A história da Europa foi um processo muito complicado,
que só os especialistas dominam com desenvoltura. A política (com os
desempenhos reais, a guerra e a diplomacia a terem aqui o papel dominante), mas
também a religião, a economia, as compartimentações geográficas (rios e maciços
montanhosos) e certos fenómenos ou acontecimentos culturais misturam-se num
emaranhado de causas e efeitos que exigem uma atenção rigorosa à cronologia e
ao desenho das fronteiras.
Temos geralmente uma ideia (mais ou menos aproximada)
do que se passou depois da Revolução Francesa e da invenção da fábrica e da
máquina a vapor. Mas sobre o que foi a Europa na longa transição da Idade Média
para os Tempos Modernos, tudo se nos torna mais confuso. Deixemos de fora,
desta vez, a época medieval e mesmo o Renascimento (quando, segundo alguns, a
Europa começou a preparar a Modernidade) para nos concentrarmos na realidade
dos estados que retalhavam este continente desde o movimento da reforma
protestante do século XVI até ao novo grande marco histórico que foi a
Revolução Americana de 1776. Bem entendido, traçamos apenas um esboço, a traço
grosseiro, das políticas desenvolvidas pelos principais poderes soberanos no
período compreendido entre o estilhaçar da hegemonia espiritual da Igreja de
Roma sobre o ocidente europeu e a primeira revolta libertadora de uma possessão
colonial contra os Senhores distantes seus mandantes.
Às críticas e declarações de ruptura protagonizadas
por Lutero e Calvino contra o Papa, seguiu-se o conflito aberto e a reacção da
Contra-Reforma, em que se inseriu a criação da ordem dos Jesuítas e o
recrudescimento da actividade do tribunal do Santo-Ofício. Mas se isto se
passou no interior do movimento religioso, pior talvez foi a entrada em cena de
poderes políticos alinhados com um e outro lado da contenda teológica,
doutrinária e disciplinar da Igreja. Até então subsistia no âmago do continente
o velho Sacro-Império Romano-Germânico medieval, ou seja, a aliança do
principal rei alemão com o bispo de Roma. Recorde-se que a Alemanha desse tempo
estava politicamente fragmentada em algumas centenas de pequenos estados
(principados, etc.) e esclareça-se o significado de termos que desaparecerem do
nosso léxico como as Dietas e os Grandes Eleitores: as primeiras eram
parlamentos selectivos onde só tinham assento nobres e hierarcas religiosos; os
segundos, eram os príncipes mais poderosos que elegiam o titular do
Sacro-Império.
Os cálculos e os acasos das descendências puseram nas
mãos do seu imperador Carlos V a Áustria, a Boémia, parte da Alemanha, os
Países-Baixos, a Espanha, etc. (1519). O seu filho Filipe II perdeu a Holanda
(1579) mas acrescentou-lhe Portugal e as posições que este detinha além-mar
(1580). Poucos anos depois, em 1588, os navios da rainha Isabel I de Inglaterra
(filha de Henrique VIII, que proclamara a independência da sua Igreja em
relação ao Papa) e uma oportuna tempestade derrotaram a Invencível Armada dos
reis católicos de Espanha. Começou aqui o lento declínio dos países ibéricos, a
partir da transferência do seu comércio marítimo de longo curso para Holandeses
e para Ingleses.
Estes séculos XVI e XVII assistiram a um prolongado
período de guerras religiosas, porém protagonizadas pelos monarcas dos vários
estados existentes no espaço europeu. Houve de tudo: guerras civis e guerras
entre soberanos; também guerras sociais, nomeadamente aquelas que opuseram os
camponeses da Europa central aos “senhores da terra”, que os esmagavam de
impostos e corveias; às vezes também entre príncipes (ou bispados) e cidades
livres. Até a católica Espanha teve de enfrentar idêntica revolta das
comunidades municipais (e acessoriamente de camponeses, também com laivos de
milenarismo religioso), com os comuneros
de Castela (1520-1522), em reacção contra a centralização de poderes imposta
por Carlos V.
Percorrendo os manuais de história, a confusão parece
grande para qualquer não-especialista, mesmo medianamente culto, e torna-se
impossível sintetizá-la em poucas linhas sem cometer grosseiras simplificações.
