Hannah Arendt e George Orwell foram os primeiros a
dizer por escrito tudo o que de essencial
nos trouxeram as nefastas vivências do nazi-fascismo e do comunismo,
respectivamente. Porém, As Origens do
Totalitarismo ou ...A Banalidade do
Mal, por um lado, ou as ficções intituladas 1984 ou Animal Farm, do
outro, foram livros que não passaram para além das minorias cultas ocidentais e
não entraram, como talvez devessem, nas recomendações de leitura escolar da
UNESCO para as novas gerações do mundo inteiro.
Assinala-se este ano o centenário da revolução
russa. Em 2022 alguns lembrarão de novo a marcha sobre Roma, que marcou a
ascensão irresistível do fascismo e da liderança buffa de Benito Mussolini. Em países desenvolvidos e ilustrados
como a Alemanha, a Áustria, a Itália, a Espanha, a França, a própria
Inglaterra, continuam a existir pequenas seitas de fanáticos adeptos de Hitler
ou de algum dos seus sinistros imitadores, cuja consistência ideológica se expressa
principalmente na exibição acéfala de certos símbolos, no ódio expresso a algum
tipo de categoria social expiatória (judeus, ciganos, estrangeiros, árabes,
homossexuais, pretos, mendigos, deficientes, etc.) e sobretudo no uso da
violência física contra algum destes seus inimigos que se encontre mais a
jeito.
É verdade que, historicamente, se pode defender que
nazismo e comunismo foram dois regimes políticos opostos e que se confrontaram
– de forma devastadora na II Guerra Mundial – mas, simultanemente, que usaram
métodos de actuação e de exercício do poder de Estado semelhantes, a despeito
de invocarem ideologias justificativas tão diferenciadas entre si. O nazismo
(contracção do termo nacional-socialismo) e o fascismo (oriundo dos iniciais e
arruaceiros fasci di combattimento
italianos) foram essencialmente movimentos populares (ou talvez melhor,
populistas) de carácter nacionalista, anti-liberal, anti-partidos tradicionais
e anti-parlamentos, nascidos das profundas misérias e humilhações causadas pela
Grande Guerra e que tudo apostaram num ressurgimento nacional na forma que lhes
era proposta por demagogos sem escrúpulos com grande arte da palavra e fascínio
do poder como foram Mussolini, Hitler e alguns imitadores de menores recursos.
Foram movimentos revolucionários até conquistarem o poder de Estado e numa fase
inicial do seu exercício, atacando as principais instituições e forças sociais
diminantes, como a plutocracia financeira, as elites militares, as igrejas ou
as maçonarias. Mas, uma vez consolidados como novos regimes autoriários, comportaram-se
internamente como ditaduras de implacável violência (polícia política, censura
e propaganda; ameaças, detenções, deportações e extermínios), e externamente
com desígnios de expansão territorial imperialista, mais ou menos
megalómenos.
O comunismo merece-me hoje aqui a focagem principal.
Para quem pertence à geração do pós-25 de Abril e do pós-queda do “Bloco de
Leste”, os comunistas portugueses são apenas aquele partido que se sabe ter
sempre resistido ao Estado Novo de Salazar e se distinguem por uma
homogeneidade de discurso e comportamentos bem diferentes dos restantes
partidos. Reconheço que são geralmente bons administradores autárquicos, onde
só raramente surgem denúncias de corrupção ou outros aproveitamentos pessoais
ilícitos, embora o PCP aproveite discretamente para os seus próprios fins todos
os recursos públicos de que possa lançar mão. O “colectivo” domina ali
fortemente e as dúvidas e discussões são firmemente guardadas no seu seio.
Embora muito enfraquecido em relação ao que já foi há vinte ou trinta anos, os
comunistas detêm ainda posições importantes na esfera da cultura, em alguns
sectores universitários, em certas instituições do Estado, na maioria dos
sindicatos e no poder local alentejano e da cintura periférica da capital. Constituem
assim uma “minoria de bloqueio” de notável eficácia.
