A Bélgica está há mais de um ano com o governo demissionário, em mera gestão dos assuntos correntes, e mesmo o princípio de acordo a que chegaram os partidos no parlamento ainda não se traduziu na constituição de um novo governo efectivo. E, no entanto, o país parece não ter parado nem ficado pior do que estava antes!
Meio a brincar, dizem alguns que, afinal, o governo parece ser uma instituição dispensável. E até um colunista na moda escreveu sobre “A vingança do anarquista” (R. Tavares, Público, 21.Set.2011).
Teria então alguma razão a filosofia política anarquista defendida por certas minorias activas de há um século que acreditavam que se podia viver melhor em sociedade sem a existência de um governo? Não é certo – e parecerá mesmo completamente impossível à esmagadora maioria das pessoas, que tendem a basear-se num princípio de realidade. Então no mundo de hoje, em que, por exemplo, nos queixamos das dificuldades em que vive a União Europeia por falta de uma governação mais adequada à integração económica e monetária atingida, parece surrealista pensar numa ausência, ou mesmo num enfraquecimento, dessa instância de decisão política. Como sobreviveria agora a Grécia sem governo? Mas também é certo que muito da sua péssima situação actual deriva do “desgoverno” a que a sujeitaram sucessivos governantes.
Numa discussão mais desprendida das ansiedades do momento, pode sustentar-se que nas formas de governo hoje conhecidas desaguam três problemas de diferente natureza. Por um lado, os governos nacionais actuais são os herdeiros (democratizados já na maioria dos países) do poder político confiscado por certos grupos ou minorias que, desde há séculos, se assenhorearam pela força (guerras, conspirações, revoluções) das instituições e dos instrumentos de domínio sobre uma determinada população e território. Dai a persistência de certos “tiques” autocráticos ou de manobras insidiosas praticadas pelos governantes actuais para se manterem nos cargos, ou dos seus competidores para desalojar os que lá se encontram.
Por outro lado, é verdade que todas as comunidades nacionais, com uma história e cultura consolidadas, carecem de uma instância central em que se reconheçam, que lhes possa dar sinais de orientação colectiva e que as represente externamente perante outras similares. Os reis personificaram durante muito tempo esta função, mas caíram quando a tensão entre o sentimento colectivo do povo e os interesses particulares da família reinante atingiu um ponto de rotura. Hoje, neste aspecto, estando o risco de tirania relativamente esconjurado, o problema principal parece ser o de como conseguir um controlo do poder governativo pelos cidadãos que evite destemperos e corrupções (o que se chama democracia) mas que, ao mesmo tempo, assegure eficácia funcional e não descambe na manipulação afectiva ou eleitoralista (ou seja, a demagogia).
Finalmente, existem problemas próprios da nossa época que a humanidade enfrenta pela primeira vez, de forma titubeante e contraditória: os impactos negativos das indústrias e das cidades sobre o meio ambiente natural; a instantaneidade e massificação da comunicação; a imbricação e integração mundial das economias – tudo isto coexistindo com a presença de 200 estados nacionais, que são fruto das contingências históricas e extremamente desiguais entre si, com instituições de auto-governo pensadas no Séc. XVIII para substituir as realezas absolutistas caducas, e com uma ordem internacional negociada pelos mais fortes mas hoje com a preocupação de evitar as guerras brutais do passado (sobretudo tendo em conta o potencial de destruição existente). Por exemplo, os padrões éticos de comportamento, laicos ou religiosos, estão a ser fonte de grande angústia, ditada quer pela ausência de normas educativas, quer pelo choque entre crenças culturais profundamente enraizadas e princípios legais que se pretendem universais. E – sobretudo nos tempos que correm – é a actividade económica e financeira que manifesta dificuldades em se estabilizar, entre a capacidade de realização das macro-empresas, o apetite ao consumo de massas populacionais crescentes e a desigual autonomia e meios de controlo das entidades políticas nacionais.
Hoje, a crise é económico-financeira, mas também dos sistemas de representação política. Tem razão o sociólogo Gustavo Cardoso ao referir as condições de socialização dos jovens de hoje e ao escrever que “quando surgem fortes barreiras à mobilidade social e à intervenção política é quando a indignação sai à rua”, avisando ainda que “os líderes das democracias que não souberem ouvir de forma diferente e mudar a sua forma de pensar estarão condenados a um ciclo vicioso de derrota, de quem estiver no poder, e de vitória de quem estiver na oposição” (Público, 9.Nov.2011) – o que, convenhamos, não é uma perspectiva encorajadora.
A Bélgica – sobretudo porque é uma nação artificial – até poderia viver bem sempre com “governos de gestão corrente” (como a Suíça, por razões opostas), não fora o contexto externo em que está inserida: ontem, tendo que encarar as decisões sobre as invasões militares que lhe penetraram pela terra dentro; hoje, tendo de cuidar seriamente do sistema bancário ali sedeado e das derrapagens orçamentais, onde a emigração e o sistema de segurança social constituem duas variáveis-chave (vista a demografia do país), a pedirem decisões corajosas, que talvez não possam ser referendadas.
O “Estado sem governo” pode ser uma belíssima ideia, mas ainda não está propriamente na ordem-do-dia.
JF / 11.Nov.2011
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sexta-feira, 11 de novembro de 2011
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Achei piada o facto de ser pessoal da "esquerda proleta" a evocar estas "coisas" do anarquismo. Por mim - o único que manifesta uma atualidade gritante, é o Banqueiro Anarquista. Nunca votarei nele, mas partilharei sempre a boa conversa. Bom S. Martinho.
ResponderEliminarNo mínimo direi que se trata de uma reflexão extremamente interessante...
ResponderEliminarDá mesmo para pensar sobre uma tão vasta temática!!!