiras, enquanto a Inglaterra acolhe sem especiais sobressaltos os efeitos do movimento democrático “cartista” (anos 30-40, mostrando a sua insatisfação face à reforma eleitoral de 1832) e a capacidade de mobilização crescente das trade unions (os sindicatos de trabalhadores assalariados), pelo contrário resiste sem ceder à pressão do campesinato pobre da Irlanda, que simultaneamente colocava questões de ordem política, agrária e religiosa, e que, acutilado por uma terrível “grande fome”, encontrará na emigração maciça para a América a sua única via de saída (caso espantoso em que a população desceu para metade em meio século). Em França os fulgores revolucionários populares levam a duas insurreições violentas (1848 e 1871) e às correspondentes respostas repressivas, sendo que do primeiro daqueles processos, sempre muito politizados, acabou por sair uma restauração imperial da família Bonaparte que, como alguém célebre disse, “na primeira vez tomou a forma de drama, mas na segunda de farsa”. Externamente, ambos os países tiveram que tomar a sério os permanentes e sucessivos movimentos nacionalistas que, por meio de guerras, levantamentos ou golpes-de-Estado, foram remodelando o mapa das fronteiras políticas da Europa: a criação, bastante artificial, da Bélgica (1830); o esmagamento das aspirações nacionais dos polacos, que ficaram submetidos ao poder da Rússia (em 1831 e de novo em 1863); mais atrasados, os países ibéricos, não só perderam os seus territórios americanos como entraram em guerras civis dinásticas que lhes consumiram recursos, endividaram externamente e atrasaram a sua modernização; e entre os poderes instalados na Turquia e no Egipto rebentaram conflitos que deram oportunidade à Inglaterra e à França de porem o pé no Próximo-Oriente e à Rússia de abrir uma porta de saída marítima para o Mediterrâneo. Esta zona foi palco da guerra da Crimeia (1854-55) entre ingleses, franceses e turcos de um lado, e russos do outro, no termo da qual se convencionou a neutralização daquele mar interior, a internacionalização do rio Danúbio e uma precária afirmação da autonomia da Sérvia ou da Moldávia. E a região dos Balcãs (despojos do império otomano) manteve-se instável durante muito tempo.
Mas foram sobretudo os processos de unificação da Alemanha e da Itália – o primeiro mais político, o segundo mais militar – que vieram trazer, a prazo, novas preocupações e concorrência às lideranças da Inglaterra e da França, quer na Europa quer posteriormente na “corrida à África”, tanto no predomínio dos seus produtos industriais como na ocupação de pontos estratégicos para um eventual confronto militar. De facto, o coração da Europa continuou a ser palco de conflitos bélicos, agora sobretudo por disputas de fronteiras e antagonismos nacionais. Na Europa central, a casa dos Habsburgos conseguiu com o imperador Francisco José organizar à sua volta um considerável domínio regional, estendido aos húngaros (1867), aos checos, aos eslovenos ou aos bósnios (1878), absorvendo as suas pulsões autonomistas. Porém, os austríacos perderam as batalhas de Magenta e Solferino em 1859-60 contra os patriotas italianos (ajudados pela França) e em 1866 a de Sadowa para os prussianos, sendo nessa mesma altura constrangidos a abandonar Veneza e todo o nordeste de Itália. Foi destes desastres humanitários que surgiu a criação da Cruz Vermelha e a Iª Convenção de Genebra (1864) para a protecção dos militares feridos ou doentes em campanha. Não por acaso, a sua sede ficou sempre na Suíça, um país que conseguiu manter a sua neutralidade em todos estes conflitos. Mas a unificação do reino de Itália, com Vítor Manuel II e o seu ministro Cavour, apenas ficou concluída em 1870, ao estabelecer-se a capital em Roma e o fim dos Estados da Igreja com o seu recolhimento ao território simbólico do Vaticano (que só seria aceite em concordata em 1929, pelo papa Pio XI com o ditador fascista Mussolini no poder). 