Mas é da história do seu movimento e da sua
referência central fundadora, a do “poder vermelho” da União Soviética, que
aqui se trata. É certo que essa aventura que marcou o século XX ruiu
fragorosamente em 1989-91. E o que subsistem hoje são restos de variantes
nacionais por si inspiradas, mas sem grande unidade entre elas: o regime da
China, capitalista mas sempre sob o controlo férreo do PC; uma Coreia do Norte
“esquizofrénica” de comunismo dinástico; arremedos do passado como o Vietnam ou
Cuba, que os venezuelanos tantam imitar e que Angola e Moçambique conseguem
viabilizar com melhor ou pior sucesso; e, quase caso único, o nosso PCP
convertido ao jogo democrático, aguentando firmemente alguns bastiões
minoritários.
O comunismo, praticado e desenvolvido pelo partido bolchevik russo, vencedor da revolução
de 1917 e da guerra civil que se lhe seguiu, assentava em bases ideológicas
inteiramente novas: iluminado pelo suposto cientificismo da crítica de Marx à
economia liberal capitalista e pela sua convicção do Estado como principal
“instrumento de dominação de classe”, aplicou à risca as instruções operacionais
de Lénine sobre o “partido do proletariado” (dirigido e animado por
revolucionários profissionais mas sempre com eficazes ligações às massas
operárias assalariadas) e, depois, soube inspirar-se no genial oportunismo
táctico de que este deu mostras enquanto durou e liderou a revolução: uso sem
rebuço da “boleia alemã” para chegar a Petrograd; aposta meramente táctica nos
Sovietes (que configuravam então um esboço de democracia proletária); sedução
dos soldados e dos camponeses acenando-lhes com o fim da guerra; preparação e
execução militar do golpe-de-Estado de “Outubro”; aproveitamento do desprezo
anarquista pelo parlamentarismo para encerrar definitivamente a Duma e o voto
secreto popular; “paz separada” com os alemães, traindo os aliados da “triple entente”; luz verde para a
criação da “Tcheka” (a primeira
polícia política, fundada por Djerzinsky, a que se seguiram mais tarde a GPU, o
NKVD e o KGB); mobilização ditatorial de todos os recursos para vencer a guerra
civil; esmagamento dos orgulhosos marinheiros revolucionários sovietistas (mas
não bolchevistas) de Cronstadt; e, finalmente, face aos desastres
socioeconómicos do “comunismo de guerra”, reviravolta política com a NEP
advogada em 1921 por Bukharin, melhor conhecedor do país real e da apetência
dos camponeses pela posse da terra.
Lénine morreu em 1924 sem sucessor designado. Apesar
de alguns atritos no passado, Trotsky (político profissional, militar
improvisado mas com visão e capacidade de decisão) era, de longe, o mais
indicado e mais capaz para lhe suceder. Porém, a “máquina trituradora” do
bolchevismo começou aí a exibir a sua lógica interna mortífera e implacável da
qual saiu venceder o mais astuto e amoral de todos os ambiciosos candidatos:
Estáline. O livro que recentemente lhe dedicou Simon Sebag Montefiore (há pouco
distribuído em fascículos pelo Expresso),
para quem tiver estofo para o digerir, arrisca-se a ser um amontuado de nomes e
episódios incapazes de fornecer ao leitor uma visão histórica minimamente
coerente da cronologia (a identificação de certas datas é muitas vezes
insuficiente), da geografia (faltam mapas simplificados), dos acontecimentos e
da sua importância relativa no xadrês russo e mundial. Mas, superadas estas dificuldades
e para quem conheça o suficiente da história política e militar da época,
releva-nos talvez pela primeira vez um quadro muito completo do quotidiano da
elite bolchevista e sobretudo das relações interpessoais entre cada uma destas
figuras, relações sistematicamente marcadas pela desconfiança, a suspeita, a
guarda de provas documentais que um dia pudessem ser comprometedoras para os
rivais, a ameaça, a chantagem, o uso dos familiares com fins acusatórios e
medidas administrativas correntes como a nomeação, a exoneração, o afastamento,
etc., ou pessoais como o chamamento ou a exclusão dos circulos de intimidade,
os pedidos de opinião ou as confissões, as cartas de pedidos ou perdões e
muito, muito mais. A frieza com que as decisões do Chefe eram tomadas (nunca
contrariadas frontalmente por alguém) e o cálculo insidioso de todas as tomadas
de posições dos “potentados”, em votações formais do Politburo ou do Comité
Central, ou informais à mesa de refeições na datcha de Estáline, configuram um processo de decisão política
original – diferente de Hitler, por exemplo – mas sempre indubitavelmente
autocrático e ditatorial.
