Eu fui sociólogo profissional, investigando,
ensinando e publicando durante cerca de três décadas. Já uma vez abordei aqui
esta questão, recordando um antigo e famoso debate “franco-britânico” sobre the servants of power. Noutra ocasião,
lembro-me de ter travado uma interessante discussão oral sobre a mesma questão,
aliás com pessoa muito minha amiga; mas, como é normal, não chegámos a qualquer
conclusão consensual.
Dessa conversa ficaram-me contudo algumas pistas e
ideias vagas por explorar, que vou tentar agora retomar.
A primeira é, obviamente, a que de que, quem tenha
uma boa formação teórica em sociologia (e necessariamente também suficientes
conhecimentos de economia, ciência política, história e relações
internacionais) estará em boas condições para funcionar como “conselheiro do
príncipe”, isto é, como analista, redactor ou propositor dos discursos que a
personagem ocupante do poder é constantemente obrigada a pronunciar, seja ela
presidente, ministro, alto funcionário ou chefe autárquico. Felizmente, só
ocasionalmente participei em algum desses círculos mas não me foi difícil
perceber que, nos brain stormings que
antecedem as principais decisões dos dirigentes, os mais bem preparados e
incisivos dos peritos também presentes (sociólogos e outros) possam influenciar
decisivamente a decisão final do “chefe”. A sua capacidade de influência não
estará tanto na qualidade e abrangência dos estudos que anteriormente tenham
feito ou consultado, mas antes na excelência da sua expressão e capacidade
argumentativa. É certo que, neste domínio (tal como nas propostas de redacção
de textos normativos), os juristas levam geralmente vantagem sobre quaisquer
outros especialistas (dado que foram seleccionados e longamente treinados para
tal). Mas, como estamos tratando de grupos restritos, tal “lei sociológica”
pode ser aqui perfeitamente irrelevante: contam sobretudo as qualidades
pessoais de cada qual – e só de forma mais distante a teoria e a investigação
empírica que porventura foram usadas como justificação. Digamos de outra forma:
as decisões do poder (que afectam todos os abrangidos pela sua autoridade
soberana) são provavelmente, na sua maioria, resultado de um restrito jogo de
interacções entre uma dúzia de pessoas (incluindo as ausentes mas que se fazem
notar pelo telefone), cujos interesses e motivações inconfessáveis poderão ser
mais de ordem pessoal ou interpessoal, do que propriamente em função do
“interesse geral” da colectividade a quem irão ser aplicadas. Nestas condições,
os sociólogos mais aptos e brilhantes em tais exercícios podem esperar ter um
futuro brilhante à sua frente, apenas com o risco de, em democracia, a ocupação
do poder supremo ser mutável, mas com a garantia de que os derrotados já não
acabam degolados ou a apodrecer numa enxovia.
A segunda ocupação profissional mais indicada para
os sociólogos é hoje a de jornalista (e, se for bem sucedido, de comentador).
Aqui não é o poder que atrai, fascina e instrumentaliza os saberes do
especialista: é outra coisa, mas que não tenho a certeza que seja mais nobre,
embora o pareça. Trata-se, não de gerir o poder de comandar as massas, mas, de
certa maneira, de orientar as massas contra o poder en place. Com alguma ingenuidade, pode tomar-se isto como a versão
mais libertária da forma de intervenção política disponível na actualidade.
Mas, na realidade, a actividade jornalística(-comentadora-publicitária) ao
dispor dos sociólogos alarga-se em uma panóplia vastíssima de formas,
modalidades e efeitos que ela pode vir a tomar e, em seguida, a chegar,
enquanto tal, aos públicos. O holandês Pim Fortuyne, por exemplo, usou os seus
saberes sociológicos ao serviço de uma intervenção política situada à
extrema-direita. Muitos dos nossos melhores profissionais da imprensa (escrita
e falada) conseguem ter o dom de parecer neutros
e imparciais nas disputas que atravessam a sociedade e estruturam a vida
política quando, cuidadosamente analisados – nas entrevistas, editoriais ou
textos de comentário – raros são os que não pendem para um dos lados do
conflito. Quanto aos sociólogos-jornalistas menos elaborados, a sua preocupação
irá hoje sobretudo para a manutenção do seu posto de trabalho e alinhavam as
suas intervenções de acordo com o que lhes mandam fazer e lhes parece mais
conforme àquele objectivo. Finalmente, numa versão mais sofisticada, é hoje
corrente os jornais (e outros meios informativos) basearem as suas notícias em
“estudos”, normalmente carimbados com garantia académica. Mas aqui, de duas,
uma: ou o “estudo” é de fraca valia, mereceu a duvidosa aprovação de um júri
distraído ou de conveniência e trata-se, no fundo, do esforço de divulgação da
“tese” de um “doutor(a)” pleno de ambição e poucos escrúpulos; ou é um trabalho
científico sério que apenas foi lido, mal e apressadamente, pelo jornalista, o
qual procura tirar de algumas das suas passagens as afirmações que lhe parecem
mais “bombásticas”, susceptíveis de títulos atraentes para o grande público.
