Estava-se em
plena Batalha do Atlântico e a corveta Compass
Rose navegava em mar picado rumo a nordeste. O navio era acanhado e
escassamente equipado mas o comandante Ericson conseguira unir bem a centena de
homens da sua guarnição para o cumprimento das missões que lhes eram
atribuídas, essencialmente de escolta de comboios de navios de transporte com
subsistências, homens e materiais para as populações e as frentes de guerra
aliadas na Europa. Os submarinos da Kriegsmarine
atacavam com frequência lançando os seus torpedos em imersão, ora isoladamente,
ora em “matilhas”, perseguindo por vezes as suas presas durante muitas horas
até acharem o momento mais adequado para terem sucesso.
Passava das 7
da manhã e os quartos preparavam-se para serem rendidos na corveta quando um
dos navios que se atrasara um pouco do comboio foi torpedeado, a cerca de 2
milhas de distância. Tocou o besouro dos postos-de-combate, o comandante subiu
rapidamente à ponte, ordenou “toda a força a vante” e a proa conveniente ao
homem-do-leme de modo a acercar-se da zona onde umas dezenas de náufragos
tentavam sobreviver, apenas com os seus coletes salva-vidas. Minutos depois, da
cabana do asdic, o marinheiro
operador lançou o grito: “Contacto! Tenho um eco no azimute um-três-cinco
vermelho”. Talvez influenciado por tal notícia, o grumete de vigia a bombordo
disse então que lhe parecera ter avistado um rasto branco de periscópio ou snorkel, entre a carneirada da pequena
ondulação. O comandante dirigiu para lá o seu navio mas ficou sem respiração
quando deu conta que se tratava, afinal, da mesma zona onde se encontravam os
náufragos, esbracejando: uns quarenta, calculou por alto. Se o submarino
inimigo estivesse ali, as bombas de profundidade que lançaria decerto os
matariam a todos. E as ordens do Almirantado e do Gabinete de Guerra de
Chuchill eram taxativas: tudo devia ser sacrificado ao objectivo de pôr fora de
combate um navio inimigo ou salvar uma unidade da Navy.
A seu pedido,
o imediato confirmou do asdic: “É um
eco autêntico. Só pode ser o submarino, que agora nos ameaça!”. Em tais
condições, nem pensar parar as máquinas da corveta e pôr na água as baleeiras
para resgatar os náufragos: seria oferecer um alvo imóvel aos boches. Dilacerado pelo dramático pela
situação, Ericson assumiu o dever de todo o comandante em combate: ordenou
“Pronto a atacar!”, completando com os dados de regulação da profundidade das
bombas, de acordo com o posicionamento do “eco”, já apenas a 300 jardas de
distância. E, num sofrimento moral
atroz, soltou a voz de “Fogo!”.
Como é sabido,
a superfície do mar estremeceu sucessivamente em círculos concêntricos brancos
donde se elevavam gerbes com vários metros de altura. Os corpos dos desgraçados
saltaram como bonecos desarticulados, muitos ficando despedaçados à tona de
água. Toda a guarnição da corveta estava lívida e alguns fitavam o comandante
tentando entender o seu estado de espírito. Mas, caso estranho, não boiaram
destroços do submarino nem apareceram manchas de óleo à superfície. Passaram os
minutos, agora com o inglês a pairar, na expectativa, sem compreender muito bem
o que se passava. O “eco” da detecção fora-se atenuando e quase desaparecera.
Vários marinheiros se interrogavam sobre o que, de facto, acontecera; se o
alemão os tinha ludibriado e escapado ao castigo; ou se…
O lieutenant-commander Ericson mandou
finalmente a “dar volta” aos postos-de-combate e regressar à navegação a
bordadas, reocupando o seu lugar na escolta. Conferenciou com o imediato e, em
seguida, fez seguir uma mensagem secret
para o comodoro do comboio. Nela dava conta do sucedido e aventava a hipótese
de o “eco” do asdic ter sido, afinal,
do casco do navio torpedeado descendo no oceano, e não do seu executor. E pedia
para ser substituído no comando logo que fosse oportuno.
Este é – mais
coisa, menos coisa – um caso relatado, com superior qualidade literária, por
Nicholas Monsarrat em The Cruel Sea,
livro que alguns liam nos anos 60. É um dos dilemas com que sempre se
confrontam os chefes militares no terreno, especialmente quando envolvidos em
guerras irregulares e assimétricas ou quando se batem no mar contra outros
marinheiros que, num instante, podem deixar de ser inimigos para se tornarem
náufragos que devem ser socorridos, na medida do possível. Esse é um drama de
todas as guerras e de grande parte das situações de emergência, para as quais
se exigem uma sólida formação moral e a plena assunção de responsabilidades
pessoais. Mas cabe à sociedade evitar que tais situações aconteçam.
JF /
8.Jul.2017
(Dedicado ao meu velho amigo Zé
Carlos B.B.S., que foi perito na matéria)
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