A Alemanha consegue de forma mais paulatina a sucessiva congregação das dezenas de pequenos estados em que estava dividida, incluindo o Schleswig-Hollstein dinamarquês e a Baviera católica, sob a tutela da Prússia e da casa Hohenzollern, a direcção política de Bismark e o comando militar de Molkte, culminando numa guerra contra a França em 1870, da qual obtém os vastos e ricos territórios da Alsácia e da Lorena.
Mas as guerras ocorreram também em territórios periféricos e longínquos. Para garantir o seu domínio nos territórios de além-mar, a Inglaterra teve de travar duras campanhas militares no Afeganistão já em concorrência com russos e persas (1839-42 e 1878-80), na Índia contra os sikhs do Punjab (1849) e para dominar a revolta dos spahis (sipaios) iniciada em 1857, no Sudão contra o seguidores do Madi (1898) e no sul de África, primeiramente contra Zulus insubmissos (1879), depois contra os colonos holandeses boers há muito ali instalados (1880-81 e 1899-1902). A França, sob Napoleão III, conquistou militarmente a Indochina a partir de 1857, meteu-se numa aventura mexicana de que saiu chamuscada (1866-67) e empenhou-se na exploração e assenhoreamento de extensos territórios na África Ocidental, da Senegâmbia ao golfo da Guiné e ao Congo, tudo aventuras com custos financeiros pesados para as finanças públicas das metrópoles mas com risonhas promessas de lucros a curto e médio prazo.
Fazendo disso um ponto forte da sua política externa, a Inglaterra exerceu ao longo do séc. XIX um papel de polícia dos mares para travar e erradicar os fluxos de transporte de escravos africanos para as plantações do sul dos Estados Unidos, de Cuba e outras ilhas do Caribe, e do Brasil. Os interesses económicos de americanos, espanhóis, portugueses e brasileiros foram duramente atingidos, bem como os dos africanos que capturavam os seus irmãos de cor e os vendiam na costa aos negociantes ocidentais. Este tráfico ainda resistiu durante mais algumas décadas com as rotas alternativas, por mar e por terra, da África oriental para a Arábia, o golfo Pérsico e a Índia. Quanto aos comerciantes brancos, prosseguiram na troca de armas, pólvora e álcool contra marfim, peles e a exploração da borracha, até que a descoberta de minas de diamantes desencadeou uma nova corrida de europeus àquelas zonas tropicais. Foi um processo oitocentista muito semelhante àquele que lançou nas pistas do oeste americano toda a sorte de aventureiros, negociando com os povos autóctones artigos semelhantes (de novo, armas, pólvora e álcool, agora contra peles de búfalo), apropriando-se das suas melhores terras e por fim encontrando nas jazidas de ouro o chamariz mais apelativo para um mirífico enriquecimento rápido.    
Neste período expansionista e com governos adquiridos às ideias fundamentais do liberalismo, a França tenta recuperar o atraso que regista face à Inglaterra no que toca à sua presença no mundo, começando por conquistar e se adjudicar a Argélia (1830) para disputar a hegemonia naval que aquela detém no Mediterrâneo. Mas a Inglaterra, já com a rainha Vitória no trono (1837-1901), visa muito mais longe. Assegurando-se por modos vários do controlo económico e político da Índia, vira-se para o Extremo-Oriente e provoca a abertura comercial da China na sequência das guerras do ópio, que venceu militarmente (1839-42 e 1856-60).