Quer como “conselheiros do poder”, quer como
“fazedores de notícias”, há evidentemente lugar para que sociólogos bem
formados e de forte personalidade realizem desempenhos profissionais sérios e
produtivos. E alguns exemplos concretos poderiam ser apontados. O mesmo se pode
dizer daqueles que fazem a sua vida activa nas empresas e em instituições
públicas ou de solidariedade social, sejam elas laicas ou de inspiração
religiosa.
Porém, no que respeita à dualidade (e confusão)
entre ciência e intervenção política, há muito que fui impressionado pela frase
com que uns editores espanhóis intitularam uma antologia de textos do
doutrinador anarquista Kropótkine que tratava de questões de Estado, históricas
e revolucionárias próprias do século XIX, nestes termos: «La sociedad fue primero». E apostaria dizer que, acima que tudo,
onde a vocação do sociólogo mais plenamente se realiza será no seio de
institutos de investigação de reputação bem estabelecida, onde a autonomia
(devidamente regulamentada) da escolha dos objectos de estudo, da orientação
dos projectos, dos responsáveis e dos investigadores esteja plenamente assegurada.
Fiquei algo incomodado por um artigo publicado na
imprensa por Boaventura de Sousa Santos
(“Em defesa da Venezuela”, Público
de 29.Jul.2017) no qual se proclama defensor da “revolução bolivariana” (criada
por sucessivos pequenos “golpes” institucionais do militar paraquedista Chávez
e prosseguida por outros do seu “perroquet”
Maduro) e do progresso social por ela logrado para os “descamisados” (educação,
distribuição do rendimento, etc.), revolução que, segundo ele, tem vindo a ser
combatida pela Casa Branca (incluindo Obama), pelo “império petroleiro”
americano (cujos interesses são indesmentíveis, mas não como um diabo pintado)
e pela comunicação social do Ocidente (aqui, provavelmente com uma parcela de
razão, mas não sob a batuta de alguém). Se no caso do PCP só se espantará quem
já estava embalado pelo “democratismo” quotidiano de que dá mostras em política
interna (por vezes com razão e bons resultados porque “eles não brincam em
serviço”), no professor de Coimbra, arauto de uma sociologia crítica nos
areópagos académicos, esta sua postura parece assemelhar-se à de um Chomsky que
aproveita todas as liberalidades do sistema americano para descarregar a fundo
sobre os crimes e pecados deste e juntar a sua voz à de qualquer um que o
queira destruir – de Moscovo ao “Crescente”, da China a outras potências
menores –, não lhe faltando razões para isso (nem faltarão nos tempos mais
próximos, com a “cabeça agitada” que agora manda em Washington). Valeu a
demarcação feita alguns dias depois na mesma folha por Elísio Estanque para
“salvar a honra do convento”.
Outras armadilhas povoam o terreno do pensamento
científico contemporâneo. Ao acaso de leituras dispersas, retive referências na
imprensa a Jacques Le Gof, sobre «o delírio narcísico do indivíduo pós-moderno»
(Visão, 14/20.Ago.2914), ou de João
Pedro Marques sobre «A ditadura da memória», a propósito do “politicamente
correcto” no caso das abordagens históricas do fenómeno da escravatura (inter
alia, Público, 1.Set.2017). Num
parêntesis, diga-se que, para entender melhor o regime português da escravidão
e da sua abolição, não pode deixar de reflectir-se sobre as obras recentes de
Arlindo Manuel Caldeira (Escravos em
Portugal, 2017), Miguel Bandeira Jerónimo (Livros Brancos, Almas Negras, 2010) ou do próprio João Pedro
Marques (Os Sons do Silêncio, 1999).
Também li há pouco o arranjo romanceado de Catherine
Clément O Último Encontro (entre
Heidegger e Hannah Arendt), uma espécie de “livro de vida” para um ocidental
inquieto que viveu o século XX. Além da exploração de outras valências e
dimensões do pensamento e da acção humanas, esta excelente obra mostra-nos os
equívocos, riscos e ilusões em que facilmente podem cair os pensadores (mais
talvez os filósofos do que os cientistas) que se aventuram incautamente pelos
terrenos da intervenção política. Mas, como bem viu António Pedro Dores (em Anarquismo, Trabalho e Sociedade, 2017:
619-632), a definição weberiana d’O
Político e o Cientista não chega para resolver este tipo de problemas.
JF / 13.Out.2017
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