Este foi o título de um livro memorial escrito pelo
britânico George Orwell sobre um tempo da guerra civil que o mesmo vivera na
Catalunha integrado nas milícias esquerdistas que combatiam contra os exércitos
de Franco.
Então, em 1936-37, catalanistas, anarquistas e
trotskistas dispunham do poder que imperava nas ruas de Barcelona, Lérida ou
Huesca e no interior de Aragão até às proximidades de Saragoça, porém numa
tensão constante contra outros sectores defensores da República, mais moderados
ou então oportunistas como os homens do PSUC (Partido Socialista Unificado de
Catalunha, isto é, o partido comunista “filho de Moscovo” mas com roupagens
regionalistas).
Já ninguém sabe ou se lembra dessas dolorosas páginas
de história mas, em terras hispânicas, mesmo democráticas, os modos conflituais
e irredutíveis de enfrentar as discordâncias de interesses ou opiniões parecem
continuar a ser o mote.
Há que ressalvar de imediato – e louvar – o facto de
que tudo até agora se tenha passado de forma pacífica e civilizada, apenas
jogando com manifestações de rua, contagens de votos, imagens televisivas,
declarações políticas e tomadas de decisão sempre dentro da legalidade. Porém,
sem disponibilidade da parte de cada um dos actores de topo – o governo da Generalitat catalã e o governo do Estado
espanhol – para conversações ou negociações políticas, directas ou com
mediadores reconhecidos. E, isto, devido não só à atitude intransigente e “más
políticas” destes governantes, mas também ao facto de eles estarem muito
condicionados por grupos de pressão e pelo peso psicológico de sectores da
opinião pública altamente mobilizados para as suas causas: na circunstância, a
independência sob forma republicana da Catalunha (com uma linha de recúo
possível para uma autonomia mais afirmada dentro de um quadro constitucional federal
do Estado espanhol), de um lado; e a manutenção do actual statu quo, na vigência da Constituição do “Estado das
nacionalidades” de 1978 e outras leis subsequentes, que tem sido a linha de
defesa de Rajoy e do seu Partido Popular, secundado com algumas condições e
ambiguidades pelo PSOE (em princípio mais favorável à solução federal) e pelo
Podemos! (sem posições firmes nesta matéria e sempre disponível para acompanhar
“a rua”). Quanto à União Europeia, outra posição não poderia esta tomar se não
a de remeter o caso para o “foro do Estado espanhol”, com um ou outro dirigente
estrangeiro a sugerir uma solução negociada e o sr. Putin a ser o único a não
esconder a sua simpatia pela causa catalã, pois tudo o que embarace a Europa é
bom para ele. Finalmente, note-se a prudente espectativa do Partido
Nacionalista Basco e do nacionalismo abertzale
mais radical, cuja fresca recordação da “luta armada” não lhes autorizaria
grandes manifestações mas que não deixarão de estar a seguir com a máxima
atenção este processo, para dele tirar proveito quando a oportunidade lhes
parecer mais conveniente.
É manifesto o sentido de expressão democrática que os
independentistas catalães têm querido mostrar, ao respeitarem as maiorias
apuradas em processos legislativos, referendários e parlamentares (escrutinados
por voto individual e secreto). Porém, também é indisfarçável o “golpismo” das
suas forças liderantes ao considerarem como vitória o resultado da conturbada
consulta referendária de 1 de Outubro último e ao ignorarem a posição
minoritária do Parlament catalão no
voto de declaração da independência do dia 27, ausentando-se da sala. De facto,
o parlamento compunha-se de 135 deputados e quem tomou a decisão foram os 70
votos Sim – porque houve 2 votos brancos nas bancadas da coligação de Puidgemont
(62) ou dos esquerdistas da CUP (10) – contra 10 votos Não e estando ausentes
os 53 restantes deputados dos partidos Ciudadanos, Socialista, Popular e ainda outro,
regional. Porém, os flashes da
comunicação social fixaram-se unicamente no brado “Independência!” e apenas
alguns comentadores mais avisados chamaram a atenção para o que aí vinha. Tudo
bem diferente do clima de debate político que acontecera na Escócia em Setembro
de 2014, onde não havia sombra de dúvida sobre a legalidade da consulta e o que
estava em jogo era essencialmente o ajuizamento da legitimidade da reclamação
independentista e as suas prováveis consequências, para os escoceses, o Reino
Unido e a Europa. Ainda assim, já neste fórum defendi que uma decisão deste
tipo – pela gravidade que encerra – devia ser sujeita a um processo de
escrutínio popular muito mais exigente, possivelmente requerendo uma maioria
qualificada e reconfirmada por nova votação algum tempo depois, tudo
devidamente regulamentado e aceite pelas partes interessadas.