A China, que tinha contido o anterior império mongol e dominado a Coreia, a Manchúria e a península indo-chinesa, encontrava-se então em grande decadência e teve que fazer estas concessões não apenas à Inglaterra, mas também seguidamente à França, à Rússia e mesmo, mais tarde, à Alemanha e aos Estados Unidos. Assim surgiram a posição inglesa de Hong-Kong, os estratégicos portos russos de Vladivostok e Port Arthur, e as concessões territoriais e de direitos de navegação fluvial ocidentais nos principais eixos de penetração – ZhuJiang ou Rio das Pérolas desaguando em delta, no sul, junto a Cantão [actualmemnte escrito Guangzhou], o rio Yang-Tsé [Yangtze] que chega ao mar perto de Nankin [Nanjing] e Xangai [Shanghai], e o Rio Amarelo ou Hwang Ho [Huanghe] mais a norte, não muito longe de Pequim [Beijing].      
Quanto ao Japão, depois de séculos de isolamento (com a excepção do pequeno entreposto português de Nagasaki) em 1868 começa a era Meiji, com o imperador a impor o fim do feudalismo e do poder dos samurais e a promover aceleradamente a modernização do país, abrindo os portos ao comércio ocidental e mandando os seus jovens cultos estudar para a Europa e aqui aprenderem as ciências e técnicas modernas. Com os rápidos progressos alcançados mas mantendo muito fortes alguns dos traços culturais do país (a fidelidade, o belicismo, a honra), o Japão irá entrar no séc. XX com aspirações de domínio imperial não apenas do Extremo-Oriente mas mesmo capaz de desafiar os americanos no Pacífico.  
Por outro lado, as chamadas colónias de povoamento (Canadá, Austrália, Nova-Zelândia e província do Cabo, no sul de África) são um bom escoadouro para os excessos populacionais do Reino Unido e para a deportação dos mais indesejados; e na medida em que esta colonização produz bons resultados na agricultura, criam-se novas fontes de abastecimento alimentar (e sumptuário) para o consumo interno e de matérias-primas para a indústria metropolitana (algodão, etc.), ao mesmo tempo que os produtos e a maquinaria em ferro dos transportes (comboios e navios) necessária a este comércio de penetração e longa distância sustentam a sua indústria pesada. E, a prazo, criaram-se países anglófonos, que em grande parte ainda hoje constituem uma comunidade cultural e simbólica com algum significado. Entretanto, os processos de migração económica das populações europeias mais pobres ou desintegradas para “terras de oportunidades” foram-se massificando ao longo do séc. XIX, sobretudo em direcção às Américas: irlandeses, alemães, polacos, russos, italianos e portugueses aliviaram dessa forma as suas tensões internas e os seus países beneficiaram das remessas amealhadas por esses seus emigrantes.
Os choques de interesses nacionais levaram as diplomacias dos estados ocidentais a procurar racionalizar o seu apossessamento das riquezas africanas, ao mesmo tempo que se atribuíam a benemérita missão de civilizar aqueles povos mais atrasados. Para além da influência dos valores cristãos (muito etnocêntricos, claro), três razões fortes impeliam para esta percepção dos ocidentais face a estes povos da África e da América: o facto do poder “político” das suas comunidades (reinos, sobados, chefias) não terem delimitado com precisão territórios físicos com fronteiras, ou serem mesmo tribos nómadas; a ausência de uma linguagem escrita; e a presença de formas religiosas meramente animistas, não organizadas numa representação deísta. Tanto bastava para que fossem considerados selvagens ou, numa linguagem mais cuidada, “povos sem história”.    