Porém, uma coisa parece certa: estarmos num período
de transição no qual a disputa religiosa (sempre no quadro cristão)
simultaneamente acelera e mascara a transferência da principal conflitualidade
do âmbito inter-feudal (e, portanto,
aristocrático-familiar) para o âmbito inter-nacional,
sendo que, nesta fase inicial, o “nacional” é representado ainda
incipientemente por alguns grandes reis precursores ou realizadores do
“absolutismo”, como sucedeu no caso da França (com Francisco I, um dos últimos
da dinastia de Vallois no século de Quinhentos; e com Luís XIV, já dos
Bourbons, no seguinte, pilotado por ministros como Richelieu, Mazarin ou
Colbert) e também da Prússia (antes principado de Brandeburgo, agora com
Frederico II, o Grande), antecipando o que viriam as ser os grandes conflitos
franco-alemães dos séculos seguintes. Note-se que em Portugal, o “absolutismo”
só chegou verdadeiramente no século XVIII sobretudo quando Pombal impôs aos
duques a supremacia dos interesses do rei(no).
Outros poderes “nacionais” se esboçam também, mais nas
periferias, como aconteceu na Escandinávia, na Holanda, nos estados-da-Igreja
italianos e na Espanha (que nessa altura englobava Portugal e constituía um
império colonial poderoso), cada qual com a sua especificidade. Mas é desde já
de assinalar que no exterior deste
espaço continental, outras grandes potências marcavam a sua presença, sobretudo
o império Turco-Otomano que, além do Próximo-Oriente, incluía os Balcãs e a
Grécia, partes da Hungria e chegou mesmo a ameaçar Viena (em 1529 e 1631), só
sendo travado no Mediterrâneo pela resistência de Malta (1565) e pelas
coligações levantadas pelos papas e os sucessos das batalhas navais de Lepanto
(1571) e Matapan (1717). Mais distante era então a ameaça do gigante Russo,
pois com Ivan o Terrível os monarcas de Moscovo haviam sobretudo consolidado o
Estado despótico, capaz de impor a sua ordem nas terras distantes do Cáucaso e
da Sibéria, e só com Pedro o Grande, já em finais do século XVII, é que se
viram para o Báltico e a Europa. Quanto à Inglaterra, viveu sempre uma sua
própria catarse histórica, naturalmente articulada com a continental mas de
forma específica: lançando-se na aventura marítima na peugada de Holandeses,
Espanhóis e Portugueses; resolvendo pela força as disputas dinásticas com a
Escócia e a breve aventura “republicana” de Cromwell e dos levellers (igualitaristas); e, finalmente, pelo domínio do
parlamento de Dublin (1618), a migração de britânicos e também pelo recurso às
armas, passando a dominar a católica Irlanda, impondo aí as leis de Londres e
os interesses da minoria latifundista protestante-anglicana.
Mas vejamos um pouco mais atentamente o essencial
daquelas guerras de religião (que têm
alguma homologia com as que actualmente encarniçam sunitas, xiitas e outras
espécies na esfera do Islão, quanto mais não seja pela violência extrema a que
recorrem).
Os reinos da península Ibérica constituíram-se em
defensores incondicionais da Contra-Reforma e do Papado, tal como, naturalmente,
as oligarquias, príncipes e duques italianos que mais haviam estimulado o
Renascimento. Na Europa central, a Áustria, a Boémia, a Baviera, os Húngaros –
sustentáculos do que restava do Sacro-Império – ficaram com a ortodoxia romana,
mas boa parte dos príncipes alemães apoiaram Lutero e o luteranismo contra os
católicos. A doutrina de Lutero também vingou a norte, com a Suécia, que
dominava a Dinamarca e a faixa alemã do mar Báltico. Em contrapartida, os
Polacos tombaram para o partido católico. Os Países-Baixos, depois de sacudida
a dominação da casa de Áustria (os Habsburgos), adoptaram uma especiosa forma
republicana (onde o comércio marítimo estava nas mãos dos grandes burgueses da
Companhia das Índias), porém tutelada pelos monarcas da dinastia de Orange-Nassau
que favoreceram o protestantismo. Parte substancial da Suíça aderiu ao
calvinismo. E em França dividiram-se as “opiniões”, constituindo-se uma forte
minoria protestante (os huguenotes) ao mesmo tempo que o Estado se mantinha do
lado do Papa. Em 1572, uma armadilha real provocou a matança (estima-se 20 a 30
mil) dita de S. Bartolomeu, a qual reacendeu os ódios religiosos, as
perseguições e os exílios, que só se apaziguaram com o Édito de Nantes (1598)
proclamado por um rei já da dinastia dos Bourbons, que tolerava a dissidência e
selava alguma paz religiosa. Porém, já no final de Seiscentos, o referido Édito
foi revogado, o que levou a nova exacerbação do conflito, com especial
incidência em algumas regiões do centro do país, como o Limousin e Poitou-Charente,
e do sul (onde já no século XIII lavrara a dissidência milenarista dos
Albigenses).