A suspensão da autonomia catalã e a rápida convocação
de eleições regionais pelo governo de Rajoy mostra, pelo contrário, como o jogo
deverá prosseguir nos termos actuais, com paradas e respostas sucessivas e
sempre desta natureza, porém agora num nível superior de perigosidade e
possibilidade de derrapagens. Como vão decidir-se as forças políticas da
Catalunha perante a oportunidade eleitoral e que resultados daqui advirão? Como
vão actuar os responsáveis de topo e o “baixo” funcionalismo público catalão agora
sob as ordens da bela “comissária madrilena” Soraya Sáenz de Santamaría? Como
vai comportar-se nas ruas a massa de uns tantos milhares de irredutíveis adeptos
da independência face às decisões de Madrid e aos apelos das suas próprias lideranças
partidárias ou comunitárias? Lembremo-nos que grandes transformações políticas
ocorridas ao longo da história resultaram de pequenos choques sempre possíveis
nestas ocasiões, antes de se tornarem depois processos irreversíveis.
Basta um incidente, alguns tiros e mortos no asfalto
para as comoções se excederem e o conflito poder mudar de plataforma – subindo
para demonstrações de força que podem travar o processo mas só gerarão
ressentimentos de longo prazo; ou descendo para um nível mais racional e de
procura de soluções aceitáveis pelos representantes das partes conflituantes
(que sempre serão acusados de traição pelas suas franjas radicias). No primeiro
caso, há medidas políticas, judiciais, orçamentais e económicas com que Madrid
(com o beneplácito da UE) pode asfixiar a região rebelde e, em último caso,
mandar os militares realizarem uma demonstração de força, já que, segundo o
artigo 8º da Constituição, lhes cumpre «garantizar la
soberanía e independencia de España, defender su integridad territorial y el
ordenamiento constitucional». Mesmo apenas sob essa forma “demonstrativa”
(porque não é pensável outra mais violenta, pois não estamos na Ucrânia ou no
Kurdistão), esta seria a ultima ratio
de Madrid, como se percebeu no tempo de Zapatero quando o Jefe de Estado Mayor
de la Defensa o inquiriu a tal respeito e foi de imediato varrido de cena. No
segundo caso, certamente que já existem discretamente no terreno emissários de
ambas as partes que poderiam então receber luz verde para passar aos contactos
e discussões preliminares. A Igreja católica, as organizações empresariais,
alguma maçonaria, personalidades da cultura ou emissários de países amigos ou
organizações internacionais poderiam realizar estas missões de “bons ofícios”
dando certas garantias essenciais a cada um dos contendores sobre um mínimo de
pontos-de-apoio sólidos, comuns e satisfatórios para ambos, permitindo-lhes “salvar
a face”, de forma a que os necessários recuos possam ser sempre apresentados
aos seus adeptos mais moderados (e ao mundo) como vitórias parciais mas não
neglicenciáveis. No caso presente, uma saída dessas teria provavelmente que ser
sancionada pelo Rei, sob a forma de uma promessa de revisão constitucional (de
recorte federalista mais afirmado, eventualmente sujeita a referendo nacional),
e fortemente recomendada (isto é pressionada em seu favor) pelo empresariato
fixado na Catalunha, sob os aplausos da União Europeia.
Mas estas são “hipóteses de escola”,
frequentemente desmentidas pelo que se passa no terreno. Em última análise, o
evoluir da situação é apenas determinada pela disposição anímica que pode
sustentar uma causa colectiva em luta desigual e prolongada. E –
independentemente da questão de saber sobre quão progressista ou retrógrada pode
ser a criação de mais um Estado-nação no espaço europeu e mundial – a desgraça
é que a população residente na Catalunha (e para além da sua rica diversidade
demográfica) está agora mais dividida do que nunca nas suas opiniões quanto ao
eventual separatismo e irritada nas suas animosidades: uns contra os outros; alguns
contra Madrid; e, em Espanha, muitos contra os catalães.
Eis, por agora, os resultados de um
processo em que os principais responsáveis são, sem grandes dúvidas, as
lideranças mais recentes da região autónoma da Catalunha e da elite partidária
governante em Madrid.
Quanto a Portugal, embora (em tese) a
existência de um polo mais autónomo na Catalunha pudesse moderar a natural preponderância
que Madrid tenderá sempre a exercer sobre toda a Península Ibérica, um conveniente
realismo antecipatório aconselhará a que sejam evitadas todas as situações de
crise grave que abalem o estado vizinho, pelos reflexos negativos que isso
também decerto nos causaria.
Finalmente, sem rejeitar liminarmente as
legítimas aspirações de certos povos à sua auto-determinação, é compreensível e
desejável que a União Europeia use da maior prudência na maneira como lida com
cada um destes processos, tais são as subtilezas, delicadezas e especiosos arranjos
estabelecidos no passado, demonstrando a precariedade e voluntarismo de quase
todos os processos de afirmação nacional no espaço Europeu, e a percepção de
como certos antagonismos poderiam de novo exacerbar-se. Neste sentido, é
importante estarmos atentos aos objectivos expressos e implícitos destas
mobilizações populares proto-nacionais, tanto como aos modos de acção colectiva
a que lançam mãos (violentos, democráticos ou nem tanto), e ainda à
credibilidade das suas lideranças. As imagens mediáticas e a cobertura
informativa servida aos cidadãos europeus são muitas vezes enganadoras.
JF / 29.Out.2017
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