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sábado, 22 de julho de 2017

Os escritores e o empenhamento sócio-político

Mais do que quaisquer outros criadores artísticos, os escritores ocidentais dos séculos XIX e XX foram muito tentados para fazerem das suas obras literárias oportunidades de crítica social e política ou mesmo para, com maior ou menor subtileza, propagandearem as ideias em que acreditavam.
De facto, deve ser muito difícil escrever uma novela ou romance – sobretudo com os estilos de escrita daquelas épocas – sem produzir juízos de valor sobre a sociedade em que a história se desenrola. E, nessas circunstâncias, passa sempre uma mensagem para o leitor de valorização ou depreciação da mesma, ainda que de forma implícita e não explorada. Porém, o romantismo que dominou uma boa parte da produção cultural de Oitocentos tendeu quase sempre a focar-se nos indivíduos e nas relações interpessoais, nos seus impulsos e estados-de-alma, nos encontros e desencontros proporcionados pelo acaso enigmático ou potenciados pelas paixões, com a consequente desvalorização do ambiente social em que as personagens se movimentavam – salvo nesse papel de mera “tela de fundo” onde evoluíam os actores. Pensemos em escritores como Balzac, Stendhal ou Victor Hugo, em Walter Scott, em Dostoiévki e Tolstoi, ou ainda no nosso Garrett, e podemos associar a arquitectura das suas obras com a arquitectura de pedra, madeira, pintura e outros artefactos dos palácios da Baviera ou de Sintra (bem diferente do efeito que a potência do império fazia pesar sobre os edifícios vitorianos), ou com ecos do que aí se escutaria do piano de Chopin ou dos acordes vibrantes de Beethoven. 
A partir do último quartel do século XIX, as correntes estéticas realistas trouxeram uma ruptura significativa nestes códigos, enquanto se desenvolvia um gosto pelo folklore e o nacionalismo na música e pelo naturalismo nas artes plásticas, cujo término foi anunciado por um Van Gogh ou pelos impressionistas franceses. Na literatura, desviava-se a incidência da sua focagem das pessoas e das suas interacções para o contexto social em que se situavam, o qual, em boa medida, explicaria os seus comportamentos e reacções, pelos “constrangimentos sociológicos” exercidos sobre a liberdade de acção dos indivíduos. Relembre-se que estávamos então nos balbuciamentos iniciais da ciência sociológica – muito marcada pelo mecanicismo positivista, que teve amplo sucesso durante algumas décadas, influindo na política, no direito e nas relações internacionais –, enquanto que, nomeadamente, o estudo do psiquismo humano lutava ainda arduamente para se libertar dos preconceitos associados ao sonambulismo, ao “magnetismo” hipnótico ou à taxonomia das patologias mentais. Os escritores franceses e russos destacaram-se em grande plano nesta nova “escola”, mas que teve cultores em todo o ocidente e transbordou do romance para o teatro e a poesia: Flaubert, Zola, Ibsen, Machado de Assis, Maiakowki e mesmo Erich-Maria Remarque ou John Steinbeck filiam-se nesta corrente. Em Portugal, as obras da “geração de 70”, com Eça de Queiroz à cabeça, ainda hoje nos percutem pelos contrastes do seu radicalismo ideológico com a subtil exploração das emoções e a excelência da sua expressão escrita.
Ao mesmo tempo que o surgimento da pintura abstracta e o florescimento da art déco (e mesmo os primeiros ensaios da música do século XX), da “belle époque” finissecular e da matança guerreira de 14-18 – um trauma que devastou a consciência social de uma civilização –, essa época, dizíamos, assistiu também ao aparecimento de uma literatura irregular, socialmente desinteressada, de que algum modernismo é hoje marco testemunhal, como o são certamente os textos de Pessoa e dos primeiros surrealistas.