Dois outros pontos devem ainda ser chamados à
atenção. Correspondendo à ideia que geralmente fazemos dos povos da Grande
Rússia (na realidade, nações diferentes unidas à força pelos imperadores de
Moscovo), os repastos de Estáline, especialmente ao jantar, eram
particularmente lautos, bem regados a álcool, com brindes intermináveis e muito
animados por cantorias colectivas, especialmente georgianas, que tocavam a
corda sensível do “Pai dos Povos”. Frequentemente terminavam pelas cinco da
manhã com todos os convivas completamente embriagados. Contrastando com a
“modéstia proletária” dos seus atavios públicos (vestuário, designações
oficiais, etc.), os dirigentes comunistas não se coibiam minimamente de ocupar
residências sumptuosas da antiga aristocracia, de as atulhar de adereços e
obras-de-arte pilhadas em países ocupados ou usurpadas internamente, e de se
deslocarem em Rolls Royces ou em Packards capitalistas. As óperas clássicas
eram escutadas no Bolchoi mas os
filmes americanos de gangsters e de cow-boys é que, em privado, faziam as
delícas desta gente. Refira-se ainda o papel das mulheres e do sexo, que o
livro de Montefiore revela como talvez nenhum antes. Para além de alguns
deboches – finalmente, coisa pequena no carnaval de horrores desta corte
vermelha –, o facto da maior parte das cônjuges dos dirigentes comunistas serem
elas próprias militantes do Partido (por convicção ou mera conveniência)
tornava-as também parte activa nas constantes conspirações palacianas, não
tanto como urdideiras de supostas conjuras mas sobretudo como testemunhas das
manobras dos seus maridos ou companheiros de cama, como suas espias (sob
ameaça) ou denunciantes. Ainda que ajudassem a condenar entes queridos, sempre
declaravam fazê-lo por dever de lealdade ao Chefe Supremo. Molotov, por
exemplo, manteve-se periclitantemente no poder, sob Estáline, enquanto a sua
mulher Polina, investigada e acusada de “semitismo” em 1948 (mas já suspeita
desde 1939), foi finalmente condenada pelo Comité Central com o voto favorável
do seu marido em Janeiro de 1949. Presa no dia seguinte, negou tudo mas,
excepcionalmente, não foi torturada. Simplesmente, desconheceu-se o seu
paradeiro até à morte de Estáline. No dia seguinte ao funeral deste, em 1953, o
froucho Molotov correu à prisão de Lubianka onde o sinistro Béria a libertou e
entregou ao marido, proclamando-a “uma heroína”.
Os chefes comunistas estrangeiros que contavam para
Estáline eram exclusivamente apenas aqueles que interessavam a geoestratégia do
Kremlin, dirigida a partir de 1944 contra o rival americano: Alemanha de Leste,
Checoslováquia, Hungria, Polónia, Roménia, Bulgária, Jugoslávia (com quem se
desentendeu), Turquia, Irão, Mongólia, Japão e China. Mesmo a guerra da Coreia
passou-lhe largamente ao lado, tal como a luta indochinesa contra os franceses.
