Mais do que quaisquer outros criadores artísticos, os
escritores ocidentais dos séculos XIX e XX foram muito tentados para fazerem
das suas obras literárias oportunidades de crítica social e política ou mesmo
para, com maior ou menor subtileza, propagandearem as ideias em que acreditavam.
De facto, deve ser muito difícil escrever uma novela
ou romance – sobretudo com os estilos de escrita daquelas épocas – sem produzir
juízos de valor sobre a sociedade em que a história se desenrola. E, nessas
circunstâncias, passa sempre uma mensagem para o leitor de valorização ou
depreciação da mesma, ainda que de forma implícita e não explorada. Porém, o romantismo que dominou uma boa parte da
produção cultural de Oitocentos tendeu quase sempre a focar-se nos indivíduos e
nas relações interpessoais, nos seus impulsos e estados-de-alma, nos encontros
e desencontros proporcionados pelo acaso enigmático ou potenciados pelas
paixões, com a consequente desvalorização do ambiente social em que as
personagens se movimentavam – salvo nesse papel de mera “tela de fundo” onde
evoluíam os actores. Pensemos em escritores como Balzac, Stendhal ou Victor
Hugo, em Walter Scott, em Dostoiévki e Tolstoi, ou ainda no nosso Garrett, e
podemos associar a arquitectura das suas obras com a arquitectura de pedra,
madeira, pintura e outros artefactos dos palácios da Baviera ou de Sintra (bem
diferente do efeito que a potência do império fazia pesar sobre os edifícios
vitorianos), ou com ecos do que aí se escutaria do piano de Chopin ou dos acordes
vibrantes de Beethoven.
A partir do último quartel do século XIX, as correntes
estéticas realistas trouxeram uma
ruptura significativa nestes códigos, enquanto se desenvolvia um gosto pelo folklore e o nacionalismo na música e
pelo naturalismo nas artes plásticas, cujo término foi anunciado por um Van
Gogh ou pelos impressionistas franceses. Na literatura, desviava-se a
incidência da sua focagem das pessoas e das suas interacções para o contexto
social em que se situavam, o qual, em boa medida, explicaria os seus
comportamentos e reacções, pelos “constrangimentos sociológicos” exercidos
sobre a liberdade de acção dos indivíduos. Relembre-se que estávamos então nos
balbuciamentos iniciais da ciência sociológica – muito marcada pelo mecanicismo
positivista, que teve amplo sucesso durante algumas décadas, influindo na
política, no direito e nas relações internacionais –, enquanto que,
nomeadamente, o estudo do psiquismo humano lutava ainda arduamente para se
libertar dos preconceitos associados ao sonambulismo, ao “magnetismo” hipnótico
ou à taxonomia das patologias mentais. Os escritores franceses e russos
destacaram-se em grande plano nesta nova “escola”, mas que teve cultores em
todo o ocidente e transbordou do romance para o teatro e a poesia: Flaubert,
Zola, Ibsen, Machado de Assis, Maiakowki e mesmo Erich-Maria Remarque ou John
Steinbeck filiam-se nesta corrente. Em Portugal, as obras da “geração de 70”,
com Eça de Queiroz à cabeça, ainda hoje nos percutem pelos contrastes do seu
radicalismo ideológico com a subtil exploração das emoções e a excelência da
sua expressão escrita.
Ao mesmo tempo que o surgimento da pintura abstracta e
o florescimento da art déco (e mesmo
os primeiros ensaios da música do século XX), da “belle époque” finissecular e da matança guerreira de 14-18 – um
trauma que devastou a consciência social de uma civilização –, essa época, dizíamos,
assistiu também ao aparecimento de uma literatura irregular, socialmente desinteressada, de que algum modernismo é hoje marco testemunhal,
como o são certamente os textos de Pessoa e dos primeiros surrealistas.