Os anos de entre-as-duas-guerras (que foi o auge de tensão da “guerra civil europeia” teorizada por Nolte) tiveram a sua tradução no plano cultural e literário com a luta surda entre estas duas grandes correntes estéticas, que só imperfeitamente correspondiam a alinhamentos político-ideológicos. No entanto, estes foram determinantes para o posicionamento de quase todos os criadores, para a escolha dos temas e mesmo para a esteticização das formas de expressão artística ou a instituição de “escolas”. Por exemplo, na URSS o “realismo socialista” foi erigido em doutrina oficial do partido e do Estado. E prolongou-se pelo mundo através das obras literárias de autores ditos neo-realistas (como, de língua portuguesa, Alves Redol ou Jorge Amado), mas também através do cinema (russo e italiano, sobretudo) e outras formas de expressão artística.
Alguns criadores inicialmente adeptos da ruptura revolucionária de 1917 e por ela entusiasmados, começaram a entender o aproveitamento político que os dirigentes do Kremlin faziam dessa situação e, mais cedo ou mais tarde, afastaram-se da sua obediência, tanto ideológica como esteticamente. Foi, por exemplo, o caso de Malraux, de Breton, de Hemingway ou dos espanhóis Garcia Lorca, Buñuel (no cinema) e Dali (na pintura). Pelo contrário, dramaturgos como Brecht, pintores como Picasso ou poetas como Aragon ou Pablo Neruda permaneceram sempre fiéis “ao Partido”. E, entre os portugueses, que dizer, por exemplo, da evolução de José Rodrigues Migueis ou de Mário Dionísio? Em sentido oposto, outros revolucionários houve, mas libertários como o escritor Ferreira de Castro, o publicista João Campos Lima, os jornalistas Pinto Quartim e Jaime Brasil ou o escultor Altino Maia, que nunca se acorrentaram aos “primos” de Moscovo mas praticaram concepções estéticas bem de acordo com os cânones neo-realistas.
Do lado da corrente modernista, não é preciso evocar alguns dos seus nomes iniciadores (Marinetti, Céline ou Erza Pound) para perceber quanto a sua ligação aos movimentos políticos foi menor ou contraditória. Houve autores fascistas ou proto-fascistas (como aqueles), mas também criadores que “se estiveram nas tintas” para a cor do governo, não recusando aceitar as suas encomendas e produzindo obras de vanguarda contrastantes com a ideologia oficial daquele, como foi entre nós o caso de Almada Negreiros. E seria longa a lista dos modernistas que se colocaram declaradamente do lado mais avançado e progressista dos confrontos políticos do seu tempo.  
Algo isolados e excluídos pelos mentores político-culturais do mainstream situaram-se as sucessivas gerações de surrealistas e alguns “franco-atiradores” não alinhados em parte alguma. Isso não impediu que, em certas circunstâncias, os mesmos tomassem posições políticas, compreensíveis umas, outras menos. Lembremos o caso de Jorge de Sena, exilado voluntário de um país medíocre. Segundo um relato confiável (e confirmado documentalmente), durante a campanha eleitoral de Delgado em 1958, Mário Cesariny foi para a Baixa, sozinho, distribuir aos passantes um panfleto apoiante de sua autoria («Um fragmento de liberdade») enquanto os militantes do PC continuavam a propagandear a condenada candidatura de Arlindo Vicente… E à indomável Natália Correia não faltou coragem para aderir ao PPD/PSD e defender alguns dos seus pontos-de-vista no areópago de S. Bento, afrontando a esquerda.
Os terríveis dramas dos anos 30 e 40 – com o nazismo, a guerra e as suas sequências – geraram o ambiente favorável ao surgimento do existencialismo (Sartre, e um pouco Vergílio Ferreira entre nós), já antes anunciado por um instável ou contraditório Paul Nizan e filosofado por Heidegger. Neste tempo, as migrações são rápidas no espectro político, e em direcções cruzadas, mesmo entre escritores de grande reputação, e com alguns “malditos” como Drieu la Rochelle. Falando da incomunicabilidade, das perplexidades e dos comportamentos do “Homem só”, a corrente existencialista ombreou durante alguns anos com as antecedentes pelo favor de editores e leitores. Concentrando-se no mesmo nó temático mas inserido na grande tradição russa, não podemos esquecer o Pasternak do Doutor Jivago, que o cinema poderosamente popularizou. E numa versão comprometida com experiências ditatoriais, temos a escrita rude de Camilo José Cela, falando da sua Espanha chica.
