Esta frase, não na interrogativa mas na afirmativa,
valeu-me há uns dez anos atrás a ira de certas pessoas e mesmo
cortes-de-relações, embora também a concordância de um antigo sindicalista que
então se distinguia pela defesa da chamada flexi-segurança nas relações
laborais. Estava-se no tempo das grandes mobilizações de professores do ensino
público básico e secundário contra a tentativa da ministra Maria de Lurdes
Rodrigues para fazer evoluir uma actividade profissional massificada-por-baixo
em direcção a uma verdadeira profissão, com base em duas categorias
hierarquizadas (três teria sido talvez preferível), com funções diferenciadas,
quadros orgânicos piramidais e provas sérias de acesso a cada uma delas. Como
se sabe, não resultou, apesar do apoio do primeiro-ministro e do PR de então. E
também não resultou a tentativa de Nuno Crato para pôr finalmente em vigor a
prova de acesso à carreira, prevista no respectivo estatuto desde o início de
90.
Assim, os sindicatos puderam continuar a dispor de uma
significativa “massa de manobra” para justificar a sua existência e impor aos
sucessivos ministros da pasta o seu poder negocial, assente em quatro pilares
fundamentais: no histórico de regras legais acumuladas, a seu favor; no geral
reconhecimento da importância e das dificuldades da docência; nas mobilizações
de rua e popularidade (junto dos alunos) das acções grevistas, compensando as
perdas de salário; e nas características específicas do pluralismo sindical
existente, com uma organização maioritária, uma outra seguidora
“para-não-perder-o-passo” e mais de uma dezena entretidas em rivalidades
inter-pares e no aproveito das benesses (consistentes sobretudo na ausência da
sala de aula) conquistadas ao longo de décadas.
Hoje, os professores estão de novo mobilizados, para
conseguirem ser estatutária e financeiramente ressarcidos do que perderam por
virtude de vários anos de “congelamento” das suas carreiras. (Incluindo as
futuras pensões de reforma?) E, mais uma vez, negam as acusações de progredirem
salarialmente apenas com base no tempo de serviço, o que formalmente é verdade,
pois também é necessário frequentar certas acções formativas (ao gosto dos
docentes) e ter uma avaliação de desempenho positiva (por quem? de que modo?).
Mas para a credibilização deste sistema seria decisivo conhecer com rigor
quantos docentes não sobem de escalão
ao fim de cada quadriénio.
É óbvio que uma fracção substancial do contingente de
professores em serviço será dedicadíssima e muito competente pedagogicamente,
por virtude da experiência adquirida e da assunção plena da alta
responsabilidade da sua missão educativa. Mas uma outra fracção, não menos
substancial, foi para o ensino público visto apenas como uma “ocupação
profissional”, precária para muitos mas mesmo assim mais “à mão” do que uma
emigração para o estrangeiro ou a demonstração de capacidades para se submeter
aos regimes de trabalho que vigoram “no privado” ou no agora tão promovido
auto-emprego. Também se sentem mal-amados pela opinião pública, embaraçados com
a papelada burocrática e muitas vezes incapazes de superarem as reais
dificuldades de enfrentar turmas indisciplinadas e nada respeitosas do seu
saber, usando mal a autoridade e o poder social de que desfrutam sobre aquelas
populações juvenis.
Outros sectores e carreiras profissionais do Estado
procurarão fazer vingar os seus interesses remuneratórios mediante pressões
sindicais diversas, aproveitando as eventuais brechas abertas pela “vanguarda”
professoral. Mais uma vez, cada um por si – e sem cuidar da justiça global ou
se a reivindicação não vai apressar a falência já entrevista. O que acontece
nas empresas, pode hoje também acontecer nos estados nacionais, no contexto da
economia global existente.
Isto mostra como é delicado o julgamento que deve
fazer-se da acção dos sindicatos. Sem eles (e sobretudo com a fragmentação das
relações laborais ora vigentes), a precariedade aumentará, os trabalhadores
ocupados vêem os seus salários estagnar, o seu emprego perigar e aumentar a
intensidade do esforço que lhes é pedido.
Com sindicatos bem implantados e protegidos (como na função pública em
Portugal), são as garantias de emprego que, por exageradas, acabam por
prejudicar os jovens que desembarcam no mercado-de-trabalho; e são as
progressões – iguais para todos – que tornam rígida a gestão do efectivo, constituem
um prémio para os incompetentes e, assim, promovem a injustiça e desmotivam os
sérios e os melhores dos assalariados.
Isto, pensando apenas na acção económico-social dos
sindicatos e já sem falar nas ligações dos seus dirigentes-militantes aos partidos
políticos. No passado, criticaram-se os sindicatos pelas opções ideológicas
radicais dos seus activistas, que dividiam os trabalhadores e obstaculizavam a
adesão de um maior número. Sucederam-lhes os sindicatos “de massas”, sem sinal
explícito de cor política. Mas o que não entrava pela porta, passou pela
janela. Quem pode provar documentalmente que a CGTP ou a FENPROF são
instrumentos da acção política global do PCP? – sobretudo junto dos
trabalhadores do funcionalismo público ou os professores que usufruem de
palpáveis vantagens nos seus espaços de trabalho?
A sociedade portuguesa continua muito conservadora em
profundidade, ao mesmo tempo que adere com grande volúpia a algumas modas
“modernistas” que sopram de longe. Certos nomes-de-família continuam a aparecer
regularmente entre as pessoas das elites de que a comunicação social vai dando
conta, embora o grosso desses contigentes porte agora nomes plebeus, alguns com
claras ressonâncias rurais alentejanas. Os transportes públicos urbanos andam
péssimos mas o imobiliário e o turismo prosseguem em alta, vivíssima. A velha
cultura humanista voltou a ser o refúgio para alguns especialistas e certas
classes de reformados, enquanto a máquina da propaganda bombeia chavões sobre o
empreendedorismo, a inovação ou a “coltura”.
E o Estado parece estar prisioneiro de clientelas, corporações, lobbies,
gestores partidários, sindicatos e agentes de negócios inport-export.
Volto à pergunta de partida: “a rua” não tem sempre
razão, quando manifesta as suas insatisfações? Não! – embora essas
insatisfações sejam legítimas e careçam de ser compreendidas e consideradas,
num plano porventura mais geral. É que um dos problemas está nos
“intermediários” que exprimem e negoceiam muitos dos desconfortos das
comunidades de base em que vivemos no dia-a-dia. E outro problema é que, de
facto, é estreita a margem de uma governação atenta aos interesses da maioria e
dos mais necessitados mas que, cedendo à
berraria dos protestos, não esteja a comprometer o futuro de todos.
JF / 24.Nov.2017