Os anos de entre-as-duas-guerras (que foi o auge de
tensão da “guerra civil europeia” teorizada por Nolte) tiveram a sua tradução
no plano cultural e literário com a luta surda entre estas duas grandes
correntes estéticas, que só imperfeitamente correspondiam a alinhamentos
político-ideológicos. No entanto, estes foram determinantes para o
posicionamento de quase todos os criadores, para a escolha dos temas e mesmo
para a esteticização das formas de expressão artística ou a instituição de
“escolas”. Por exemplo, na URSS o “realismo socialista” foi erigido em doutrina
oficial do partido e do Estado. E prolongou-se pelo mundo através das obras
literárias de autores ditos neo-realistas (como, de língua portuguesa, Alves
Redol ou Jorge Amado), mas também através do cinema (russo e italiano, sobretudo)
e outras formas de expressão artística.
Alguns criadores inicialmente adeptos da ruptura
revolucionária de 1917 e por ela entusiasmados, começaram a entender o
aproveitamento político que os dirigentes do Kremlin faziam dessa situação e,
mais cedo ou mais tarde, afastaram-se da sua obediência, tanto ideológica como
esteticamente. Foi, por exemplo, o caso de Malraux, de Breton, de Hemingway ou
dos espanhóis Garcia Lorca, Buñuel (no cinema) e Dali (na pintura). Pelo
contrário, dramaturgos como Brecht, pintores como Picasso ou poetas como Aragon
ou Pablo Neruda permaneceram sempre fiéis “ao Partido”. E, entre os
portugueses, que dizer, por exemplo, da evolução de José Rodrigues Migueis ou
de Mário Dionísio? Em sentido oposto, outros revolucionários houve, mas
libertários como o escritor Ferreira de Castro, o publicista João Campos Lima,
os jornalistas Pinto Quartim e Jaime Brasil ou o escultor Altino Maia, que
nunca se acorrentaram aos “primos” de Moscovo mas praticaram concepções
estéticas bem de acordo com os cânones neo-realistas.
Do lado da corrente modernista, não é preciso evocar
alguns dos seus nomes iniciadores (Marinetti, Céline ou Erza Pound) para
perceber quanto a sua ligação aos movimentos políticos foi menor ou
contraditória. Houve autores fascistas ou proto-fascistas (como aqueles), mas
também criadores que “se estiveram nas tintas” para a cor do governo, não
recusando aceitar as suas encomendas e produzindo obras de vanguarda
contrastantes com a ideologia oficial daquele, como foi entre nós o caso de
Almada Negreiros. E seria longa a lista dos modernistas que se colocaram declaradamente
do lado mais avançado e progressista dos confrontos políticos do seu tempo.
Algo isolados e excluídos pelos mentores
político-culturais do mainstream
situaram-se as sucessivas gerações de surrealistas
e alguns “franco-atiradores” não alinhados em parte alguma. Isso não impediu
que, em certas circunstâncias, os mesmos tomassem posições políticas,
compreensíveis umas, outras menos. Lembremos o caso de Jorge de Sena, exilado
voluntário de um país medíocre. Segundo um relato confiável (e confirmado
documentalmente), durante a campanha eleitoral de Delgado em 1958, Mário
Cesariny foi para a Baixa, sozinho, distribuir aos passantes um panfleto
apoiante de sua autoria («Um fragmento de liberdade») enquanto os militantes do
PC continuavam a propagandear a condenada candidatura de Arlindo Vicente… E à
indomável Natália Correia não faltou coragem para aderir ao PPD/PSD e defender alguns
dos seus pontos-de-vista no areópago de S. Bento, afrontando a esquerda.
Os terríveis dramas dos anos 30 e 40 – com o nazismo,
a guerra e as suas sequências – geraram o ambiente favorável ao surgimento do existencialismo (Sartre, e um pouco
Vergílio Ferreira entre nós), já antes anunciado por um instável ou
contraditório Paul Nizan e filosofado por Heidegger. Neste tempo, as migrações
são rápidas no espectro político, e em direcções cruzadas, mesmo entre
escritores de grande reputação, e com alguns “malditos” como Drieu la Rochelle.
Falando da incomunicabilidade, das perplexidades e dos comportamentos do “Homem
só”, a corrente existencialista ombreou durante alguns anos com as antecedentes
pelo favor de editores e leitores. Concentrando-se no mesmo nó temático mas
inserido na grande tradição russa, não podemos esquecer o Pasternak do Doutor Jivago, que o cinema
poderosamente popularizou. E numa versão comprometida com experiências
ditatoriais, temos a escrita rude de Camilo José Cela, falando da sua Espanha chica.