As conclusões da Conferência de Berlim (1885) traduziram-se numa “partilha de África” entre as potências coloniais: o rei dos belgas ficou beneficiado com o rico território do Congo; o rio Zaire foi declarado internacional, mas os portugueses conseguiram obviar que o mesmo estatuto fosse aplicado ao Zambeze; a França e a Inglaterra puderam içar a sua bandeira nos vastos territórios que já controlavam ou estabelecer protectorados sobre potentados locais; e a imparável Alemanha obteve o Sudoeste Africano (hoje Namíbia), o Tanganica (Tanzânia), o Togo e os Camarões. Portugal pôde conservar a sua Guiné, Angola e Moçambique, sujeitos porém à obrigação de uma “ocupação efectiva” e não meramente fundada em “direitos históricos”. E todas as questões de concreta demarcação de fronteiras – frequentemente traçadas “a régua e esquadro”, sem respeito pelas populações que as habitavam, umas nómadas, outras já mais sedentarizadas – foram remetidas para tratados bilaterais a estabelecer entre os interessados e comissões mistas de geógrafos e militares que trabalhariam no terreno nos anos seguintes. É conhecido o conflito anglo-luso acerca do “mapa cor-de-rosa” que levou ao “ultimato” e à crise de 1890-91. Mas a grande rivalidade que ocorria era entre britânicos e franceses, os primeiros procurando aproveitar as futuras potencialidades económicas do eixo Cabo-Cairo, os segundos querendo expandir-se o mais possível para leste a partir do Senegal, do Magrebe e do golfo da Guiné, tentando atingir Djibuti e a ligação por mar às suas ilhas no Índico (Reunião, Comores, Madagáscar). Esta emulação atingiu um ponto de quase ruptura com o “incidente de Fachoda” (1898) no Sudão. Mas a Inglaterra dominava o mar, que depois da abertura do Canal de Suez (1869) se tornou uma via indispensável para o comércio e a estratégia militar global das grandes potências europeias, e dominava também os principais pontos de apoio nas ligações ao Extremo-Oriente: o Mediterrâneo (com Gibraltar, Malta, Chipre e grande influência no Egipto); a rota do sul de África (com Lagos ou Freetown e o Cabo); e a linha do Pacífico (por Áden, Bombaim, Ceilão e Singapura); além da própria Oceania (atingível também pelo cabo Horn ou a partir do Canadá ocidental).
Voltando porém a África, convém lembrar que este continente oferecia a possibilidade de obtenção a preços baixos de inúmeros produtos agro-silvícolas tropicais, quer para um apetitoso consumo dos europeus (café, chocolate, algodão, oleaginosas, etc.) quer para seus usos industriais (na química, por exemplo). E que, para além das pedras e metais preciosos, desde logo se prospectaram amplas possibilidades de exploração mineira em fosfatos, micas, cobre, ferro e carvão. Por outro lado, como mercado, em África quase tudo estava por fazer em termos modernos: assim, as edificações urbanas; os caminhos-de-ferro e o telégrafo; as barragens, captações e distribuição de água potável; as escolas, dispensários de saúde, hospitais e mercados; a abertura de estradas e meios de transposição dos cursos de água; o equipamento dos portos e a farolagem das costas; mais tarde, a electrificação – tudo isso constituía uma formidável oportunidade de enriquecimento para patrões da indústria, comerciantes e técnicos. Mas, antes ou a par destes empreendimentos, foi necessário reconhecer, descrever e cartografar os solos e subsolos, inventariar a riqueza biológica, conhecer melhor as características do clima e “sociografar” as populações. Ao lado das missões religiosas que se iam instalando no terreno, as missões de investigadores palmilharam de lés-a-lés este continente ainda quase desconhecido, recolhendo dados para o grande fundo do conhecimento científico moderno mas também produzindo relatórios e recomendações imediatamente utilizáveis pelos seus governos e as elites económicas dos seus países. Compreensivelmente, o baixíssimo custo da mão-de-obra local era um outro atractivo para o investimento capitalista mas a contrapartida era que as populações negras constituíam ainda um consumidor com muito pouca capacidade aquisitiva; os panos de algodão eram então quase o único artigo manufacturado importante que as fábricas europeias enviavam e vendiam aos africanos (além dos produtos deletérios já assinalados). Por isso, o principal mercado tropical para aquelas indústrias era constituído pelos bens de equipamento – sobretudo consumidores de ferro – que os orçamentos públicos podiam adquirir (ou, nas suas vezes, algumas companhias concessionárias), o que exigia equilíbrios financeiros que nem sempre os governantes foram capazes de assegurar. No caso português, por exemplo, apenas a exploração do cacau de São Tomé e Príncipe (e dos trabalhadores recrutados fora) deu nesta época lucro e desafogo às finanças públicas; todas as outras colónias terão sido quase sempre deficitárias.           