As perseguições religiosas também aceleraram a
emigração de muitos alemães, ingleses, franceses e gente de outras origens para
a América do norte (enquanto holandeses se enraizavam no sul de África).
Em todo o caso, os países de cultura germânica foram
os que mais tipicamente protagonizaram as guerras religiosas do cristianismo: primeiro
nas décadas de 20, 30 e 40 do século XVI, com a liquidação física dos radicais
de Tomás Münzer e dos anabaptistas, as divisões dos príncipes alemães entre si,
e a concretização de uma paz religiosa em Augsburgo (1555), que também viu a
retirada do “católico romano” Carlos V para um convento; depois, no século XVII,
com a Guerra dos 30 anos.
Em 1618, com pretexto na “defenestração de Praga”,
iniciou-se esta guerra travada sobretudo em solo germânico mas também em zonas mais
distantes, com diferentes protagonistas envolvidos e alguns volte-faces
surpreendentes. Maiormente, distinguiam-se aqui: uma “liga católica” de estados
alemães liderados pela Baviera; uma “união protestante” com outros príncipes
teutões sob o comando do rei da Dinamarca; as forças militares dos Habsburgos
da Áustria e da Boémia; aliados destes, exércitos espanhóis (e portugueses)
intervieram também no conflito, sobretudo a partir da entrada em cena da
França. Com efeito, cerca de 1630, a vitória parecia sorrir aos católicos,
quando Gustavo Adolfo da Suécia decidiu entrar na contenda ao lado dos seus
correligionários protestantes; e, em seguida, a França, oficialmente católica, malgré celà agiu já segundo os seus
interesses de “Estado territorial” (com posições geoestratégicas e apetites
económicos, e temerosa sobretudo de uma “unidade alemã”) ao secundar o esforço
de guerra dos suecos e vir a ser, com eles, a potência vencedora.
A “paz de Vestfália” só simbolicamente hoje designa o
fim desta guerra, já que se tratou de um conjunto de vários tratados (de
Münster e Osnabrück, que incorporaram os anteriores de Praga e de Augsburgo) e
a paz entre a França e a Espanha só foi assinada em 1659 (pelo tratado dos
Pirenéus). Estes documentos político-diplomáticos reconheceram os estados
europeus assim definidos (os grandes e os pequenos) assegurando tanto os de
dominância católica como os de religião oficial protestante, reajustaram as
fronteiras entre a França e os principados alemães, garantiram a completa
independência dos Países Baixos e da Suíça, preservaram a identidade da Polónia
e aumentaram o domínio da Suécia com territórios alemães da bordadura báltica,
mas não por muito tempo. Portugal aproveitou a circunstância de uma Espanha
derrotada para consolidar a sua independência (restaurada em 1640), ao apoiar
diplomaticamente as posições dos vencedores franceses e suecos e ao beneficiar
da prioridade militar que Madrid concedeu à subjugação da Catalunha.
Talvez que os analistas de hoje exorbitem um tanto na
sua interpretação de que o “tratado de Vestfália” fundou o sistema de relações
internacionais com base na soberania dos
estados, pois continuaram presentes diversas características do poder
pessoal dos soberanos que, em muitos casos, estavam ainda longe de ter
conseguido unificar as regras regalianas vigentes nos seus países. Mas é certo
que, doravante, não houve lugar para mais guerras explicitamente religiosas no
seio da cristandade e as relações entre as casas reinantes passaram, cada vez
mais, a ser definidas enquanto representação externa e expressão dos interesses
dos Estados-nação, vistos doravante como a única autoridade reconhecida dentro
das suas fronteiras e únicos actores do moderno sistema de relações
internacionais, de jure (mas não,
frequentemente, de facto). Ficaram
assim criadas novas condições políticas (a juntar às filosóficas, económicas e
sociais) para o advento da Modernidade.
JF / 30.Jun.2017
Sem comentários:
Enviar um comentário