Montefiore nem fala de Togliatti ou de Thorez (pelo menos nesta edição para o
grande público), quanto mais em Santiago Carrillo ou Álvaro Cunhal, que ainda
eram uns jovens em início de carreira. E aplicando a famosa “flexibilidade
táctica” leninista, Estáline navegou à vista no processo da guerra civil
espanhola, nada lhe custou extinguir em 1943 o Komintern (liderado pelo
utilitário búlgaro Dimitrov) para amaciar os aliados ocidentais, criando em
1947 um mais discreto Kominform, sempre com o intuito de dirigir a acção
comunista no mundo, embora de modo menos centralista: a dissidência de Tito não
o consentia.
O outro ponto sensível
impossível de iludir é o da máquina-de-morte
constituída pela polícia política, os seus chefes, torturadores e zelosos
funcionários. Em finais de 1934, o suspeitíssimo assassinato de Kirov, o homem
forte de Leninegrado, foi o sinal de partida para as grandes “purgas” no
partido, no exército, na indústria e mesmo entre a elite dos “velhos bolcheviks”. Uma lei de 1 de Dezembro legitimou
todas as arbitrariedades. O funcionamento de uma justiça sumaríssima que
funcionava à porta fechada, com a excepção dos julgamentos-espectáculo de Zinoviev
e Kamenev, e de Radek, Tomski e Bukharin (e outros) em 1936-38 – todos
executados com bala na nuca –, nunca passou de um simulacro ou uma encenação
política; e em seguida actuava a propaganda que punha a correr pelo mundo
inteiro as supostas traições daqueles até então “destacados dirigentes”
comunistas: o assassinato de Trotsky exilado no México em 1940 constituiu o
cume desta espiral. Mas as supostas conspirações continuaram até à morte do secretário-geral
do Partido: “tchekistas” excessivamente sabedores ou ambiciosos; generais que ele julgava incompetentes; infiltrados
ingleses ou americanos; conspiração sionista; conjura dos médicos, etc. A
confissão (muitas vezes inverosímil e quase sempre arrancada pela violência)
era o passo decisivo que punha fim às torturas (mas não ao banimento nem constituia
garantia de vida). E “Inimigo do Povo” era a acusação clássica que determinava
sempre a condenação: humilhação pública, deportação para os gulag siberianos ou execução
imediata.
Muitos foram os
militantes comunistas vítimas da sua própria cegueira ideologica. Já tinha
passado a época das mortes por lapidação em pelourinho ou na fogueira; os
comunistas (como os nazis) também não enveredaram pelas execuções públicas; mas
os campos de deportação e de trabalho escravo (lager ou gulag), em
lugares isolados e quase sem testemunhas, dizimaram milhões de indivíduos (com e sem acusações formais) pela fome, maus
tratos, exaustão ou assassinatos em massa. Não há alegações de “negacionismo”
que sejam hoje, mínima e honestamente sustentáveis.
Os serviços secretos foram uma autêntica câmara de horrores, que não
poupou a maior parte dos que os dirigiram e posteriormente cairam em desgraça. Lakoba,
chefe da polícia política, foi provavelmente envenenado por Béria em finais de
1936. Yagoda, mais a sua coorte de torturadores, terão sido sacrificados em
1937. Yezhov, um torcionário implacável, durante um tempo senhor todo-poderoso
do NKVD, acabou executado em 1940.
Mas muitos dos
camaradas mais próximos de Estáline não escaparam ao mesmo destino. Sergo Ordjonikize
– um dos seus possíveis delfins – suicidou-se em 1937, antecipando-se à acção
do carrasco. O marechal Tukatchevski, um dos melhores técnicos militares
russos, foi preso, torturado, condenado e executado no mesmo ano por
“trotskismo”. (De resto, o Exército Vermelho foi também em certas alturas alvo
particular da repressão política, inclusive durante a guerra.) O diplomata Litvinov
morreu na sequência de um suspeito acidente rodoviário em 1951 – entre muitos,
muitos mais.