Na América do Norte, a expansão territorial e a consolidação nacional fazem-se em duas direcções: por um lado, o Estado afirma-se externamente ao obter pela força das armas (contra o México) as antigas colónias espanholas limítrofes do Texas, do Novo México e da Califórnia, e por negociação diplomática com os russos o gélido Alaska; por outro lado, o exército a mando do governo de Washington tratou de negociar, guerrear e por fim parquear em “reservas” os antigos caçadores das pradarias, onde estiolaram pela sedentariedade forçada, o álcool e a doença, sob os auspícios de uma especializada administração dos Indian Affairs. Algo de semelhante (em muito menor escala) ocorreria mais tarde no Brasil, com a concentração dos índios remanescentes na Rondónia (Amazónia). Em África, reservatório aparentemente inesgotável de recursos humanos, este processo foi mais complexo e moroso, prolongando-se pelo século seguinte sob as formas do trabalho “contratado” (muitas vezes, forçado) e da condição social do “indigenato”. Mas ainda para além de meados de oitocentos, a questão da escravatura continuou a dividir muito fortemente os americanos, com duas economias com interesses muito distintos – o nordeste industrial e o sueste onde permanecia a grande plantação de algodão –, o que levou à guerra civil da secessão entre confederais e unionistas (1861-1865).
Portugal percorreu o séc. XIX de forma extremamente turbulenta: invasões francesas e retirada da corte para o Rio de Janeiro (1807-11), com controlo do poder nacional pelos ingleses; revolução liberal (1820-21); independência do Brasil (1822); conflito dinástico que acaba em guerra civil (1832-34); instabilidade governativa até à crise da Patuleia de 1846-47 com nova intervenção militar externa. Só a partir de 1851, com a chamada Regeneração e a política de obras públicas do “fontismo”, juntamente com a aposta de Sá da Bandeira no desenvolvimento ultramarino, o regime político de monarquia constitucional consegue alguma estabilidade e desenvolvimento económico, que porém é interrompido no início do reinado de D. Carlos por causa do conflito africano com a Inglaterra, a revolta republicana no Porto e a crise das finanças públicas em 1890-91. A dívida externa então contraída irá permanecer por décadas, com as colónias de África a constituírem um “activo” secreto mas mobilizável pelos interesses económicos de Inglaterra e Alemanha, principalmente. A partir daqui, face ao descrédito da Casa Real, o movimento republicano irá crescer, bem enraizado na pequena burguesia e nas classes médias de Lisboa e Porto.  
Perante os sinais contraditórios deste progresso material, as realizações culturais no Ocidente viram-se num primeiro momento para um passado de há séculos, mítico e idealizado: é a época do romantismo, que tão fortemente marcou a literatura e a música eruditas, e teve ecos na pintura e no ensaio histórico. Para os finais do século, sobrevém o realismo ou o naturalismo no romance e na pintura, enquanto a composição musical, sinfónica ou operática, descobre os timbres das culturas nacionais e populares, quando não mesmo se põe ao serviço desses nacionalismos. E aparecem finalmente as primeiras ciências sociais e humanas, libertando-se de alguns constrangimentos da velha filosofia, mas caindo no novo pecado do “cientismo”, como aconteceu com a primeira sociologia. Mas a etnografia, a psicologia e até a ciência política começaram aqui a sua trajectória, com dificuldade em afirmarem a sua identidade própria de ciências face às doutrinas sociais, aos poderes constituídos e às forças montantes na sociedade. E a economia começou a experimentar dificuldades semelhantes, tal como as ciências jurídicas e administrativas. Só a física, a química e as ciências geológicas, biológicas e médicas progrediram então rapidamente sem aparentemente sentirem hesitações deste jaez, já que os obstáculos levantados pelas religiões estavam aqui mais distantes (salvo a questão da “criação do mundo” que opôs muito forte e duradouramente religiosos e cientistas agnósticos). De resto, as aplicações práticas e industrializadas destas suas descobertas chegam rapidamente à sociedade: a iluminação eléctrica (em breve estendida aos motores de potência), o telefone, a rádio-telegrafia, as vacinas e os anestésicos são grandes realidades do início do séc. XX.  
