Embora muito desactualizado, tenho algum conhecimento
do mundo militar, não só livresco. Mas estou de fora dele, o que talvez me dê
uma maior isenção nas suas apreciações e decerto uma maior liberdade de
julgamento.
Os exércitos foram durante séculos forças privadas ao
serviço dos reis e da aristocracia mais elevada. A partir do século XVII, com a
afirmação dos estados-nação na Europa, começaram a reconhecer-se também como
defensores dos territórios nacionais e das suas populações. O grande choque da
Revolução Francesa e da aventura napoleónica fortaleceu a ideia de um exército nacional a que os
constitucionalismos liberais do século XIX deram a sua mais forte expressão com
o serviço militar obrigatório. Nessa época, os militares ainda juravam fidelidade
ao rei e à pátria. Com a generalização dos regimes republicanos ficou apenas o
patriotismo, mais as regras sagradas da disciplina e da obediência hierárquica.
Porém, estas referências maiores foram algo abaladas
no século XX pela difusão dos valores democráticos da liberdade e igualdade
proclamados urbi et orbi, mas talvez
sobretudo por uma ténue sensação reflexa de ilegitimidade que se foi decantando
sobre a experiência das horríveis mortandades das duas Guerras Mundiais
(incluindo milhões de civis na segunda) e das “guerras revolucionárias”
desencadeadas na segunda metade do século, que têm prosseguido até hoje sob
outras formas de conflito assimétrico (terrorismo, etc.). Neste quadro, os
grupos políticos de esquerda, sobretudo alguns dos mais radicais (ou
genuinamente pacifistas), estimularam comportamentos antimilitaristas na
população sobre a base da percepção – muito generalizada no século XIX e ainda
prosseguida no seguinte – de que os militares eram “fautores de guerras”, assim
como de golpes-de-estado de sentido conservador ou liberticida. Naturalmente,
referiam-se especialmente aos altos-comandos mas viam também no pessoal de
enquadramento (oficiais e sargentos) os elementos determinantes na operação de
transformar um “homem livre” num “pau mandado”. Pelo contrário, outros sectores
radicais do espectro político (de direita mas também de esquerda), apostaram
antes na infiltração dos seus agitadores no interior das instituições
militares, fosse para neutralizar a sua eventual acção anti-social ou para favorecer
um inimigo da sua simpatia, fosse para ter a força militar do seu lado numa eventual
disputa áspera pelo poder estatal. A palavra-de-ordem de Mao-Tse-Tung “o poder
está boca da espingarda” seduziu muitos jovens de meados do século passado.
O exército sempre corporizou a imagem mitificada da
instituição militar. Isto porque a marinha (de guerra) se constituiu desde cedo
como um corpo separado, meio-marinheiro, meio-militar, portador de uma
identidade cultural mais tradicional, conjugando o “aristocratismo” da
oficialidade com a rudeza das marinhagens, mas que o sentido do risco, da
aventura, e o brio da sobrevivência uniam de uma maneira muito particular. Além
disto, a partir do século XIX, a marinha sofreu, rápida e fortemente, o impacto
das modernizações técnicas industriais, enquanto o exército continuava a ser,
no fundamental, um rolo compressor de “trabalho-intensivo”. Nascida do nada,
nos alvores do século XX, a aviação (militar) improvisou-se, já em pleno “mundo
tecnológico” – de cujo desenvolvimento acelerado foi, de resto, um dos melhores
exemplos –, tendo, por isso, que inventar uma sua própria idiossincrasia,
assente no risco e no destemor, embora focada no domínio das suas competências
técnicas (e na importância dos seus custos). Ficou assim um corpo sem tradições
antigas, apenas adaptado o necessário às rotinas e rituais há muito vigentes
nos outros corpos militares, também porventura frágil na auto-percepção de como
podia ser instrumentalizado por interesses (políticos) alheios à sua missão
profissional.
As guerras externas em que Portugal esteve envolvido
nos últimos dois séculos foram apenas as guerras de ocupação colonial
(sobretudo entre 1891 e 1907), o conflito mundial de 1914-18 e as últimas
guerras-do-império em 1961-74. Porém, estivemos à beira de outras que tiveram
lugar ou se prefiguravam nas nossas vizinhanças geográficas e que obrigaram a
esforços intensos de defesa nacional armada, nomeadamente nos casos da guerra
civil de Espanha (1936-39), na guerra geral de 1939-45 e na “guerra fria” entre
o Ocidente e o Bloco de Leste entre 1950 e 1991. Em todas estas conjunturas, os
militares e a nação aceitaram os esforços que lhes foram pedidos, a despeito
das críticas de alguns sectores de opinião minoritários.
Em determinadas circunstâncias, as unidades militares
intervieram também no plano interno, para impor a lei-e-ordem, a mando do
governo legal. E produziram as três mudanças de regime político que o país
conheceu no século XX. Porém, depois de 1834, só rara e fugazmente se dividiram
em conflito armado, apenas algumas vezes aflorado ou ensaiado e logo apaziguado,
mais frequentemente brandido como ameaça para obter efeitos num jogo político
nacional de baixa qualidade. Mas hoje, como nos outros países do Ocidente,
vivemos numa sociedade pacífica, com subordinação das Forças Armadas ao poder
civil democrático, embora o ambiente externo geoestratégico esteja longe de ser
tranquilizador.
Em prontidão para combate, os militares portugueses
têm evidenciado qualidades de bravura, inteligência de comando e sistemática-e-improvisação
logísticas que são francamente comparáveis a forças estrangeiras dotadas de
muito melhores recursos. Porém, como em todos os outros exércitos, no resto do
tempo e na “vida quarteleira” imperam as rotinas burocráticas, os rituais
regulamentares e as práticas sem sentido objectivo – que vão ocultando os
subtis jogos de interesses inter-corporativos e as rivalidades na ascensão
profissional. Salva-se geralmente o cuidado posto na conservação do património
e no bom uso da “fazenda nacional” a seu cargo; e talvez também o
profissionalismo de que parecem imbuídas as novas gerações. Com dois adicionais
mais recentes: à vista do que nos conta a comunicação social, a desfaçatez do
ganho ilícito ou da corrupção vai alastrando por todo o sector público sem
encontrar barreiras éticas e legais suficientes; e as instituições
para-militares que nas últimas décadas têm proliferado (forças policiais, de protecção
civil, etc.) parecem querer imitar alguns dos piores comportamentos que podem
encontrar na esfera castrense.
Oxalá a futura realidade possa desmentir as actuais
preocupações.
JF / 15.Jul.2017
Post
Scriptum: A obediência cega e a disciplina-por-castigo (com o
essencial dos louvores para os comandos) eram provavelmente a única forma de lograr
que grandes massas de homens fossem vencedoras na batalha. E o rústico nível cultural
do pessoal de enquadramento que lhe estava associado era tanto o promotor necessário
dessa disciplina como o seu resultado.
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