É certo que o “cerco” demo-liberal à “revolução
proletária” e a ameaça latente de Hitler tiveram o seu papel na exasperação
totalitária do regime bolchevik, mas
não explicam o essencial. Apesar de tudo, este assédio foi muito relativo, com
o governo soviético a estabelecer relações comerciais com a Itália logo em
1921, diplomático-comerciais com a Alemanha em 1922 (Tratado de Rapallo),
diplomáticas com a França e com a China em 1924, com a Suíça em 1927, com a
Inglaterra em 1929, um tratado de amizade e comércio com a Polónia em 1931,
admissão na SDN em 1934 e um tratado comercial com os americanos em 1935.
Naturalmente, a 2ª guerra mundial fez passar os interesses geoestratégicos dos
estados à frente dos pruridos ideológicos, tanto no respeitante ao impensável
pacto germano-soviético de 1939, como à aliança de Moscovo com as democracias
ocidentais a partir do Verão de 1941. Esses anos da guerra foram terríveis para
os povos da URSS, como o foram para os alemães e restantes beligerantes. Todas
as vítimas devem ser lembradas com igual dignidade. Mas os seus verdadeiros
responsáveis deveriam ser todos proscritos, para memória das gerações futuras.
E se o objectivo da vitória levou ambos os lados a
massacres dificilmente justificáveis (bombardeamentos aéreos de cidades, duas bombas
atómicas), houve crimes verdadeiramente atroses, como o holocauto dos judeus
pelos alemães, a execução em massa de milhares de oficiais polacos prisioneiros
dos soviéticos em 1939 ou as torturas praticadas no oriente por militares
japoneses.
Estáline foi uma figura ímpar e sem ele não teria
existido “Estalinismo”, mas a corte que o rodeava revelou-se sempre como um
covil de hienas em permanente conspiração umas contra as outras, entrecortado
de breves e pouco seguros entendimentos, sempre fazendo os mais solenes
juramentos de lealdade ao Grande Líder da Revolução. Os famosos comboios
especiais em que se deslocavam, blindados e artilhados, não eram só uma
recordação da guerra civil, mas um sinal inequívoco da distância entre o poder
e o povo. A psicose dos envenenamentos, dos atentados e dos acidentes forjados
sempre mobilizou os muitos milhares de funcionários do KGB, que aliás se tornaram
mestres na matéria. Tal como na Revolução Francesa (como na Alemanha e mais
tarde na China ou no Cambodja), o período do Terror foi obra de uma extensa
lista de culpados. Alguns foram instrumentos passageiros dos desígnios do dono
do poder: Zdanhov, na purga de 32-33; Mekhlis, editor do Pravda e por um tempo censor-mor da intelectualidade e dos
artistas; ou mesmo o escritor Gorki, que morreu em 1936, com suspeitas de
“ajuda médica”.
Molotov (que assinou o pacto germano-soviético com
Ribbentrop), Vorochilov, os marechais Zhukov, Timochenko e Budeny, Kaganovitch
(o construtor do monumental Metro de Moscovo), Mikoian, Malenkov ou Bulganine,
foram talvez os que mais duraram, flutuando ao sabor dos humores ou rancores do
Chefe. O ambicioso Béria, provavelmente o mais inteligente e decerto o mais sinistro
e implacável de todos (por exemplo, prendera em 1938 a mulher de Kalinine, o
presidente da URSS, e ordenara inúmeros espancamentos mesmo no seu gabinete), acabou
por ser apanhado na sua própria teia e nos ajustes-de-contas que se seguiram à
morte de Estáline. Krushtchev, que parecia um rude camponês georgiano (mas na
realidade mostrara a sua estirpe ao sacrificar milhões de agricultores com a
colectivização forçada e a Grande Fome de 1932-33 e nunca estivera muito longe
do poder central) levou a melhor sobre todos os outros concorrentes: Béria (que
sabia demais) foi expeditivamente condenado à morte a 22 de Dezembro de 1953
por um tribunal político secreto, acusado de traição e terrorismo e logo
executado com uma bala na cabeça, sendo o seu corpo cremado para evitar recordações;
Molotov, foi despachado para um irrelevante cargo de embaixador na Mongólia;
etc. (Afinal, os “cocktails Molotov”
não foram uma invenção deste dirigente soviético, mas antes uma improvisação
dos finlandeses na invasão que sofreram em 1939 por parte dos seus vizinhos
russos.)