Naturalmente, os progressos técnicos também se verificaram nos armamentos, nomeadamente nas armas de fogo, com as almas estriadas e de carregar pela culatra, a melhoria dos aços e das pólvoras, a potência e a precisão dos canhões. Mas, no último quartel do séc. XIX, a invenção mais importante foi a metralhadora, mortífera tanto no campo de batalha como quando usada em espaços urbanos.
Em contraponto, no plano humanitário, vai-se esboçando um movimento internacional de opinião pacifista, favorável aos processos de negociação e de arbitragem como substitutos do recurso à guerra. Era, de certa maneira, um prosseguimento das anteriores causas “abolicionistas”, muito marcadas por referências religiosas (veja-se o exemplo do explorador e missionário protestante britânico Livingstone, feroz adversário da escravidão), agora transpostas para um terreno mais laico e universalista. Isto veio a ter tradução na diplomacia, com as Conferências Intergovernamentais da Paz de Haia, em 1899 e 1907, que fixaram os termos de um direito internacional aplicável nas situações de guerra, mas cuja intenção suprema era então a de poder evitá-las. Na mesma linha se podem entender os contemporâneos esforços de cidadãos de múltiplos países em favor do auto-controlo na natalidade (o chamado “neomalthusianismo”) e para a adopção do Esperanto como língua-veículo de comunicação internacional.
Mas o acontecimento mais perturbador da ordem oficialmente estabelecida em todos os países mais avançados foi, a partir da segunda metade do séc. XIX, o movimento internacional do operariado e das ideias socialistas que lhe estavam associadas. A França, a Inglaterra, a Itália, a Espanha, a Alemanha, a Rússia, os Estados Unidos, Portugal e outros países já industrializados ou em vias de o ser foram tocados pelas ideias e pela acção deste novo movimento social. No plano económico, através da constituição de sindicatos, usou-se colectivamente a greve para lograr o aumento dos salários, a redução do tempo de trabalho e a obtenção de outras melhorias. No plano político, através de partidos filiados neste mesmo credo, por meios democráticos legais ou preparações insurreccionais, propagandearam-se incansavelmente os seus temas reivindicativos e os seus objectivos doutrinários: de imediato, medidas tendentes a igualizar todos os cidadãos, nos aspectos económico, político, civil, social, educativo e cultural; num futuro mais ou menos longínquo, abolição das classes sociais e do Estado, com instauração definitiva de um regime comunista, sem propriedade privada nem exploração do trabalho. Este programa utópico estava implícito no acto fundador da Associação Internacional dos Trabalhadores em 1864 e veio a ser modelado de muitas maneiras, segundo os países, as conjunturas e as correntes políticas. Maioritariamente, o movimento operário alinhou-se em posições reformistas ou de mera reclamação por melhoras limitadas mas imediatas – como as 8 horas de trabalho diário, que deram origem à jornada internacional de luta e celebração do 1º de Maio –; porém, importantes minorias jogaram o papel de vanguardas revolucionárias ou de acção política e frequentemente eclodiram acessos de rebelião e violência quando a repressão dos governos faziam vibrar a corda sensível da solidariedade de condição social. Em todo o caso, o movimento operário transpôs-se para o séc. XX com uma perspectiva plausível de transformação social profunda em países como os acima referidos.