Mas, para além das modas – sempre com o seu quê de
estúpido –, existem as épocas históricas que, sem que alguém o decrete,
encerram certos períodos e controvérsias (ou paradigmas) e inauguram outros. As
clivagens entre modernistas e neo-realistas, existencialistas e surrealistas
(mesmo parcialmente ressuscitadas pelos situacionistas) foram sendo, a partir
de meados do século passado, progressivamente obscurecidas pelo surgimento do
“novo romance” ou, em Portugal, pelo movimento “poesia 61”. A influência
cultural francesa mantinha-se viva entre nós (até porque Paris era então a
pátria dos exilados e dos emigrantes ibéricos), primeiro com a insouciance de escrita da Françoise
Sagan, depois com Robbe-Grillet ou Marguerite Yourcenar (a primeira mulher a
entrar na Academie Française), para
já não falar do cinema, do ballet ou
da canção. Eugénio Manuel de Melo e Castro, Fiama Hasse Pais Brandão e Almeida
Faria, entre outros, assinaram então obras inovadoras, que Eduardo Prado Coelho
veio a teorizar a seu modo.
Do presente é mais difícil falar, porque não há recuo
suficiente, faltam as sínteses integradoras, a produção literária se
mundializou e nós já não a pudemos acompanhar. Fala-se da “literatura de
aeroporto” ou da “literatura light”
em termos pejorativos. Mas, esta nossa “terrinha” reconduzida à sua matriz
europeia e em clima de liberdade viu surgirem novos desenvolvimentos da escrita
romanesca, com certos traços surpreendentes. “Digerindo” a dolorosa experiência
das últimas guerras do império, escritores como António Lobo Antunes ou Lídia
Jorge souberam fascinar as novas gerações. E José Saramago foi capaz de
realizar a proeza de, permanecendo sempre um “estalinista” político, ser autor
de uma escrita ficcional diferente, que lhe valeu amplo reconhecimento
internacional.
Nesta resenha quase endo-psicanalista (porque foram
estes, e não outros, os nomes de que me foram vindo à memória?) faltam obviamente
escritores inapagáveis e tendências consistentes. Lembro-me agora do caso da
“literatura feminina” de uma Marguerite Duras, que entre nós se anunciou com as
Novas Cartas Portuguesas. Talvez
também de um novo romance histórico,
com nomes como Patrick O’Brien, Pérez-Reverte ou Fernando Campos. Mas a lista
dos Prémio Nobel é cada vez mais diversa de origens nacionais e divulga nomes
de proveniência latino-americana como Llosa ou Garcia Márquez e euro-africana como
Coetzee e Nadine Gordimer (a que nós poderíamos associar Mia Couto ou Pepetela).
E havia revelado poetas orientais como o indiano Tagore ou o japonês Kawabata
(mas não o suicida Mishima, nem o erudito argentino-do-mundo Jorge Luís Borges).
Novos criadores existem agora, no país e lá fora,
talvez mais libertos do que nunca das tentações da mensagem política ou da
crítica social. Muitos desses que escrevem em português, fazem-no com um
admirável domínio da linguagem, precisão do verbo e liberdade temática. Será
porque atingimos um grau de civilização superior? Ou porque estamos distraídos
do que se passa à nossa porta?
No entanto, para cada um de nós, leitor, nada disto é
muito relevante comparado com o prazer genuíno que tal ou tal autor, este ou
aquele livro, nos é capaz de proporcionar. Aí, sim, está o fascínio da
literatura, o génio de certos criadores e a imortalidade de certas obras – não,
nestas arrumações de estilos e escolas estéticas, que só têm interesse para os
especialistas aprofundarem as suas análises sobre a produção cultural ou, como
é o nosso caso, por “vício racional” de tentar arrumar em prateleiras e gavetas
aquilo que brota espontaneamente da sensibilidade de alguns e fascina
intensamente muitos mais.
JF / 22.Jul.2017
(PS: Li com
agrado a tomada de posição do historiador e romancista João Pedro Marques no Público de 18.Jul.2917 sob o título “Os
flagelantes e a escravatura”. Assinaria por baixo.)
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