Mas, para além das modas – sempre com o seu quê de estúpido –, existem as épocas históricas que, sem que alguém o decrete, encerram certos períodos e controvérsias (ou paradigmas) e inauguram outros. As clivagens entre modernistas e neo-realistas, existencialistas e surrealistas (mesmo parcialmente ressuscitadas pelos situacionistas) foram sendo, a partir de meados do século passado, progressivamente obscurecidas pelo surgimento do “novo romance” ou, em Portugal, pelo movimento “poesia 61”. A influência cultural francesa mantinha-se viva entre nós (até porque Paris era então a pátria dos exilados e dos emigrantes ibéricos), primeiro com a insouciance de escrita da Françoise Sagan, depois com Robbe-Grillet ou Marguerite Yourcenar (a primeira mulher a entrar na Academie Française), para já não falar do cinema, do ballet ou da canção. Eugénio Manuel de Melo e Castro, Fiama Hasse Pais Brandão e Almeida Faria, entre outros, assinaram então obras inovadoras, que Eduardo Prado Coelho veio a teorizar a seu modo.
Do presente é mais difícil falar, porque não há recuo suficiente, faltam as sínteses integradoras, a produção literária se mundializou e nós já não a pudemos acompanhar. Fala-se da “literatura de aeroporto” ou da “literatura light” em termos pejorativos. Mas, esta nossa “terrinha” reconduzida à sua matriz europeia e em clima de liberdade viu surgirem novos desenvolvimentos da escrita romanesca, com certos traços surpreendentes. “Digerindo” a dolorosa experiência das últimas guerras do império, escritores como António Lobo Antunes ou Lídia Jorge souberam fascinar as novas gerações. E José Saramago foi capaz de realizar a proeza de, permanecendo sempre um “estalinista” político, ser autor de uma escrita ficcional diferente, que lhe valeu amplo reconhecimento internacional.
Nesta resenha quase endo-psicanalista (porque foram estes, e não outros, os nomes de que me foram vindo à memória?) faltam obviamente escritores inapagáveis e tendências consistentes. Lembro-me agora do caso da “literatura feminina” de uma Marguerite Duras, que entre nós se anunciou com as Novas Cartas Portuguesas. Talvez também de um novo romance histórico, com nomes como Patrick O’Brien, Pérez-Reverte ou Fernando Campos. Mas a lista dos Prémio Nobel é cada vez mais diversa de origens nacionais e divulga nomes de proveniência latino-americana como Llosa ou Garcia Márquez e euro-africana como Coetzee e Nadine Gordimer (a que nós poderíamos associar Mia Couto ou Pepetela). E havia revelado poetas orientais como o indiano Tagore ou o japonês Kawabata (mas não o suicida Mishima, nem o erudito argentino-do-mundo Jorge Luís Borges).
Novos criadores existem agora, no país e lá fora, talvez mais libertos do que nunca das tentações da mensagem política ou da crítica social. Muitos desses que escrevem em português, fazem-no com um admirável domínio da linguagem, precisão do verbo e liberdade temática. Será porque atingimos um grau de civilização superior? Ou porque estamos distraídos do que se passa à nossa porta?
No entanto, para cada um de nós, leitor, nada disto é muito relevante comparado com o prazer genuíno que tal ou tal autor, este ou aquele livro, nos é capaz de proporcionar. Aí, sim, está o fascínio da literatura, o génio de certos criadores e a imortalidade de certas obras – não, nestas arrumações de estilos e escolas estéticas, que só têm interesse para os especialistas aprofundarem as suas análises sobre a produção cultural ou, como é o nosso caso, por “vício racional” de tentar arrumar em prateleiras e gavetas aquilo que brota espontaneamente da sensibilidade de alguns e fascina intensamente muitos mais. 
JF / 22.Jul.2017

(PS: Li com agrado a tomada de posição do historiador e romancista João Pedro Marques no Público de 18.Jul.2917 sob o título “Os flagelantes e a escravatura”. Assinaria por baixo.)

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