Em França, na sequência da guerra com a Prússia, do episódio da Comuna de Paris e da fundação da III República, este “revolucionarismo” atingiu uma das suas expressões mais ousadas, com o bombismo anarquista, a táctica da greve geral, o sindicalismo-revolucionário e a palavra-de-ordem do “não à guerra!” se um novo conflito bélico viesse a opor franceses e alemães. Em contrapartida, a vida política e social do país viu levantar-se o espectro do autoritarismo militar “boulangista”, o anti-semitismo enraizado no caso Dreyfus (a que se opôs a consciência republicana de um Zola) e, finalmente, um arrebatamento patriótico que levou os conscritos em 1914 a partirem alegremente para o front aos gritos de “À Berlin! À Berlin!”. Um extremo suscitava talvez um outro extremo.
Mas o bombismo e o tiranicídio faziam parte dos gestos vingadores desta época. Estes justiceiros sabiam que o enforcamento, o fuzilamento ou o garrote lhes estariam destinados, mas não faltaram os voluntários para cumprir tal tarefa. Aconteceu com os populistas na Rússia, os acratas em Espanha, os carbonários em Itália, os republicanos em Portugal, os nacionalistas na Bósnia, etc. Contudo, se esses gestos radicais atemorizavam as classes dominantes, foram os comportamentos colectivos das grandes massas humanas, as garantias legais e a sustentação económica que possibilitaram as mudanças mais duradouras e estruturais.    
Até nas potências guardiãs do “Antigo Regime” as coisas vão mudando. A monarquia austríaca torna-se constitucional em 1860. Na Rússia dos Romanoff, a pressão interna e o ambiente internacional levaram o czar Alexandre II a abolir em 1861 o regime da servidão que constrangia milhões de camponeses e os condenava à pobreza. Novo passo é dado em 1905 com a institucionalização de um parlamento (Duma). Na Alemanha unificada inventa-se um “Estado social” que dá as primeiras garantias de protecção económica às classes assalariadas, ao mesmo tempo que também aí progridem formas de entreajuda solidária para os pequenos agricultores (com caixas de crédito mútuo de inspiração cristã). De resto, estes movimentos da sociedade civil desenvolvem-se por todo o lado, nas cidades industriais e nos seus subúrbios: educação popular, ateneus, agremiações de abstémios, cooperativas, associações de socorros mútuos, cozinhas económicas, quêtes de solidariedade. E quando os partidos socialistas começam a conquistar democraticamente certas municipalidades, surgem mais frequentemente as Casas do Povo, os dispensários e lactários, os banhos públicos e até os bairros sociais. São uma resposta “mais comunitária” às obras levantadas por um certo paternalismo patronal, fossem elas inspiradas pela nova doutrina social da Igreja (encíclica Rerum Novarum, 1891) ou por um altruísmo maçónico.
Entretanto, as economias tinham-se desenvolvido imenso, criando empresas industriais gigantes, com os correspondentes encargos salariais, comerciais e financeiros, tornando-se interlocutores privilegiados dos governos; tinham interesses próprios diferentes mas mutuamente compatíveis e articuláveis, nomeadamente no tocante às expansões externas. A maior concessão de créditos bancários, a fluidez da transferência de fundos por via postal e a emissão muito mais generosa de papel-moeda contribuíram também para uma corrida capitalista que, a partir de certa altura, encontrou na fabricação de armamentos um sector de aplicação importante. Tais dinâmicas económicas concorrenciais, juntamente com as ambições de predomínio governativo, o destemor militarista e os exacerbados sentimentos nacionais populistas, acabaram por conduzir as principais potências para uma catástrofe guerreira nunca vista com tal amplidão, quando pouco tempo antes se tinha celebrado a entrada num novo século sob os auspícios do progresso técnico e de um bem-estar material que a todos haveria de satisfazer. 
JF / 5.Jun.2015

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