A crítica do “culto da personalidade” foi a fórmula
que Krushtchev fez consagrar no XX Congresso do PCUS em 1956 e que lhe permitiu
liderar sem partilha o império vermelho até ser apeado pelo mais realista Brejnev em 1964: a derrota na “crise dos mísseis
de Cuba” e o persistente fracasso da agricultura – levando à política de
“coexistência pacífica” e à necessidade de compra maciça de trigo americano –
pesaram mais do que a edificação do Pacto de Varsóvia, o êxito do Sptunik ou o arsenal atómico entretanto
desenvolvido. O “Estalinismo” passou para o plano do esquecimento mas atiçou as
reações ideológicas e políticas entre a URSS e a China, envolvendo também
potências menores como o Vietnam, a Coreia do Norte ou a minúscula Albânia. E
dividiu os movimentos comunistas em vários países. A grande geoestratégia de
Moscovo passou então a assentar na gestão do statu quo europeu/atlântico e, sobretudo, nas lutas
independentistas do “3º mundo” como avanço da sua influência mundial (infelizmente
assunto pouco tratado na realmente interessante e valiosa análise da
descolonização portuguesa feita por Pezarat Correia na sua tese de doutoramento
apresentada em Coimbra em Julho passado).
É verdade que a URSS se tornou em poucos anos numa
potência industrial, tecnológica e nuclear que pôde fazer frente ao mundo
ocidental e ao sistema capitalista em que este assentava. Também veio a
proporcionar às suas populações urbanas padrões sanitários e educacionais nunca
antes imaginados. Mas a que preço! E a ineficiência da sua economia
administrativa-estatal era espantosa. Por exemplo, a produção agrícola só passado
o meio do século voltou a igualar os níveis de antes da 1ª guerra mundial.
Contudo, é certo que depois da morte de Estáline e
do XX Congresso, os processos ditatoriais estalinistas cessaram, na sua mais
horrenda expressão. As denúncias de alguns arrependidos e o apoio que o
Ocidente deu a personalidades como Soljenitzyne ou Sakarov produziram efeitos. A
força militar (efectiva ou como ameaça) ficou reservada apenas para acções
externas, como o faria em circunstâncias idênticas qualquer outro estado
imperial: caso das insurreições húngara (1956) e checoslovaca (1968), do
escorregamento pró-ocidental da Polónia ou da invasão do Afeganistão nos anos
80. Só isso explica – mais a tentativa reformadora de Gorbatchev-Schevardnadze,
tardia e impotente – a “implosão” do império soviético, cujo formidável
potencial militar-policial acabou por ser absolutamente impotente para salvar o
regime. O qual, apesar deste balanço avassalador, continua a alimentar as
ambições e a acção determinada de alguns dos seus mais fervorosos seguidores,
incluindo teóricos e artistas de alguma craveira intelectual.
Ainda hoje, os comunistas me inspiram
simultaneamente respeito (pelo rigor com que geralmente pautam as suas
intervenções), temor (porque veneram os seus amigos que “encostaram à parede”
todos os que resistiram ao seu poder
dominante, fossem eles capitalistas, católicos, monárquicos ou anarquistas, e
muitos deles voltariam a fazê-lo se a situação o proporcionasse) e algum
desprezo (pelo fanatismo primário com que defendem a sua causa e os seus
caudilhos).
O comunismo foi tão exterminador de vidas como o
nazismo ou mesmo mais (o que não se mede em mais ou menos milhão de mortos).
Mas o comunismo foi decerto o maior embuste do século XX.
JF / 20.Out.2017